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Vera Magalhães: Sem luto nem luta

O Brasil atingiu a inimaginável marca dos 250 mil mortos por Covid-19 sem que seu presidente tenha tido a decência mínima de decretar luto oficial, de determinar medidas enérgicas para conter uma curva que só empina ou de se empenhar para garantir vacina e auxílio emergencial a um país entregue à pandemia sem perspectiva de saída.

Assim como outras marcas tenebrosas em um ano de circulação do novo coronavírus em terras brasileiras, essa também passou em branco pelo Palácio do Planalto e pela Esplanada dos Ministérios. Vamos enterrando pessoas aos milhares todos os dias, sem que o governo federal reconheça a gravidade da crise sem precedentes que atravessamos.

Diante de uma tragédia que nenhum de nós, crianças ou velhos, viveu antes, Jair Bolsonaro está fazendo planos de mandar buscar em Israel não vacinas, mas spray nasal experimental.

Eduardo Pazuello está enviando doses escassas de imunizantes não para o Amazonas, epicentro das mortes, da falta de oxigênio e da nova cepa do vírus, mas para o vizinho Amapá, de população e urgência infinitamente menores.

O presidente não está se ocupando de exigir providências do general que enfiou na Saúde, mas do presidente da Petrobras. Não está empenhado em trocar o responsável pelo fracassado Plano Nacional de Imunização, mas sim o encarregado da publicidade oficial.

A pressa não é para conceder auxílio emergencial a quem precisa, depois que essa ajuda foi suprimida sem nada para ser colocado no lugar em dezembro, mas para subsidiar combustível para caminhoneiros que têm o presidente da República como refém.

No Congresso, o auxílio emergencial e o acordo para a compra de vacinas de outras empresas com que Bolsonaro achou por bem não negociar podem esperar. O que é para ontem é a aprovação de uma Proposta de Emenda à Constituição ampliando ainda mais os limites da já praticamente plena imunidade parlamentar. A imunidade ao vírus que espere. As pessoas que se virem.

Nesse cenário de absoluta anomia — estatal, social, cívica —, vivemos de improvisos que têm por objetivo mitigar o colapso no enfrentamento da pandemia.

O mais recente deles veio de novo do Supremo Tribunal Federal, que virou uma Corte de emergências de toda sorte. De acordo com a decisão tomada na quarta-feira, estados e municípios poderão adquirir vacinas por conta própria.

Trata-se de algo a ser celebrado, pois parece ser uma possibilidade ao menos de que saiamos da letargia em que o Plano Nacional de Imunização se encontra, justamente porque foi sabotado pelo presidente da República, por seus acólitos e seu general.

A chancela do STF é antes de tudo um atestado de fracasso, um carimbo da inépcia do Brasil para lidar com a crise. Outros virão: a decisão abre espaço também para que, no futuro, empresas privadas possam adquirir vacinas, o que contraria a lógica do Sistema Único de Saúde.

Mas, se não for isso, quando teremos a maioria da população imunizada, de forma a que se possa pensar em começar a reconstruir a economia, a educação e a vida das pessoas, que estão em decomposição há um ano?

Vivemos sob um regime que banaliza e precifica mortes, não importa as cifras que elas atinjam. É como se o presidente visse o taxímetro da pandemia correr e continuasse rodando despreocupadamente, fazendo barbeiragens em todos os demais assuntos nos quais esbarra pelo caminho.

Somos o vice-líder mundial em mortes por Covid-19, só abaixo dos Estados Unidos. E, no entanto, temos apenas a sexta maior população do mundo. Com o segundo maior número de mortes, só vacinamos menos de 4% da população. E assistimos a essa sucessão de indicadores do nosso fracasso como quem acompanha uma entediante partida de tênis, virando o pescoço indiferentes para um lado e para o outro.

Um ano depois, a constatação é que fomos derrotados. E não há nem choro nem indignação, só letargia.


Vera Magalhães: Karol Conká, Bolsonaro e o foco da indignação

Desde a edição que tinha o Diogo Alemão e a Siri, sei lá em que ano, não assito mais Big Brother Brasil. Quem me acompanha nas redes sociais sabe que tem poucos temas em que eu não meta a colher de pau, mas pode procurar por lá e não vai ver nenhum pitaco meu sobre as tretas da Karol Conká.

Inclusive apliquei inúmeros filtros para não ser bombardeada pelo assunto, todos eles inúteis diante da recorrência doentia na TL. Parece que a falta de abraço, de festas, de Carnaval levou as pessoas a só se preocuparem com uma coisa. Mas será essa a coisa mais importante para mobilizar a indignação do Brasil e suscitar a formação da tão sonhada e tão utópica frente ampla nacional?

Não, não sou dessas que acham que realities são entretenimento ruim, que quem fala sobre isso é alienado etc. Acho que ali se mostram, mesmo, muitos dos comportamentos que vemos todos os dias em casa, nas famílias, no trabalho, na política, e que essa lupa posta na maneira como as pessoas agem para manipular umas às outras e se dar bem é muito interessante, fonte inesgotável de entretenimento e didática.

Mas não acho que a Karol Conká seja a maior vilã do Brasil, merecedora de 99,17% de rejeição, algo bastante irracional, e alvo preferencial das frustrações da sociedade. Na minha casa, a eliminação dela (que sim, eu estava assistindo, vencida finalmente pelo hype) foi seguida de -- atenção -- FOGOS DE ARTIFÍCIO. Talvez os guardados pelos palmeirenses pela não vinda de mais um Mundial.

Não existe o menor propósito nisso quando se vê que o presidente da República, este sim responsável por decisões de vida e morte para a população, que jurou respeitar a Constituição, que tem o poder de derrubar com uma fala o valor da maior empresa do Brasil, ainda tem entre 33% e 40% de pessoas que dizem que seu governo é ótimo ou bom.

Sob qual aspecto? Por qual métrica? Qual o critério usado?

A economia está arrasada, somos um dos países que menos vacinaram sua população, não temos vacinas em quantidade suficiente num futuro próximo, não sabemos de onde vamos tirar dinheiro para bancar um urgente e atrasado auxílio emergencial, a Petrobras sofreu intervenção, o presidente emitiu quatro decretos ilegais para liberar armas e munições a granel na sexta-feira de Carnaval, o STJ acaba de começar a melar a investigação de um esquema milionário de peculato envolvendo o filho do presidente e também senador Flávio Bolsonaro, há um deputado federal da cozinha do presidente preso por ameaçar o Judiciário e a democracia...

A lista é infinita e de extrema gravidade.

Diferentemente dos chiliques e das vilanias de Karol, não se restringem a um grupo selecionado pela Globo para um confinamento que por si só já tem o poder de alterar o discernimento de quem se submete a ele e ainda vê a perspectiva de ficar milionário.

Esses atos são cometidos por uma pessoa investida pelas urnas do mais alto cargo do país. Que não foi eleita pela maioria da população, governa para uma parcela imensamente menor dela e age apenas pensando na manutenção do poder, ainda que para isso seja necessário tentar mudar o regime, conforme deixou escapar em um de seus ataques verborrágicos.

O que Karol fez com Lucas, Bolsonaro faz diariamente contra minorias do País. Suas milícias virtuais investem contra a honra de ex-aliados, da imprensa, de entidades ligadas à defesa dos direitos humanos, de ativistas. Sem que o brasileiro médio, esse que tem a pachorra de ir para a janela soltar rojões na eliminação de uma rapper num reality, mova sequer a pestana de preocupação.

Está descalibrado o senso de justiça do brasileiro. Está desalinhada sua capacidade de reconhecer o que tem potencial de causar dano real ao país. 

O governo tenta retirar as fontes de financiamento do SUS e do Fundeb enquanto a pessoa está com o dedo formigando de tanto votar na Karol. 

Existe uma síndrome grave num país anestesiado para mais de 250 mil mortes que se choca a esse ponto com cenas de um BBB. 

É preciso dar às coisas o peso que elas têm, sob pena de seguirmos até 2022 com os canais interditados para o enfrentamento cívico a um governo ineficiente, inepto e que causa prejuízos ao país em todas as áreas.

O que eu chamo de enfrentamento cívico? Que as instituições exerçam na plenitude seu papel, que a imprensa acompanhe com diligência cada ato do Executivo e cobre o presidente sobre suas obrigações, a começar pela de colocar de pé um Plano Nacional de Imunização que não seja um fracasso como esse que está aí, que os partidos se conscientizem da sua função de apresentar ao país alternativas de um projeto para tirá-lo do atoleiro e que a sociedade pare de perder tempo com distrações e cobre seus direitos e as obrigações do presidente.

Depois que tudo isso estiver arrumado, podemos todos ligar a TV para exercer nosso direito à distração. Mas sem pesos e medidas essa distração se transforma em catarse coletiva e abre espaço para o linchamento. Esse caminho é apenas uma das degenerescências que o fundo do poço da política que vivemos faz parecer normal. Acreditem: não é. 99,17% de ódio em cima de uma pessoa não eleita e rojões (!!!) nas janelas do Brasil numa eliminação de BBB são sintomas de histeria nacional.


Vera Magalhães: Militares acima de tudo, Centrão acima de todos

Os últimos meses causaram fissuras profundas na aprovação de que Jair Bolsonaro gozava junto a alguns dos grupos responsáveis por levá-lo ao Planalto em 2018. Ele perdeu completamente os lavajatistas, está com a relação abalada com os fanáticos ideológicos e, diante da intervenção na Petrobras, vê abalada também a confiança (que parecia inesgotável) da elite econômica, composta por integrantes do mercado financeiro e o empresariado industrial e do agro.

Hoje, o governo Bolsonaro é composto basicamente por uma aliança entre o Centrão e os militares (incluindo aqui as polícias militares), uma combinação bastante esdrúxula e preocupante no que pode oferecer de riscos à democracia, em primeiro lugar, e a qualquer ilusão de que se vá promover algum ajuste fiscal.

Paulo Guedes é uma espécie de estranho nesse ninho. No fim de semana, o ministro da Economia permaneceu em silêncio obsequioso diante da intervenção com mão grande de Bolsonaro na Petrobras e o anúncio de que pretende fazer o mesmo com as tarifas de energia elétrica (Dilma, é você?).

Coube a Bento Albuquerque, o ministro de Minas e Energia que Bolsonaro vira e mexe ameaça demitir, tentar colocar panos quentes com os integrantes do Conselho da Petrobras, e à dupla dinâmica da Comunicação, Fábio Faria e Fábio Wajngarten, ir para as redes sociais dizer que estava tudo bem e que o que o presidente fez na Petrobras é apenas um gesto normal numa economia de mercado. O que todo mundo sabe que não, não é.

A tentativa dos dois é evitar o esperado strike nas ações da empresa e nos demais indicadores na abertura dos mercados, nesta segunda-feira. Mas o fato de terem sido eles a sair em defesa do gesto de Bolsonaro mostra que sim, o Centrão ganha espaço mesmo em áreas que antes não se poderia supor. Afinal, o que Faria, um expoente do grupo e responsável por quebrar as barreiras que havia entre o capitão e esses partidos, tem a dizer sobre algo tão complexo quanto a gestão de uma empresa de economia mista?

O avanço do Centrão é tal que ninguém tenta mais nem disfarçar. Em entrevista ao GLOBO, o presidente da Câmara, Arthur Lira, não usou de meias palavras: o objetivo do grupo é ter o controle do Orçamento.

Diante disso, da militarização inclusive de postos-chave da área econômica e da evidência de que Bolsonaro descambou de vez para o populismo reeleitoreiro, resta a Paulo Guedes a pergunta que fiz aqui na sexta-feira: até quando, ministro?

A pergunta não se aplica só a ele. Sondagem da XP com investidores institucionais no fim de semana mostrou a esquizofrenia que reina no mercado: mesmo 80% dizendo que Bolsonaro voltará a intervir na economia, 76% esperam a continuidade da política fiscal, como se isso fosse um fator de permanência da confiança. Mas qual política fiscal quando o que se decide é uma nova cláusula de calamidade que permita pagar o auxílio emergencial (absolutamente necessário, mas que não se encaixa nesse discurso) e o Centrão se prepara para tomar conta do Orçamento?

Da mesma forma, outros agentes institucionais, inclusive o Conselho da Petrobras, assistem a cada avanço de Bolsonaro na supressão da democracia e ampliação de seus poderes e da presença de militares em lugares que nada têm a ver com sua missão constitucional e fazem o mesmo balé: se chocam, ameaçam reagir, mas cedem. Cedem sempre.

A cada concessão a fatos como a nomeação do general Joaquim Silva e Luna para a empresa é uma casa que Bolsonaro avança num tabuleiro que leva a 2022. Quando se tentar reagir a alguma dessas investidas, o presidente estará fortalecido demais e com o controle de áreas que poderão dar a ele o que nem mais esconde: a possibilidade de ao menos tentar "mudar o regime", como ele deixou claro que gostaria de fazer em mais uma fala sincericida neste fim de semana.


Vera Magalhães: Governo normal faz diferença

Mais que o tradicional “bom dia” nos grupos de WhatsApp das famílias, uma expressão se espalhou pelas redes sociais no Brasil em tempos de governo Bolsonaro: “Não se tem um dia de paz”.

A constatação ganhou especial significado durante a pandemia. Nos aproximamos de forma célere dos 250 mil mortos, a vacinação se dá em ritmo de tartaruga, o auxílio emergencial ainda é um esboço, mas o país parou na Quarta-Feira sem Cinzas para acompanhar a prisão de um deputado da linha de frente da base bolsonarista que não via outra prioridade diante deste quadro que não fosse pregar a volta do AI-5, agressões físicas a ministros do Supremo e a troca sumária de todos os integrantes da Corte.

O chilique do valentão se deu porque o ministro Edson Fachin fez o óbvio: protestar contra a interferência indevida que o general Villas Bôas confessou ter sido feita com aval do Alto-Comando das Forças Armadas na decisão que o STF teria de tomar sobre um recurso do ex-presidente Lula em 2018.

A prisão do deputado ainda mobiliza os três Poderes da República três dias depois. Os deputados, antes prontos a correr em socorro do colega, agora entenderam que ele foi longe demais e que salvar sua pele pode implicar comprometer a própria. Da mesma maneira, Bolsonaro, sempre tão boquirroto quanto Daniel Silveira, fez boca de siri quando o amigo foi em cana. Natural: sabe que tem seus próprios passivos, que incluem os do filho Flávio e os do ministro Eduardo Pazuello, com o Supremo e não vai se queimar por um deputado de 31 mil votos que se notabilizou por rasgar uma placa com o nome de Marielle Franco.

Ainda que o presidente tenha esse gesto isolado de comedimento (que pode ser quebrado a qualquer momento, numa live ou num aglomeração no cercadinho do Alvorada), a própria existência de um Daniel Silveira como deputado e a necessidade de que ele seja preso para parar de atentar contra a democracia mostram quão disfuncional é o governo Bolsonaro, e quanto o Brasil paga dia a dia por isso.

A diferença entre um governo tresloucado e um minimamente normal pode ser vista de forma didática nos Estados Unidos. A simples retirada de Donald Trump de cena e sua substituição pela equipe de Joe Biden fez com que fosse triplicado o ritmo de vacinação no país, a média diária de casos de Covid-19 despencasse de 195.064 para 77.665, e coisas simples como usar uma máscara deixassem de ser tabus ideológicos.

Por aqui, o presidente segue buscando milagres para enfrentar o vírus, enquanto seu ministro faz promessas sem nenhum amparo na realidade de centenas de milhões de doses de vacinas, sem estipular um cronograma seguro e claro de como elas serão fornecidas a estados e municípios.

O resultado dessa completa inépcia de Bolsonaro e Pazuello e do show de horrores da ala bizarro-ideológica do bolsonarismo é que também a economia é profundamente afetada. Em vez de se ocupar do desenho do projeto para a volta do auxílio emergencial e das medidas adicionais necessárias para garantir que ele não estoure as já depauperadas contas públicas, o comando da Câmara passou os últimos dias quebrando a cabeça para tentar livrar a barra do troglodita sem afrontar o STF. Mas ficou claro que, desta vez, os ministros não deixariam barato nenhuma atitude corporativista que fragilizasse o Judiciário.

A votação unânime dos 11 ministros delimita uma risca no chão. O Congresso parece ter entendido isso. O silêncio de Bolsonaro mostra que ele também sentiu o golpe. Que os eleitores também entendam que só elegendo políticos comprometidos com a democracia, o que esses de turno não são, o país poderá sair da anormalidade absoluta para o mínimo de paz que todos pedem em vão nos seus posts no Twitter.


Vera Magalhães: Acordo entre STF e Câmara é difícil

Nos momentos que antecediam a reunião da Mesa da Câmara para decidir sobre a prisão em flagrante do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) pela Polícia Federal, atendendo determinação do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, deputados e ministros da Corte conversavam nos bastidores sobre a possibilidade de um acordo de procedimentos que evitasse desgaste para os dois Poderes.

Por esse desenho, a Mesa da Câmara faria um aceno ao STF na reunião prevista para começar agora, às 13h, reconhecendo a gravidade dos ataques que o deputado desferiu contra o STF e repudiando os vídeos com ameaças a integrantes da Corte e ao funcionamento do Judiciário. Ao mesmo tempo, encaminharia imediatamente ao Conselho de Ética da Câmara os vídeos com a recomendação de análise, a partir da semana que vem, da possibilidade de abertura de investigação por quebra de decoro parlamentar.

Essas iniciativas viriam juntamente com a manifestação da Mesa contra a prisão em flagrante por crime inafiançável, que, segundo conversei com deputados, é unanimemente condenada por eles, uma vez que, pela justificativa do ministro, segundo eles, qualquer um pode vir a ser preso por vídeos gravados anos atrás, uma vez que o flagrante não se encerra no tempo, no entendimento exarado por Alexandre de Moraes.

A expectativa de deputados é a de que, com esse gesto em reconhecimento ao caráter inaceitável da postura de Daniel Silveira, seria mais fácil obter o relaxamento da prisão do deputado não ainda nesta tarde, quando se espera que o STF referende por unanimidade a decisão de Moraes, mas na audiência de custódia.

Essa audiência será comandada pelo próprio ministro relator do inquérito das fake news e ameaças contra a Corte e seus integrantes, e só deve ser marcada para a manhã de quinta-feira.

Mas não deverá ser tão simples assim obter um acordo entre Câmara e STF. Ninguém bota nenhuma fé na possibilidade de uma investigação contra Daniel Silveira avançar no Conselho de Ética, órgão que está sem se reunir desde o início da pandemia, mas que, mesmo antes, era inerte em relação a sucessivas manifestações antidemocráticas de deputados como Eduardo Bolsonaro, por exemplo.

Além disso, é considerada insuficiente essa iniciativa por parte da Mesa da Câmara, e ministros do Supremo sobre os quais conversei a respeito da possibilidade de uma composição acreditam que, se a Corte ceder agora, haverá uma escalada de ataques à democracia e às instituições.

Por fim, os ministros parecem querer pagar para ver como a Câmara vai se comportar, justamente pelo fato de que há vários outros parlamentares investigados no mesmo inquérito, e nada indica que eles estejam moderando suas ações. Ministros me disseram duvidar que, numa votação aberta, e com voto nominal, a maioria da Câmara vá votar pela suspensão da prisão de Daniel Silveira.

Pode ser que a Corte esteja incorrendo em erro de avaliação, já que é conhecido o espírito de corpo dos parlamentares e há vários deles, inclusive em postos de comando na Casa, com processos em andamento no STF.

Um histórico recente de votações da Câmara e do Senado sobre prisão de parlamentares dá a medida: em 2016, no auge da Lava Jato, o Senado votou, aberto, a favor da manutenção da prisão do senador Delcídio Amaral, por 53 a 13. 

Já no ano seguinte passou a vigorar o espírito de corpo. Por 44 a 26, também em votação aberta, o mesmo Senado rejeitou o recolhimento noturno à prisão de Aécio Neves.

O mesmo precedente valeu para que a Câmara rejeitasse o afastamento do mandato do deputado Wilson Santiago (PTB-PB) no ano passado. Foram 233 votos a 170, e nada menos que 101 abstenções.


Vera Magalhães: Entubados, mas armados

Se depender de Jair Bolsonaro, o número de mortes pela Covid-19 passará em breve dos 300 mil brasileiros, sem que haja uma palavra de compaixão, reconhecimento da tragédia ou das múltiplas ações e omissões propositais que nos levaram a isso. O presidente não está nem aí, já se cansou de dizer.

Para este homem, este presidente incidental e lamentável, pouco importa que as UTIs colapsem com gente entubada em uma, duas, três ondas sucessivas e contínuas da pandemia, desde que ele passe com sua boiada de desmonte das políticas civilizatórias. Para isso, quanto menos gente estiver olhando, melhor.

Se for na calada da noite de um não carnaval ermo, sombrio, melancólico, em que as pessoas lamentam a alegria suprimida com as vidas das pessoas amadas, perfeito.

Para o presidente da República do Brasil, o “povo tá vibrando”. Bolsonaro conhece tanto de povo quanto de cloroquina: absolutamente nada. Sua noção de povo se limita a olhar gráficos de popularidade em pesquisas e, quando eles caem, se preocupar com o próprio pescoço.

É quando isso acontece, que ele se lembra de chamar algum auxiliar e ordenar uma medida que arrefeça a indisposição com seu governo, coalhado de ministros tão ineptos quanto o chefe, que só por isso estão onde estão.

Quem seria Gilson Machado em qualquer outra época que não fosse o governo Bolsonaro? Nem para tocar sanfona como calouro num daqueles programas dos anos 1980 serviria. Seria gongado por Aracy de Almeida. Sem o escrutínio daquele baluarte do bom gosto musical, somos obrigados a ouvi-lo não apenas tocar desajeitadamente o instrumento, como fazer perorações absurdas acerca de um suposto “castigo divino” que teria se abatido sobre nós pelos pecados do carnaval e teria resultado nas mortes por Covid-19.

Tal pessoa, saída de algum desvão da História onde deveria ter permanecido, é ministro do Turismo! Motivo de um indisfarçado orgulho de um presidente que se jacta de ser cercado de fracassados e ressentidos — com cada vez mais raras exceções que, se não se tocarem de onde estão enfiadas, vão virar a regra.

Depois de boicotar de todas as formas que conseguiu a vacinação dos brasileiros e comprar, fabricar e enfiar goela abaixo de doentes incautos um medicamento sabidamente ineficaz, Bolsonaro parece encantado com a possibilidade de a Covid-19 sumir com um spray nasal.

A droga, em fase inicial de testes, é desenvolvida por Israel, o que faz com que o presidente a considere “ideologicamente correta”. Surtiu efeito em, vejam só, 29 pessoas! Uau!

Mas onde estão as vacinas, presidente? Por que seu ministro-general da Saúde, que o senhor disse ser especialista em logística quando demitiu dois médicos, não consegue estruturar um plano de chegada de doses mínimas de imunizantes a estados e municípios que terão de paralisar a vacinação?

Por que, no lugar de editar de uma vez, na calada da noite, quatro decretos inconstitucionais e imorais, que liberam geral não apenas a posse de armas, mas de miras telescópicas e a fabricação de munição, e permitem transformar os amigos caçadores, atiradores e colecionadores em Rambos armados até os dentes, o senhor não estava cobrando de Pazuello que implemente um plano de vacinação capaz de tirar o Brasil da UTI, onde permanece entubado graças à incompetência do senhor e do seu estafe?

É inadmissível que assistamos anestesiados à completa inversão de prioridades numa crise sanitária. A vacina mingua no momento em que estamos no pico de casos e mortes, com a nova cepa do vírus se espalhando pelo país. O auxílio emergencial ainda está sendo estruturado, mas os decretos de armas estão aí, a desafiar o bom senso, o Supremo Tribunal Federal e um Congresso que é cúmplice da incitação à barbárie e à morte.


Vera Magalhães: Com vacina acabando, Bolsonaro troca cloroquina por spray nasal israelense

Depois de passar quase um ano fazendo propaganda de cloroquina e hidroxicloroquina, inclusive ordenando ao Ministério da Saúde adotar um protocolo para que esses medicamentos fossem prescritos em casos leves de covid-19, determinar sua fabricação pelo Exército brasileiro e importar doses não utilizadas dos Estados Unidos, Jair Bolsonaro parece ter um novo xodó no enfrentamento da pandemia.

Enquanto começam a acabar as poucas doses de vacinas enviadas pelo governo federal a Estados e municípios, Bolsonaro postou neste domingo em sua conta no Twitter que conversou com o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, para que o Brasil participe da fase 3 de testes do spray nasal EXO-CD24, que, escreveu "vem obtendo grande sucesso no tratamento da covid-19 em casos graves".

De novo, o presidente vende um remédio "milagroso" antes de ciência atestar isso. Nesta segunda-feira, ele voltou ao assunto (o que mostra que estamos a caminho de uma nova obsessão; as emas do Alvorada que se cuidem), dizendo que ele tem eficácia "próxima de 100%" e que, em breve, será enviado pedido de aprovação da Anvisa para uso emergencial.

As pesquisas com sprays nasais, não só em Israel, mas em várias partes do mundo, de fato são uma das vertentes abertas pela ciência na tentativa de combater a covid-19. A epidemiologista Denise Garrett, vice-presidente do Sabin Vaccine Institute, publicou um fio no Twitter em que esclarece que o que existe publicado a respeito do EXO-CD24 é um registro de ensaio clínico de fase 1, com resultados promissores.

Segundo os fabricantes, explica ela, dos 30 pacientes com casos graves que usaram o spray nasal, 29 teriam se recuperado. É a isso que Bolsonaro se refere empolgadamente como "eficácia de praticamente 100%": um estudo preliminar com 30 pacientes.

Mais: mesmo para ter o uso emergencial aprovado pela Anvisa o medicamento precisa apresentar estudos de fases 2 e 3. O Brasil pode fazer parte de protocolos de estudos clínicos, como sugere o presidente, mas o uso do medicamento em escala capaz de aplacar os efeitos da pandemia, ainda que a eficácia seja comprovada, levará meses.

O que a nova obsessão do presidente mostra é sua busca desenfreada por uma narrativa que o tire do atoleiro de popularidade em que está enfiado por ter minimizado a pandemia, atuado contra o isolamento social, boicotado a compra de vacinas e mesmo a confiança da população em sua necessidade, segurança e eficiência.

A progressão de uma ainda ínfima campanha de vacinação mostra duas coisas concomitantemente: a adesão esperançosa e entusiasmada da população à vacina, algo em que o Brasil sempre foi vanguardista e exemplo para o mundo em logística, e a completa incompetência do governo para fazer andar o Plano Nacional de Imunização.

A "vacina chinesa do Doria", como o presidente de forma irresponsável insistiu em chamar a Coronavac, produzida pelo Instituto Butantan, é o imunizante em maior quantidade no Brasil, mas mesmo assim, somada às doses da vacina da AstraZeneca/Oxford, com a qual a Fiocruz tem parceria, o que existe disponível não nos permitirá acabar a imunização da maioria da população neste ano.

Com a média móvel de casos no mesmo patamar de julho e picos de médias diárias que beiram os 1.500 óbitos por dia, e com a difusão da nova cepa de Manaus em outros Estados, inclusive de forma autóctone, a insistência de Bolsonaro em remédios "milagrosos" e a incapacidade de seu ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, em fazer chegar vacina a todo o País mostram que nem tão cedo o Brasil vai superar o pior momento da pandemia. 


Vera Magalhães: Estranho no ninho

João Doria Jr. é candidato a presidente da República desde 2018, talvez antes. Quando decidiu adentrar a política, o hoje governador de São Paulo traçou uma rota rápida que o levaria, no curto intervalo de seis anos, ao Palácio do Planalto. Até aqui, os passos deram certo. Mas agora o campeonato será jogado numa outra liga, bem mais dura.

A primeira mostra de que o jogo é bruto veio nos primeiros meses após a eleição. Logo depois do Bolsodoria, o tucano passou a ser hostilizado pelo presidente, pelos filhos e pelo entorno radicalizado.

A razão é simples: o bolsonarismo só pensa na reeleição, e a ordem é aniquilar no nascedouro qualquer potencial adversário. Nesta quinta-feira, a milícia virtual do presidente, deputados federais à frente, começou a alvejar ninguém menos que a empresária Luiza Trajano, por ver nela uma potencial candidata, graças a sua campanha pela vacinação imediata de todos os brasileiros. O jogo é bruto.

Doria não é alguém conhecido exatamente pela calma nem por seguir os ritos da política, que incluem muito diálogo antes das ações. Na segunda-feira, foi anfitrião de um jantar que reuniu figurões tucanos, em que o cardápio servido foi a ideia de que ele assumisse o comando da sigla de entrada, sua candidatura presidencial como prato principal e uma nova tentativa de expulsar Aécio Neves de sobremesa.

Caiu como um tijolo no estômago de parte dos presentes, sobretudo nas bancadas de deputados e senadores, que ato contínuo decidiram manter Bruno Araújo na presidência da legenda e lançar o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, como alternativa a Doria internamente.

A surpresa foi que Leite topou o jogo e não ficou no muro, poleiro de predileção dos tucanos desde sempre. Surge, então, o estranho no ninho com que Doria não contava. Ao menos não agora.

Aliados do paulista dizem que o seu objetivo com o jantar da segunda-feira era instar o partido a adotar uma postura firme de oposição a Bolsonaro, e não antecipar a própria candidatura.

Será mesmo? Dados os porta-vozes da ideia (o ex-ministro Antonio Imbassahy e o deputado federal paulista Samuel Moreira, ambos ligadíssimos a ele), ninguém acredita que o script não tenha sido previamente organizado pelo meticuloso Doria.

O tiro saiu pela culatra, mas ainda assim é temerário apostar que ele vá deixar a sigla só porque apareceu um oponente. Doria sempre repete que é “filho das prévias”, numa alusão aos dois processos seletivos internos que venceu, mesmo sem ser versado nas liturgias da política partidária.

Leite, por sua vez, saiu de vez a campo. Além da frase de alta octanagem política que cunhou, ao afirmar que não misturou seu nome ao de Bolsonaro (um tiro no Bolsodoria), aceitou a convocação de deputados e senadores e vai rodar o país. Em entrevista que fizemos com ele ontem na CBN, assumiu a candidatura sem tergiversar e se disse preparado para os ataques que receberá (já está recebendo, corrigiu) dos gabinetes do ódio bolsonaristas.

Se os dois levarem adiante a disposição de se candidatar, o PSDB pode ter primárias pela primeira vez em sua história. Mesmo com guerras internas no passado, algumas com direito a dedo no olho, sempre prevaleceu um arranjo de cúpulas que evitou esse tipo de escolha.

Dada a deterioração programática e o desgaste político do PSDB desde que Aécio Neves enfiou o partido no pântano do JBS Gate, e desde que Geraldo Alckmin foi reduzido a nanico em 2018, uma disputa poderia oxigenar e dar algum rumo a uma sigla que virou coadjuvante apagada no cenário nacional.

Isso depende, no entanto, de que quem perder aceite a derrota, e de que a contenda não se dê em níveis bolsonarescos. É o que vamos começar a assistir a partir de já, porque essa campanha também já começou.


Vera Magalhães: Síndrome do cunhado

Muito se falou no chavão “criminalização da política” como uma das justificativas para a sucessão de fatos que levou à eleição de Jair Bolsonaro em 2018.

Trata-se de uma leitura bastante rasa e condescendente com a roubalheira que os políticos promoveram como se não houvesse amanhã, ao longo de sucessivos mandatos e que, quando foi descoberta, gerou, sim, uma onda de compreensível indignação com a classe política.

Acontece que os políticos não só não perceberam isso a tempo, como menosprezaram os efeitos que isso teria. Cansei de ouvir de próceres de vários partidos, da esquerda à direita, em 2018, as seguintes avaliações:

1) corrupção nunca foi fator decisivo para eleição, bastava ver que Lula tinha sido reeleito em 2006 mesmo com o mensalão;

2) redes sociais nunca elegeram ninguém;

3) Bolsonaro desidrataria quando começasse o horário eleitoral, pois as eleições ainda seriam definidas pela equação clássica: tempo de TV, coligação forte e grana.

Bolsonaro fez um rocambole de tudo isso, regou com leite condensado, e a política, além de criminalizada, ficou humilhada no cantinho do pensamento.

Eis que, mais de dois anos e quase 230 mil mortos pela pandemia depois, os políticos do autoproclamado centro democrático estão marchando docemente para o cadafalso, atrelando seu destino ao de Bolsonaro.

Para o presidente do DEM, ACM Neto, Bolsonaro não é um extremista. Como chamar alguém que desdenha uma pandemia, que frequenta e incentiva atos pelo fechamento do Supremo e do Congresso, que aparelha instituições como a Polícia Federal e o Coaf, que investe por meio de decretos contra a pauta de direitos humanos e de defesa do meio ambiente, que acusa fraude eleitoral sem provas e insinua dois anos antes que isso pode ocorrer se não houver voto impresso?

O que precisará acontecer para que o presidente brasileiro seja reconhecido como o que é: um expoente de uma cepa de políticos de corte neopopulista que usa de expedientes como a propagação de fake news, o enfraquecimento deliberado da imprensa e do sistema de freios e contrapesos da democracia e a difusão do ódio para se manter no poder?

Diante do cálculo de curtíssimo prazo de líderes como ACM Neto, que priorizam a aproximação a um presidente mal avaliado e mal-intencionado à construção de uma alternativa sólida e viável de poder que tire o país dessa encalacrada social, econômica e institucional em que está enfiado, Bolsonaro vai ganhando, justamente dos políticos a quem desprezou em 2018, um passaporte de vida fácil para 2022.

Acontece que, como escrevi aqui na quarta-feira, a vida real caminha de forma bem diferente do minueto desconjuntado da política. Na Bahia de ACM Neto, faltam vacinas, faltam leitos de UTI, falta comida, falta auxílio emergencial e falta base social para o bolsonarismo. Em nome de que, então, o presidente do DEM opta por implodir a própria legenda, depois de um sucesso nas urnas? O tempo vai responder em nome de quê.

Enquanto isso, graças a análises equivocadas como essa, Bolsonaro, o “não extremista”, vai se comportando depois das vitórias congressuais que lhe foram dadas de bandeja como o cunhado folgado que chega na casa do outro e tira o sapato com chulé, coloca o pé em cima do pufe, faz uma piada homofóbica com o sobrinho e assalta a geladeira para acabar com a cerveja.

Quando a classe política resolver reagir, pode ser tarde, como viram os atônitos integrantes do Partido Republicano, que não contiveram o também extremista Donald Trump e o deixaram questionar as eleições, incentivar a invasão do Capitólio e desgastar uma democracia sólida como a americana.

Por aqui, o centro com vocação para cunhado bonachão não aprendeu absolutamente nada nos últimos anos.


Vera Magalhães: Vida estraga-prazeres

Mais de 300 pessoas trocaram perdigotos na covidfest da vitória de Arthur Lira. Jair Bolsonaro e os filhos se refestelaram de comemorar nas redes sociais. O general Luiz Ramos teve um momento “vão ter de me engolir” pelo sucesso da articulação política da qual participou. Mas, passada a ressaca da eleição das Mesas do Congresso, a vida real bate à porta do governo e do Legislativo. E ela, sabemos, não anda nada festiva.

O primeiro para quem essa ficha caiu foi Paulo Guedes. Coube ao ministro da Economia ser o estraga-prazeres e lembrar um pequeno detalhe: o Orçamento de 2021 ainda não foi votado pelos senhores forrozeiros.

Sem essa providência básica, não há como falar em novo auxílio emergencial, a promessa mais repetida de Lira e Rodrigo Pacheco, levada pelos festeiros parlamentares às suas bases — as mesmas que eles ignoraram solenemente ao, no escurinho da urna, dar o controle das duas Casas do Parlamento a um presidente que já foi eleito internacionalmente como o pior do planeta no enfrentamento da pandemia.

Não foi só Guedes a jogar água no chope dos deputados e senadores. O novo presidente do Itaú, Milton Maluhy Filho, desafiou o coro dos contentes com os descalabros cometidos por Bolsonaro e Pazuello ao longo de um ano de transmissão descontrolada do novo coronavírus no Brasil, com mais de 225 mil vidas ceifadas, para dizer o óbvio: um atraso de seis meses no Programa Nacional de Imunização reduzirá à metade a previsão de crescimento de 4% para o PIB deste ano feita pelo banco.

O atraso já está dado. A vacinação acontece literalmente a conta-gotas, com doses contadas da CoronaVac, que Bolsonaro e Pazuello sabotaram enquanto puderam, e do imunizante de Oxford-AstraZeneca, em quantidade igualmente racionada.

Sem vacina e, portanto, sem retomada da economia, sem empregos e sem crescimento, o governo não terá outra saída a não ser reeditar alguma forma de auxílio emergencial, como pressiona o bloco de Lira — e teme Guedes.

Vem aí, portanto, um cabo de guerra no Congresso, que até ontem estava em festa, e o abraço da vitória do novo comando do Legislativo nos ocupantes do Planalto já é passado diante da pressão que vai começar.

De um lado, os parlamentares querem dar satisfação a seus eleitores a respeito de quando haverá vacina e de quando poderão retomar suas atividades, algo impossível com o ritmo de contágio e morte a que continuamos a assistir (e para que eventos irresponsáveis como a comemoração de Lira só contribuem).

De outro, os nobres congressistas querem ver entregues as emendas e os cargos prometidos. E também não há dinheiro suficiente para pagar essa fatura.

Diante de uma pauta assim congestionada pelas emergências da pandemia, da economia real e do fisiologismo, só os incautos da Faria Lima ainda podem acreditar que sairão dos escaninhos no curto prazo projetos como reforma tributária, reforma administrativa e privatizações.

Os financistas e empresários podem esperar sentados, como vêm fazendo enquanto assistem omissos e complacentes a Bolsonaro cometer crimes sucessivos contra a saúde pública e a democracia.

Também é muito etéreo e remoto traçar cenários para 2022 com base só no resultado do xadrez congressual, quando a vida nua e crua bate à porta dos políticos acompanhada pela sombra da morte. Quem me disse isso quando questionei a respeito do saldo da eleição das Mesas para a sucessão foi Ciro Gomes, que está acertadamente mais de olho nos indicadores do mundo real que nos conchavos entre um cada vez mais enfraquecido Bolsonaro e um Legislativo com apetite pantagruélico. Eis um encontro que nunca resulta bom para os governantes: o da fome dos políticos com a geladeira vazia do Orçamento e com a gritaria das ruas.


Vera Magalhães: Pior líder mundial? Vamos dar a ele o Congresso!

Jair Bolsonaro é considerado o pior líder mundial no enfrentamento da pandemia do novo coronavírus. Sua popularidade está em queda em qualquer pesquisa de opinião que se olhe, em praticamente todos os estratos e regiões. Não existe vacina disponível para a grande maioria da população brasileira. A economia patina após um soluço de recuperação à custa de auxílio emergencial e a desigualdade, depois do mesmo soluço, é maior que no início da pandemia.

Qual a resposta dos senhores parlamentares a esse estado de coisas? Simples: dar a este presidente o comando das duas Casas do Congresso. A que custo? As cifras variam bastante, mas sempre na casa dos bilhões de reais, vindos do Orçamento federal já estourado e de mais sacrifício a gastos que deveriam ser prioritários.

Parece impossível de entender, e é mesmo. A política vai mostrando que não tem nenhum compromisso com as preocupações reais do Brasil, as urgências sociais, de saúde pública, econômicas e institucionais, e que viu na fragilidade de Bolsonaro a chance de lhe arrancar até a cueca na forma de fisiologismo explícito para afastar o fantasma do impeachment, a única coisa que aflige de fato o capitão.

Não importa que, para isso, os partidos implodam suas próprias estruturas e comprometam a própria estratégia para 2022. Como em 2018, as principais siglas mostram incapacidade de projetar as consequências de médio e longo prazo de suas ações, e ignoram a capacidade de Bolsonaro de manter uma base fiel, ainda que minoritária, para construir sua candidatura em cima dos erros dos adversários (além de outros expedientes conhecidos, como fake news, discurso de ódio, negação da política e, agora, rios de dinheiro público).

DEM, PSDB, PSD e MDB adiam ou comprometem em definitivo qualquer possibilidade de construírem uma frente alternativa ao bolsonarismo para 2022. Presos ao imediatismo de cargos e emendas não levam em conta nem o básico: se a economia continuar derretendo e a pandemia avançando, a popularidade de Bolsonaro vai cair ainda mais.

E é por isso, pela vida real, que se impõe, que talvez a vitória esperada do presidente nas eleições das Mesas não se configure um respiro longo ou uma melhora efetiva da governabilidade.

Todas as muitas e caras promessas feitas para angariar votos para Arthur Lira na Câmara começarão a ser cobradas no primeiro dia, com mais virulência quanto maior for o desgaste de Bolsonaro nas pesquisas.

O Orçamento em frangalhos não comporta todos os ministérios e emendas prometidos, e a gritaria não vai demorar, porque o Centrão não tem pruridos de fazer a cobrança em alto e bom som e na forma de votações.

Não será simples também a Lira fazer andar a pauta regressiva que Bolsonaro espera ver transformada em prioridade legislativa: a oposição, depois de um primeiro ano dominado pela discussão da reforma da Previdência e um segundo em que a pandemia ditou o apoio a projetos do governo, agora será ruidosa e atuante, mesmo que saia derrotada hoje.

A discussão sobre a volta do auxílio emergencial vai estressar Paulo Guedes e sua equipe. O governo reclamou muito de Rodrigo Maia, mas vai sentir falta do compromisso que ele sempre teve com o ajuste fiscal diante do comando do rei do Centrão, para quem o teto de gastos é apenas um obstáculo ao cumprimento das promessas de campanha.

E o impeachment? Os 60 pedidos que Maia deixa na gaveta deverão ficar lá como um alerta a Bolsonaro de que, se não ajoelhar no milho e entregar tudo o que prometeu, pode ser colocado na roda pelo hoje aliado.

Neste caso, aliás, não há que se esperar fidelidade: nem o presidente hesitará em culpar o Centrão pela persistência do fracasso de seu governo, nem o Centrão vai titubear se tiver de rifar o presidente caso sua popularidade afunde de vez no pântano da pandemia. É como a parábola do escorpião e do sapo, só que a diferença é que os dois companheiros de travessia têm ferrão.


Vera Magalhães: Boçalidade contagiosa

Mais que o vírus, é o comportamento indigno do presidente que se alastra

As pesquisas divulgadas no fim de semana pelo Datafolha pintam um cenário tão desanimador quanto a nossa absoluta ausência de estratégia para uma campanha de vacinação eficaz contra o novo coronavírus: elas mostram que boa parte da sociedade brasileira foi inoculada pela boçalidade de Jair Bolsonaro, e que ela se alastra por terrenos perigosos e dá a esse presidente, o pior da República, uma resiliência inacreditável num cenário de mortes e crise econômica.

O presidente, com seu comportamento indigno da cadeira que ocupa, voltou a dizer nesta terça-feira que não se vacinará contra o novo coronavírus.

Como tantas vezes tem feito nos últimos dois anos, novamente se comportou como um inconsequente, ao promover aglomerações na Ceagesp e instar uma criança a tirar a máscara para ser compreendida, e mostrou o ridículo de que é feito ao se enfurnar no meio da bandinha da Polícia Militar do Estado de São Paulo, numa pose ridícula de prefeito de Sucupira.

Esse tipo de postura se impregnou em setores da sociedade de forma mais deletéria do que poderíamos imaginar antes da pandemia. No Brasil, movimentos antivacina nunca tiveram grande aderência, mas com Bolsonaro até isso vai sendo corroído.

A pesquisa Datafolha mostra que são 22% os que dizem que não pretendem se vacinar. Eram 9% em agosto! Entre os que dizem confiar em Bolsonaro, esse índice vai a 33%. E os que dizem que não aceitariam se vacinar com imunizante chinês são 47%.

É impressionante a adesão de uma parcela imensa dos brasileiros à desinformação absoluta em relação às vacinas, praticada de forma deliberada e estudada pelo presidente e por seus asseclas.

Isso no momento em que o País já vive uma segunda onda de contágio pelo SarsCov2e não tem perspectiva de receber vacinas que não sejam a Coronavac, produzida pelo Butantã, pelo fato de Bolsonaro e seu ministro da Saúde, o inepto general Eduardo Pazuello, não terem feito seu trabalho.

Combinado com os outros dados da pesquisa, que mostram aprovação de 37% dos brasileiros a Bolsonaro e que 44% livram o presidente de culpa pela má condução do combate à pandemia, temos um cenário desolador em que vamos ficar no fim da fila da vacina sem que a população exija de forma altiva o seu direito a ser vacinada para que o País comece a superar a maior epidemia que o atingiu desde 1918!

Trata-se de uma corrosão muito rápida e profunda dos valores que guiam a vida em sociedade — entre os quais a constatação, que deveria ser óbvia, de que a vacinação é um direito, sim, mas também um dever de um indivíduo em relação à coletividade e à saúde pública.

A completa falta de preocupação de Bolsonaro com as mais de 181 mil mortes de brasileirose sua incapacidade de recomendar àqueles que governa qualquer conduta que não seja individualista, egoísta e baseada numa visão estreita e mesquinha de mundo vão moldando o pensamento de uma parcela do povo brasileiro à imagem e semelhança do capitão. E sua imagem é a de alguém que banaliza a vida.

Diante de tal estado de apatia combinada com cinismo cabe como último recurso contar com o funcionamento ainda que precário das instituições. Hoje o Supremo Tribunal Federal terá a chance de colocar nos trilhos o Plano Nacional de Imunizaçãoindigente divulgado pelo general Pazuello, e estabelecer regras para que sim, a vacinação (quando houver vacina) seja obrigatória para matrícula e frequência em escolas, viagens de avião, inscrição em concursos, frequência em academias de ginástica etc.

Porque só esperar o bom senso dos brasileiros, como mostram as pesquisas e as cenas de aglomeração em várias cidades e as promovidas pelo presidente, não será suficiente.