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Vera Magalhães: Caem todas as máscaras

Os ministros Paulo Guedes e Luiz Eduardo Ramos merecem ser convocados para depor na finalmente instalada CPI da Covid só com base nas declarações estarrecedoras que, sem saber que eram gravados, emitiram na reunião desta terça-feira do Conselho Nacional de Saúde Suplementar.

Num dos ataques verborrágicos que sempre tem e, depois de flagrado, diz ter sido mal interpretado, o ministro da Economia do Brasil diz, numa só tacada, que os chineses inventaram o coronavírus (teoria conspiratória sem comprovação), mas produziram vacinas ruins, piores que as dos americanos, para combatê-lo.

A vacina chinesa CoronaVac é uma das poucas de que os brasileiros dispõem para se proteger do vírus. Só está disponível por ação do governo de São Paulo e do Instituto Butantan, porque o governo a que Guedes serve boicotou sua aprovação e disse por muito tempo que não a compraria.

Teve de comprar porque o presidente Jair Bolsonaro, chefe de Guedes, optou por não comprar as vacinas “melhores”, da Pfizer, quando lhe foram oferecidas com antecedência e em larga escala. Tudo isso será objeto de escrutínio da CPI.

O ministro da Economia do Brasil também lamentou o aumento na expectativa de vida, atribuindo a ele, e não ao show de incompetência do governo de que faz parte, a falta de insumos, leitos e vacinas. É um escárnio inconcebível diante de quase 400 mil mortos pela covid-19.

O colega de Guedes na Casa Civil, general do Exército brasileiro Luiz Ramos, também no quentinho de uma reunião que imaginava não estar sendo registrada em áudio, confessou uma molecagem: ter tomado vacina escondido (!) porque seria a orientação do governo.

Aqui escancara outra razão por que a CPI tem de existir, e por que ele tem de se sentar no banco dos depoentes: além de boicotar a compra de vacinas, o governo de que Ramos e Guedes fazem parte difundiu desinformação que alarmou a população, reduziu a confiança na imunização como forma de debelar a pandemia e não promoveu a campanha de informação e conscientização que era seu dever produzir. Esses itens constam da tabela que a Casa Civil que Ramos produziu, um dos poucos documentos que atestam afirmações reais sobre o governo já produzidos na era Bolsonaro.

Longe do confessionário dos homens públicos de Brasília, um ex-companheiro de primeiro escalão de Guedes e Ramos, o general Eduardo Pazuello, escolheu a dedo a cidade que vivenciou o maior caos do morticínio de Covid-19, Manaus, para ser um fanfarrão e desfilar sem máscara num shopping center.

O homem que assinou o protocolo indefensável do tratamento precoce com cloroquina, que, segundo o ex-secretário de Comunicação Fabio Wajngarten, foi o grande responsável pela não aquisição de vacinas, que negligenciou os avisos sobre a falta iminente de oxigênio na mesma Manaus em que tira sarro na cara dos brasileiros enlutados, tem de se sentar logo no banco da CPI para prestar contas sobre sua atuação criminosa à frente de um ministério para o qual nunca poderia ter sido nomeado num país decente, por um presidente que levasse uma emergência sanitária a sério.

Não foi só Pazuello que tirou a máscara diante do país. Guedes e Ramos, com suas falas indignas, também foram desmascarados, ainda que a contragosto, diante da sociedade. O que mais se pode esperar deste governo, que, mesmo com uma investigação contra si instalada no Senado Federal, age com tamanha desídia?

Nada parece chamar esses homens à responsabilidade. Diante desse quadro de cinismo de Estado, é sinal da nossa desgraça que seja alguém com o currículo de Renan Calheiros a comandar as investigações. Não terá sido a primeira vez. Os que hoje condenam Renan há muito pouco tempo chamavam Eduardo Cunha de herói pela condução do impeachment de Dilma Rousseff. As máscaras estão todas no chão. Que se punam os culpados.


Vera Magalhães: Jair sem Trumpinho

'Alvorada sem alambrado/ Pão sem leite condensado/ Sou eu assim sem você. Ema sem cloroquina/Dudu sem carabina/ Sou eu assim sem você.'

Na hora e meia em que esperou sua vez de falar sem convicção na Cúpula de Líderes sobre o Clima convocada por Joe Biden, Jair Bolsonaro bem poderia cantarolar essa versão negacionista do sucesso de Claudinho & Buchecha.

Não que o clássico do funk carioca mereça ter seus versos solares e meigos substituídos pelo lamento do presidente brasileiro sobre o isolamento a que foi relegado no tabuleiro mundial depois que seu amigo Trumpinho foi derrotado nas urnas. Mas sua visível falta de ambiente na reunião em que teve de ler, a contragosto, um papel com o contrário daquilo que pensa e pratica em termos de política ambiental me lembrou os versos “Eu não existo longe de você/ E a solidão é meu pior castigo”.

Antes, quando era Trump, e não Biden, o anfitrião, Jair, família e agregados eram recebidos com alegria galhofeira. A caravana dos puxa-sacos exóticos dos Trópicos vestia boné, ganhava tapinha nas costas e se achava a tal. Podia mandar às favas os indicadores vergonhosos de desmatamento e queimadas. Afinal, primo Donald não estava nem aí para esse mimimi.

Agora, as coisas mudaram. Biden, vejam que amolação, resolve fazer uma Cúpula do Clima e, ainda por cima, exigir metas concretas. Jair não pode nem ler o mesmo discurso de sempre, como gostaria, porque os chatos do Itamaraty, depois da saída do Ernesto, vêm estragar o almoço do costelão e dizer que talvez seja melhor propor alguma coisa com cara de concreta.

Então toca colocar terno e gravata verde (ainda se tivesse o escudo do Palmeiras, talkey?) e fazer cara de sério ao lado do Salles, esquecer a Anitta e desenterrar aquele discurso “comunista” dos governos do PT e do PSDB.

Bolsonaro deve ter ensaiado diante do espelho para repetir palavras como biocombustíveis, biomassa, bioma e biodiversidade sem intercalar com um palavrão ou falar que aquilo é tudo coisa de maricas.

Do lado de lá da tela do computador, Biden (que até saiu da sala, dado o climão da Cúpula do Clima) e os demais líderes mundiais devem ter achado certa graça em ver o antes destemido presidente brasileiro prometer com a voz baixinha dobrar recursos para a fiscalização de crimes ambientais, uma semana depois de mandar exonerar o superintendente da Polícia Federal que ousou combatê-los por meio de uma operação.

Até Trump, onde quer que esteja curtindo seu merecido oblívio, deve ter soltado uma gargalhada e exclamado: “Quem é esse cara?”. Nem parecia aquele que até ontem estava disposto a lhe fazer companhia na bravata de abandonar o Acordo de Paris. Que deixou de sediar a COP-25, que se recusou a conversar com a diretora do Greenpeace, Jennifer Morgan, quando a encontrou em Davos em 2019. Seria o mesmo cara? Aquele do filho de boné que não sabe falar inglês, mas queria ser embaixador?

Eventos como os desta quinta-feira evidenciam a absoluta inadequação de alguém como Jair Messias Bolsonaro para presidir o Brasil, e de auxiliares como Ricardo Salles para gerir qualquer coisa que não seja destinada à destruição.

Ao conseguir, em três minutos de fala, prometer o oposto do que praticou ao longo de dois anos e quatro meses de desgoverno, Bolsonaro assinou diante de um mundo livre do trumpismo o atestado do desastre que é sua gestão.

Resta verificar o dia seguinte da Cúpula em que o Brasil e seu presidente ficaram nus diante do mundo com sua incompetência. Parece difícil que, diante de todas as evidências de que Bolsonaro apenas fez malabarismo retórico para pedir um trocado no final, Biden esteja disposto a financiá-lo. Assim como Trump só enrolava o “amigo”, os Estados Unidos sob nova direção devem continuar a dar chá de cadeira no Brasil.


Vera Magalhães: Campeonato do fim do mundo

“Nesse campeonato do fim do mundo, quando você é muito bem-sucedido, você acrescenta meio grau na temperatura do planeta”, disse, de forma contundente, o escritor e líder indígena Aílton Krenak na última segunda-feira no centro do Roda Viva.

Para ele, é este campeonato que o Brasil, tendo Jair Bolsonaro e Ricardo Salles como técnico e auxiliar, resolveu jogar. E é na condição de líder da tabela desse torneio macabro que o país chega à Cúpula de Líderes pelo Clima, proposta por Joe Biden, que será anfitrião virtual de 40 chefes de Estado a partir desta quinta-feira para marcar a volta dos Estados Unidos à mesa das negociações climáticas, depois de quatro anos de abandono desta agenda por Donald Trump.

Todos os olhos do mundo antes da reunião estão postos sobre o Brasil. Os sucessivos recordes de desmatamento da Amazônia, as queimadas na floresta e também no Pantanal, o desmonte da estrutura de fiscalização ambiental e a reiterada disposição de Bolsonaro de liberar a exploração mineral e de madeira em reservas indígenas, rever demarcações e legalizar terras ocupadas ilegalmente na região amazônica são apenas alguns dos "feitos" pelos quais o presidente brasileiro deverá ser questionado por seus pares.

Embora mantenham a absoluta falta de compreensão a respeito da importância econômica central da agenda climática e ambiental em qualquer fórum global hoje, Bolsonaro e seus auxiliares terão mais uma mostra de sua inadequação para esse debate, pois as cobranças para que se endureça com eles vêm não apenas dos adversários de sempre, como lideranças ambientalistas como Krenak ou a jovem Greta Thunberg, ou artistas como Leonardo di Caprio ou Wagner Moura, mas dos empresários.

Escrevi a esse respeito aqui na coluna na semana passada, e retomo o fio desta meada: Salles só será ameaçado no cargo quando Bolsonaro sentir na pele o risco de mantê-lo, ainda que ele sempre tenha feito exatamente o que o chefe mandou.

Grandes empresas brasileiras sabem o quanto de prejuízo reputacional e de negócios enfrentarão quando se tornar um imperativo para vendas a certificação ambiental de produtos, algo cada vez mais comum. Vale sobretudo para o poderoso agronegócio, até aqui ainda um reduto de apoio ao bolsonarismo, mas que não rasga dinheiro.

A pressão mundial é para que Biden endureça o jogo com o Brasil, não aceitando fazer nenhum acordo com o governo do capitão a não ser que o país reveja sua doutrina ambiental e se comprometa com metas objetivas e mensuráveis de redução de desmatamento e de emissões de gases responsáveis pelo efeito estufa.

Bolsonaro ficará ainda mais exposto pelo fato de que os anfitriões querem marcar sua “volta ao jogo” com a assunção de metas ousadas e o anúncio de investimento pesado em conter o aquecimento global, para além da mera retórica.

Sabemos como o presidente brasileiro costuma se comportar em eventos mundiais como a Assembleia Geral da ONU ou o Fórum Econômico Mundial de Davos: como um peixe fora d’água, alguém que sabe que não tem o que dizer para além das quatro linhas das redes sociais e do cercadinho do Alvorada, onde fica seguro na companhia dos seus seguidores fanáticos.

Sem o “amigo" Donald Trump a chancelar o desdém e o discurso negacionista em relação ao Meio Ambiente, Bolsonaro ficará completamente isolado na cúpula. O discurso proferido nesta terça-feira pelo ministro da Defesa, Braga Netto, na linha “a Amazônia é nossa”, mostra que o nacionalismo mofado é a tônica em todas as áreas do Executivo, não só na pasta de Salles. 

Parece ingênua, portanto, qualquer esperança de que o Brasil vá ao encontro munido de novos propósitos para deixar a liderança da peleja do fim do mundo. Só fará isso se levar um cartão vermelho de Biden.


Vera Magalhães: Salles não é Ernesto nem Weintraub

Quem imagina que a pressão internacional pela adoção de políticas mais firmes no combate ao desmatamento, a demissão do superintendente da Polícia Federal no Amazonas ou os sucessivos indicadores de aumento dos desmates e das queimadas colocam em risco imediato a permanência de Ricardo Salles no governo deve atentar para uma diferença importante: Salles não tem nada a ver com Abraham Weintraub ou Ernesto Araújo.

A começar pela origem. Salles não é um fanatizado seguidor de Olavo de Carvalho, nem mesmo um cultor da imagem de Jair Bolsonaro como um “mito”. A associação entre ambos é uma conveniência de agenda, pragmática para ambos os lados.

O ministro não era o preferido do presidente eleito na transição. As primeiras reuniões entre eles foram cercadas de desconfiança, pelo fato de Salles ter integrado o governo de Geraldo Alckmin.

O paulista ganhou o posto ao se comprometer a implementar à risca a agenda de Bolsonaro, que logo nas primeiras conversas reclamou do excesso de fiscalização e de multas aplicadas por órgãos como o Ibama a madeireiros e produtores rurais. Disse que seu ministro teria a incumbência de acabar com a “indústria da multa” e enfraquecer o papel das ONGs, inclusive suas conexões no Inpe, no Ibama e no ICMBio.

Este é um ponto fulcral: diferentemente de Araújo e Weintraub, cujo comportamento caricato e cuja mente persecutória não permitiam que cumprissem nenhum planejamento de desmonte de seus órgãos sem que isso naufragasse como um plano infalível do Cebolinha, Salles sabe planejar e executar a agenda de Bolsonaro. Tem feito isso com extrema eficácia ao longo de dois anos e três meses.

O que ele propugnou na famosa reunião ministerial de 22 de abril do ano passado, aproveitar a pandemia para “passar a boiada” do desmonte da estrutura de fiscalização e a legislação ambiental, inclusive do arcabouço legal, está sendo implementado à risca. Basta pegar a lista de normas revogadas nos últimos meses, inclusive as concernentes à concessão de licença ambiental.

Salles não se furta a defender a agenda de Bolsonaro em entrevistas, reuniões com outros países e fóruns internacionais. Faz isso sem alterar a voz ou a fisionomia, supostamente esgrimindo dados, que distorce sem nem corar. Aperta os botões certos para demitir ou mandar afastar quem cruza seu caminho, como acaba de acontecer com o superintendente da Polícia Federal no Amazonas, Alexandre Saraiva — algo “já planejado”, segundo os envolvidos.

A queda de Salles dependeria de alguns fatores combinados. Primeiro, uma evidência que o ligasse à defesa dos interesses de empresas privadas que agem ilegalmente nos ramos de madeira, extração mineral ou agropecuária, como acusou Alexandre Saraiva na notícia-crime que enviou ao Supremo Tribunal Federal.

Portanto, se o STF abrir mais um inquérito para investigar um ministro de Bolsonaro, e exigir, como Alexandre de Moraes garantiu no caso das denúncias de Sergio Moro, um delegado da PF destacado para isso que não possa ser removido pelo diretor-geral Paulo Maiurino, a situação do titular do Meio Ambiente poderia se complicar.

O segundo fator que pode atrapalhar a permanência do extremamente eficiente (para Bolsonaro) Ricardo Salles é uma sanção mais concreta da União Europeia, da China ou dos Estados Unidos às exportações brasileiras pela nossa trágica gestão ambiental.

Isso faria com que o prejuízo pela manutenção do ministro se fizesse sentir no bolso daqueles que apoiam Bolsonaro: o agronegócio, o setor da mineração e os madeireiros. O presidente já perdeu sustentação em segmentos importantes, como o mercado financeiro e o empresariado industrial, em razão do desastre na resposta à pandemia e da economia que não decola. Se sentir que a própria cabeça estará na guilhotina, não se furtará a colocar a de seu dileto ministro no lugar.


Vera Magalhães: Ilhados com Bolsonaro

E aí, amigo, onde serão suas próximas férias? A depender do andar da carruagem global do pós-pandemia, por aqui mesmo. Estamos condenados a ficar ilhados com Jair Bolsonaro e seu séquito de negacionistas, ressentidos e cafonas, já que, cada vez mais, seremos proscritos de um mundo que quer superar uma pandemia na qual resolvemos chafurdar indefinidamente.

Você aí que botou fé na cloroquina, fez uma festinha “só” para 50 pessoas no réveillon, foi no grupo de WhatsApp da sala do filho divulgar abaixo-assinado pelo impeachment do governador que decretou esse ab-sur-do de manter escolas fechadas enquanto a média móvel chegava a 3 mil mortos por dia, onde vai fazer suas “compritchas” quando todo este pesadelo passar?

Melhor já ir pensando num destino por aqui mesmo, uma vez que que Paris e suas lojas de alta costura não são uma opção viável no momento para a “cepa” de brasileiros, esses que acham por bem contrariar o bom senso, a razoabilidade, os conceitos mínimos de solidariedade e empatia durante uma crise sanitária — e ainda dão algo como 24% de menções de “ótimo ou bom” ao pior presidente da face da Terra plana.

A decisão do governo da França de proibir voos do Brasil é um indicativo concreto, que atinge justamente a elite mais egoísta, aquela que está louca para que as lojas Havan vacinem logo seus funcionários e para que a vida “volte ao normal”, porque mostra a ela um espelho duro de encarar: somos vistos fora daqui como a imagem e semelhança do “Mito” que alguns ainda insistem em cultuar, alheios às evidências abundantes de desgoverno absoluto em todas as áreas da vida nacional.

Mas nossa classe mais abastada segue anestesiada e fazendo seus planos cada vez mais excludentes e alheios à realidade que atinge o país. Começam a abundar relatos de quem vai tirar férias para fazer uma conexão Cancún-Miami (sim, porque os Estados Unidos também não estão dando mole para deixar brasileiro entrar lá sem uma escala prévia que funcione como quarentena).

Aqueles que chamam os prefeitos de ditadores por não ter academia aberta acham que tudo bem ficar de 10 a 14 dias trancados em quartos de hotéis em países que, vejam só!, adotam distanciamento social, só para ter acesso a imunizantes que o governante para o qual passam pano se negou a comprar para o conjunto da população. O que é restrição à liberdade individual em casa vira chique e civilizado nos cada vez mais escassos lugares do mundo que ainda aceitam passaporte brasuca.

Involuímos. Em tudo. E o resultado é que chegaremos muito depois do resto do planeta ao mundo pós-covid. Na economia, na educação, nos indicadores sociais (que, ademais, demoraremos a conhecer, porque Bolsonaro conseguiu a façanha de demolir o Censo Demográfico!), na recuperação dos sequelados pelo vírus, no estabelecimento dos protocolos que terão de ser seguidos daqui para a frente diante da evidência de que outras pandemias virão cedo ou tarde, no compartilhamento de informações científicas oriundas de um esforço histórico por vacinas e medicamentos, de que fomos apenas espectadores letárgicos.

Estamos fadados a trocar essas discussões do nosso tempo, as que definirão os rumos do trabalho, das relações afetivas, das artes, do turismo, do comércio global num mundo paralisado pelo vírus por outras só nossas, como as jabuticabas: se posso comprar 2 ou 6 armas, se o Senado pode fazer uma CPI para investigar estados ou municípios, se devemos usar máscaras (que ano é hoje?), se viraremos jacarés depois de tomar vacina, se teremos voto impresso em 2022. Estamos na Idade da Pedra do mundo pós-covid, trancados em casa e condenados a um convívio forçado com o vírus e com Bolsonaro, sem que saibamos qual deles é mais letal para o futuro do Brasil, nem sequer que futuro será esse.


Vera Magalhães: Da farda ao distintivo

Nem bem deu com a cara na porta dos quartéis ao tentar bagunçar o coreto por lá com sua forma deliberada e sistemática de minar as instituições, comprometendo sua tonicidade, Jair Bolsonaro voltou-se para outra delas que muito interessa a seu projeto de aparelhamento do Estado, a Polícia Federal.

Não que o ex-ministro da Justiça, atual advogado-geral de Bolsonaro e candidato a ministro do Supremo, André Mendonça, tenha oferecido qualquer resistência a esse projeto, muito pelo contrário.

Mas o novo ocupante da pasta, o delegado da PF Anderson Torres, que chegou ao posto demonstrando grande apetite por poder e por aparecer nas redes sociais, quer colocar sua própria turma por lá.

E sendo, ele próprio, da patota de Bolsonaro e dos filhos, a troca fica em casa e serve ao propósito do chefe.

Desde que venceu as eleições, o capitão não esconde sua compreensão absolutamente peculiar do que seja o exercício da Presidência da República: o uso ilimitado da caneta Bic para nomear e destituir pessoas não pelo currículo, algo de que ele aliás desdenhou nesta terça-feira, mas de acordo com seu também muito próprio código de lealdades.

O presidente não se furta a se referir ao Exército, à Polícia Federal ou ao Ministério como “meu” isso, “meu” aquilo, deixando explícita a maneira nada republicana com que enxerga as atribuições de cada uma dessas estruturas que são de Estado, e não puxadinhos do condomínio Vivendas da Barra ou mesmo do Palácio da Alvorada.

A primeira troca feita na PF, no ano passado, teve o objetivo declarado aos quatro ventos de blindar o filho Flávio de dissabores, em razão do cerco de investigações que se fechava contra ele no Rio de Janeiro. Tanto que a exigência de aparelhamento era dupla: a direção-geral e a superintendência do Rio.

Como o STF não deixou que o preferido do pai e dos filhos, Alexandre Ramagem, assumisse, outro Alexandre, de prenome significativo, Rolando, ficou no seu lugar e, agora, sai para dar espaço ao indicado por Torres.

O mexe-mexe numa instituição como a PF vai minando sua independência aos poucos. Um período de semelhante volatilidade se deu no governo FHC 2, quando nenhum diretor-geral se fixou no cargo depois da queda do todo-poderoso Vicente Chelotti, que comandou o órgão no primeiro quadriênio.

O período de maior estabilidade recente na PF se deu nos mandatos de Dilma Rousseff: mesmo no apogeu da Lava-Jato, com o órgão integrando a força-tarefa que atingiu em cheio cabeças coroadas do PT, a então presidente não teve coragem de demitir Leandro Daiello, que ficou no posto de 2011 a 2017 (permaneceu mesmo com Temer, que depois também tratou de tentar aparelhar a polícia quando sua vez na fila da Lava-Jato chegou).

Sob Bolsonaro, essa sem-cerimônia com que ocupantes de cargos-chave em corporações igualmente essenciais vão caindo ao bel-prazer dos interesses do presidente e de sua família é parte fundamental do esfacelamento da capacidade de resposta a abusos retóricos e administrativos.

As Forças Armadas ainda tentam curar a ferida deixada pelo escancaramento dessa forma insidiosa com que o presidente e seus ideólogos investem sobre as estruturas que integram o Estado. O artigo de ontem do vice Hamilton Mourão no jornal “O Estado de S.Paulo” tenta colocar um band-aid nessa chaga, mas ela segue purgando.

A PF também já está corroída por essa praga, bem como as bases das polícias militares, a respeito das quais já escrevi aqui.

Episódios como aquele em que André Mendonça, ainda em sua encarnação de ministro da Justiça, mandou reabrir um inquérito arquivado contra alguém que escreveu num outdoor que Bolsonaro vale menos que um caroço de pequi roído são o símbolo dessa hipotonia, que a dança das cadeiras apenas trata de agravar.


Vera Magalhães: Bolsonaro fora do segundo turno?

Cresce nos meios políticos e entre os analistas a crença de que o segundo turno de 2022 pode se dar sem a presença de Jair Bolsonaro. Não é por outra razão que dia sim, outro também, o presidente aumenta a estridência de suas declarações e as ameaças a adversários com supertrunfos como o estado de sítio.

Mas como se daria esse cenário do presidente fora da reta final da disputa? Como o impeachment ainda parece uma possibilidade pouco provável, não pela falta de crimes de responsabilidade a granel, mas de apetite do Congresso, coragem das forças econômicas e perda mais significativa de respaldo popular (que pode vir e puxar as outras duas variáveis), a construção tem de ser pela política.

A volta de Lula ao tabuleiro eleitoral, anabolizada na tarde desta terça-feira pelo julgamento do habeas corpus de sua defesa pela Segunda Turma do STF, que reconheceu a suspeição de Sergio Moro para julgá-lo, foi o primeiro fator a ameaçar a presença garantida de Bolsonaro na “final” no ano que vem.

Embora as pesquisas ainda sejam muito equilibradas e mostrem resultados numericamente divergentes quanto a quem levaria a melhor entre os antagonistas Bolsonaro e Lula, a se manter o caos na pandemia e, consequentemente, na economia, a balança tende a pender para o lado do petista mais e mais.

Outro fator a ameaçar a reeleição do capitão é o desejo manifestado nessas mesmas pesquisas por boa parte do eleitorado de votar em alguém que não seja nem Bolsonaro nem um petista (lembrando sempre que Lula está elegível hoje, mas seus processos serão reiniciados, não se sabe de que ponto, pela Justiça Federal no DF).

Até aqui a dúvida dominante era a respeito de quem enfrentaria Bolsonaro no returno: Lula ou um candidato alternativo? Agora não é absurdo pensar na possibilidade de o confronto decisivo ocorrer entre o petista e essa terceira via.

Não, isso ainda não está dado. Bolsonaro tem pelo menos 22% de apoio ainda declarado, de acordo com o mais pessimista dos levantamentos de opinião. Mas é algo possível de construir pela política, caso os partidos acordem do sono letárgico em que parecem hibernar, em meio à situação mais caótica em todas as frentes que o Brasil já enfrentou.

Também é um movimento que já está em marcha em amplos setores da sociedade, como mostram indicadores tão distintos como o manifesto com mais de mil assinaturas dos economistas em prol da racionalidade no trato da pandemia, os panelaços de “Fora Bolsonaro”, as reações ao estado policialesco contra adversários do presidente e o crescente desconforto até no apalermado Congresso Nacional com o desgoverno reinante e o galope descontrolado de mortes em todo o território nacional.

Aconteceu o mesmo com Donald Trump. Por lá, a pandemia foi um fator a galvanizar esses descontentamentos, que estavam difusos, e a forçar a oposição do Partido Democrata a se unir em torno de Joe Biden.

Aqui começam timidamente ensaios de arranjos de chapas que pudessem limpar o meio de campo de muitos candidatos perna de pau nas pesquisas e fazer surgir uma dupla competitiva. Nos últimos dias, fui procurada por articuladores de partidos com composições as mais diversas. Alckmin-Mandetta? Alexandre Kalil-Luiza Trajano? A mais manjada Luciano Huck-Moro? Em cada uma há senões, guerras de egos, vetos dentro desse e daquele partido e hesitação dos envolvidos. Mas o que há mesmo é a falta, até aqui, de consciência por parte do establishment político não petista de que é possível construir essa alternativa, desde que o diálogo comece agora, seja sistemático, envolva setores amplos da sociedade civil para além dos partidos e contemple uma alternativa concreta de projeto de país para reconstruir o que foi destruído por Bolsonaro.


Vera Magalhães: Sociedade civil, finalmente, inicia reação ao arbítrio

E pur si muove!

Não se sabe se Galileu Galilei de fato proferiu a famosa frase depois de ter renegado a teoria heliocêntrica e se retratado perante a Inquisição, mas ela é, até hoje, um libelo em favor da razão e da Ciência — e contra a censura e a perseguição político-religiosa.

Sim, a Terra gira em torno do Sol, e não o contrário. (Além de se mover, ela é redonda, como recentemente atestou até Jair Bolsonaro, ao aparecer com um globo terrestre movido a pilha numa das suas infernais lives semanais.)

A frase imputada a Galileu me voltou à mente diante da resistência cívico-jurídica organizada pelo influenciador Felipe Neto, que, diante da tentativa de intimidação judicial que sofreu por parte de Carlos Bolsonaro, filho e guarda-costas do presidente da República, montou uma rede com alguns dos melhores advogados criminalistas do Brasil, para defender gratuitamente aqueles que vierem a ser perseguidos por se manifestar contra o governo e o capitão.

A inaceitável tentativa de enquadrar o youtuber na Lei de Segurança Nacional caiu por ora, graças a uma liminar, mas a ameaça autoritária já há muito saiu do campo da possibilidade e da retórica para virar realidade cotidiana.

Nesta quinta-feira, foi a vez de manifestantes serem presos por protestar em frente ao Palácio do Planalto portando cartazes e faixas chamando Bolsonaro de “genocida”.

A Polícia Militar do Distrito Federal executou a ação e tentou envolver a Polícia Federal, que liberou os manifestantes e, desta vez, não participou da tentativa de cerceamento à livre manifestação.

Digo “desta vez” porque, acionada diretamente pelo ministro da Justiça, André Mendonça, a mesma PF abriu recentemente inquérito contra um sociólogo do Tocantins que confeccionou um outdoor dizendo que o presidente vale menos que um caroço de pequi roído.

O cerco não é hipotético, não se trata de paranoia da oposição nem de exagero dos críticos. Mais: ele é alimentado pelo recurso cada vez mais frequente do próprio presidente a ameaças veladas ou abertas a medidas “drásticas” ou “precipitadas”, como ele fez nesta quinta naquele bate-papo com puxa-sacos no cercadinho do Alvorada.

Que haja por parte da sociedade civil organizada — influenciadores, advogados, artistas, jornalistas — a organização de respostas claras, imediatas, destemidas e, sobretudo, concretas a esse caldo de cultura golpista é, finalmente, um alento, uma vez que as instituições, que tenho cobrado a cada artigo neste espaço, seguem inertes.

Bolsonaro é, cada vez mais, um bicho acuado. Pela própria covardia, pelo negacionismo que praticou neste ano de pandemia — e que é, sim, o grande responsável pela maioria das mais de 287 mil mortes registradas pela Covid-19 — e pela falta de equipe e de bússola que tire a ele e ao país desta gravíssima crise sanitária, econômica, social, moral e política que atravessamos.

Alguém com pendor autoritário assim assustado é um perigo para um país já traumatizado e com instituições frouxas, dirigidas por homens frouxos. Ainda bem que alguém encabeçou uma ação de fácil compreensão e rápida eficácia.

Felipe Neto, diante dos inquisidores, berrou que a Terra se move, sim, e continuará se movendo a despeito da tentativa de mordaça. E não é a primeira vez: no episódio na censura do ex-prefeito Marcelo Crivella a quadrinhos na Bienal do Rio, em 2019, foi o “moleque”, como gostam de bradar os bolsonaristas, a ir lá e comprar todos os livros com temática LGBTQIA+ e distribuir gratuitamente.

Para além das notas de repúdio e da indignação diluída das redes sociais, esse tipo de iniciativa gera resultado. Que ela inspire os que são pagos por nós para zelar pela democracia.


Vera Magalhães: Lockdown já

O Brasil precisa parar por duas semanas. Nosso sistema hospitalar não dá mais conta de resistir a medidas paliativas ou meramente figurativas de distanciamento social nem à recusa suicida de grande parcela da sociedade em fazer o mínimo: a parte de cada um para evitar o morticínio.

A troca de guarda no Ministério da Saúde, já é possível ver, será de seis por meia dúzia. Marcelo Queiroga até conforta pela fala mansa, conciliatória, contrastante com o tom arrogante e desconectado da realidade do general Eduardo Pazuello.

Suas credenciais, que colhi em entrevistas com médicos e dirigentes de entidades médicas, são boas, de alguém zeloso da ciência e das evidências, que não aderirá facilmente a condutas criminosas como as que Pazuello chancelou batendo continência.

Só que isso não basta. Para que se mude o rumo da tragédia sanitária brasileira, que preocupa o mundo e condena o planeta a não superar a pandemia, é preciso que o Brasil pare, se tranque em casa e dê apoio muito mais intensivo e urgente aos que não têm de onde tirar o sustento a não ser na rua e a empresas que quebrarão se fecharem as portas.

Mas elas precisam fechar, sob pena de continuarmos a assistir diariamente à perda de mais de 2.000 pessoas como se isso fosse um dado da natureza.

Não há paralelo em nenhum outro país de tolerância por tanto tempo, e em números tão elevados, com a carnificina. Como se estivéssemos propositalmente jogando gente como nós, brasileiros com todos os direitos e deveres, ao mar para assegurar os poucos coletes salva-vidas restantes. Isso não é aceitável nos planos político, jurídico, ético ou moral. Tal comportamento faz de todos, governantes ou não, cúmplices de chacinas diárias e espalhadas por todo o território nacional.

Faz de nós um país de pessoas que aceitam um pacto macabro com Bolsonaro a favor da morte. Se toparmos ser parte dessa estratégia, a História cobrará não só dele, mas de cada um que viveu na década de 2020.

Parar custará muito em termos de transferência de renda às pessoas, de recursos aos entes subnacionais e de apoio na forma de crédito, isenção tributária ou subsídio a empresas, inclusive com redução de salários.

Mas não há nenhuma outra medida que, na falta criminosa de vacina em quantidade ao menos razoável, nos tire desta guerra em que estamos enfrentando o vírus desarmados.

Em vez de querer tirar uma casquinha obscena da popularidade dos governadores todos os dias, o presidente que somos condenados a ter no tempo mais grave das nossas vidas precisa ajudá-los, dar-lhes um suporte. Precisa ser obrigado a fazer isso pelo Judiciário, que até já ensaiou fazer isso, mas que precisa fazer cumprir suas decisões, senão viram letra morta.

Bolsonaro precisa ser forçado a endossar o lockdown por um Congresso que até aqui tem sido seu comparsa. Fechado com ele por interesses indizíveis, que nada têm a ver com o dos brasileiros que querem um leito e oxigênio para seus pais, avós e filhos.

O cronograma mentiroso de vacinas de Pazuello, que Queiroga endossou alegremente, fala em mais de 500 milhões de doses de imunizantes de procedência diversa até o fim do ano. Não para em pé nem sequer no que promete para março, incluindo no cômputo 8 milhões de unidades procedentes de um laboratório da Índia que nem concluiu a fase 3 de estudos. Trata-se de uma empulhação criminosa.

Ou o lockdown é assumido como política de Estado pelo Brasil, como foi com desassombro por países tão diversos quanto Nova Zelândia, Portugal, Chile e Alemanha, ou amanhã teremos de lidar com números mais sombrios. E por muito tempo, já que Bolsonaro zombou da pandemia, pisoteou cadáveres, desdenhou vacinas e nos trouxe até aqui.


Vera Magalhães: Paredão falso no STF

Na segunda-feira, a expectativa era de que a coalizão de governadores e a intervenção branca do Congresso no Plano Nacional de Imunização poderiam suprimir poderes para a dupla Bolsonaro-Pazuello sabotar o país e dar algum rumo para o Titanic desgovernado no qual estamos enfiados rumando céleres para 3.000 mortes diárias por covid-19. Mas o Supremo Tribunal Federal decidiu que havia coisas mais urgentes para tratar.

Do nada, o ministro Edson Fachin acordou de um sono de quatro anos em que é o relator da Lava-Jato na Corte e, alarmado, constatou: a 13ª Vara da Justiça Federal em Curitiba não era, vejam só, o foro adequado para julgar o ex-presidente Lula. Foi tudo um lamentável engano, pelo qual ele infelizmente ficou preso, aliás em Curitiba, por 580 dias. Com o voto do próprio Fachin, esse distraído.

Metade das 46 páginas da decisão extemporânea do ministro é gasta para ele explicar o inexplicável: por que agora? E qual a extensão de sua decisão? Ele não diz. Talvez ainda não saiba.

Diante do inesperado, o ministro Gilmar Mendes resolveu abrir sua gaveta, espanar o pó e tirar de lá o HC da defesa de Lula que arguia a suspeição de Moro. O mesmo que Fachin esperava que fosse parar no triturador de papel diante da sua decisão.

Não só não foi como ele ameaça ficar isolado na Segunda Turma, uma vez que até a ministra Cármen Lúcia dá sinais de que votará com Gilmar, contra Moro.

Por que Fachin se expõe a tanto desgaste? Qual o cálculo de que anéis poderiam ser dados e dedos poupados com essa lambança?

E Gilmar Mendes, que nesta terça-feira repetiu a performance indignada de sempre contra a Lava-Jato, por que então aguardou mais de um ano com esse HC em seu gabinete? Se de um dia para outro já tinha um voto tão sólido e volumoso?

Nada para de pé na conduta do STF, em ziguezague há cinco anos na Lava-Jato, ao sabor não do Direito, mas das circunstâncias políticas.

Ou não foi o mesmo Gilmar que concedeu liminar para sustar a nomeação do mesmo Lula para a Casa Civil como forma de — vejam só! — escapar da jurisdição do mesmo Moro, lá em 2016?

Sim, sua mudança foi sendo gradativa ao longo dos anos, e veio antes da Vaza Jato. Mas a demora em trazer o caso da suspeição de Moro à Turma evidencia um cálculo político e colabora para que agora, no momento dramático da pandemia, em que o país deveria estar focado, com o STF, com tudo, em exigir vacinas do governo federal, estejamos acompanhando esse BBB de palavrório inalcançável e personagens pouco carismáticos.

Aproveitando que estávamos todos brincando de juristas e traçando cenários para o ainda distante 2022 a partir do advento do Lula livre, Bolsonaro emplacou duas de suas cheerleaders mais negacionistas, Bia Kicis e Carla Zembelli, em comissões importantes da Câmara.

A mesma Câmara que ainda discutia na noite de terça um auxílio emergencial que já deveria ter voltado a ser pago, pois no mundo real, esse cuja existência o Supremo preferiu começar a semana sublimando, tem gente morrendo de fome ou de falta de leito em hospital. Uma situação sinistra à qual chegamos por inépcia absurda e criminosa dos Poderes.

À mais alta Corte do país numa democracia cabe assegurar a segurança jurídica e ter a última palavra para garantir que os demais Poderes não exorbitem suas atribuições e respeitem a Constituição.

Ao exibir ao país suas entranhas e suas vaidades, seu casuísmo com casos sérios que dizem respeito ao nosso passado e ao nosso futuro, suas Excelências jogam água no moinho dos golpistas que clamam contra o Judiciário e se fragilizam para cobrar do Executivo suas obrigações no enfrentamento da pandemia. Que deveria ser a única preocupação de todas as autoridades, mas não é.


Vera Magalhães: Lava Jato vira letra morta, e 2018 parte 2 é logo ali

A inesperada decisão do ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato no Supremo Tribunal Federal, que anulou todas as condenações do ex-presidente Lula faz da Lava Jato letra morta e abre um caminho para que as eleições presidenciais de 2022 sejam um repeteco de 2018, com a polarização entre Jair Bolsonaro e Lula, desta vez sem intermediário.

Para além da discussão sobre se havia ou não provas para condenar Lula nos casos do triplex no Guarujá e do sítio em Atibaia, a decisão de Fachin é uma excrescência jurídica e institucional. Ele percebeu quatro anos depois de ser designado relator que a 13ª Vara Federal de Curitiba não era o foro adequado para julgar Lula não em um ou dois processos, mas em quatro?

Foram várias as vezes em que, em diferentes processos, o STF se debruçou sobre a questão da jurisdição de Curitiba na Lava Jato. Ficou decidido que tudo que tivesse conexão com a Petrobras ficaria lá. Nos casos de Lula, o Ministério Público Federal fez a conexão nas denúncias, os juízes de primeira instância a reconheceram e o tribunal de segunda instância, o TRF da 4ª Região, chancelou as decisões (em dois dos casos).

O STF julgou dezenas de habeas corpus da defesa de Lula. Inclusive decidiu mantê-lo preso preventivamente em 2018. Uma questão tão básica, inicial, passou ao largo da análise de tantas instâncias da Justiça?

A decisão de agora de Fachin não é só o atestado de óbito da Lava Jato -- que podemos discutir, em vários outros textos, e provavelmente vamos, se merece este fim. Ela é um atestado de falência de todo o sistema judicial brasileiro, uma vez que não houve instância do Judiciário que não tenha sido instado a analisar a situação do ex-presidente e de outros réus.

A nova decisão, e tomada de forma monocrática, deverá desencadear uma nova avalanche de recursos de diversos réus da operação, colaboradores ou não, para ter a favor de si o mesmo julgamento. 

Se Fachin tomou a decisão por medo de ficar vencido no julgamento do HC pela suspeição de Moro, então ele preferiu dar um tiro no coração da Lava Jato para evitar que ela fosse atingida no braço ou no pé. Não é compreensível.

Quando ele, na decisão, diz que a Justiça tem de ser imparcial e apartidária, está dando vazão para que a defesa e os apoiadores de Lula, com razão, apontem parcialidade e partidarização também em "n" decisões do Supremo, e não apenas de Sérgio Moro e Gabriela Hardt. Afinal, eles tiveram sentenças confirmadas.

Uma coisa seria anular as condenações à luz do que se descobriu na Vaza Jato. Os fatos ali demonstrados são posteriores às condenações, e suscitam uma complexa, porém compreensível discussão a respeito da legalidade das condenações. Esta análise deveria se dar pelo pleno da corte, e a partir de uma premissa: as provas obtidas na Operação Spoofing, que por sua vez analisou dados de uma interceptação ilegal de diálogos entre integrantes da Lava Jato e Moro, poderiam ser usados?

Fachin atravessou este samba para dizer: olha só, pessoal, esqueçam isso, porque tudo que fizemos até aqui estava errado, e a gente esqueceu de ver este detalhe. Risível! Joga por terra tudo que se descobriu no esquema de desvio de recursos da Petrobras, suas subsidiárias e demais empresas públicas por agentes públicos e políticos, em conluio com grandes empresas.

Do ponto de vista político, a decisão é tudo que Bolsonaro poderia querer neste momento. Desvia o foco da imprensa, da sociedade civil, da oposição e da Justiça da sua criminosa gestão da pandemia, lhe dá uma narrativa segundo a qual o "sistema" opera para beneficiar Lula e o PT e fazer letra morta da "roubalheira" na Petrobras e permite a ele reconquistar parte de seus apoiadores com base no discurso mistificador de que se não for ele o PT volta. Sopa no mel!


Vera Magalhães: Tribunal da História é já

O que mais se ouve diante da sucessão de imagens e notícias que atestam nossa calamidade é: “Que horror!”. Sim, um horror. Mas que tem nome e sobrenome: Jair Bolsonaro.

Sem Jair Bolsonaro, nunca teríamos Eduardo Pazuello como o ministro da Saúde mais longevo de um ano de pandemia desenfreada.

Sem Jair Bolsonaro, já teríamos superado a idade da pedra da pandemia e não veríamos boçais repetirem o presidente em que se espelham e colocarem em dúvida a necessidade básica de usar uma máscara.

Sem Jair Bolsonaro, governadores não ficariam com medinho de adotar medidas mais que urgentes, na verdade atrasadas, para conter internações e mortes, pois não teriam hordas de arruaceiros atrás de si propagando absurdos.

Se é tão óbvia a responsabilidade do presidente da República, por que seguimos bovinamente repetindo “que horror”, em várias esferas da vida nacional, e nada acontece a ele?

Graças a pensamentos como o do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), para quem os crimes cometidos pelo capitão são colocados na conta dos “exageros retóricos” ou de “comportamentos pessoais condenáveis”, e qualquer medida de contenção prescrita na Constituição é descabida no momento.

Para Pacheco, a História tratará de apontar as responsabilidades pelos crimes da pandemia. Enquanto isso, a missão do Congresso, segundo ele, é garantir que o auxílio emergencial seja aprovado logo e que as vacinas cheguem em profusão aos braços dos brasileiros.

Se a omissão ao menos levasse a esses objetivos, vá lá. A História trataria de julgar também os parlamentares.

Mas não! A negociação do auxílio está emperrada na absoluta ausência de projeto, que deveria ter sido pensado ainda na virada do ano, para garantir o mínimo de compensação fiscal a que Paulo Guedes tenta se apegar.

Não só não existe essa engenharia, como também nada garante que o pagamento de R$ 250 por quatro meses passará no Congresso sem majoração de prazo e valor. O que levará Guedes, Pacheco e companhia de volta à estaca zero e postergará em dias ou semanas o pagamento.

Da mesma maneira, a tal “planilha” que o imperdoável Pazuello apresentou a Pacheco, Arthur Lira e companhia no domingo não passa de mais um papel de pão sem validade. O Ministério da Saúde não tem como garantir as quantidades de vacinas que tem prometido. Não com os acordos que assinou até aqui, preto no branco.

Existem protocolos de intenções com vacinas ainda não aprovadas pela Anvisa, e não existe nem sinal de compra daquela única já aprovada em definitivo pela agência, a da Pfizer! Um atestado simples da mais completa incompetência e falência do Plano Nacional de Imunização.

Mas, ainda assim, os órgãos de controle, o Ministério Público, o Congresso e parte da sociedade seguem num misto de pensamento mágico de que tudo vai se resolver, negação da gravidade e ilusão de que seja possível levar uma “vida normal”.

Diante de tal cenário, o ministro da Economia, para justificar seu apego a um cargo de que já foi destituído na prática pelo presidente, pede que lhe apontem se está indo no caminho errado, porque assim ele sairá. É embaraçoso que o responsável pela Economia, no momento de maior solavanco na vida econômica do país, não tenha GPS.

Ainda falta mais de um ano para as eleições, e os que podem agir agora, porque têm mandato e atribuição legal para tal, seguem fingindo que não é com eles.

Enquanto não se exigir de Bolsonaro que pare de sabotar as medidas de distanciamento e o plano de imunização, sob pena de pagar com o que lhe é mais caro, a cadeira, o Brasil seguirá com o nefasto título de pior país do mundo hoje no enfrentamento à pandemia.

Uma música de protesto de um tempo igualmente macabro da vida brasileira dizia que quem sabe faz a hora, não espera acontecer. Esperar o tal tribunal da História significa assumir e aceitar que pessoas continuarão morrendo aos milhares. E, assim, ser cúmplice de Bolsonaro.