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O Estado de S. Paulo: STF barra reeleição de Maia e Alcolumbre

Os ministros Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e Luiz Fux votaram neste domingo contra a possibilidade de reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado. Com os três últimos votos, o Supremo barrou a tese de reeleição na mesma legislatura

Rafael Moraes Moura,O Estado de S. Paulo

O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu na noite deste domingo barrar a possibilidade de os atuais presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), disputarem a reeleição na mesma legislatura. A eleição da cúpula do Congresso está marcada para 1º de fevereiro de 2021. O resultado do julgamento muda radicalmente o tabuleiro político na sucessão das duas Casas.

Ao longo dos últimos dias, o STF sofreu uma série de críticas por conta do julgamento, o que influenciou o placar final, segundo o Estadão apurou.  O ex-presidente do STF Nelson Jobim, por exemplo, disse ao Estadão estar “perplexo” com a discussão. Também proliferaram críticas na classe política e no meio acadêmico.

Por 6 a 5, o STF decidiu não dar permissão para a reeleição de Alcolumbre. No caso de Maia, a derrota foi ainda maior, com o placar de 7 a 4. A diferença nos dois resultados se dá por conta do voto do ministro Nunes Marques. Indicado ao tribunal pelo presidente Jair Bolsonaro, Nunes Marques optou por uma solução intermediária — a favor de Alcolumbre, mas contra Maia –, alinhado aos interesses do Palácio do Planalto, que aposta na candidatura de um dos líderes do Centrão, o deputado Arthur Lira (PP-AL), para a chefia da Câmara.

Na noite deste domingo, os ministros Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e  o presidente do STF, Luiz Fux, votaram contra a reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado em 2021, marcando uma reviravolta no resultado final, que indicava uma tendência de vitória da tese a favor da recondução.

“A regra impede a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente a do primeiro ano da legislatura. Nesse ponto, a norma constitucional é plana: não há como se concluir pela possibilidade de recondução em eleições que ocorram no âmbito da mesma legislatura sem que se negue vigência ao texto constitucional”, escreveu Fux.

“Com efeito, não compete ao Poder Judiciário funcionar como atalho para a obtenção facilitada de providências perfeitamente alcançáveis no bojo do processo político-democrático, ainda mais quando, para tal mister, pretende-se desprestigiar a regra constitucional em vigor”, concluiu o presidente do STF.

O ministro Luís Roberto Barroso, por sua vez, observou ser “compreensível o sentimento de que existe uma assimetria no sistema constitucional dos Poderes ao não se permitir uma recondução dos presidentes do Senado Federal e da Câmara dos Deputados”, ao contrário do presidente da República. “Entendo não ser possível a recondução de presidente de casa legislativa ao mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente, porque esse é o comando constitucional vigente”, concluiu Barroso.

A eleição para a cúpula do Congresso é a disputa política mais importante do próximo ano. Os presidentes da Câmara e do Senado comandam a agenda legislativa do País, articulam a estratégia para a aprovação de reformas prioritárias do governo e são responsáveis por controlar não apenas a abertura de CPIs, mas também o andamento de pedidos de impeachment – do presidente da República, no caso da Câmara; dos ministros do STF, no caso do Senado.

O julgamento ocorreu no plenário virtual da Corte, uma plataforma online que permite que os ministros analisem casos longe dos olhos da opinião pública – e das transmissões ao vivo da TV Justiça.

Na madrugada da última sexta-feira, o relator do caso, ministro Gilmar Mendes, havia votado a favor da tese da reeleição, sendo seguido integralmente por Dias Toffoli, Alexandre de Moraes e Ricardo Lewandowski. A divergência no julgamento foi aberta pelo ministro Marco Aurélio Mello.

“A tese não é, para certos segmentos, agradável, mas não ocupo, ou melhor, ninguém ocupa, neste tribunal, cadeira voltada a relações públicas. A reeleição, em si, está em moda, mas não se pode colocar em plano secundário o artigo 57 da Constituição”, escreveu Marco Aurélio.

Além de Fux, Fachin, Barroso e Marco Aurélio, as ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia votaram contra dar aval às reeleições de Maia e Alcolumbre.

Ditadura. Há mais de meio século, a reeleição é proibida na cúpula do Congresso. Em 1969, o Ato Institucional número 16, editado pela ditadura militar, proibiu a recondução ao cargo dos presidentes da Câmara e do Senado. O veto foi imposto pelo regime ditatorial em uma manobra contra o então presidente da Câmara, José Bonifácio Lafayette de Andrada. Mesmo filiado ao Arena, Andrada provocou irritação em setores radicais do governo ao permitir que colegas parlamentares denunciassem da tribuna a repressão das Forças Armadas.

Antes disso, não eram incomuns a reeleição por mandatos consecutivos, como foi o caso de Ranieri Mazzilli, que comandou a Câmara por um período de sete anos (de 1958 a 1965). Arnolfo Azevedo (1921-1926), Astolfo Dutra (1915-1919) e Sabino Barroso (1909-1914) também foram reeleitos.

A Constituição de 1988, em pleno regime democrático, reforçou o veto à reeleição colocado pelos militares. “Cada uma das Casas reunir-se-á em sessões preparatórias, a partir de 1º de fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para a posse de seus membros e eleição das respectivas mesas, para mandato de dois anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subseqüente”, diz o artigo 57 da Carta.

De lá pra cá, o Supremo flexibilizou a regra: passou a permitir a reeleição no caso de mandato-tampão e em legislaturas diferentes.

Temores. Um dos temores no STF é o de que nomes mais imprevisíveis e mais alinhados ao presidente Jair Bolsonaro assumam o comando da Câmara e do Senado, o que poderia resultar em retaliações contra o Judiciário, como a abertura da CPI da Lava Toga e até mesmo a votação de pedidos de impeachment de ministros do STF. Até agora, Alcolumbre tem resistido à pressão de senadores “lavajatistas”.


O Estado de S. Paulo: Como youtubers bolsonaristas ganham R$ 100 mil mensais com informações privilegiadas do Planalto

'Estadão' teve acesso às 1.152 páginas do sigiloso inquérito dos atos antidemocráticos do STF que investiga a organização e o financiamento das manifestações contra a democracia

Patrik Camporez, Breno Pires e Rafael Moraes Moura, O Estado de S.Paulo

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BRASÍLIA - O sigiloso inquérito dos atos antidemocráticos aberto em abril para apurar a organização e o financiamento de manifestações contra a democracia revela que um negócio muito lucrativo estava por trás dos protestos contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso. Mas o que mais causou surpresa foi a descoberta de que informações usadas por uma rede de canais no YouTube, investigados por promover esses atos no País, saíram de dentro do Palácio do Planalto.

A conclusão consta de inquérito com 1.152 páginas, ao qual o Estadão teve acesso. Após sete meses de diligências, as apurações mostraram os elos e a convivência harmoniosa da Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom) com os youtubers do “gabinete do ódio”, núcleo palaciano que adota um estilo beligerante nas redes sociais. No fim da manhã desta sexta, o governo afirmou em nota que  está prestando esclarecimentos à Justiça e chama de 'ilação' ligação com rede do ódio.

A existência desse grupo, com essa denominação, foi revelada pelo Estadão, em setembro de 2019. Trabalhando a poucos metros do gabinete do presidente Jair Bolsonaro, o assessor especial da Presidência da República Tércio Arnaud Tomaz e o Coronel Mauro Cesar Barbosa Cid, ajudante de ordens, são os interlocutores do blogueiro bolsonarista Allan dos Santos, dono do canal Terça Livre, dentro do Planalto.

Tércio é apontado no inquérito dos atos antidemocráticos como elo entre o governo e os youtubers, que possuem acesso privilegiado a Bolsonaro e informaram faturamento de mais de R$ 100 mil por mês. Integrante do “gabinete do ódio”, Tércio repassa vídeos do presidente e participa de grupo de WhatsApp com os blogueiros para “discutir questões do governo”, segundo disse em depoimento à Polícia Federal. Cid, por sua vez, admitiu que, como “mensageiro” de Bolsonaro, leva e traz recados de Allan para ele. O blogueiro atua como uma espécie de representante das demandas dos demais canais.

A investigação feita pela Polícia Federal em inquérito conduzido pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF, ainda não terminou, mas já atormenta Bolsonaro por fechar o cerco sobre a militância digital bolsonarista. Até agora, foram ouvidas mais de 30 pessoas, entre as quais o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), apontado como comandante do “gabinete do ódio”, e o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filhos do presidente.

“A propaganda de conteúdo extremista no campo digital culmina, de fato, em ações subsequentes: as manifestações reais contra o Estado Democrático de Direito, criando um ciclo que se realimenta, com a difusão das manifestações pelos canais de internet dos produtores, que, por sua vez, são alardeados e replicados em perfis pessoais de redes sociais de agentes do Estado, gerando mais visualizações (difusores)”, constatou a Polícia Federal, em relatório de 9 de julho.

Não passou despercebido dos investigadores que, no período dos protestos antidemocráticos, alguns com a presença de Bolsonaro, vídeos com títulos apelativos pipocaram nas redes sociais. Nessa lista estavam “Bolsonaro rebate conspiradores”, “Bolsonaro dá ultimato para sabotadores e intromissões”, “Bolsonaro invade STF”, “A Força de Bolsonaro é maior que Congresso e STF”, “Bolsonaro e Forças Armadas fechados em um acordo para o Brasil” e “STF decidiu eliminar Bolsonaro”, como registrou a Procuradoria-Geral da República (PGR).

“Com o objetivo de lucrar, estes canais, que alcançam um universo de milhões de pessoas, potencializam ao máximo a retórica da distinção amigo-inimigo, dando impulso, assim, a insurgências que acabam efetivamente se materializando na vida real, e alimentando novamente toda a cadeia de mensagens e obtenção de recursos financeiros”, disse o vice-procurador-geral da República, Humberto Jacques, em manifestação ao STF.

Com atos contra democracia, canais bolsonaristas aumentaram inscritos e lucros

Levantamento do Estadão identificou que o número de inscritos de onze canais sob investigação aumentou 27% no total, de 6,7 milhões para 8,5 milhões, entre 1º de março e 30 de junho. O período coincide com o das manifestações antidemocráticas. De julho até o fim do mês passado, quando já não havia mais protestos, os canais cresceram apenas 6%.

Nos interrogatórios, a PF tem questionado se os donos de canais são “laranjas” de terceiros. Foi o que ocorreu no depoimento prestado por Anderson Azevedo Rossi. O criador do canal Foco do Brasil respondeu que não repassa dinheiro recebido de monetização do YouTube a outros. Rossi afirmou, porém, que recebe ajuda de Tércio Tomaz para abastecer a sua página.

Por meio do WhatsApp, disse ele, o assessor repassa vídeos de Bolsonaro. Tércio está sempre ao lado do presidente. Filma suas conversas de forma imperceptível e procura flagrar situações que possam constranger quem o incomoda.

Com 2,3 milhões de seguidores no YouTube, Rossi teve uma guinada na carreira desde a ascensão de Bolsonaro. Recebia um salário de R$ 3,5 mil como técnico de informática em sua cidade, Canela, no Rio Grande do Sul. Agora, com os recursos da monetização – a remuneração que o YouTube paga por anúncios publicitários nos canais – faturou com o Foco do Brasil US$ 330.887,08 entre março de 2019 e maio de 2020, o equivalente a R$ 1,7 milhão na cotação atual de câmbio. É um valor aproximadamente 33 vezes maior do que ganhava na função anterior. Rossi chegou a instalar uma sala física do canal em Brasília.

Em depoimento à PF, Tércio negou dar tratamento diferenciado aos donos de canais no YouTube que orbitam em torno de Bolsonaro. Admitiu, porém, ter participado de um grupo de WhatsApp com Allan dos Santos para discutir questões do governo federal. Allan, por sua vez, disse que recebe R$ 12 mil por mês, na condição de “sócio” do Terça Livre, também obtidos por meio de monetização, segundo depoimento prestado à PF. 

Já Fernando Lisboa, do Vlog do Lisboa, fatura de R$ 20 mil a 30 mil por mês. Emerson Teixeira, do canal “Professor Opressor”, informou que tem rendimento mensal de R$ 11 mil. Foco do Brasil, Terça Livre e Vlog do Lisboa veicularam propaganda da reforma da Previdência, paga pela Secretaria de Comunicação (Secom). Exibiram, respectivamente, 57.044, 1.447 e 2.081 inserções publicitárias no YouTube, de acordo com informações enviadas pela Secom à CPMI das Fake News no Congresso, no período de 6 de junho a 13 de julho de 2019.

A lista de canais que difunde o discurso do “gabinete do ódio” inclui ainda a Folha Política, de Ernani Fernandes Barbosa e Thaís Raposo, que informaram rendimento no YouTube de R$ 50 mil a 100 mil por mês. Ao todo, 11 canais, incluindo também o Direto aos Fatos, de Camila Abdo, e o TV Direita News, de Marcelo Frazão, continuam sendo investigados por disseminação de conteúdo contra as instituições. Um deles, da  extremista Sara Giromini, foi excluído do YouTube por ferir normas. Outro, do jornalista Oswaldo Eustáquio, não está mais disponível para acessos no Brasil. Os números de inscritos dos canais que seguem ativos, somados, atingem 9,1 milhões.

Desde a última sexta-feira (27) o Estadão tem pedido uma manifestação da Secom. A reportagem perguntou também se os assessores Tercio Arnaud Tomaz, José Matheus Sales Gomes, Mauro Cesar Barbosa Cid e  Mateus Diniz gostariam de se manifestar, já que são citados no inquérito do STF. Três e-mails foram enviados à Secom, mas não houve resposta.


Maria Cristina Fernandes: Não é um "casuismozinho"

Sem 308 votos para mudar a Carta, boiada da reeleição das Mesas quer passar no STF

É preciso notório saber jurídico para chegar ao Supremo Tribunal Federal, mas basta um domínio rudimentar da língua portuguesa para entender o parágrafo quarto do artigo 57 da Constituição: “Cada uma das Casas reunir-se-á em sessões preparatórias, a partir de 1º de fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para a posse de seus membros e eleição das respectivas Mesas, para mandato de dois anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente”.

Apesar disso, a conjunção dos astros na capital federal indica que a tese que permitirá a reeleição do senador Davi Alcolumbre (DEM-AP) e do deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ) à presidência das Mesas tem a maioria dos 11. E por que renomados magistrados submeteriam sua reputação a tamanho constrangimento?

Já o fizeram antes, explicam os defensores da tese. Sim, fartamente, sem que nenhum deles se sinta impedido de olhar o espelho de manhã cedo. O casamento homoafetivo é o exemplo mais usado de reinterpretação sem mudança constitucional. Trata-se, porém, de dispositivo envelhecido por uma sociedade mais inclusiva que passou a reivindicar a cláusula pétrea dos direitos e garantias individuais.

A julgar pela dedicação dos arautos da tese, se não há uma “parada do fico” no calendário, em defesa da reeleição das Mesas, é porque não há pleno conhecimento das ameaças que pairam sobre a democracia. Os argumentos vão dos predicados do principal adversário de Maia, o deputado ficha suja Arthur Lira (PP-AL), que conquistou seus dois últimos mandatos pendurado em liminar do STJ, até o ataque de hackers no TSE.

Investigações preliminares da Polícia Federal que indicariam o envolvimento de deputados federais do círculo mais próximo de Bolsonaro, teriam bastado para convencer os recalcitrantes. Quando o ministro Luís Roberto Barroso entrou na linha de tiro pelo apagão do TSE no primeiro turno, Maia foi o primeiro a se solidarizar. O ministro Gilmar Mendes, relator da reeleição, o segundo.

A reiterada desconfiança do presidente Jair Bolsonaro na lisura das urnas eletrônicas seria outra evidência de que a própria alternância de poder estaria em risco. Por isso, o atentado contra a alternância no outro Poder, o Legislativo, estaria justificado. Com dois precedentes. Um, protagonizado por Ulysses Guimarães, “o pai da Constituinte”, que presidira a Câmara na legislatura que antecedeu a da nova Carta e pretendia ficar no cargo para comandar os trabalhos. O regimento interno foi, então, modificado para abrigar a permanência do progenitor.

O segundo precedente se deu com o próprio Rodrigo Maia. Com a cassação do então presidente da Casa, Eduardo Cunha, o deputado, na condição de vice, cumpriu o mandato-tampão. Quis disputar a reeleição na mesma legislatura e foi, para isso, liberado pelo Supremo, tendo como relator o decano, Celso de Mello.

Uma nova reeleição de Maia não se encaixa em nenhum dos puxadinhos. Mas se é a democracia que está em jogo, emende-se a Constituição, ora pois. O problema mora aí. Como inexistem 308 votos para isso na Câmara, é mais fácil conseguir os seis votos no Supremo. Ou não.

Como Edson Fachin, Cármen Lúcia e Marco Aurélio Mello estariam irredutíveis, sobrariam Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli e Kassio Nunes. É sobre esta trinca de ministros que se concentram Lira e o presidente da República, que vê em Maia a reencarnação de Eduardo Cunha, aquele que o convocou ao microfone para cassar o mandato de uma presidente da República em nome de seu torturador.

Para contra-atacar a ofensiva, os defensores da tese que beneficia Alcolumbre e Maia se comprometeram com uma única recondução, ainda que o voto do relator ainda não seja conhecido. Se o compromisso sossegou Lewandowski, ainda pairam dúvidas sobre o comportamento dos outros dois.

Kassio Nunes, indicado por Bolsonaro, acaba de interromper dois plenários virtuais, mesma modalidade, sem sessão ou debate, na qual está pautada a reeleição. E Toffoli interrompeu um julgamento onde a condição de réu de Lira estava em pauta.

Se isso acontecer, a expectativa é de que Gilmar, no início do recesso, dê uma cautelar liberando a recandidatura de Maia e Alcolumbre. Caberia então, ao presidente da Corte, Luiz Fux, na condição de plantonista do recesso, cassar ou não esta medida. Depois de tomar posse demarcando terreno em relação a Gilmar Mendes, Fux dá sinais dúbios. Tomou a decisão, por exemplo, de levar a plenário as ações penais que o colega pretendia julgar na turma que preside, transformada em cemitério da Lava-Jato, mas tem-se mostrado sensível à tese de que a reeleição seja uma norma interna da Câmara, ainda que a matéria esteja estampada na Constituição.

Os partidos no Congresso que, até aqui, têm assistido o espetáculo de camarote, resolveram colocar sua colher de pau nesse angu. Parlamentares de oposição com os quais Maia e Alcolumbre contavam agora dizem que são contra a reeleição. Ninguém sabe se manterão a postura se a recandidatura for avalizada e se, num segundo turno, Maia for a única alternativa anti-Bolsonaro.

O fato é que o desempenho do DEM nas eleições municipais tanto aumentou seu cacife como articulador dos palanques de 2022 quanto gerou reações da oposição que teme ser imprensada na disputa nacional e receia a ofensiva sobre suas bases regionais, como PSB e PT deixaram claro.

Não é apenas o Legislativo que está em jogo, mas um combo de poderes aliançados no Judiciário e até no Ministério Público. Entre as cartas na manga de Gilmar Mendes está a relatoria da ação sobre a prisão domiciliar do ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro, Fabrício Queiroz, que o ministro tirou de pauta para levá-la a julgamento no momento que lhe convier. O procurador-geral da República, Augusto Aras, que toca pelo diapasão de Gilmar, parece ter concluído que o papel de engavetador-geral não tem trazido sucesso para suas ambições e resolveu remontar as forças-tarefas regionais.

O pacote ainda prevê a arbitragem, via TCU, da queda de braço, dentro e fora do governo, sobre os limites fiscais do próximo ano. Vide a decisão, desta semana, autorizando o empenho de despesas a serem feitas apenas em 2021.

O combo que se apresenta para resgatar a democracia pretende fazê-lo atropelando a alternância do poder. Não tem um dono só a boiada que, na era bolsonarista, quer arrombar a cerca da Constituição.


Bernardo Mello Franco: Os interesses de Sergio Moro

O juiz que comandou a Lava-Jato virou sócio de uma consultoria que socorre empresas falidas na operação. O novo emprego de Sergio Moro tem levantado discussões sobre ética e conflito de interesses. Não é a primeira vez que acontece com ele.

Em 2018, Moro mandou prender o candidato que liderava a corrida presidencial. A decisão abriu caminho para Jair Bolsonaro, que ocupava o segundo lugar nas pesquisas. Sete meses depois, o juiz pendurou a toga para se juntar à tropa do capitão.

O convite para integrar o governo foi feito durante a campanha, segundo o próprio Moro. O pacote incluía uma vaga no Supremo Tribunal Federal, mas ele rompeu com o chefe antes de selar a nomeação.

Agora a zona cinzenta se deslocou da política para o mundo dos negócios. Moro será sócio-diretor da consultoria americana Alvarez & Marsal, especializada em recuperar empresas quebradas. Entre seus clientes, estão quatro alvos da Lava-Jato: Odebrecht, OAS, Queiroz Galvão e Sete Brasil.

Em nota, o ex-ministro disse que pretende “ajudar as empresas a fazer coisa certa”. “Não é advocacia, nem atuarei em casos de potencial conflito de interesses”, afirmou. A A&M o apresentou como um especialista em “liderar investigações anticorrupção” e “aconselhar clientes sobre estratégia e conformidade regulatória proativa”. Já se sabia que Moro aconselhava procuradores, falta saber o que ele dirá aos réus.

O ex-juiz selou o destino das quatro empresas atendidas pela A&M. Analisou informações confidenciais, condenou executivos e assinou acordos de delação e leniência. No caso da Odebrecht, ele fixou o pagamento de US$ 2,6 bilhões em multas. Agora virou sócio da consultoria que toca a recuperação judicial da empreiteira.

“Moro está emprestando o patrimônio da Lava-Jato a uma empresa que lucra com os resultados dela. A meu ver, isso põe muitos processos que ele julgou em suspeição”, afirma o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz. O ex-ministro poderá responder a um processo disciplinar na Ordem. Nas mãos do juiz Moro, o consultor Sergio estaria em apuros.


Merval Pereira: Restaurar a moralidade

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luis Fux, foi surpreendentemente explícito ontem, durante a fala de abertura do 14º Encontro Nacional do Poder Judiciário promovido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ao fazer uma ligação clara entre a decisão que tomou logo depois de assumir o cargo, em outubro, de tirar das turmas e levar para o plenário as ações penais e inquéritos, e a vontade de não permitir a desconstrução da Operação Lava Jato.

“O primeiro ato praticado por mim, não quero nenhum louvor, estou apenas dando esse esclarecimento: todas as ações penais e todos os inquéritos passarão pela responsabilidade do plenário, porque o STF tem o dever de restaurar a imagem do país a um patamar de dignidade da cidadania, de ética e de moralidade do próprio país".

Foi a maneira que Fux encontrou para reafirmar seu empenho de evitar que a Segunda Turma, que é responsável por analisar os processos da Lava-Jato, use uma maioria já firmada para obstruir as investigações. A Segunda Turma tinha o ministro Celso de Mello com fiel da balança. Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski votam na maioria das vezes na mesma direção, assim como a ministra Carmem Lucia e o ministro Edson Fachin. Enquanto não foi escolhido o substituto de Celso de Mello, a dupla Gilmar e Lewandowski levou a melhor, pois o empate favorece ao réu.

Eles ganharam depois o reforço do novo ministro indicado por Bolsonaro, Nunes Marques. O pronunciamento de Fux aconteceu dois dias depois que a 2ª Turma do STF decidiu que manterá no colegiado os recursos que já começaram a ser julgados antes da decisão que definiu a competência do plenário. A posição foi entendida como uma reação do presidente da 2ª Turma, ministro Gilmar Mendes, que vem se destacando como um dos adversários mais ferrenhos da Lava-Jato no Supremo.

Mesmo que o próprio ministro tenha afirmado que a decisão não tem relação com a mudança regimental que restabeleceu a competência do plenário para julgar ações penais, aprovada por unanimidade. “Nenhuma dúvida sobre a competência do pleno para dar continuidade a julgamento pela aplicação imediata da emenda. Aqui se trata de julgamentos já iniciados com votos já proferidos”, esclareceu.

O presidente do Supremo Luis Fux concorda com a explicação: “Ali eram Embargos de Declaração, com voto proferido pelo próprio relator, já iniciado o julgamento. Recursos ainda não interpostos vão para o plenário, e ações penais deslocam-se também”. O presidente do Supremo pretende “esclarecer esses pontos na sessão administrativa semana que vem”.

Mais uma
Uma decorrência do menosprezo do atual governo brasileiro pelos organismos internacionais teve um desfecho agora na Organização Mundial de Propriedade Industrial (OMPI). A vaga para diretor-geral, disputada entre a América Latina e a Ásia, em março, tinha um candidato brasileiro apoiado por grupos políticos e de dentro do governo, o advogado José Graça Aranha, membro da OMPI há 35 anos, candidato há 12 anos que perdeu por um voto para o australiano Francis Gurry, que a dirige desde então.

A vitória era considerada fácil, pois diversos países já haviam dado seu apoio, mas como os governos é que indicam os candidatos, o Itamaraty decidiu não apoiar a candidatura brasileira devido ao fato de Graça Aranha ter sido diretor-geral do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) no governo Fernando Henrique, e candidato a diretor-geral com o apoio do governo Dilma.

O Brasil acabou optando pelo candidato de Singapura, Daren Tang, que foi eleito, numa vitória estratégica dos Estados Unidos contra a China que poderia ter sido de um brasileiro. Agora, ao preencher as oito vagas de diretor-geral adjunto, o governo brasileiro apresentou um primeiro-secretário do Itamaraty, Maximiliano Arienzo para uma delas, que havia sido prometida na campanha. O novo diretor-geral nomeou representante da Colômbia para a vaga da América Latina. Indonésia, Gana, Estados Unidos, França, Inglaterra, China e Japão, cada qual ficou com uma vaga. Resultado, perdemos tudo na OMPI.


‘Kassio Nunes não é um dos mais notáveis juristas brasileiros’, diz Murilo Gaspardo

Em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de novembro, doutor em direito pela USP mostra proximidade do novo ministro do STF com o Centrão

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Diretor da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Unesp (Universidade Estadual Paulista) Câmpus de Franca (SP), Murilo Gaspardo diz que é “controversa” o nome indicado para a escolha do substituto do ministro Celso de Mello, que se aposentou, ao STF (Supremo Tribunal Federal). “Embora Kassio Nunes preencha os requisitos constitucionais para a indicação e tenha trajetória respeitável, certamente não é um dos mais notáveis juristas brasileiros”, criticou, em artigo que produziu para a revista Política Democrática Online de novembro.

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Todos os conteúdos da publicação, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), podem ser acessados, gratuitamente, no site da entidade. Livre-docente em Teoria do Estado pela Unesp e doutor em Direito do Estado pela USP (Universidade de São Paulo), Gaspardo a posição política que orienta a interpretação constitucional do indicado, conservadora, não é um problema intrínseco, mas, conforme analisa, o caminho de sua escolha.

Isto porque, de acordo com o autor do artigo, a escolha de Nunes passa pela sua proximidade com o Centrão, e as especulações de que seja parte da estratégia para blindar o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e seus familiares das investigações e dos processos criminais em curso não condizem com os princípios republicanos. ‘Soma-se a isso o fato de o Senado não ter exercido a contento seu papel constitucional no processo de aprovação da nomeação”, afirmou Gaspardo.

Na análise publicada na revista Política Democrática Online de novembro, o analista ressaltou que a questão não é a decisão favorável, mas, de acordo com ele, a não realização de uma arguição pública digna desse nome, que exigisse minimamente a demonstração pelo indicado de seu notável saber jurídico e de sua orientação na interpretação constitucional.

Segundo Gaspardo, é necessário aguardar o início do exercício de suas funções pelo novo ministro para saber se o fará de forma autônoma, bem como se a afirmação do presidente de acordo com a qual ele está “100% alinhado” é restrita à posição conservadora, ou também compreende um alinhamento pessoal, portanto, não republicano.

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RPD || Murilo Gaspardo: Indicado por Bolsonaro, o que esperar de Kassio Nunes no Supremo?

Kassio Nunes Marques substituindo Celso de Mello no STF por indicação de Bolsonaro pode conferir a um líder que despreza as instituições a possibilidade de influenciar o Supremo a partir de dentro, avalia Murilo Gaspardo

A democracia liberal combina eleições competitivas para as funções de representação política e Estado de Direito. A garantia do Estado de Direito depende da atuação legítima e eficaz do Poder Judiciário, em especial de seu órgão de cúpula – no caso brasileiro, o Supremo Tribunal Federal (STF). A legitimidade do STF não tem como fundamento a expressão da vontade da maioria do povo, mas sim a racionalidade substantiva de suas decisões e seus procedimentos decisórios. Isso não significa que exista apenas uma interpretação correta das normas jurídicas ou que decisões judiciais sejam politicamente neutras. Entretanto, a coerência lógico-argumentativa é imprescindível, o que inclui a valorização da colegialidade, a inadmissibilidade do casuísmo e o respeito aos precedentes (sua modificação deve apresentar fundamentos objetivos).

Nesse quadro, o processo de indicação de um Ministro do STF cumpre dois papéis: a demonstração de que é detentor de notável saber jurídico e reputação ilibada (CF, Art. 101, caput), indicação de que tem capacidade para produzir decisões coerentes e fundamentadas; e o escrutínio público da orientação política da interpretação constitucional do indicado (CF, Art. 52, III e 84). Como não existe neutralidade na interpretação constitucional, cada Ministro será mais liberal ou conservador, garantista ou punitivista etc. Há, assim, coerência na sistemática constitucional em atribuir a instância de representação política às competências de indicação (Presidente da República) e aprovação (Senado Federal), inclusive porque, após a nomeação, o Ministro adquire plena autonomia em relação a quem o indicou e aprovou.

O desenho institucional do processo de aprovação pelo Senado (Regimento Interno, Art. 383) prevê, antes da votação, o escrutínio público sobre a trajetória, a experiência e as posições do indicado sobre questões constitucionalmente sensíveis, mediante, inclusive, análise de publicações acadêmicas e decisões judiciais pretéritas (quando se trata de magistrado), com possibilidade de participação da sociedade por meio do encaminhamento de informações e sugestões de perguntas para a arguição pública (sabatina), ou até mesmo a realização de audiência pública.

Qual a razão, então, para a preocupação em relação à indicação do Desembargador Kassio Nunes Marques pelo Presidente Jair Bolsonaro para a vaga no STF, aberta com a aposentadoria do Ministro Celso de Mello?

Primeiramente, estamos tratando de um Presidente com perfil e atuação autoritários e populistas, que desrespeita e ameaça diuturnamente as instituições essenciais à democracia – inclusive o STF. Em segundo lugar, por meio de decretos e outros atos normativos, da precarização de órgãos de fiscalização e do exercício de seu poder simbólico, Bolsonaro também ataca a Constituição. E o STF tem funcionado como uma espécie de trincheira em sua defesa – por exemplo, na suspensão de decisão que revogou a proteção de manguezais e restingas. Por outro lado, o predomínio de decisões individuais sobre as colegiadas, uma jurisprudência errática e, muitas vezes, casuística e precariamente fundamentada, fragiliza a legitimidade do STF.

Nesse contexto, a indicação de um Ministro por Bolsonaro, o que conferiria a um líder que despreza as instituições a possibilidade de influenciar o STF a partir de dentro, já constitui motivo para preocupação. A escolha também é controversa. Embora Kassio Nunes preencha os requisitos constitucionais para a indicação e tenha trajetória respeitável, certamente não é um dos mais notáveis juristas brasileiros (impressão reforçada pelos títulos equivocadamente inseridos em seu currículo), nem um dos expoentes da Magistratura – o que, em verdade, não é um privilégio dele entre seus novos pares.

A posição política que orienta a interpretação constitucional do indicado (conservadora) não é um problema intrínseco – mas o caminho de sua escolha, que passa pela proximidade do novo ministro com o Centrão e as especulações de que seja parte da estratégia para blindar o Presidente e seus familiares das investigações e dos processos criminais em curso, não condizem com os princípios republicanos. Soma-se a isso o fato de o Senado não ter exercido a contento seu papel constitucional no processo de aprovação da nomeação. A questão não é a decisão favorável, mas a não realização de uma arguição pública digna desse nome, que exigisse minimamente a demonstração pelo indicado de seu notável saber jurídico e de sua orientação na interpretação constitucional.

Enfim, é necessário aguardar o início do exercício de suas funções pelo novo Ministro para saber se o fará de forma autônoma, bem como se a afirmação do Presidente, de acordo com a qual ele está “100% alinhado”, é restrita à posição conservadora ou também compreende um alinhamento pessoal, portanto, não republicano.

*Murilo Gaspardo é diretor da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP – Campus de Franca – SP. Livre-docente em Teoria do Estado pela UNESP e Doutor em Direito do Estado pela USP.


Luiz Fux: Mensagem ao cidadão brasileiro

Poder Judiciário deve contas à sociedade

Honra-me servir o nosso país como presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça pelos próximos dois anos, após mais de 40 anos de vida pública, tendo percorrido todos os degraus da carreira da Magistratura.

O sentimento de dever público é redobrado neste momento de soerguimento da vida nacional, em meio a uma pandemia que levou por ora mais de 130 mil vidas humanas, testando a capacidade de resiliência dos brasileiros e de nossas instituições como nunca na história contemporânea, e nos imbuindo de solidariedade para com as vítimas e seus familiares.

O meu sentir, como cidadão e como juiz, é que a nossa Constituição sairá mais fortalecida desta crise. Como o mais importante documento do povo brasileiro, ela permanece a âncora do Estado Democrático de Direito e a bússola que guia as nossas aspirações de presente e de futuro.

À frente do STF, preservaremos a sua função precípua como instituição de jurisdição maior, defendendo a Constituição e conjurando das nossas deliberações temas afeitos aos demais Poderes. Meu norte será a lição mais elementar que aprendi no exercício da Magistratura: a deferência aos poderes Executivo e Legislativo no âmbito de suas competências, combinada com a altivez e vigilância na tutela dos direitos fundamentais.

Com efeito, o STF não detém capacidade institucional — nem é o legítimo oráculo — para todos os dilemas morais, políticos e econômicos de uma nação. Tanto quanto possível, os poderes Legislativo e Executivo devem resolver interna corporis seus conflitos e arcar com as consequências políticas de suas decisões. Reduzir a judicialização excessiva da política requer um compromisso coletivo que se revela fundamental para a autoridade de Constituição.

Por outro lado, se cabe ao Judiciário guiar-se pelas virtudes passivas, não podemos abrir mão da independência judicial atuante por um ambiente político probo. De forma harmônica e litúrgica, em diálogo permanente com os demais Poderes, o Judiciário não hesitará em proteger as minorias e a liberdade de expressão, bem como em preservar a democracia.

Calcada nessas premissas, nossa gestão compreenderá cinco eixos, todos alinhados aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da ONU. São eles: 1) proteção dos direitos humanos e do meio ambiente; 2) incremento da segurança jurídica conducente à otimização dos negócios; 3) combate à corrupção, ao crime organizado e à lavagem de dinheiro, com a consequente recuperação de ativos; 4) acesso à justiça digital; e 5) fortalecimento da vocação constitucional do STF.

A vocação constitucional do STF merecerá especial atenção nos próximos dois anos, porquanto não se justifica que sejamos a Corte Suprema que mais julga processos no mundo. Em 2019, foram 115.603 processos julgados, em contraposição aos 70 casos julgados pela Suprema Corte americana. Julgar muito não significa necessariamente julgar bem. Destarte, o fortalecimento do sistema de precedentes permitirá a redução dos processos que chegam desnecessariamente ao STF.

Outrossim, as excelentes gestões que me antecederam criaram as bases para consolidarmos a Revolução Digital do Poder Judiciário, o que nos permitirá desenvolver soluções criativas e baratas, porém com alto impacto estrutural, em direção a um acesso à justiça digital. O STF caminha para se tornar a primeira Corte Constitucional 100% digital do planeta, com perfeita integração entre inteligência artificial e inteligência humana. Nas demais instâncias, entre outras iniciativas, criaremos varas virtuais e incentivaremos soluções alternativas de conflitos em plataformas eletrônicas.

A tecnologia também será instrumento para aprimorar o sistema de combate à corrupção e de recuperação de ativos. Ampliaremos parcerias estratégicas com organismos nacionais e internacionais e adequaremos o país às recomendações do Grupo de Ação Financeira Internacional, mecanismos essenciais para o ingresso do Brasil na OCDE.

Por outro lado, não basta um Poder Judiciário tecnológico e eficiente, se os direitos básicos do cidadão não forem protegidos e concretizados pelas decisões judiciais. Nessa perspectiva, o destinatário central do nosso trabalho diário será o cidadão brasileiro. O exercício da judicatura requer a consciência de que o Poder Judiciário deve contas à sociedade e de que a autoridade de nós, juízes, repousa na crença de cada brasileiro em que as nossas decisões decorrem de um exercício imparcial e despolitizado de alteridade.

Daqui em diante, é hora de pouco falar e muito agir, sempre com um olhar otimista e propositivo sobre o Poder Judiciário. As boas mudanças são geracionais. Por vezes, elas não ocorrem no tempo e no ritmo desejados. No entanto, ao lado dos 18 mil juízes brasileiros, inicio esta jornada sem a ilusão de conceber que em dois anos teremos resolvido todos os problemas do Poder Judiciário, mas com a motivação infinita de empreender transformações positivas no modo de fazer a justiça em nosso país. Não há milagres nem subterfúgios. O motor da história é olhar para frente, sempre com prudência, diálogo, senso de realidade e consciência de que devemos honrar e preservar os ideais de futuro que a Constituição do Brasil prometeu.

*Luiz Fux é presidente do Supremo Tribunal Federal


Bernardo Mello Franco: Fux terá que escolher

A despedida de Dias Toffoli resumiu bem sua gestão à frente do Supremo. Enquanto os ministros da Corte faziam os salamaleques de praxe, Jair Bolsonaro adentrou o plenário cercado de aliados. Sem aviso e sem cerimônia, o capitão se refestelou numa poltrona e passou a acompanhar os discursos.

Não foi o único momento constrangedor da tarde. Indicado por Bolsonaro, o procurador Augusto Aras comparou o presidente do Supremo às flores do Cerrado. “No auge da seca, os ipês nos dão o melhor de si, embelezando a relva ressequida”, filosofou. Em nome da OAB, o advogado Marcus Vinicius Furtado Coêlho disse que a coragem é a “característica central” de Toffoli. Essa ninguém poderia imaginar.

Mais cedo, em visita ao Congresso, Toffoli já havia recebido uma curiosa homenagem do presidente do Superior Tribunal de Justiça. “Todo poder emana do povo. E o Toffoli é povo, o Toffoli é poder”, afirmou o ministro Humberto Martins. O senador Davi Alcolumbre identificou no presidente do Supremo a “coragem dos grandes líderes”. Imodesto, Toffoli concordou com tudo e descreveu sua própria gestão com as palavras “independência” e “altivez”.

Convidado a discursar no Supremo, Bolsonaro relembrou a colaboração do ministro com seu governo. “Até nos surpreendeu na sua capacidade de antecipar problemas e apresentar a solução antes mesmo que fosse procurado”, elogiou. Pareceu uma referência à canetada que suspendeu, por cinco meses, as investigações contra o primeiro-filho Flávio Bolsonaro.

Toffoli dará lugar a Luiz Fux, que toma posse hoje. O ministro vai comandar o Supremo até setembro de 2022. A múltiplos interlocutores, ele tem prometido descolar o tribunal dos interesses do Planalto. Ontem o capitão sugeriu o contrário ao cometer uma indiscrição e reproduzir uma conversa entre os dois. “Vossa Excelência falou pra mim: o que eu precisar do STF, assim como eu tive com Dias Toffoli, terei também com Vossa Excelência”, contou.

Pelo visto, o novo presidente do Supremo precisará escolher alguém para desapontar.


Eugênio Bucci: A liberdade e a Justiça

A indústria ilegal da desinformação é um fenômeno sobre o qual não há jurisprudência

A determinação do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), de bloquear páginas de bolsonaristas em redes sociais provocou um bom debate. Desta vez não se trata de uma daquelas batalhas estéreis entre claques que se ofendem e não se escutam. Estamos em meio a uma discussão que mobiliza conceitos sérios, com fundamento ético e legal, sobre os limites da Justiça e os alcances da liberdade de cada um. Há argumentos legítimos e inteligentes de um lado e de outro. A hora pede reflexão. Mais do que embarcar no Fla-Flu jurídico, devemo-nos dedicar a entender com calma o que está em jogo.

Comecemos pela pergunta incômoda: a autoridade judicial pode, no âmbito de um inquérito (no caso, o Inquérito 4.781, mais conhecido como o “inquérito das fake news”), impedir preventivamente a manifestação das pessoas investigadas? Pode o juiz impor a mordaça a um cidadão cujos atos ainda não foram julgados?

Os que respondem “sim” a essa pergunta argumentam que os trâmites da Justiça e das investigações policiais normalmente restringem direitos fundamentais. Nada de novo sob o sol, portanto. Na terça-feira, em webinar no site Poder 360, ninguém menos que o presidente do Supremo, Dias Toffoli, seguiu essa linha de raciocínio. Lembrando que até mesmo o direito de ir e vir pode ser suspenso pela autoridade judicial no curso de uma investigação (é o que acontece quando o suspeito vai para a cadeia, em regime de prisão preventiva, mesmo antes de seu suposto crime ter sido julgado pela Justiça), Toffoli sustentou a tese de que a supressão preventiva de páginas de pessoas investigadas nas redes sociais constitui um expediente análogo, igualmente aceitável e legítimo, além de legal.

O argumento, bem construído, soa ainda mais convincente quando observamos que aqueles que tiveram suas contas derrubadas nas redes não foram cassados em sua liberdade de expressão, pois seguem se manifestando com alta estridência em outros canais – apenas aquelas contas específicas, nas quais foram identificadas condutas e postagens suspeitas, foram bloqueadas. Além disso, o bloqueio das contas desses bolsonaristas seria indispensável para o bom curso das investigações. Por tudo isso, o argumento procede.

Há, porém, outro ponto de vista. Quando perguntados se um juiz teria poderes para impor a mordaça a um cidadão cujos atos ainda não tivessem sido julgados, não são poucos os que respondem “não”. Nesse grupo não figuram apenas os sabujos do presidente da República, empenhados em rebaixar a União ao papel de despachante de blogueiros fascistas. Nesse grupo estão também aqueles que não apoiam em nada o governo e se preocupam com precedentes que, no bojo do inquérito das fake news, venham a enfraquecer no futuro o respeito à liberdade de expressão. Estes (os que prezam a democracia) consideram que um inquérito policial não deveria ter a prerrogativa de atropelar o livre curso do debate público. Admitem, por certo, que todos devem ser responsabilizados (julgados e punidos) pelos abusos que cometerem no uso da liberdade, mas não aceitam a supressão preventiva de um milímetro que seja dessa liberdade.

É fato que hoje estamos falando de um inquérito que apura o comportamento de milícias virtuais abjetas, que disseminam o ódio, o preconceito, o fanatismo e a desinformação mais delirante, atentando diariamente contra os mais preciosos alicerces da República e da democracia. As contas bloqueadas, todo mundo sabe, reúnem um festival de ultrajes e baixezas inomináveis, com pregações contra os direitos fundamentais e as liberdades democráticas. Portanto, para um democrata, é confortável dar de ombros a uma ação da Justiça que limite, ao menos um pouco, as violências virtuais perpetradas por esses terroristas do simbólico. Mas o que acontecerá se, amanhã, outro inquérito, com outras motivações, vier a interditar páginas que não primem pela mesma vileza? A cargo de quem ficaria o critério de arbitrar sobre o que deve e o que não deve ser proibido?

A muitos democratas preocupa a hipótese de que o inquérito das fake news hoje abrigue um componente de censura que venha a produzir estragos amanhã. Para estes, não dá para apoiar o bloqueio das páginas desta vez só porque nos enoja o conteúdo bloqueado. E se gostássemos desse conteúdo, qual seria a nossa reação? Será mesmo essencial, para o êxito das investigações, que essas páginas sejam suprimidas das plataformas sociais?

Os dilemas implicados aí nada têm de corriqueiros. São dilemas ameaçadores e desconhecidos – a indústria ilegal da desinformação, cujos estragos estão apenas começando a se mostrar, é um fenômeno recente, sobre o qual não há jurisprudência em nenhum lugar do mundo. No Brasil é ainda pior, porque aqui o Poder Executivo age como um gabinete do ódio contra as liberdades. Diante disso, a responsabilidade que pesa sobre o STF é quase sobre-humana. Que nossos ministros saibam honrar a melhor tradição da Suprema Corte, de consolidação das liberdades e fortalecimento da democracia, e trilhem o melhor caminho.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


Fernando Schüler: O Supremo é o editor da sociedade?

Foi exatamente contra a ideia do 'Estado editor' que surgiu o conceito moderno de liberdade de expressão

Foi interessante assistir ao ministro Dias Toffoli, nesta semana, em um debate promovido pelo site Poder 360, expondo com clareza seus pontos de vista sobre temas de censura e liberdade de expressão hoje em pauta no país.

O ministro foi taxativo: “A Constituição veda de modo absoluto a censura prévia”. E concluiu: “Aquilo que ainda não foi tornado público pode vir a público e a pessoa vai arcar com suas consequências […] pode emitir sua ideia, seja ela qual for. Até de defender o nazismo, até de defender o fechamento do Supremo”.

Dito isto, era óbvia a pergunta pendurada no ar: e os cidadãos banidos das redes sociais, no inquérito das fake news? Isto é, impedidos previamente de dizer as coisas que poderiam lhes trazer “consequências”. O que dizer?

O ministro sugeriu uma distinção: uma coisa seria proibir a “expressão” de um indivíduo; outra seria proibi-lo do uso de “veículos” para se expressar. Nesta lógica, os bloqueados não teriam perdido sua liberdade. Apenas não poderiam fazê-lo no Facebook ou no Instagram. Poderiam publicar panfletos, imaginei, mas ninguém aventou a hipótese.

Ato seguinte, o ministro sugeriu uma analogia entre os bloqueios e as prisões preventivas. Privação do direito de ir e vir seria muito mais grave do que perda da liberdade intelectual ou de expressão. Por que então deveria chocar mais as pessoas “meia dúzia de redes sociais paradas do que 200 mil pessoas presas provisoriamente?”

De minha parte, só vejo uma resposta a esta questão: choca por que é algo que não está na lei, muito menos na Constituição. Não importa que se trate de prisão ou banimento do Twitter. Choca é o desrespeito a um princípio, que é um bem para uma sociedade democrática.

O ministro foi além. Depois de se referir ao fato de que toda empresa de comunicação tem seu editor, explicou que “nós, enquanto Judiciário, enquanto Suprema Corte, somos editores de um país inteiro, de uma nação inteira, de um povo inteiro”.

Eugênio Bucci estava no debate e, com sua gentileza habitual, lembrou que sociedades não funcionam como empresas de comunicação. Estas pertencem ao mundo privado e podem demitir o funcionário a partir de juízos de valor. Caberia, porém, a uma instituição de Estado fazer o mesmo? Isto é, “eleger valores que definem a circulação de conteúdos”?

Eis aí a questão central: sociedades abertas precisam de um “editor”? Sociedades que se definem precisamente pela diversidade de visões de mundo e por um desacordo fundamental sobre o erro e o acerto, o falso e o verdadeiro?

A resposta a esta pergunta está no próprio nascimento da ideia moderna de liberdade de expressão. Foi para defender o fim do direito à censura prévia de livros que o poeta inglês John Milton, no coração da revolução inglesa, escreveu sua “Areopagítica”.

Em 1644 eram os livros. Hoje são redes e blogs. A questão fundamental é a mesma. Deveríamos presumir, perguntava Milton, que aqueles que censuram “dispõem da graça da infalibilidade, acima de todos nessa terra”? Era exatamente contra a ideia do Estado editor que John Milton se batia.

Estas questões pareciam estar resolvidas há muito tempo. De uma hora para outra, a coisa mudou. Vamos nos tornando um país em que a defesa da liberdade de expressão vai surgindo como um exercício perigosamente retórico e seletivo. E estranhamente capaz de assustar as pessoas.

País em que se aceita acriticamente o retorno da “absolutamente vedada” censura prévia. A lógica do “você não fala mais nada, seja bom, seja mau, seja verdade, seja mentira”, como bem lembrou o professor e amigo Marco Sabino.

Os crimes cometidos na internet devem ser punidos, na forma da lei, e é saudável que se discuta mecanismos de proteção das instituições frente às novas tecnologias. O Congresso, neste exato momento, se dedica a esse debate.

Nada disso, porém, admite a tutela do Estado sobre a opinião. Ainda lembro do orgulho que todos sentimos quando a ministra Cármen Lúcia lembrou canções de sua infância para dizer que o “cala a boca já morreu”. Sugiro não ressuscitá-lo.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


RPD || Entrevista Especial: 'Não vejo riscos para a democracia no Brasil', avalia Denise Frossard

Ex-juíza e ex-deputada federal avalia que, apesar da relação conflituoso entre o Excutivo, o Judicário e o Legislativo atualmente, o Brasil ainda vive uma adolescência jurídica, política e histórica e, por isso mesmo, instável, mas que não oferece riscos à democracia

Por Caetano Araújo e Cleomar Almeida

"Julguei e decidi que havia, sim, no Brasil uma organização criminosa do tipo mafioso, numa sentença que se apoiava em jurisprudência italiana, pela ausência de precedente no Brasil", relembra a ex-juíza e ex-deputada federal pelo Rio de Janeiro Denise Frossard, sobre ampla investigação contra o crime organizado no Brasil, da qual fez parte e que a tornou conhecida nacionalmente, em 1993. Entrevistada especial desta 17a edição da Revista Política Democrática Online, Frossard aposentou-se do Judiciário em 1998 e, em 2002, foi eleita deputada federal com a maior votação para o cargo nas eleições pelo Rio de Janeiro.

Denise Frossard destaca que, né poca em que atuou contra o crime organizado,  O Congresso Nacional entendeu a importância da proposta e contribuiu ao longo de uns 20 anos com legislação absolutamente moderna, de acordo com as melhores legislações dos países mais adiantados. "Estabeleceu-se cooperação com países que combatiam a lavagem do dinheiro, o crime organizado, o tráfico de entorpecentes."

"Valeu a pena? Claro que valeu, pois foi, a partir dali, que chegamos a Lava Jato. Relembro que vi as entranhas do crime organizado não só como Juíza de Direito, mas também como parlamentar, quando participei, pelo antigo PPS, hoje Cidadania23, da Comissão Mista Parlamentar de Inquérito que acabou por desvendar a tentativa de captura do Estado brasileiro pelo crime organizado, conforme é do conhecimento de todos", completa Frossard.

Sobre o momento atual que o país atravessa, com o governo de Jair Bolsonaro e os atritos entre o Executivo, o Judiciário e o Legislativo, Frossard diz que não vê risco algum para a democracia, nenhum risco de golpe. "Isso não existe. Apesar de ainda adolescentes, o Povo já entendeu que, quanto à Democracia,  não há qualquer transação - é ela ou ela", destaca.

Na entrevista especial que concedeu à Revista Política Democrática Online, Denise Frossard também destaca o papel das instituições no Brasil. "Não tem outra saída além do cumprimento à lei, para todos. Com isto eu quero dizer que quando se tem um juiz que se desvia, é importante que exista um órgão que coloque o dedo nesse juiz e arranque a sua toga. Quando é o caso de um parlamentar que se desvia, da mesma forma que lhe seja retirado o mandato", alerta.

Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista:

Revista Política Democrática (RPD): Tendo sido a precursora na difícil e corajosa tarefa de conduzir ampla investigação do crime organizado no Brasil, a senhora avalia que valeu a pena?
Denise Frossard: Antes de dizer se valeu a pena ou não, é importante destacar que vivemos hoje, no Brasil uma adolescência jurídica, política e histórica e, por isso mesmo, instável. Agora, você me pergunta se valeu a pena. Vejamos.

Há mais de 25 anos, veio às minhas mãos um processo que de forma inédita implicava o reconhecimento ou não da existência de uma organização criminosa no Brasil do tipo mafioso, que se constituiu, enfim, para cometer crimes – não um crime específico, mas que se constitui para ser uma empresa cuja “mercadoria” era - e é - o crime. Era uma situação sem precedentes no Brasil. Embora eu fosse muito jovem à época, não hesitei em enfrentar o desafio. Julguei e decidi que havia, sim, no Brasil uma organização criminosa do tipo mafioso, numa sentença que se apoiava em jurisprudência italiana, pela ausência de precedente no Brasil.

Aquilo foi um marco. A partir daquele momento, ficou muito claro para a sociedade que aquele grupo condenado, conhecido como “a cúpula do jogo dos bichos” (mas o processo não dizia com a atividade contravencional do “Jogo dos Bichos”) que até então eram pessoas muito bem aceitas na sociedade, recebidas e até homenageadas por políticos, dos quais recebiam as maiores comendas oficiais, frequentadores de todos os Palácios da República. De fato eram - como são - criminosos, cercados de assassinos a soldo, ligados a vários homicídios, tráfico de drogas, armas etc... A partir daquele momento, isto ficou tão claro que quem quisesse frequentar aquele grupo em seus camarotes momescos ou tribunas VIPs de jogos de futebol que o fizesse, mas não mais poderiam alegar que não soubessem de quem se tratava. Entretanto, embora a linha divisória tenha sido perfeitamente traçada, isto não tirou da cúpula o poder, que permanece, se solidifica e se moderniza, até hoje, sem, contudo, perder seu gosto pelos “acertos de contas” violentos. Os policiais, então usados por eles pelo suborno, conforme consta da Sentença, hoje são os milicianos... apenas uma mudança na nomenclatura...

Então, valeu a pena? Certa vez um brilhante advogado criminalista do Rio, Dr Virgilio Donnici, me disse : “Excelência, esse negócio de crime organizado foi a Senhora  quem inventou aqui”. Foi mais ou menos isso, mas a invenção foi do Ministério Público, sob a batuta do então Procurador Geral da Justiça, Dr Antônio Carlos Biscaia. A partir da condenação da cúpula pelo vetusto então Art. 388 do Código Penal - Formação de quadrilha ou bando -, já que até então não havia previsão legal para condená-los por lavagem de dinheiro dentre outros crimes, senti-me como devem ter-se sentido os Juízes que condenaram Al Capone: sem instrumentos legais e cercados de policiais corruptos. Então, abriu-se ampla discussão por todo o país, envolvendo não só operadores do direito, advogados, magistrados, Ministério Público, intelectuais que entenderam o risco de os Estados serem capturados pelas organizações criminosas - e já tínhamos um esboço disto na vizinha Colômbia e, mais distante, na Itália. Houve uma discussão profícua sobre como reformar nosso ordenamento jurídico. Esse debate permitiu-nos avançar, pouco a pouco, na organização de nosso ordenamento jurídico que nos habilitasse a enfrentar o crime organizado.

O Congresso Nacional entendeu a importância da proposta e contribuiu ao longo de uns 20 anos com legislação absolutamente moderna, de acordo com as melhores legislações dos países mais adiantados. Estabeleceu-se cooperação com países que combatiam a lavagem do dinheiro, o crime organizado, o tráfico de entorpecentes. Deixamos de ser aquela ilha onde, conforme eu disse em Davos no World Economic Forum de 1996, sob a presidência da Procuradora Helvética Carla Dal Ponte, no Brasil, a única penalidade para a lavagem de dinheiro seria a excomunhão, já que o Papa havia condenado essa atividade!

Valeu a pena? Claro que valeu, pois foi, a partir dali, que chegamos a Lava Jato. Relembro que vi as entranhas do crime organizado não só como Juíza de Direito, mas também como parlamentar, quando participei, pelo antigo PPS, hoje Cidadania23, da Comissão Mista Parlamentar de Inquérito que acabou por desvendar a tentativa de captura do Estado brasileiro pelo crime organizado, conforme é do conhecimento de todos. Custou-me muito? Talvez a própria vida... não se pode esquecer que sofri três tentativas de assassinato (ao que eu saiba) e que a conta com o crime organizado não se fecha nunca...

RPD: Justifica-se, então, sua ideia de que as boas leis sempre se originam dos maus hábitos?
DF: Sempre, por paradoxal que possa parecer. Mas não bastam as boas leis, como as que temos hoje. É preciso avançar nos ajustes para que as leis sejam mais explícitas, mais específicas. E estamos num ótimo momento para atuar neste sentido, situando-nos em meio à reconstrução do sistema político e do sistema tributário, depois de já termos iniciado o processo de reforma da previdência.

Hoje vivemos um momento de certa balbúrdia, um desacerto entre os três Poderes. Parece um casal a três... Há dúvidas sobre os limites da competência de cada um. Na raiz do embate, está o uso do dinheiro público. Quer dizer, a quem cabe decidir o destino do dinheiro do povo? Ao Presidente da República? Ao Poder Legislativo? Ou a última palavra - acertando ou errando - será do Supremo Tribunal Federal? A solução desse impasse seria fácil com a submissão de todos perante a lei. Mas o que fazer se a lei é subjetiva demais e abre espaços para todo tipo de interpretação? Esse é o problema.

Caímos, então, num dos problemas maiores da relação entre os três Poderes no Brasil, e até entre o Estado e os cidadãos. Daí o Judiciário ser chamado para interpretar a lei com larga liberdade, o que leva muita gente a supor tratar-se de invasão do Judiciário na competência do Legislativo, mas não é. É decorrência da falta de explicitação e especificação de nossas leis.

Nos Estados Unidos, por exemplo, quando um promotor faz uma denúncia, ele menciona a lei tal, o precedente qual, o fulano ou cicrano envolvido, tudo seco e objetivo, porque o ordenamento jurídico do país é explícito e específico. Já, no Brasil, não é raro uma denúncia citar Machado de Assis e outras fontes literárias. Nada contra Machado, mas qual é a denúncia? Qual a acusação?

De sua parte, o juiz usa uma linguagem que ninguém entende. Basta ir a um julgamento e perguntar-se: “Mas o que é isto, o que estão dizendo?”. E aqui eu faço um mea culpa. Eu só caí nessa realidade quando vi nos olhos dos meus acusados que eles só me entendiam quando, depois de ler e fundamentar uma sentença altamente elaborada, com fortes imagens literárias, quase uma “ sentença em compotas” (risos), que eles só entendiam e se tranquilizavam quando eu entrava na dosimetria da pena, na quantificação da penalidade, enfim, nos números!

A modernização da legislação brasileira, portanto, se impõe, e passa, a meu ver, pela tarefa de tornar as leis mais explícitas e mais específicas, isto a despeito dos enormes avanços que já tivemos nestes últimos 25 anos.

RPD: As manifestações a que a senhora se referiu não poderiam ser interpretadas como uma espécie de apropriação de bandeiras que são republicanas, de luta contra a corrupção, para uma finalidade que é um pouco, digamos assim, alheia a isso? Afinal de contas, parte-se de uma bandeira justa e louvável, para chegar à conclusão de atacar dois Poderes da República. Qual seria, então, a fronteira entre a luta pelas instituições, que são republicanas e para que elas se mantenham republicanas, e uma possível afronta à democracia.
DF: Volto à minha visão de que nós estamos em uma adolescência política, não só jurídica, e também histórica, e por isso mesmo instável. Quer dizer, essa convocação do dia 15 seria perfeitamente aceitável se fosse para protestar contra posturas destes ou daqueles nossos representantes, mas, se for para propor extinção de qualquer dos poderes da República ou propor a volta de ditaduras, é um gravíssimo atentado contra a ordem pública, podendo até ser passível de criminalização de quem fomenta tais comportamentos.

As ruas e praças são os espaços para protestarmos por melhores condições de vida e de sensibilizarmos os Poderes Constituídos de acordo com nossas propostas – nem sempre justas, nem sempre as melhores e desde que não sejam criminosas. Somos regidos pela Constituição Federal, que os dá liberdade para isto. Mas somos uma Democracia Representativa. De 4 em 4 anos, podemos trocar aqueles que sentimos que não nos representam, e é isto que vem sendo feito por nós desde o fim do movimento que se diz revolucionário. Só se aprende a andar, andando e, milagre, se anda! E isso é muito comum quando se tem essa adolescência política que nós vivemos.

Mas eu não vejo risco algum para a democracia, nenhum risco de golpe. Isso não existe. Apesar de ainda adolescentes, o Povo já entendeu que, quanto à Democracia,  não há qualquer transação - é ela ou ela. Acabo de chegar ao Brasil, vindo da Tunísia, e encontro essa convocação do Executivo de uma passeata para protestar  contra alegada ingerência do Legislativo e do Judiciário. Mas eu nunca vi isto! Um Presidente tem na mão caneta e pulso e carrega consigo os votos que obteve nas urnas,  que o legitimam. Deve dialogar com o Legislativo acerca de como governar, nos limites de cada um. É uma coisa de maluco um Executivo no exercício do poder convocar passeatas! Muitas vezes as pessoas perdem a razão pela forma como se manifestam. Isto até existiu num passado sofridamente recente, aqui mesmo, na América do Sul. Mas, alô, o Muro de Berlim já caiu há algumas décadas!

RPD: Sua expressão “adolescência jurídica, adolescência política” faz lembrar Ralf Dahrendorf, quando, em uma suposta carta a um cidadão do leste europeu, recém-egresso do totalitarismo, disse que “a democracia é uma forma de governo, não é um banho turco das vontades populares”, com o que indicava que se tem de seguir regras, respeitar princípios (cf. Reflections on Revolution in Europe, p. 12/13). E, a esse respeito, nada mais relevante do que a Constituição do país. A referida manifestação, ao questionar dois Poderes da República, não estaria sendo antidemocrática?
DF: Claro que se a manifestação é para pregar extinção de Poderes da República, como eu disse, não só é antidemocrática, mas também pode, em tese, configurar eventual conduta criminal. Perfeita a referência à Constituição. É ela que rege nosso Estado. A Constituição de 1988 é uma bela peça, que, no entanto, constitucionalizou tudo – até o exercício da locação foi constitucionalizada, de modo que permite ao Supremo se manifestar até mesmo sobre contratos de aluguel. Mas é a lei que nos rege. Podemos alterá-la, emendá-la (e já o fizemos inúmeras vezes), mas certas cláusulas não podem ser alteradas, são as chamadas Cláusulas Pétreas. É compreensível e aceitável a pressão sobre o Congresso, a partir das ruas. Mas não se pode perder de vista que nossa Democracia é Representativa. Mais atenção e cuidado na escolha de quem irá nos representar. Ao menos por 4 anos.

RPD: A gente viu nos últimos anos que a luta contra o crime organizado, depois do marco inicial ao qual a senhora se referiu, fez avanços expressivos. Mas, para quem está de fora, o ritmo desse combate parece ter esmorecido, de uns tempos para cá. Quais seriam os principais entraves existentes a essa campanha? E o que nós, cidadãos, e os nossos representantes deveríamos fazer para removê-los?
DF: Nesses 20 anos, em que nós saímos pelo Brasil falando que tínhamos de ter um parque legislativo que permitisse ao juiz atuar contra o crime organizado, ele foi concedido pelo Congresso Nacional. Mas, quando isto passou a atingir integrantes do próprio Congresso, do próprio Poder legislativo – e, por que não dizer, também do próprio Judiciário –, houve e há reação que entendo natural, esperada, de reação das corporações com muitos de seus membros envolvidos e que se julgavam ao abrigo de serem alcançados pela Lei. Foi isto exatamente o que ocorreu na Itália. E, como é ele, o Legislativo, que legisla, ele reage colocando freios, para evitar o atingimento. Mas, dentro dele mesmo, vem a reação contrária e aí está a força da Democracia, nós vamos colocando lá dentro aqueles que melhor irão entender nossa vontade. Essa é a luta que nós, cidadãos, vamos ter de travar sempre. E não pensem que vai ser fácil. Tudo em muito dependerá de quem nós colocarmos no Congresso, não é verdade?

Não tem outra saída além do cumprimento à lei, para todos. Com isto eu quero dizer que quando se tem um juiz que se desvia, é importante que exista um órgão que coloque o dedo nesse juiz e arranque a sua toga. Quando é o caso de um parlamentar que se desvia, da mesma forma que lhe seja retirado o mandato. Estes instrumentos nós temos, mas volto a dizer, é preciso que sejam mais claros, mais específicos, mais explícitos. E o principal: o combate à impunidade. Enfim, precisamos passar à maturidade política, jurídica e histórica, mas parodiando Shakespeare, é preciso cuidado, pois deve ser triste envelhecer antes de se tornar sábio. Avante!