reforma
Revista online | Desafios fiscais, reforma do Estado e redução das desigualdades sociais
Eduardo Rocha*, especial para a revista Política Democrática online (49ª edição: novembro/2022)
A saúde das finanças públicas – ao lado de outras medidas saneadoras e regulatórias - é um grande objetivo a ser conquistado para viabilizar a retomada estratégica do investimento público e privado, crescimento, emprego, renda, melhoria dos serviços e desenvolvimento no Brasil, com um claro compromisso de redução das terríveis desigualdades que ainda persistem. Assim, a responsabilidade fiscal não pode gerar a irresponsabilidade social; a saúde fiscal não pode ter como contrapartida a ruína social.
O novo governo recém-eleito com Luís Inácio Lula da Silva, assumindo pela terceira vez a Presidência da República, não logrará sair de imediato do atoleiro fiscal, da desnutrição dos investimentos e da desestruturação sistêmica das políticas públicas, bem como não conseguirá redução do seu custeio – medidas maléficas produzidas pelo desgoverno Bolsonaro.
Nova obra destaca propostas para desenvolvimento com inclusão social
Este novo governo – cuja natureza e alianças políticas são mais amplas do que o PT e seus aliados históricos – precisa realizar um pacto democrático centrado, entre outras tantas agendas econômico-sociais e político-institucionais, na criação de alternativas financeiro-fiscais extensivas e intensivas inéditas que permitam, de um lado, cortar despesas supérfluas e mantenedoras de privilégios e, de outro, promover a elevação das receitas públicas sem tirar mais um centavo de imposto do já espoliado, cansado e insatisfeito contribuinte. Os grandes contribuintes, porém, têm de entrar na órbita contributivo-fiscal, pois a manutenção de seus privilégios histórico-estruturais inviabiliza o futuro social e mina as bases sociais da democracia.
Veja, a seguir, galeria:
Além de criar as condições – ainda que paliativas – para cumprir as promessas eleitorais da eleição de 2022, é inequívoca a necessidade histórica para a construção democrática de uma ampla, profunda e estrutural reforma fiscal que vise promover uma otimização fiscal repartida, isto é, otimização seja do lado da receita seja do lado da despesa.
Tal reforma necessita criar uma imprescindível correlação de forças sociopolítica para construir progressivamente uma estrutura tributária e fiscal mais justa; redefinir em sentido democrático e progressista a natureza tributária tanto em termos de arrecadação quanto em termos de distribuição do bolo; atualizar a tabela do imposto de renda; reduzir a multiplicidade e a complexidade das regras; redesenhar a política de incentivos fiscais para estimular determinados setores geradores de emprego e aumentar a produtividade do trabalho e a competitividade da produção; incorporar o mercado informal ao mundo fiscal formal e, por fim, construir um orçamento que possibilite o financiamento das políticas públicas direcionadas à redução progressiva da terrível desigualdade social e intelectual-cultural existente entre milhões de cidadãs e cidadãos brasileiros. As desigualdades gravíssimas persistem mesmo depois de 34 anos da promulgação da Constituição Cidadã de 1988.
São desafios fiscais gigantescos a serem enfrentados e nada garante que serão facilmente superados. Fazem parte ainda desses desafios o fim de privilégios fiscais e o combate eficiente e eficaz da sonegação. De acordo com o site www.quantocustaobrasil.com.br, de 01/01/2022 a 05/12/2022, o Sonegômetro registrava que o Brasil havia perdido em torno de R$ 582 bilhões, de acordo com estudo realizado pela Receita Federal, que revela quanto deixou de ser pago nos tributos PIS/Cofins, concessão de subsídios/benefícios fiscais ao setor privado. Essa receita é impraticável nos curtos e médios prazos. É, com certeza, um cálculo conservador, mas o número impressiona.
Essa reforma fiscal, que abarque as esferas da União, estados e municípios, deve ser construída pela interação democrática entre governo, parlamento e sociedade civil. Ela é parte integrante da própria e necessária reforma democrática do Estado brasileiro para que o país sepulte, de forma definitiva, duas tradições perversas da nossa história fiscal: de um lado, a penalização e sofrimento para a cidadania, dos mais humildes, dos pobres, dos miseráveis, e, de outro, a isenção fiscal e manutenção de privilégios para as oligarquias, nas mais diversas modalidades.
Fala-se muito em “Estado máximo” e “Estado mínimo”. Seriam dois concretos antitéticos. Na vida real, concreta, material, objetiva, contudo, o Estado brasileiro realmente existente é, ao mesmo tempo, os dois termos suprassumidos na dança dialética do concreto, numa síntese trágica expressa na existência real de um Estado que é máximo para uma minoria privilegiada e, ao mesmo tempo, é um Estado mínimo para a maioria da população brasileira.
No lugar desse Estado que aí está – que faz a alegria das oligarquias, da especulação financeira e das castas privilegiadas; desse Estado que é gigante para o que faz e pigmeu para fazer o que deve ser feito; desse Estado que é – é preciso constituir um Estado democrático, desprivatizado, publicizado, transparente, realmente federativo e republicano, de maneira a oferecer, dentro das regras da democracia consagrada na Constituição de 1988, oportunidades para uma vida melhor, social e cultural ao seu povo e uma integração econômica em novas bases com a economia mundial.
Para tanto, é preciso, em primeiro lugar, declarar sem meias palavras: precisamos de mais Estado para a cidadania e o desenvolvimento e menos Estado para as oligarquias e os privilégios.
É preciso inverter essa tradição das trevas fiscais de modo que, do lado da despesa, cortem-se os gastos supérfluos e dos privilégios de uma minoria e acabe-se com a agiotagem financeira contra as finanças públicas, vitalizando assim as políticas sociais e de investimentos que dinamizem o setor produtivo. Do lado da receita, deve-se eliminar a regressividade da estrutura tributária, fazendo com o que os que mais têm e ganham paguem mais, por meio da progressividade sobre a renda e propriedade.
Sobre o autor
*Eduardo Rocha é economista pela Universidade Mackenzie com pós-graduação em Economia do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
** Artigo produzido para publicação na revista Política Democrática online de novembro/2022 (49ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da publicação.
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Câmara dos Deputados aprova texto-base da reforma do Imposto de Renda
Substitutivo do relator Celso Sabino (PSDB/PA) foi aprovado por 398 votos a 77. Votação da proposta prossegue nesta quinta
A Câmara dos Deputados aprovou nesta quarta-feira (1º) o texto-base do projeto que altera regras do Imposto Renda (PL 2337/21). Por 398 votos a 77, foi aprovado o substitutivo do relator, deputado Celso Sabino (PSDB-PA). Nesta quinta-feira (2), os deputados votarão os destaques apresentados pelos partidos na tentativa de mudar o texto.
De acordo com o substitutivo, os lucros e dividendos serão taxados em 20% a título de Imposto de Renda na fonte, mas fundos de investimento em ações ficam de fora. Na versão anterior, a alíquota era de 5,88% para os fundos.
Já o Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) será reduzido de 15% para 8%. Na versão anterior, a redução levava o tributo para 6,5%.
A Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) diminuirá 0,5 ponto percentual em duas etapas, condicionadas à redução de deduções tributárias que aumentarão a arrecadação. Após o fim das deduções, o total será de 1 ponto percentual a menos, passando de 9% para 8% no caso geral. Bancos passarão de 15% para 14%; e demais instituições financeiras, de 15% para 14%.
“A correção proposta na faixa de isenção da tabela do Imposto de Renda será a maior desde o Plano Real. Os contribuintes perceberão redução significativa no IR devido. E cerca de 16 milhões de brasileiros – metade do total de declarantes – ficarão isentos”, disse o relator.
Desconto mantido
Um dos pontos para os quais as negociações evoluíram a ponto de a oposição apoiar o texto é a manutenção do desconto simplificado na declaração de ajuste anual.
Atualmente, o desconto é de 20% dos rendimentos tributáveis, limitado a R$ 16.754,34, e substitui todas as deduções permitidas, como gastos com saúde, educação e dependentes.
Pela proposta inicial, esse desconto somente seria possível para aqueles que ganham até R$ 40 mil por ano, limitado a R$ 8 mil (20%). Após as negociações, o limite passou para R$ 10,5 mil.
Lucros e dividendos
Quanto à tributação de lucros e dividendos distribuídos pelas empresas a pessoas físicas ou jurídicas, o projeto propõe a tributação na fonte em 20%, inclusive para os domiciliados no exterior e em relação a qualquer tipo de ação.
A maior parte dos países no mundo realiza esse tipo de tributação. Entre os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), apenas a Letônia não tributa lucros e dividendos.
Entretanto, ficam de fora as micro e pequenas empresas participantes do Simples Nacional e as empresas tributadas pelo lucro presumido com faturamento até o limite de enquadramento nesse regime especial de tributação, hoje equivalente a R$ 4,8 milhões, contanto que não se enquadrem nas restrições societárias de enquadramento no Simples.
Outras exceções são para:
- As empresas participantes de uma holding, quando um conglomerado de empresas está sob controle societário comum;
- As empresas que recebam recursos de incorporadoras imobiliárias sujeitas ao regime de tributação especial de patrimônio de afetação; e
- Fundos de previdência complementar.
Debate em Plenário
O projeto é a segunda fase da reforma tributária encaminhada pelo governo. Parlamentares de oposição, no entanto, manifestaram apoio à votação da proposta devido às alterações feitas pelo relator.
Segundo o deputado Afonso Florence (PT-BA), o texto agora “é um projeto da Câmara, em favor da reforma tributária justa e solidária”. Ele elogiou a redução do IR para a pessoa física e a taxação de lucros e dividendos.
O deputado Marcelo Ramos (PL-AM) elogiou o acordo obtido pelos líderes partidários, mas defendeu mudanças no projeto por meio de destaques. “Precisamos ter coragem de enfrentar o desafio de desonerar a tributação sobre o consumo, que pesa mais no bolso do trabalhador, do desempregado, do pai de família.”
Já o deputado Alexis Fonteyne (Novo-SP) disse que a reforma no Imposto de Renda é necessária, mas criticou o texto ao apontar distorções a partir do porte das empresas, em favor das pequenas. “É uma espécie de regressividade para pessoas jurídicas, e assim as empresas não vão querer crescer, faturar”, disse.
O deputado Ivan Valente (Psol-SP) criticou a rapidez na discussão do projeto. “Falamos de reforma tributária há mais de dez anos, e o substitutivo não aborda taxação de grandes fortunas ou sobre valor agregado”, disse. “É um pequeno passo, faltou regressividade”, afirmou, cobrando tributação menor sobre os mais pobres.
O líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR), disse que, com o aval do Poder Executivo, a proposta dará origem a uma nova forma de tributar no País. “Esta nova forma de tributar vai ser mais justa, mais equânime para a sociedade: aqueles que ganham mais pagarão mais, aqueles que ganham menos pagarão menos.”
Durante a votação, Barros anunciou que, exceto por razões jurídicas, não deverá haver veto presidencial quanto ao fim dos juros sobre capital próprio ou à taxação de lucros e dividendos. “Se, por algum acaso, houver veto, o governo fará acordo para derrubá-lo”, disse.
Saiba mais sobre a tramitação de projetos de lei
Reportagem – Eduardo Piovesan e Ralph Machado
Fonte: Agência Câmara de Notícias
https://www.camara.leg.br/noticias/802325-camara-aprova-texto-base-de-projeto-que-altera-regras-do-imposto-de-renda/
A reforma vale-tudo de Lira
Vera Magalhães / O Globo
Política quase nunca é feita de boas intenções. Ela é praticada em bases bem mais pragmáticas que isso. A falta de apoio do Congresso à obsessão de Jair Bolsonaro pelo voto impresso, portanto, não se deve a nenhuma consciência por parte dos parlamentares de que é preciso zelar pela democracia, mas ao fato de eles considerarem essa cruzada uma bobagem e saberem que a urna eletrônica é segura — afinal, foram eleitos por ela.
Assim sendo, melhor gastar tempo, energia e conchavos com as próprias prioridades, em vez de se engajar na de Bolsonaro.
Eis que no minuto 1 da volta do recesso se materializa na Câmara, pronto para ser enfiado goela abaixo da sociedade, um calhamaço de mais de 900 artigos revogando toda a legislação eleitoral e, sob o pretexto de unificar tudo num Código Eleitoral, aproveitando para passar um tratoraço na fiscalização do uso de dinheiro público para campanhas e para o custeio dos partidos e para censurar as pesquisas, entre outras atrocidades.
O projeto patrocinado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e assinado por uma correligionária, a deputada Margarete Coelho (PP-PI), é mais um exemplo de um expediente que vai se tornando corriqueiro na Câmara sob o comando do deputado alagoano: os projetos surgem do nada e são rapidamente votados, para que não dê tempo de a imprensa denunciar todos os seus aspectos e de a sociedade se articular.
É, também, uma mostra de por que Lira se mantém impávido segurando qualquer pedido de impeachment de Bolsonaro, não importa o que ele faça: ele já comanda uma fatia expressiva do Orçamento, colocou dois aliados no Planalto e vai aprovando medidas (fundão eleitoral, mudança na lei de improbidade administrativa e, agora, o Código Eleitoral do vale-tudo) de sua agenda pessoal sem ser importunado pelo Executivo. Manda na pauta da Câmara, a despeito do gasto sem precedentes feito pelo governo Bolsonaro (e o fim da mamata?) com agrados ao Centrão.
A reforma na legislação eleitoral proposta pela porta-voz de Lira usa do mesmo negacionismo propalado por Bolsonaro em relação às urnas eletrônicas para censurar a divulgação de pesquisas às vésperas do pleito. Quer que institutos divulguem uma tabela de acertos (!) em levantamentos anteriores, ignorando a obviedade estatística de que pesquisas são fluidas, mostram tendências e que, principalmente no Brasil, algumas eleições apresentam curvas que se modificam às vésperas das eleições.
Em relação aos gastos dos cada vez mais fornidos fundos públicos, o partidário e o eleitoral, a regra na reforma de Lira é o libera geral: até transporte de eleitor passará a ser passível apenas de multa.
Mecanismos para garantir equidade na distribuição desses mesmos recursos, como a determinação de que mulheres e negros sejam contemplados de forma proporcional, vão para as cucuias.
A Justiça Eleitoral perderá mecanismos para aprovar resoluções que disciplinem as eleições e terá menos tempo para analisar prestações de contas de campanha. E ainda cabe muita bizarrice em 372 páginas feitas sob medida para perpetuar os mesmos, graças a muito dinheiro público, e para impedir renovação de fato na política.
A presença de Arthur Lira no comando da Câmara é um desses legados deletérios do bolsonarismo para as instituições. Sob seu comando, ainda que haja soluços pragmáticos, como a reação às ameaças de Braga Netto ou o enterro da PEC do voto impresso, eles sempre se darão sob a lógica de que há outra agenda, igualmente contrária ao interesse público e ao aprimoramento do processo democrático, à espreita.
Pobre do país que tem de se fiar num Congresso comandado por interesses desse tipo para (quem sabe) frear os pendores golpistas de um presidente da República disposto a tudo para se manter no poder.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/vera-magalhaes/post/reforma-vale-tudo-de-lira.html
Fernando Schüler: Governo sabe que a reforma não rende votos, mas ela é sua melhor chance de deixar um legado
Governo sabe que a reforma não rende votos, mas ela é sua melhor chance de deixar um legado
O documento lançado por um grupo de economistas, no início da semana, defendendo o teto de gastos e propondo “rebaixar o piso”, ou seja, reformas capazes de preservar e aprimorar o edifício de estabilização fiscal construído pelo país nos últimos anos, deveria ser lido e relido, em Brasília.
O argumento diz que, dada a atual trajetória fiscal, a preservação do teto de gastos é insustentável. O gasto obrigatório sobe a uma taxa superior à inflação, e tornará inviável o custeio da máquina pública logo ali adiante.
O mercado já precifica o problema. O sistema político é mais lento e aprecia um exercício de autoengano. Governo à frente. É pura ilusão pensar em um programa robusto de transferência de renda e uma agenda crível de investimento público sem encarar os temas difíceis do ajuste fiscal.
O problema é o governo se decidir a enviar ao Congresso a reforma administrativa. O tema está maduro. A pandemia escancarou a desigualdade entre o mundo protegido do alto funcionalismo público e o universo precário do emprego privado, que pagou sozinho a conta da debacle econômica.
As razões da reforma são autoevidentes. O Brasil gasta 13,5% do PIB com servidores e entrega serviços públicos de baixa qualidade. Sendo seus usuários fundamentalmente os mais pobres, a ineficiência do Estado funciona como um motor das desigualdades no país.
Resolver isso supõe um longo caminho de reformas e ninguém imagina que elas serão feitas na atual gestão federal. O que se espera é que o governo tenha a coragem de dar o primeiro passo. Em duas direções.
A primeira trata do RH do governo. Revisão das carreiras públicas, redução dos salários iniciais, flexibilização dos modelos de contratação, avaliação de desempenho e possibilidade de redução de jornada e vencimentos em situações de risco fiscal.
O segundo caminho distingue funções de Estado e serviços públicos concorrenciais (que vão da saúde até a gestão de parques). Diz que o governo deve se concentrar nas tarefas de regulação e deixar à sociedade e ao mercado a execução de serviços. Enquanto isto não andar, a ideia de melhorar a qualidade da entrega pública não passará muito de retórica.
Há sinais positivos no horizonte. Sou da época em que ainda se imaginava que o governo devia administrar aeroportos por se tratar de um setor estratégico. Hoje, precisamente por se reconhecer que eles são estratégicos chegou-se à conclusão de que o governo e sua burocracia não devem administrá-los.
A reforma é politicamente viável. Previsível seria vermos o chefe do Executivo pressionando o Parlamento a fazer a reforma, mas o que temos é o contrário. Rodrigo Maia “tentando convencer” o presidente a enviar o projeto.
O governo amplia sua base no Congresso e há uma frente parlamentar robusta tratando do tema. Quem patina é o governo. Em parte por falta de convicção, em parte por saber que o assunto lhe renderá mais uma montanha de detratores e nenhum voto.
Salim Mattar escreveu que o “establishment” feito de sindicatos, políticos e fornecedores forma uma barreira às privatizações. A pergunta é: algum dia foi diferente? As corporações sempre estiveram aí e a inércia do setor público sempre foi a mesma. Apesar disso reformas importantes foram feitas no passado recente.
O atual governo iniciou dizendo que encerraria o ciclo de governos sociais-democratas e faria tudo diferente. Talvez tenha acreditado no mito de que foi fácil fazer as privatizações dos anos 1990, que os leilões da Vale ou Embraer foram um passeio, o mesmo valendo para a reforma do Estado.
É bom que tenham descoberto que as coisas são mais difíceis, no Brasil, e que talvez a reforma administrativa seja a sua melhor chance, talvez a última, de deixar um legado.
Do contrário, nossos liberais-conservadores terão que reconhecer que, mesmo no terreno que propuseram como seu, fizeram pior do que os sociais-democratas dos anos 1990, cujo legado de reformas ainda é o melhor ponto de partida para as mudanças que o país precisa fazer.
*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
Maria Hermínia Tavares: Os dilemas da reforma
A reforma administrativa não pode ser apenas acerto fiscal que subordine, de qualquer maneira, o diâmetro da esfera pública aos recursos disponíveis
A Covid-19 teria efeito ainda mais devastador se a população brasileira não contasse com o SUS. A crise econômica, trazida pela virose, teria arrastado à miséria um número muito maior de famílias caso o auxílio emergencial não chegasse com rapidez a 65 milhões de pessoas. Nada disso é trivial —antes, são exemplos notáveis de capacidades estatais desenvolvidas nos últimos 30 anos.
Elas não podem ser esquecidas quando a reforma administrativa volta à agenda política. Poucos duvidam de que a reforma seja necessária: há ineficiências a superar e privilégios a combater. Ninguém imagina que a mudança seja fácil, dados os interesses contrariados que mobiliza e os limites fiscais que a enquadram.
Mas a reforma administrativa não pode ser apenas acerto fiscal que subordine, de qualquer maneira, o diâmetro da esfera pública aos recursos disponíveis, de forma a permitir investimentos igualmente importantes. Refletirá, inevitavelmente, uma ideia de poder público.
Segundo o "Atlas do Estado Brasileiro 2019", publicado pelo Ipea, entre 1986 e 2017 cresceu expressivamente o número de servidores nos três níveis de governo. A expansão foi puxada pelo aumento das administrações subnacionais —dos estados e, sobretudo, dos municípios—, acompanhando o aumento de suas responsabilidades na provisão de serviços sociais. Quatro em cada dez servidores municipais são educadores ou profissionais da saúde. Nos estados, educação, saúde e segurança respondem por 60% do emprego público. O setor federal cresceu menos, e a sua participação no conjunto caiu.
O gasto com servidores ativos da União manteve-se relativamente constante como fatia do PIB, mas cresceu para cerca de ¼ da receita corrente líquida. O que aumentou de forma desmedida foram os gastos com aposentadorias e pensões. A longo prazo, a reforma da Previdência trará desafogo. Mas, no presente, a despesa total com servidores pressiona os orçamentos dos governos.
Um projeto de reforma administrativa que valha seu nome tem de decidir como assegurar que não faltem professores para turnos escolares compatíveis com o aprendizado; que haja profissionais da saúde para sustentar um SUS decente país afora; que existam fiscais ambientais; que a renda básica conte com pessoal competente no cadastramento e monitoramento; que haja carreiras para servidores capazes de coordenar programas intergovernamentais e avaliar seus resultados.
Pois o problema é real, e as escolhas, difíceis. Não ajudará muito se o debate virar guerra de chavões sobre a "destruição do Estado" ou os perigos do "corporativismo".
*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.
William Waack: Mais impostos vêm aí
A lei do mínimo esforço indica aumento de impostos e não uma ampla reforma tributária
Renúncia é a palavra decisiva no amplo debate sobre reforma tributária. É mesmo um formidável debate social e político, além da alta complexidade técnica e econômica. Pois os números consolidados indicam uma assombrosa adesão de praticamente todos os setores da economia e sociedade brasileiras a algum tipo de favor fiscal.
Agricultura, indústria, serviços, profissionais liberais, pequenas empresas, entidades não lucrativas, zonas francas, deduções para pessoas físicas são contemplados de alguma forma, e nenhum se manifesta disposto a renunciar à renúncia fiscal. Ao contrário: nos últimos 15 anos o fenômeno dobrou de tamanho (para quem aprecia números: as renúncias fiscais passaram de aproximadamente 2% para 4% em relação ao PIB).
Economistas se dividem quase em guerra religiosa quanto à eficiência dessas medidas fiscais que, na conta geral, diminuem a base de arrecadação de impostos, aumentando a carga para quem está pagando tributos. Talvez sociólogos – ou, melhor, antropólogos – entendam o problema.
As renúncias espelham um arraigado hábito político, que é o de espetar a conta nos cofres públicos e empurrar uma solução definitiva para um futuro não definido. É um tipo de “individualismo” muito característico de nosso “caráter nacional”. Todos os setores participantes nas renúncias confiam na sua capacidade de fazer valer seus interesses (que são legítimos), e a preocupação com o bem-estar geral é um problema moral reconhecido, porém secundário.
O País permaneceu num equilíbrio de interesses que foi se tornando cada vez mais precário – até o estouro de duas brutais crises, a fiscal e a de saúde (que se alimentam mutuamente). O que está escancarado agora é o clássico problema da ação e coordenação coletivas, que dependem de… lideranças.
A questão é imensamente maior do que a já complicada tarefa de arregimentar votos no Legislativo pela proposta A ou B de reforma tributária. Demanda uma imensa capacidade política de procurar algum tipo de convergência, de impor algum tipo de medida numa situação na qual ninguém renuncia a nada. Todos estão envolvidos: entes da Federação (Estados e municípios), variados segmentos econômicos, bases eleitorais (indivíduos que pagam Imposto de Renda).
No meio desse turbilhão o governo fala em quadratura do círculo, que é gastar mais num quadro fiscal delicado sem aumentar a já insuportável carga tributária. Apostando que o instinto dos congressistas, sendo o de gastar mais, os fará aceitar mais impostos. Uma aliança tácita com os “desenvolvimentistas” saudosos de Geisel no Planalto, e descontentes com o teto de gastos.
As contas dos economistas não fecham: não dá para suportar o necessário crescimento dos vultosos gastos públicos sem aumentar impostos, e apostam nisso. Sociólogos e antropólogos também apostariam. É só olhar para nosso apego à lei do mínimo esforço. É bem menos complicado do ponto de vista político aumentar impostos do que se engajar na esfalfante tarefa de coordenar esforços, praticar maldades (vistas pelo lado “individual”), convencer, articular, coagir, votar. Com as elites divididas.
Para que tudo isso, dirão os cínicos, se no fim de tanto esforço impopular (e seus efeitos eleitorais nos mais diversos níveis) o resultado será de qualquer jeito aumento de impostos? Resolver parte do problema via privatizações? No momento menos de 20 das centenas de estatais estão na lista de privatizações. Conter gastos e despesas? Segurar os gastos com funcionalismo depende de uma reforma administrativa, a que enfrentaria os bem articulados interesses corporativistas dentro do Estado brasileiro. Ela ainda é só uma intenção.
Resta a esperança de que a retomada da economia pós-pandemia traga retorno de investimentos, a produtividade aumente, emprego e renda cresçam e arrecadações encham cofres públicos que novamente seriam usados como sempre foram – para acomodar diversos interesses setoriais e privados, pois os da coletividade se resolverão sozinhos.
Míriam Leitão: Temores dos contribuintes
Reforma fatiada impede a visão do todo e se for aprovada em etapas provocará aumento de carga tributária para alguns setores
Ao dar os próximos passos da reforma tributária, que apresenta em partes, o governo quer encontrar o bolso da classe média. O Imposto de Renda Pessoa Física perderia suas deduções, e provavelmente terá mais uma alíquota. Está também em estudo a taxação de dividendos, no projeto de que a empresa pague menos, mas seu sócio pague mais. E o sonho da equipe é fazer um imposto tipo CPMF e com isso reduzir os tributos sobre folha salarial. O fatiamento impede a visão do todo e, portanto, cria mais resistência. Os cálculos das consultorias mostram aumento de carga.
Uma empresa de software pediu à consultoria Mazars para fazer a conta dos efeitos sobre o seu negócio. Segundo Luiz Carlos dos Santos, diretor responsável pela área tributária, a empresa pagará mais imposto.
— Para essa empresa de software que simulamos, na conta final, ela teria em torno de 3% a 5% de aumento de carga. Isso ela teria que tirar da margem, podendo até inviabilizar investimentos em novos produtos — disse Santos.
Há outro ponto que é difícil saber como vai funcionar, que é a exigência às plataformas digitais para que paguem caso o fornecedor não recolha a CBS, numa espécie de contribuinte substituto.
— Mercado Livre, iFood, Rappi, qualquer plataforma vai ser responsável pela nota, em caso de o vendedor não emitir. Você acessa o iFood e compra no bar da esquina alguma coisa, e ele não emite a nota fiscal. A responsabilidade passa a ser da plataforma. Hoje, a plataforma só paga o tributo pela comissão que ela ganha desse pequeno comércio. Ela poderia ter que pagar pela receita do pequeno comércio. A constitucionalidade disso é até discutível, por obrigar uma plataforma a emitir nota por um produto que outro vendeu. Uber, 99, esses aplicativos de transporte têm regimes especiais e ficam de fora. Se comprar pela Amazon, e o produto vem do exterior, a Amazon lá fora vai ter que ter um cadastro na Receita e recolher a CBS. Algumas plataformas podem deixar de achar interessante ficar no Brasil — disse Luiz Carlos dos Santos.
O que o governo diz é que, apesar de as pessoas físicas não pagarem CBS, em qualquer transação feita pela internet, o vendedor deverá emitir nota, transformando-se em empreendedor individual.
De todas as etapas que o governo ainda ficou de apresentar, só o IPI tem a ver com o que está sendo discutido no Congresso, que são os tributos sobre bens e serviços. O governo quer fazer do IPI um imposto seletivo, com alíquota alta para alguns produtos. Nas outras etapas viriam a reorganização dos impostos sobre renda, sobre patrimônio, a desejada desoneração da folha salarial, mas com o preço amargo do imposto que mais distorce que é uma espécie de CPMF.
Ao mesmo tempo em que o Brasil tenta entender o alcance da unificação do PIS e da Cofins apresentada pelo governo, o Congresso formou a Comissão Mista para discutir propostas muito mais amplas, que unificam pelo menos cinco impostos. O IBS previsto na PEC 45 é um verdadeiro IVA porque une cinco impostos, inclusive o ICMS que é a grande dor de cabeça das empresas, e o maior deles com recolhimento de 7% do PIB. A do Senado, também. Uma das ideias com que se trabalha na PEC 45 — e que agora deve ser levado para a comissão mista já que o deputado Aguinaldo Ribeiro é o relator também — é de um imposto seletivo sobre alguns produtos, entre eles, combustíveis fósseis. Nessa ideia, a Cide seria extinta.
A situação em que o país está é que o governo demorou a entrar na conversa e chegou com uma proposta pequena, confusa e polêmica. Promete outras etapas, mas elas ficam no ar, gerando ainda mais incerteza. O que se sabe até agora é que depois do IPI o governo vai enviar uma proposta para reformar o Imposto de Renda Pessoa Física. Quer acabar, por exemplo, com a faixa de isenção maior para quem tem mais de 65 anos, e quer eliminar as deduções para saúde e educação. Todas provocarão controvérsia como a CBS.
— Se eu saio da alíquota de 3,65% e 9,25% por uma de 12% ,e eu não tenho crédito para contrabalançar, vou ter aumento de carga sim — disse Santos.
Essa reforma a conta-gotas provocará uma onda de reação a cada etapa e vai embaralhar a tramitação das PECs que estão no Congresso. Enquanto isso, todos os contribuintes ficam na expectativa do que ainda está por vir.
Míriam Leitão: Minirreforma pode aumentar a carga
Depois de um ano e meio, o governo manda uma reforma que só une dois impostos. Projeto simplifica, mas pode elevar a carga tributária
O governo chegou atrasado com a sua proposta, e ela inclui apenas uma parcela dos impostos sobre consumo. Aliás, só dois tributos. Não incluiu sequer o IPI para não ter que encarar os vespeiros da Zona Franca de Manaus e de outros subsídios. A despeito disso, o passo foi na direção certa. A Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) moderniza e simplifica os velhos PIS e Cofins e começa a formatar um IVA. A proposta da Câmara dos Deputados incide sobre impostos que recolhem 12% do PIB, a do governo federal, em 4% do PIB.
A grande dúvida em relação à minirreforma que o governo apresentou ontem foi por que fazer uma proposta tão pouco abrangente se agora já há interesse do Congresso e dos estados de fazer algo mais amplo? Por que ela é intencionalmente restrita? Os secretários de Fazenda dos estados já se manifestaram em conjunto a favor de que a reforma, como tem sido estudada na Câmara e no Senado, incluísse o ICMS. Há divergência em relação ao ISS das grandes cidades, mas nada que não possa ser negociado.
A explicação do ministro Paulo Guedes de que queria respeitar a autonomia dos estados e municípios não faz muito sentido, porque uma reforma tributária tem que ser coordenada pela União. O fato é que há um ano e meio a Câmara discute na PEC 45 a proposta de união de cinco a seis impostos — se incluir a Cide — o Senado fala em unir sete impostos, e o governo ontem, depois de um ano de promessas, apresentou a unificação de dois apenas.
O economista Bernard Appy, que inspirou a PEC 45, teme o aumento da alíquota. Aliás, outros tributaristas ouvidos também estão com a mesma convicção de que os 12% aumentam a carga.
— A proposta certamente melhora bem a legislação do PIS-Cofins, aproximando-o de um bom IVA, mas mantém muitas exceções que acabam resultando numa alíquota mais alta do CBS — diz Appy.
E ele lista algumas dessas isenções: na venda de imóveis residenciais, o tratamento dado à Zona Franca, manutenção do crédito presumido para produtos agropecuários, nenhuma restrição no caso de aquisição de bens e serviços de uso pessoal dos sócios das empresas.
— Mesmo com as exceções previstas, a alíquota ainda está muito elevada, havendo um risco relevante de aumento da carga — diz Appy.
O secretário da Receita, José Tostes, disse que a cobrança é “por fora”, ou seja, incide no produto sem imposto, o que no cálculo dele seria o equivalente ao que é pago pelas empresas de lucro real, 9,25%. Além disso, incide sobre a receita bruta e não sobre a receita total.
Na entrevista de ontem, tanto o secretário da Receita quanto a assessora especial Vanessa Canado fizeram elogios ao IVA, o modelo de imposto de valor adicionado. Na semana passada, Guedes em entrevista disse que é um imposto dos anos 50. Segundo Vanessa, hoje é adotado em mais de 160 países.
A proposta avança sobre as plataformas digitais de vendas, que serão obrigadas a recolher o tributo quando os vendedores deixarem de emitir nota fiscal. Isso pode criar custos adicionais para as plataformas, mas essa é uma discussão que tem sido travada em todo o mundo e ficou ainda mais intensa com o aumento do comércio eletrônico durante a pandemia, explicou o Ministério da Economia. Vanessa Canado disse que as pessoas jurídicas já são obrigadas e emitir nota e no caso das pessoas físicas há regimes diferenciados que facilitam a formalização do negócio.
— Hoje temos muitos regimes simplificados que as pessoas físicas podem aderir. Tem o MEI, o Simples, o lucro presumido. Acho que não haverá qualquer complexidade nem para o consumidor nem para as plataformas — disse Vanessa.
Tostes explicou que o governo enviará mais três etapas da reforma. A próxima será o IPI. Não existe explicação razoável para depois de um ano e meio falando do assunto não tenha já isso pronto. Na Câmara e no Senado há mais ousadia nos projetos que o governo sempre desdenhou.
Contudo, o CBS vem por projeto de lei, é mais fácil de aprovar e começa a valer em seis meses. O governo promete ainda mudar tributos sobre empresas, pessoas físicas, taxar dividendos e propor uma desoneração da folha. A reforma será em capítulos. Mas ontem mesmo o senador Davi Alcolumbre falou em reativar a Comissão Mista que tentará unificar as propostas. Na Câmara, o assunto já tinha sido reativado pelo deputado Rodrigo Maia.
Bruno Boghossian: Reforma tímida em impostos reflete desgaste político de Bolsonaro
Guedes conhece limitações de um governo que só está preocupado em blindar o chefe
O governo ainda se sentia poderoso, em meados do ano passado, quando Paulo Guedes decidiu trombar com o Congresso. Irritado com as mudanças feitas em sua proposta de reforma da Previdência, o ministro criticou os deputados e disse que eles não tinham “compromisso com as futuras gerações”.
O czar da economia chegou a Brasília com a impressão de que ganharia suas batalhas no grito. Acreditava que a vitória de Jair Bolsonaro pavimentaria a implantação de uma agenda liberal, ignorando o fato de que nem o presidente havia comprado aquelas ideias com convicção.
O ministro finalmente conheceu as limitações do governo. Ao apresentar a primeira fatia de sua reforma tributária, ele reconheceu que as propostas do Executivo devem “ser trabalhadas” pelos parlamentares e acrescentou que “é a política que dita o ritmo” dessas mudanças.
A atitude de Guedes reflete o desgaste de um governo que sempre investiu no conflito para exercer o poder. A reforma oferecida pelo ministro indica que Bolsonaro não tem capital suficiente para atropelar o Congresso e impor propostas amargas.
Além de se esquivar de choques com os parlamentares, Guedes mandou para a geladeira os pontos mais impopulares do projeto. A criação de uma nova CPMF ficou para depois, e a ideia de tributar os produtos da cesta básica foi deixada de lado.
Na reforma da Previdência, o governo apostou mais alto. Tentou aprovar um modelo de capitalização para as aposentadorias e propôs a redução de benefícios para idosos muito pobres. Perdeu as duas brigas.
A mudança de comportamento não se deu por modéstia, mas porque os últimos 18 meses enfraqueceram Bolsonaro e obrigaram o presidente a estabelecer outras prioridades.
Atualmente, o governo opera para proteger um chefe investigado —e não para aprovar projetos de seu interesse. Nos últimos meses, o Planalto distribuiu cargos e emendas para blindar Bolsonaro e sua família. Discussões sobre a economia devem ser atendidas em outro guichê.
Alon Feuerwerker: A 'mãe de todas as reformas' está desaparecida. E o direito ao autoengano nas pesquisas
Poucas vezes o inferno da política esteve tão repleto das boas intenções de quem pretendeu aperfeiçoá-la. O tempo passou e tudo ou quase tudo do que pediram para melhorá-la foi aprovado e aplicado. E o resultado?
Fidelidade partidária, prazos duros de filiação a partidos e desincompatibilização de cargos, veto ao financiamento empresarial, verba pública, cota feminina nas vagas e no dinheiro, proibição de candidatura de parente no “cone” abaixo do detentor de mandato executivo, Lei da Ficha Limpa, regras draconianas para debates. Proibiram até show em comício.
É só uma parte do portfólio. Este espaço seria insuficiente para listar de modo exaustivo a profusão de regulamentos e restrições na esfera político-eleitoral. E a cada escândalo que aparece volta a grita por mais e mais legislação.
Está em linha com a cultura bem brasileira de fabricar leis e regras em escala industrial, o método que supostamente nos levaria ao paraíso de uma política limpa, sem as nódoas da inevitável inclinação humana a pecar.
A experimentação, entretanto, novamente desmentiu a teoria. O resultado é ruim. A única coisa que conseguimos foi transformar as eleições em rituais tão engessados quanto vazios, onde nada que interessa tem como ser debatido. E a floresta de regulamentos, como era natural, em vez de produzir um mundo sem pecados funciona como linha de produção de delinquências.
A cada dificuldade criada, os comerciantes de facilidades abrem um sorriso.
Tem mais. O sistema é presidencialista, mas o mecanismo está montado para negar a qualquer governo uma maioria própria no Parlamento. É um problema para Jair Bolsonaro, como foi para todos que o precederam após a Constituição de 1988.
E a Carta é um texto enciclopédico que, olha aí de novo, criado para dar conta de todos os problemas, acabou virando letra morta pela profusão de possibilidades interpretativas.
Talvez a esta altura o leitor atento tenha notado que um assunto desapareceu da pauta política e jornalística desde que Bolsonaro tomou posse em janeiro: a simplificação e o aperfeiçoamento da legislação partidária e eleitoral, a chamada reforma política.
Acontece com ela algo estranho: de vez em quando aparece no noticiário como “a mãe de todas as reformas”, para logo em seguida sumir sem deixar rastro. Ela costuma ser lembrada quando o Congresso coloca barreiras a alguma pauta querida do establishment. Quando os legisladores dançam conforme a música, é rapidamente esquecida.
Mas enfiar a cabeça na terra achando que vai resolver é a ilusão do avestruz. A taxa de mortalidade política dos presidentes eleitos desde 1989 já bate 50%. O que fazer? Talvez uma solução seja aplicar à política a regra simples de diminuir o número e o alcance das regras, simplificar, aumentar o grau de liberdade.
Até agora, o que se tentou foi o contrário. Diminuir a taxa de liberdade na esperança de resultados melhores. Deu errado. Hora de experimentar outra coisa.
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É compreensível e até comovente o esforço do jornalismo para arrancar lides de oscilações nas pesquisas dentro da margem de erro. Mas não vamos nos enganar: desde abril o quadro político e eleitoral anda essencialmente estabilizado.
Nem Jair Bolsonaro “estava caindo e parou de cair” nem o governo “está derretendo”. Basta olhar os números. Todas as pesquisas convergem para um ótimo/bom levemente abaixo de um terço, um regular na mesma faixa e um ruim/péssimo levemente acima.
E em todas as pesquisas a expectativa otimista está um pouco acima do ótimo/bom desde sempre. E em todas elas Bolsonaro mantém fiel o eleitor do primeiro turno e ainda retém a confiança do eleitor do segundo turno.
Mas o autoengano é livre, ainda que não seja grátis. Costuma sair caro aliás.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Adriana Fernandes: Reforma de férias
Governo se preocupa com a mobilização dos servidores nesse período de férias
A pouco mais de um mês para o início do recesso parlamentar, o governo já pensa na estratégia para manter a confiança nas reformas e na recuperação econômica durante as férias de fim de ano até a volta dos trabalhos do Congresso, em fevereiro.
Depois do envio de novas medidas duras nas ultimas semanas (e outras a caminho nos próximos dias), o Ministério da Economia quer evitar o que ocorreu com a reforma da Previdência no governo Michel Temer.
Na época, a proposta previdenciária foi enviada no fim do ano, mas o governo acabou perdendo a batalha da comunicação durante o recesso. Deputados e senadores retornaram para as suas bases e viraram alvo dos ataques. Na volta ao Congresso, as resistências estavam amplificadas.
A estratégia é não deixar a peteca cair no momento em que a economia dá sinais mais claros de melhora.
As novas propostas de reformas fiscais encaminhadas trazem grandes modificações na forma de o Estado operar, além de medidas impopulares como a taxação do seguro-desemprego para bancar a desoneração da folha.
A avaliação, na equipe que elaborou as propostas, é a de que o cenário é favorável para a aprovação das medidas de aperto fiscal no ano que vem.
Nas conversas com senadores, o clima é de otimismo. Mesmo com o risco de muitas mudanças serem feitas pelos parlamentares, a percepção da equipe econômica é a de que a espinha dorsal dos textos será mantida.
A articulação se volta agora para a Câmara, que vai receber a PEC da reforma administrativa na próxima semana. O governo busca um acerto final para encaminhar a reforma tributária.
A expectativa é a de que as lideranças da Câmara e do Senado vão se acertar, nos próximos dias, e apontar um norte para a proposta. Essa sinalização é considerada essencial pelo Ministério da Economia para manter a confiança em alta dos empresários nos próximos meses.
Por enquanto, a maior preocupação no governo é com a mobilização dos servidores nesse período de férias. À espera do texto da PEC da reforma administrativa, as categorias mais poderosas do funcionalismo público ainda não saíram de fato da toca contra a proposta, que mexe nas regras de estabilidade, na forma de contratação, na avaliação de desempenho, na progressão funcional e no número de carreiras no serviço público.
A equipe tenta vender a ideia de que o diálogo flui com os servidores em torno da proposta de reforma. Não é bem assim. As lideranças sindicais estão atentas e querem afastar essa narrativa que vem sendo construída pelo governo.
O alvo dos sindicalistas contra a reforma já foi escolhido: o fim da estabilidade para os novos servidores. A crítica – muito bem acertada em tempos do governo Bolsonaro – é que isso levará ao desmonte do serviço público.
Sem estabilidade, argumentam as lideranças sindicais, haverá perseguição política para os servidores que contestam o governo de plantão. Os acontecimentos recentes de embate do presidente Bolsonaro com os servidores do Inpe, Funai, Ibama, ICMBio e Receita dão sustentação às críticas do funcionalismo. É esse discurso que o governo vai procurar combater com uma comunicação pesada nos próximos meses, enquanto o Congresso não volta aos trabalhos.
No período de férias, a comunicação também vai reforçar outra vertente de reformas que ainda não ganhou visibilidade : a microeconômica. Ela será reunida em torno de uma agenda única, que vem sendo chamada de “Brasil Mais”.
Se antecipando ao risco de que protestos contra a desigualdade social em países vizinhos cheguem também ao Brasil, a pauta social passa a ganhar atenção. É uma resposta também ao discurso do ex-presidente Lula, que, ao sair da prisão, escolheu como alvo a agenda liberal do ministro da Economia, Paulo Guedes. Não à toa, em pleno feriado da Proclamação da República, o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, chamou a imprensa para informar que o governo prepara um plano de ações no campo social, com foco em crianças e famílias pobres.
Pedro Cafardo: Por que demora tanto esse "Plano Ipiranga"?
A liberação de recursos do FGTS é apenas um aperitivo
Sete meses depois do início do governo, a equipe econômica afinal rendeu-se a evidências e colocou um pouco de combustível na economia. Baixou medida provisória determinando a liberação de recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e do PIS/Pasep, decisão que promoverá, segundo estimativas, uma injeção de recursos de R$ 42 bilhões na economia até 2020.
O Banco Central, depois de manter teimosamente por 16 meses inalterados os juros básicos em 6,5%, apesar da estagnação da econômica e da inflação baixa e declinante, reduziu a taxa em meio ponto.
A medida sobre o FGTS foi importante não pelo valor a ser liberado, mas pelo reconhecimento da equipe de que é necessário estimular a demanda para tirar o país do quadro depressivo em que se encontra desde 2014. No início, o discurso era de que a reforma da Previdência e outras contenções de gastos fariam o milagre da ressurreição da economia. Reduziriam a incerteza sobre a solidez das contas públicas. Isso permitiria a queda dos juros e o aumento do crédito. Dessa forma, haveria estímulo à demanda, mais emprego e mais investimentos.
Agora o discurso mudou. Aceita-se a ideia de que as medidas de estímulo à demanda são necessárias, mas não há muito pressa de apresentá-las. A liberação de recursos do FGTS é apenas um aperitivo. Para começar a sair da crise de baixo crescimento, a economia precisaria de empurrões muito mais fortes. A equipe econômica sabe o que fazer. Se não o faz é porque não quer.
Deve ficar para depois da votação do segundo turno da reforma da Previdência o anúncio da agenda do governo de longo prazo, um pacote de medidas que estava sendo preparado para ser divulgado na quarta-feira, 31 de julho. Não se sabe se esse "Plano Ipiranga" terá medidas de estímulo à demanda, mas, para o bem do país, deveria ter.
Quando a reforma da Previdência começou a ser debatida no Congresso, o ministro Paulo Guedes, da Economia, disse que as medidas antirrecessivas seriam anunciadas somente depois da votação em primeiro turno. Aprovada a MP em primeiro turno na Câmara, o discurso mudou. Agora o país terá de esperar o segundo turno.
Falta sensibilidade para entender que a situação de 12,8 milhões de desempregados é aflitiva e exige decisões imediatas. Não faz nenhum sentido ficar esperando a aprovação da reforma para tentar aliviar essa aflição.
Na semana passada, o repórter Fabio Graner, do Valor, publicou um estudo feito pelos economistas Manoel Pires e Bráulio Borges, pesquisadores associados do Ibre/FGV, e Gilberto Borça Jr., do BNDES, cuja conclusão batia exatamente nessa tecla: "a necessidade de políticas de demanda, em especial o uso da taxa de juros, tem sido negligenciada pelos governos nos últimos anos e é um dos fatores que explicam o baixo crescimento econômico após a grave recessão de 2015/2016".
Por conta dessa negligência, segundo o estudo, a recuperação da economia tem sido a mais lenta desde o fim do século XIX. Para os três economistas, existe uma "postura de certo desprezo" em relação à necessidade de estimular a demanda na economia nos últimos anos, o que teria sido o principal fator limitante da expansão mais acentuada do PIB do país.
Nesses últimos anos, segundo eles, as políticas de demanda têm sido não apenas negligenciadas como também demonizadas. A política monetária, por exemplo, teria sido inadequada desde meados de 2016. Com o teto de gastos, a contenção do crédito público e a política de contenção fiscal, os juros básicos poderiam ter sido muito mais baixos. Os economistas estimam que, dadas as expectativas de inflação, a taxa Selic deveria ter encerrado o segundo trimestre entra 3,25% e 4,75% ao ano, bem aquém dos 6,5% observados. A redução da taxa para 6% feita pelo BC na semana passada, portanto, já vem tarde demais.
STF e autoritarismo
Mudando radicalmente de assunto, vamos recuar no tempo, para 1964. Naquele ano, quando se instalou a ditadura militar no Brasil, o presidente do Supremo Tribunal Federal era Ribeiro da Costa, que deu apoio imediato ao golpe. Mesmo assim, ele reagiu a uma atitude autoritária.
O Caso Arraes é contado no livro "Tanques e Togas", de Felipe Recondo. Deposto em 1º de abril de 1964, o então governador de Pernambuco, Miguel Arraes, foi preso e levado para Fernando de Noronha e depois para um presídio em Recife. Um pedido de habeas corpus foi negado pelo Superior Tribunal Militar em dezembro de 1964 e, então, os advogados de Arraes recorreram ao Supremo Tribunal Federal. Sustentavam que o tribunal militar não tinha atribuição para processar o governador, um civil, acusado de atos subversivos e de corrupção. O Supremo acatou a liminar e determinou a soltura de Arraes.
Os militares porém, se negavam a cumprir a ordem do Supremo. Começou então um longo embate entre Ribeiro da Costa e o presidente da República, general Castello Branco. Para disfarçar o descumprimento da decisão do STF, os militares soltaram Arraes, mas imediatamente o prenderam novamente sob a alegação de que estava sendo processado em dois outros inquéritos policiais-militares.
Os militares tentavam, portanto, se sobrepor ao Judiciário. Ribeiro da Costa enviou um duro ofício ao comandante do I Exército: "Advirto ser implícito no dever disciplinar o acatamento às ordens emanadas de superior hieráquico. (...) Acate, pois, a decisão tal como foi comunicada".
A cúpula militar demorou para digerir o "advirto", mas acabou cedendo. Dias depois, Ribeiro da Costa recebeu um telegrama do então chefe do gabinete militar da Presidência da República, general Ernesto Geisel: "Levo conhecimento V. Excia que Miguel Arraes de Alencar foi posto em liberdade por ordem do CMT I Exército. Cordiais Saudações".
Durante a ditadura, os militares suprimiram competências do STF, aumentaram o número de ministros de 11 para 16 a fim de garantir maioria no tribunal, cassaram três ministros e dois foram forçados a renunciar. Mesmo assim, em alguns casos, não conseguiram acovardar a instituição.