reeleição
Elio Gaspari: FHC reconheceu a ruína que criou
Quando o governante pode ser reeleito, trabalha de olho nesse prêmio
Com sete palavras Fernando Henrique Cardoso reconheceu a ruína política que provocou buscando a própria reeleição: “Devo reconhecer que historicamente foi um erro”.
Foi mais que um erro, foi um crime, e ele sabia disso desde a primeira hora, há 25 anos.
Na noite de 11 de julho de 1995, diante do nascimento da manobra da reeleição, FHC disse ao gravador que guardava suas memórias:
“Assunto delicado, acho difícil por causa da cultura política brasileira e não me comprometo a ser candidato. Vejo uma vantagem: a de que assim os outros se assustam e não lançam uma candidatura desde já.”
A cultura política brasileira não tinha nada a ver com isso. Em qualquer país ou clube de futebol e em qualquer época, quando o governante pode ser reeleito, trabalha de olho nesse prêmio. Hoje, FHC diz que “tinha em mente o que acontece nos Estados Unidos”. OK, mas no seu artigo autocrítico ele diz que “visto de hoje, entretanto, imaginar que os presidentes não farão o impossível para ganhar a eleição é ingenuidade”. Ingenuidade de quem, Grande Chefe Branco? Depois de ter praticado um ruinoso populismo cambial para ajudar sua reeleição até novembro de 1998, FHC desvalorizou o real em janeiro de 1999.
Fernando Henrique Cardoso governou o país por oito anos. A ele se deve um novo tempo na economia, um padrão de moralidade pessoal e uma tolerância que hoje fazem falta. Seu ruinoso legado político foi a instituição do princípio da reeleição. Ele envenenou presidentes, governadores e prefeitos. Em 1995 FHC chegou a dizer que “não penso nisso, o sacrifício é muito grande”. Pensava, queria, conseguiu, e a conta do sacrifício foi para os outros.
Enquanto o tucanato fabricava o veneno, FHC conseguiu dar a impressão de que estava acima da manobra. Tentando tirar a meia sem tirar o sapato, cortou a proposta de um referendo popular para ratificar a decisão do Congresso. Conseguiu, mas um quarto de século depois deu-se conta de que deixou o sistema político brasileiro de tamancos.
Não se trata de um veneno “visto de hoje”. A República brasileira resistiu a esse veneno. Nenhum presidente tentou receitá-lo, nem os da ditadura. Amparado na popularidade e no tacape do regime, o general Emílio Médici (1969-1974) poderia ter conseguido do Congresso uma prorrogação de seu mandato ou até mesmo o direito de candidatar-se numa eleição direta. Médici humilhou os çábios palacianos que armavam a manobra.
A reeleição de FHC foi a cabeça de um bicho que nasceu em 1994, quando o andar de cima, horrorizado com as pesquisas que davam a Lula 40% das preferências, encurtou o mandato presidencial de cinco para quatro anos. Essa cabeça desmiolada deu oito anos a FHC, 13 ao PT de Lula e Dilma, mais quatro ao ex-capitão Jair Bolsonaro. Que tal oito?
Quando FHC diz que “historicamente” a reeleição foi um erro, embaralha seu legado. Ela era evitada porque sabia-se que era venenosa. Instituída, deu no que deu, e hoje não há vacina contra seus efeitos.
Antes de entrar no Planalto, todos os candidatos dizem que são contra a reeleição. Lula e Bolsonaro diziam, mas mudaram de ideia.
Ricardo Noblat: Vinte anos depois, Fernando Henrique Cardoso admite que errou
A reeleição foi um passo em falso
Vem tarde e dará em nada o “mea culpa” do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso por ter aceitado a aprovação pelo Congresso da emenda constitucional que permitiu sua reeleição. A emenda foi proposta por Mendonça Filho, um deputado pernambucano que à época estreava na Câmara. Ninguém deu bola para ela. Até que um dia se deu.
Disse Fernando Henrique, em artigo que alcançou larga repercussão no fim da última semana, que a emenda foi aprovada porque se temia a eleição de Lula, derrotado por ele em 1994, e, antes disso, por Fernando Collor de Mello em 1989. Houve denúncias de que a reeleição fora comprada. Ele nega seu envolvimento com a compra de votos. E mais não disse.
Não disse, por exemplo, que a proposta de reeleição presidencial só foi engolida pelo Congresso porque passou a abranger a reeleição para os governos de Estados e as prefeituras. Por dever de justiça, diga-se em seu socorro que ele era contra. Mas, e daí? Se ele podia, por que os outros não? Onde se abre uma brecha, a manada faminta avança em louca disparada.
Em seu ato de contrição, Fernando Henrique também omitiu que o presidente Itamar Franco, desconfiado, chamou-o para uma conversa reservada antes de indicá-lo à sua sucessão. Itamar queria saber se caso fosse eleito, Fernando Henrique se contentaria em governar por um mandato ou se passaria a flertar com a possibilidade da reeleição.
Itamar era tudo, menos bobo. Já ouvira falar a respeito. E pensava em ser candidato à sucessão de Fernando Henrique, pois se limitava a completar metade do mandato de Collor, derrubado por um pedido de impeachment. Fernando Henrique respondeu a Itamar que era contra a reeleição, que sempre fora e que seria. Itamar nunca o perdoou por causa disso.
Por uma diferença mínima de votos, Fernando Henrique escapou de ser obrigado a disputar com Lula o segundo turno da eleição de 1998. Foi um susto e tanto que ele e seus apoiadores levaram. Mas dali a mais quatro anos, tendo realizado um segundo governo pior do que o primeiro, Fernando Henrique assistiu impotente a eleição de Lula. Até gostou. Quem sabe não o venceria em 2006?
O fim da reeleição não foi bandeira de campanha de Lula na versão paz e amor do marqueteiro Duda Mendonça, mas ele dizia ser contra governar por oito anos consecutivos. Nada fez, porém, para acabar com a reeleição, nem para si nem para quem o sucedesse. Assim como Dilma nada fez. Bolsonaro, sim, usou e abusou em campanha da promessa de acabar com a reeleição. E, agora…
Agora é só no que pensa. Não governa para outra coisa. Cada medida que baixa leva em conta seus efeitos sobre o que de fato importa para ele e seus milicianos – ficar no poder o maior tempo possível, pelo bem ou pelo mal. Pelo bem sendo reeleito democraticamente, como deseja. Pelo mal, forçando sua recondução ao cargo por meio de trapaças.
Uma das fraquezas da democracia é que a liberdade por ela assegurada, se exercida na contramão do bom senso, pode voltar-se contra ela mesma. Não é o que ocorre escandalosamente nos Estados Unidos, o berço da democracia, desde que Trump se elegeu? Jamais se viu um presidente americano culpar a fraude por uma derrota que ainda não colheu. É o que se está a ver.
Richard Nixon, do mesmo partido de Trump, renunciou porque cometeu o pecado mortal de mentir ao país, não porque mandou espionar o escritório do Partido Democrata no edifício Watergate. Trump é o presidente campeão de mentiras. É capaz de negar o que disse e que foi gravado em vídeo. Ameaça contestar os resultados das urnas se não for reeleito em novembro próximo.
Não bastasse, vai além: ao mesmo tempo em que se apresenta como vítima de uma eventual fraude se derrotado, incentiva desde já uma fraude ao seu favor. Aos eleitores do Estado da Carolina do Norte, na semana passada, ele simplesmente aconselhou que votassem duas vezes pelo correio, o que configura crime. Seu objetivo? Ora, anular votos que poderão lhe ser adversos.
O comportamento de Trump enfraquece a democracia dentro e fora dos Estados Unidos, e infla de gás uma seleta estirpe de governantes conhecida pela alcunha de “Trump Boys”. Alguns desses aspirantes a ditadores têm suas próprias ideias. Outros (e você sabe a quem me refiro neste caso) clonam as ideias de Trump e o amam acima de tudo, só abaixo de Deus.
Segundo Fernando Henrique, seria ingenuidade imaginar que “os presidentes não farão o impossível para ganhar a reeleição”. Em um mundo carente de estadistas, só o voto corrige o estrago que o próprio voto produziu. A democracia não garante sempre a escolha do melhor, apenas permite que se continue tentando, tentando, tentando até acertar.
Fernando Henrique Cardoso: Reeleição e crises
É ingenuidade imaginar que os presidentes não farão o impossível para se reelegerem
Recordo-me da visita que André Malraux, na ocasião ministro da Cultura de De Gaulle, fez ao Brasil. Esteve na USP, na Rua Maria Antônia, onde funcionava a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, e expôs no “grande auditório” (que comportava não mais que umas cem pessoas) sua visão de Brasília, obra de Juscelino Kubitschek. Malraux estava extasiado, comparava o plano diretor da cidade não a um pássaro (coisa habitual na época), mas a uma cruz. Com sua verve inigualável, dizia em francês o que não estávamos acostumados a ouvir em português: fazia o elogio da obra.
Esse não era, contudo, o sentimento predominante, pois víamos Brasília mais como desperdício, que induzia à inflação, do que como um “sonho”, um símbolo.
A visão dominante era negativa, principalmente no Rio de Janeiro (que perderia a condição de capital da República), em São Paulo e daqui para o sul. O gasto era grande e os recursos, minguados.
Eu compartilhava esse sentimento negativo, e olha que um de meus bisavôs fizera parte, no Império, da “missão Cruls”, que demarcara o território da futura capital do Brasil… Brasília foi construída onde desde aquela época se previa fazer a capital do País.
Não é que Malraux tinha razão? Não que a obra deixasse de ser custosa ou mesmo impulsionadora da inflação. Mas um país também se constrói com projetos, sonhos e, quem sabe, alguns devaneios…
Juscelino fez muitas coisas, algumas más, mas não é por elas que é lembrado. Brasília, sim, ficou como sua marca.
Não o conheci. Vi-o pessoalmente uma vez, sentado, solitário, num banco no aeroporto de “sua” cidade. Aproximei-me e o saudei; pouca conversa, mas muita admiração. Ele já havia sido “cassado”. Passa o tempo e fica na memória das pessoas sua “obra”, Brasília.
Não estou recomendando que Bolsonaro faça algo semelhante. Não sou ingênuo para pretender que minhas palavras cheguem ao presidente e, se chegarem, sejam ouvidas… Como estive no Planalto, às vezes me ponho no lugar de quem ocupa aquela cadeira espinhosa: é normal a obsessão por fazer algo, para o povo e para o País. Como o presidente será julgado são outros quinhentos. Maquiavel já notava que os chefes de Estado (os grandes homens… na linguagem dele) dependem não só de astúcia, mas da fortuna (da sorte).
O governo atual não teve sorte. São de desanimar os fatores contrários: a pandemia, logo depois de uma crise econômica que vem de antes, com o produto interno bruto (PIB) crescendo pouco (se é que…), e uma “base política” que depende, como sempre, mais do “dá lá toma cá” do que da adesão popular a algo grandioso. Ganhou e levou; mas mais pelo negativo (o não ao PT e aos desatinos financeiros praticados) do que pelo sim a uma agenda positiva.
Agora se tem a sensação (pelo menos, eu tenho) de que o presidente não está bem acomodado na cadeira que ganhou. É difícil mesmo. De economia sabe pouco; fez o devido: transferiu as decisões para um “posto Ipiranga”. Este trombou com a crise, pela qual não é responsável. Não importa, vai pagar o preço: tudo o que era seu sonho, cortar gastos, por exemplo, vira pesadelo, terá de autorizá-los. E pior: como é economista, sabe que a dívida interna cresce depressa, e sem existir mais a alternativa da inflação, que tornava aparentemente possível fazer o que os presidentes querem – atender a todos ou à maioria e ganhar a reeleição. Só resta o falatório vazio. Este cansa e é ineficaz num Congresso que, no geral, também quer gastar e igualmente pensa nas eleições.
Cabe aqui um “mea culpa”. Permiti, e por fim aceitei, o instituto da reeleição. Verdade que, ainda no primeiro mandato, fiz um discurso no Itamaraty anunciando que “as trevas” se aproximavam: pediríamos socorro ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Não é desculpa. Sabia, e continuo pensando assim, que um mandato de quatro anos é pouco para “fazer algo”. Tinha em mente o que acontece nos Estados Unidos. Visto de hoje, entretanto, imaginar que os presidentes não farão o impossível para ganhar a reeleição é ingenuidade.
Eu procurei me conter. Apesar disso, fui acusado de “haver comprado” votos favoráveis à tese da reeleição no Congresso. De pouco vale desmentir e dizer que a maioria da população e do Congresso era favorável à minha reeleição: temiam a vitória… do Lula. Devo reconhecer que historicamente foi um erro: se quatro anos são insuficientes e seis parecem ser muito tempo, em vez de pedir que no quarto ano o eleitorado dê um voto de tipo “plebiscitário”, seria preferível termos um mandato de cinco anos e ponto final.
Caso contrário, volto ao tema, o ministro da Economia, por mais que queira ser racional, terá de fazer a vontade do presidente. Não há o que a faça parar, muito menos um ajuste fiscal, por mais necessário que seja. E tudo o que o presidente fizer será visto pelas mídias, como é natural, como atos preparatórios da reeleição. Sejam ou não.
Acabar com o instituto da reeleição e, quem sabe, propor uma forma mais “distritalizada” de voto são mudanças a serem feitas. Esperemos…
*Sociólogo, foi presidente da República
Alessandro Vieira: Pedalada jurídica
O desejo de Alcolumbre de se reeleger esbarra na Constituição
O presidente do Senado Federal, Davi Alcolumbre, tem se movimentado para criar condições políticas e jurídicas que lhe permitam disputar novamente o cargo que ocupa há pouco mais de um ano e meio. O desejo de Alcolumbre esbarra, no entanto, num obstáculo intransponível: a Constituição Federal. Em seu art. 57, § 4°, a Carta veda claramente a recondução para a presidência do Senado na mesma legislatura. Também o Regimento Interno da Casa reforça essa proibição, reproduzindo o dispositivo constitucional em seu artigo 59. Esses fatos bastariam para sequer dar margem a tal discussão.
Mas nem a Constituição parece impedir o presidente do Senado de comandar articulações políticas para se manter no poder e buscar amparo em interpretações casuísticas de normas claras e indiscutíveis. Trata-se, sim, de uma inusitada pedalada jurídica, que não pode ser aceita por aqueles que respeitam a lei. Por isso, peticionamos junto ao Supremo Tribunal Federal com o objetivo de assegurar que o Regimento do Senado — assim como o da Câmara — seja interpretado conforme dita a Constituição, no único sentido possível: confirmar a impossibilidade de reeleição para o comando da Casa na mesma legislatura.
Não se trata de qualquer tentativa de atingir pessoalmente os presidentes do Senado ou da Câmara. No entanto, Davi Alcolumbre e Rodrigo Maia, a julgar pelo noticiário cotidiano, colocam o interesse pessoal acima do público, ao tentar driblar o Direito e dar elasticidade ao que o legislador constituinte restringiu expressamente. A única forma possível, ainda que totalmente inadequada ao momento, para que pudessem disputar novamente os cargos que ocupam seria por meio da aprovação de uma emenda constitucional. Certamente, um debate descabido em tempos de pandemia, crise econômica, fragilidade institucional e, como se não bastasse, com o Congresso trabalhando remotamente. Há uma extensa agenda de reconstrução do país a ser cumprida. Não podemos nos desviar da rota da urgência.
Não é demais reforçar: uma simples alteração regimental não teria força para desautorizar a Constituição Federal. Tampouco pode-se acreditar que o Supremo Tribunal Federal, com o devido respeito às atribuições da mais alta Corte, poderia conferir ao mero desejo de um político a benesse de uma interpretação diferente daquela inequivocamente expressa na Carta.
O constituinte não gastou palavras em vão. O impedimento diante do qual se deparam hoje Alcolumbre e Maia tem como propósito preservar a alternância de poder, pilar da democracia e princípio que deveria nortear, em especial, as atitudes daqueles que fazem as leis. Os comandantes do Legislativo têm o absoluto controle sobre a pauta, influenciando de forma decisiva os destinos do país e a vida da população. O bom senso e a boa prática política recomendariam compartilhar definições e escolhas tão importantes com um colégio de líderes. Infelizmente, no caso particular do Senado, isso não vem acontecendo. Decisões são tomadas de forma personalista, à revelia do conjunto de senadores que votou na eleição da Mesa do Senado, em 2019, justamente buscando práticas mais democráticas no exercício da presidência da Casa.
Também não cabe o desvario de tentar aplicar por analogia a regra de reeleição referente a cargos do Executivo, pois, como sabe bem qualquer estudante de Direito, o recurso à analogia é viável apenas quando não há regra específica a disciplinar determinada situação, o que não é o caso, pois a norma específica existe e é claríssima. Dito em outras palavras, temos 80 senadores e 512 deputados aptos a disputar a presidência do Senado e da Câmara, e só dois expressamente impedidos. Seus nomes são Davi Alcolumbre e Rodrigo Maia.
Em uma era de instabilidade política como a que temos vivido, não podemos nos furtar à eterna vigilância. Ela deve começar no Congresso Nacional, sempre com o olhar guiado pela Constituição que juramos todos defender. Essa é uma tarefa diária que não admite dubiedade. A morte da democracia, mostra a História, não acontece apenas em grandes atos de agressão. A erosão desse edifício ocorre também de maneira sutil, sob diversos disfarces. Quando se ignora a lei em nome de projetos pessoais, a ruína é inevitável.
*Alessandro Vieira é senador (Cidadania-SE)
Alon Feuerwerker: Esperteza que engole o dono
O noticiário relata que os presidentes do Senado e da Câmara buscam um atalho para se candidatarem à reeleição, mesmo no meio da legislatura. A Constituição proíbe expressamente isso, mas argumenta-se que o tema é interno às casas legislativas. Assunto interna corporis, a ser resolvido entre os candidatos e seus eleitores (deputados e senadores).
Se o Brasil não tivesse sido transformado, e sempre sob as anunciadas melhores intenções, num paraíso da insegurança e do criacionismo jurídicos, a tese continuísta seria rechaçada sem piedade. Mas aqui a pessoa acorda de manhã sem saber que trecho da Constituição está vigorando, ou se algo foi introduzido durante a noite na Carta “porque é justo”.
Nessas horas é prudente recorrer à sabedoria do Conselheiro Acácio, o personagem de Eça de Queiroz que nos advertiu sobre as consequências virem sempre depois. Se os presidentes das duas Casas do Congresso podem pleitear um novo mandato contra a letra expressa da Carta, argumentando ser "assunto interno" do Legislativo, por que não usar o mesmo critério para o presidente da República e os eleitores dele?
Se alguém pode ter direito a uma reeleição que a Constituição proíbe, bastando para isso que assim o queiram os eleitores envolvidos, por que negar ao ocupante do Palácio do Planalto a possibilidade de se submeter ao julgamento do eleitorado para tentar obter um terceiro mandato? Ou um quarto? Ou um quinto? E por que não a possibilidade da reeleição ilimitada?
Afinal, se o povo não estiver de acordo, que derrote o presidente-candidato.
Seria só a extensão para o conjunto dos eleitores de um direito antes reservado aos membros do colégio eleitoral que escolhe os presidentes do Senado Federal e da Câmara dos Deputados. Se suas excelências do Congresso Nacional podem outorgar-se essa possibilidade, por que negar ao povo?
Foi aliás o argumento de Evo Morales para driblar a consulta popular que o derrotara e tentar buscar um novo mandato de presidente na Bolívia. O resultado é conhecido. Como se diz, esperteza quando é muita vira bicho e come o dono.
O Brasil não é propriamente um exemplo de apego à letra da lei. O estado de direito por aqui costuma ser, digamos, flexível. Coisa exacerbada nesta era de bonapartismos, quando o pessoal que pede respeito às regras é visto como uma gente chata que abusa do mimimi.
No rumo atual vamos deslizando perigosamente para o predomínio de uma única lei: a do mais forte. Sabe-se hoje que as portas do inferno foram abertas lá atrás com a aprovação da reeleição no Executivo. O que veio depois foi só consequência. Não tem mesmo jeito, sempre acabamos voltando à sabedoria do Conselheiro.
Poderia ser o contrário. Poderíamos aproveitar o momento para dar um basta na reeleição ou pelo menos estabelecer regras mais justas. Por que um governador ou prefeito precisam renunciar ao mandado para poder concorrer contra um presidente que pode lutar pela reeleição confortavelmente sentado na cadeira e com a caneta na mão?
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
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Publicado originalmente na revista Veja 2.703, de 09 de setembro de 2020
Rosângela Bittar: O artilheiro e seu canhão
Com um profissional no papel de formulador da tática, Bolsonaro foi cuidar dos disparos de canhão
O primeiro sinal para o início do espetáculo da sucessão soou como um alarme. E os adversários de Jair Bolsonaro na disputa à Presidência acordaram, embora tarde. Luciano Huck, que já teria decidido disputar, permanece indiferente ao tempo e não se anuncia. O que não lhe tira a vantagem de ser o candidato mais perto do povo, mas aprofunda sua desvantagem de distanciamento do mundo político. Desperdiça a campanha municipal como palanque ideal para uma aproximação necessária da máquina indispensável à disputa eleitoral.
Empenhado em tirar efeito das providências do Estado no combate à pandemia, João Doria está em situação oposta. Candidato mais próximo da máquina política, está sem condições, no momento, de mergulhar no burburinho municipal e misturar-se ao povo.
Ciro Gomes, sem mandato ou cargo que fixe sua imagem, e desgastado pela memória de embates anteriores, parece não ter um plano de recomeço. Talvez ainda intimidado pelo jogo petista que já voltou às mesas de bar: Lula poderá ser candidato? Fernando Haddad terá fôlego?
Sobre Sérgio Moro o que ressalta é a falta de iniciativa para transpor o paredão artificialmente erguido para que sua candidatura se viabilize. Falta-lhe de um tudo e, como para os demais, o tempo de construção é agora.
Um novelo que precisa ser urgentemente desfeito sob pena de a reeleição de Bolsonaro se consolidar muito cedo. O candidato no futuro que está no cargo presente pode abusar da oferta de benesses ao eleitorado e aos cabos eleitorais. Se acrescentar a estas vantagens a de não ter adversário, quando se sabe que terá, apenas adia-se a brecha da fraqueza.
Fortes candidatos a deputado federal, fundamentais na campanha presidencial, devem sair do quadro de perdedores das eleições municipais. O projeto em que vão se engajar precisa estar claro, no dia seguinte. Enquanto Bolsonaro for o único palanque presidencial na campanha municipal, sua vitória é presente de mão beijada.
Política é isto, correr atrás. Sem ritual, dispensando apresentação e até o próprio anúncio de sua nomeação, o experiente Ricardo Barros assumiu a liderança do governo com apenas um aviso aos navegantes. Mas é como se tivesse dito o que todos ouviram: “Coube-me, como professor, formar a aliança majoritária; basta me dizerem, no momento certo, para quê”. Com um profissional no papel de formulador da tática e da estratégia, retaguarda coberta, Bolsonaro foi cuidar dos disparos de canhão.
Colocou nas ruas uma campanha na clássica tradição brasileira. Para os pobres, demagogia. Dinheiro na veia da especulação, para os ricos. Daí, a questão. Até quando o assistencialismo continuará decidindo as eleições no Brasil? País, o nosso, que se projeta na fusão de imagens políticas da Venezuela, da Bolívia e da Argentina, para consolidar o pobre retrato eleitoral da maltratada SudAmerica.
O sociólogo e ex-presidente Fernando Henrique Cardoso prevê que assim será enquanto a desigualdade se mantiver brutal. E a indiferença da classe dominante recrudescer, por interesse eleitoral ou inação. “Ela (a classe dominante) não se abala.”
Não está fechado o espaço para um projeto alternativo ao assistencialismo, mas, como se sabe, não há partidos interessados em apresentá-lo. Não é impossível, também, que alguém, individualmente, vocalize um caminho novo, como admite o ex-presidente. “Mas é preciso que o povo acredite.”
A opinião pública sente-se traída. Bolsonaro conseguiu fazer crer que romperia com a era PT. Na primeira oportunidade, assumiu métodos e medidas que combatia.
Há, sim, uma expectativa de que ainda aparecerá alguém capaz de provar que a era Bolsonaro precisa ser encerrada. Se não, e a economia não atrapalhar, o populismo demagógico, mais uma vez, vestirá a faixa.
Ricardo Noblat: Medo do impeachment contém ímpeto de Bolsonaro por mais gastos
No momento, é claro…
O que mais deixou Jair Bolsonaro furioso com o ministro Paulo Guedes, da Economia, foi Guedes ter dito em público que a pressão por mais gastos com obras de infraestrutura e o desrespeito à lei que limitou o crescimento de despesas poderiam provocar a abertura de um processo de impeachment contra ele.
Pois o ministro, em conversas reservadas com o presidente na semana passada, voltou a adverti-lo para o perigo se enveredar por tal caminho. O nervo exposto de Bolsonaro é justamente esse: ainda não contar com número seguro de votos confiáveis no Congresso para derrotar um pedido de impeachment.
Lembre-se do que aconteceu com a ex-presidente Dilma Rousseff, insistiu Guedes com Bolsonaro. Para gastar mais ou para disfarçar gastos que já fizera, Dilma acabou pedalando a Lei de Responsabilidade Fiscal. Como, de resto, presidentes que a antecederam haviam feito. Deu no que deu.
Tudo bem que presidente com popularidade em alta dificilmente é alvo da abertura de um processo de impeachment. Dilma, e antes dela Fernando Collor, só começaram a cair quando a avaliação positiva dos seus governos oscilou entre 10% a 15%. A de Bolsonaro está longe disso, e sobe. Mas…
Bolsonaro tem cobrado pressa aos ministros que negociam o apoio do Centrão. Às favas todos os escrúpulos – adiante com o loteamento de cargos do governo. Foi ele mesmo que há uma semana bateu o martelo para a troca do líder do governo na Câmara. Saiu o Major Vitor Hugo (PSL-BA). Entrou…
Entrou uma figura com a cara do Centrão – o deputado Ricardo Barros (Progressista-PR), que já foi condenado a devolver dinheiro aos cofres públicos quando era prefeito de Maringá, apareceu na lista da Odebrecht como beneficiário de propina e foi denunciado por improbidade administrativa quando ministro da Saúde.
Tem ou não tem as credenciais necessárias para representar o Centrão junto ao governo e falar pelo governo na Câmara? Nada separa Barros de Bolsonaro. Os dois se conhecem há muito tempo. Bolsonaro já foi filiado a diversos partidos do Centrão. A tal da Nova Política, com a qual acenou, era de brincadeira.
Bolsonaro, hoje, embarca para Sergipe. E ainda esta semana deverá ir ao Rio Grande do Norte. Se tudo começou pelo Nordeste quando Pedro Álvares Cabral deu às costas da Bahia em 1500, por que Bolsonaro não poderá finalmente descobrir o Nordeste depois de tê-lo ignorado por tanto e tanto tempo?
Quanto a Guedes e a sua relutância em gastar além do que deve… Bolsonaro está deixando que ele se acostume com a ideia. Se não se acostumar, todas as vênias lhe serão feitas, mas o Brasil deve sempre estar acima de todos e só abaixo de Deus. E o futuro radiante do Brasil, segundo Bolsonaro, passa por sua reeleição.
E Antonio Palocci, hein? E Sérgio Moro, hein?
Só Lula e Bolsonaro têm o que comemorar
Sem mais nem menos, a seis dias do primeiro turno da eleição presidencial de 2018, o então juiz Sérgio Moro divulgou um anexo da delação do ex-ministro Antonio Palocci feita à Polícia Federal surpreendendo os procuradores da força tarefa da Operação Lavo Jato, em Curitiba, que a haviam recusado por falta de provas.
Sabe-se lá o quanto a divulgação do anexo fortaleceu à época a candidatura de Jair Bolsonaro que liderava as pesquisas de intenção de voto, mas certamente não a prejudicou, antes pelo contrário. Palocci acusava Lula de ter autorizado o loteamento de cargos na Petrobras com os partidos que apoiavam seu governo.
Dois dias depois da divulgação do anexo por Moro, uma procuradora perguntou aos colegas: “Vamos fazer uso da delação do Palocci?” Outro procurador respondeu: “O que Palocci trouxe parece que está no Google”. Um terceiro disse: “O acordo é um lixo, não fala nada de bom (pior que anexos Google)”.
Uma semana antes do anexo tornar-se público graças a Moro, um procurador havia escrito: “Russo [apelido do juiz] comentou que embora seja difícil provar, ele é o único que quebrou a ‘omertá’ petista”. Foi rebatido por uma procuradora: “Não só é impossível provar como é impossível extrair algo da delação dele”.
Bingo! Um relatório da própria Polícia Federal que, ontem, se tornou público, aponta que a delação premiada de Antonio Palocci era recheada de desinformação. “As afirmações foram desmentidas por todas testemunhas, declarantes e por outros colaboradores da Justiça”, concluiu o delegado Marcelo Feres Daher.
Nada restou de pé do que afirmou Palocci sobre um caixa de propinas para Lula administrado pelo banqueiro André Esteves, do BTG. Recentemente, o Supremo anulou outra acusação de Palocci: a de que Lula teria recebido 12,5 milhões de reais da Odebrecht para a compra de um novo terreno para seu instituto.
Os procuradores da Lava Jato acertaram ao considerar a delação de Palocci um pastel de vento. Moro ainda deve explicações por ter divulgado o anexo da delação às vésperas da eleição de 2018. Condenado a 18 anos de prisão, Palocci teve sua pena reduzida pela metade e a cumpre em sua casa com tornozeleira eletrônica.
O desmonte da delação de Palocci reforça o discurso do PT de que Lula é inocente, deixa Moro outra vez sujeito a críticas, e Bolsonaro por isso mesmo feliz.
Leandro Colon: Sem pudor, Bolsonaro só pensa em 2022
Presidente movimenta peças para reeleição enquanto adversários buscam um rumo
A eleição presidencial de 2022 começou, as ruas já flertam com a reeleição de Jair Bolsonaro e alguém precisa contar para a oposição.
A agenda do impeachment, por ora, inexiste no Congresso, não vai prosperar no cenário atual. Tende a ser ineficaz insistir nela.
Não há sinais de que Bolsonaro corre risco até o fim de seu mandato por mais que razões possam ter (e não são poucas) para a abertura de um processo de afastamento.
Uma ação de impeachment precisa, além de ambiente político favorável, de um empurrão de fora que sustente a derrubada.
O Datafolha mostra que Bolsonaro está forte. Atingiu sua melhor avaliação no mandato, com 37% dos brasileiros considerando seu governo ótimo ou bom.
A curva de rejeição caiu de 44% para 34%. Para 47%, ele não tem culpa pelas 100 mil mortes causadas pela Covid-19 no país.
Alavancado pelo auxílio emergencial, que impediu 23,5 milhões de caírem na pobreza, o presidente está todo serelepe.
Semana passada foi para Belém inaugurar obras. Desembarca nesta segunda-feira (17) em Sergipe para cortar a faixa de uma usina termoelétrica. E faz troça com o teto de gastos públicos.
Bolsonaro joga para dentro também. Enlaçou-se com o probo centrão e namora o MDB do neoaliado Michel Temer. Réu por corrupção, o ex-presidente teve de pedir autorização da Justiça para chefiar a comitiva enviada ao Líbano.
Bolsonaro nem se constrangeu em indicar Ricardo Barros para liderar seu governo na Câmara. Deputado pelo PP-PR, Barros tem um prontuário extenso no ramo das investigações.
Com o fracasso na formação da Aliança pelo Brasil, Bolsonaro busca agora um partido para disputar a reeleição. Admite até deixar de lado as agruras com o PSL, a sigla especializada em laranjas que o elegeu presidente em 2018.
O presidente movimenta as peças sem pudor. Quando (e se) seus adversários encontrarem um rumo nos próximos dois anos, pode ser tarde demais.
Fernando Gabeira: A metamorfose do mito
Aparentemente, caminho de Bolsonaro é sem pedras. Congresso dá apoio em troca de cargos, eleitores gratos ao novo benfeitor
Se a frase não tivesse uma conotação tão negativa para ele e seus seguidores, diria que Bolsonaro saiu do armário. Melhor então dizer que mostrou sua face e, se quiserem imagem mais antiga, rasgou a fantasia.
Creio que um marco temporal da metamorfose foi a prisão de Fabrício Queiroz. Uma dose de criptonita na veia do mito de milhões de brasileiros que contavam com sua força para derrubar o velho regime e acabar com a corrupção.
Naquele manhã, Bolsonaro despertou não como o personagem de Kafka, sentindo-se uma barata. Percebeu que era apenas mais um animal na floresta de Brasília. Não era do mesmo tipo dos que se financiam com dinheiro de empresas. Mas sabia que seu esquema ficaria evidente para qualquer analista político, independentemente do grau de miopia.
Vários mandatos na família, pouco mais de uma centena de funcionários, uma boa parte fantasma, e estava resolvido o problema financeiro de campanha e melhoria de vida, capitalizando em negócios imobiliários. Era preciso reencontrar o Centrão, um grupo do qual nunca esteve distante. Seus partidos ao longo dos 28 anos de mandato sempre foram fisiológicos. E o Centrão não significa apenas garantia contra impeachment. Há ali toda uma sabedoria de como se dotar de uma pele de elefante para se escudar das críticas.
Bolsonaro sempre foi um combatente ideológico. Ele só adotou o tema da corrupção quando percebeu que essa era a grande fragilidade da esquerda. Nesse ponto, tentei até dizer a ele nas entrelinhas de uma entrevista, Bolsonaro não difere do movimento militar de 64. Eles falavam em combater a subversão e a corrupção. Mas terminaram apoiando Paulo Maluf, numa tentativa de derrotar Tancredo Neves. É um tipo de pensamento onde existem os nossos corruptos e os deles.
A investida contra Moro por não conseguir intervir na PF do Rio era destinada exatamente a evitar que sua família e amigo fossem incomodados. Não adiantou, Fabrício Queiroz foi incomodado no refúgio de Atibaia em junho.
Agora não há mais mistério. Bolsonaro abandona a fantasia e sabe que perde também uma fração de eleitores que acreditava em seu programa e consegue constatar que foi para o espaço. Somadas às perdas com o desastroso negacionismo diante do coronavírus, era preciso buscar outro norte, ou outro Nordeste para sobreviver. É uma fórmula consagrada pelas pesquisas de popularidade.
Um instrumento sempre denunciado pela direita como uma forma de compra de eleitores, o Bolsa Família ressurge como tábua de salvação. Por que não inventar um Bolsa Família para chamar de seu?
E lá se vai Bolsonaro com um chapéu fake de boiadeiro cavalgando seu novo destino. Aparentemente, um caminho sem pedras. O Congresso dando apoio em troca de cargos, eleitores agradecidos ao seu novo benfeitor. Mas há nuvens no horizonte. Onde conseguir dinheiro para financiar esse projeto de reeleição que, na aparência, é um projeto social? Pedaladas no Orçamento podem resultar em impeachment. Mas nem sempre.
Será preciso jogar fora duas importantes bandeiras: a racionalização da máquina e a venda de estatais improdutivas. Esta semana já foram para o espaço os responsáveis por elas no governo. Os pilotos saltaram do avião. Como supor que seja possível ratear cargos nas estatais e, simultaneamente, pedir que as forças políticas aceitem sua passagem para a iniciativa privada?
Um presidente apoiado no Centrão não será novidade. Bolsonaro não se interessa tanto pelo Líbano quanto pelas fórmulas do MDB de Temer para manter a fidelidade de deputados em caso de processo. A tendência será a de um governo como os outros, apoiado no toma lá dá cá, e estourando o teto de gastos para sobreviver politicamente.
O perigo não é só a bancarrota. A própria classe média pode de novo se enfurecer e surgir por aí um novo salvador para implodir o sistema e acabar com a corrupção. Conheço esse filme desde as últimas décadas do século passado. Collor, o caçador de marajás, fracassou; Lula, prometendo introduzir a ética na política, acabou se desvencilhando dela.
Não eximo ninguém de sua responsabilidade pessoal. Mas essa armadilha histórica da qual não conseguimos escapar merecia uma reflexão. Nossas elites são intrinsecamente desonestas ou também há algo errado com nosso sistema político?
A sucessão de salvadores da pátria não é um fenômeno qualquer. Com Bolsonaro, ela nos jogou nos perigosos limites da democracia.
Eliane Cantanhêde: A derrota da realidade
Se os fatos não correspondem às versões, danem-se os fatos; Bolsonaro agradece
A realidade e os fatos vão para um lado, a popularidade do presidente Jair Bolsonaro vai para o outro, confirmando que a propaganda é a alma do negócio e que o grande desafio dos governantes em processo de reeleição não é dar bons exemplos, agir estrategicamente e tomar as decisões mais adequadas ao País, mas manter um eleitorado cativo, cooptar o indeciso e atacar sem piedade qualquer tipo de opositor.
Não importam os princípios, importa o que bate diretamente no bolso. Não importam os fatos, importam as versões. Os esquemas da família Bolsonaro, de rachadinhas, funcionários fantasmas e do vício de pagar em dinheiro vivo escola, plano de saúde e até apartamentos não têm efeito na popularidade nem na rejeição do presidente. Diminui daqui, soma dali, o resultado é que Jair Bolsonaro continua sendo o único candidato à Presidência em 2022 e está em ascensão.
Também não interessa o desempenho trágico do presidente no combate ao coronavírus, que até aqui matou perto de 110 mil brasileiros. Como não importam o desmanche do Ministério da Saúde, a disparada das queimadas na Amazônia, o desdém pelo meio ambiente, o abandono da Educação, a exclusão da cultura da pauta nacional e a política externa desastrosa. Sergio Moro, Lava Jato e órgãos de combate à corrupção? Já vão tarde. Quem está interessado nisso? Em Polícia Federal? Coaf? Receita? PGR? Só essa mídia “esquerdista”, “petista”, para desmistificar o “mito”. O “povo” tem mais o que fazer e com o que se preocupar.
Igualmente pouco importa se Bolsonaro assassinou as promessas de campanha e voltou à “velha política” e ao Centrão. Os bolsonaristas raiz, de memória curta, continuam fiéis e o número de desgarrados é compensado nas pesquisas por outro tipo de rebanho: o dos que precisam do Estado para sobreviver, até para comer. Para esses, não interessa se Bolsonaro apenas cedeu ao Congresso, mas sim que é ele quem distribui os R$ 600 e o socorro a empresas.
Além desse fator objetivo, que muda a percepção no Nordeste e entre os desempregados e os que ganham até dois salários mínimos, houve também uma guinada estratégica que estancou a sangria na classe média e entre os escolarizados: Bolsonaro parou de prejudicar Bolsonaro. Pôs de lado a metralhadora giratória contra tudo e todos, saiu das manchetes e reverteu a curva: deixou de cair, passou a subir.
Portanto, a nova pesquisa Datafolha, apurando que Bolsonaro atingiu o melhor índice de aprovação desde a posse – 37% - e reduziu sua rejeição em dez pontos porcentuais – para 34% - pode ter definido dois jogos internos no governo: a favor de estourar o teto de gastos para vitaminar a campanha do presidente e, portanto, contra Paulo Guedes.
Se Rogério Marinho, Tarcísio de Freitas e o time militar têm o Datafolha para convencer Bolsonaro de que gastança garante reeleição, o que Guedes tem para contrapor? Um crescimento econômico pífio em 2019, antes da pandemia, e… mais nada. Ah! Mas foi o presidente quem atrapalhou a reforma tributária e vetou a administrativa! Ok, é verdade. Mas quem quer saber da verdade, se a versão bolsonarista é que importa?
Moro foi dormir ídolo e acordou Judas, Luiz Henrique Mandetta era um poço de popularidade e secou, o general Santos Cruz era líder e virou uma ilha entre militares. Guedes pode ir se preparando. Os “gabinetes do ódio” (no plural) não atuam só contra críticos e esquerdistas, mas para apagar a verdade e massificar versões e fake news. As pesquisas depois colhem o resultado. Descobrem, por exemplo, que Bolsonaro não tem nada a ver com as 106 mil mortes!!! Bolsonaro e bolsonaristas vão muito bem. Não se pode dizer o mesmo do Brasil e dos brasileiros.
Adriana Fernandes: É o dinheiro das eleições!
O comando do Ministério da Economia não ofereceu resistências à MP e não viu problemas no uso de créditos extras
É a pressa do calendário político que move o acordo do presidente Jair Bolsonaro com lideranças partidárias do bloco do Centrão para enviar ao Congresso uma Medida Provisória (MP) que abre um crédito extraordinário de cerca de R$ 5 bilhões para custear investimentos em infraestrutura e ações indicadas por parlamentares.
Esse tipo de crédito é uma das poucas exceções possíveis para que despesas fiquem livres de qualquer limitação imposta pelo teto de gastos e pode ser feito por meio de MP. É com esses créditos que o governo tem liberado recursos para o enfrentamento da covid-19 no chamado orçamento de guerra.
Em ano eleitoral, os parlamentares querem mesmo é ver recursos na mão e bem rápido. Simples assim. A pandemia do coronavírus é só o pano de fundo. Não há uma política coordenada, bem desenhada e planejada de investimentos públicos para estimular a retomada econômica, como defendem muito economistas de dentro e fora do governo.
Como o Palácio do Planalto argumenta que a quantia de R$ 5 bilhões não é tanto dinheiro assim e que há espaço fiscal, Bolsonaro bem que podia tentar um remanejamento de recursos do Orçamento via crédito suplementar.
O problema técnico e político do crédito suplementar é que ele tem que ficar dentro do teto e só pode ser aberto se cancelar outra dotação orçamentária. Pelo valor proposto, o mais provável é que a liberação dos recursos exigisse, ao final, projeto de lei e não a edição de um decreto. Levaria, portanto, mais tempo, o que os políticos não têm.
Bolsonaro teria que mandar o projeto pelo Congresso e, dessa forma, enfrentar mais negociações por causa do controle da pauta de votação. Mas há urgência para gastar tudo até dezembro, e não deixar restos a pagar para 2021, que são aquelas despesas transferidas de um ano para o outro.
O comando do Ministério da Economia não ofereceu resistências à MP e não viu problemas jurídicos no uso de créditos extraordinários embasado nas regras do orçamento de guerra. Pelo contrário, divulgou nota apontando sua posição de que a medida está em consonância com a legislação.
Segundo o ministério, o orçamento de guerra permite a ampliação de gasto sem 2020 desde que respeitado o “princípio exclusivo de enfrentar a calamidade e suas consequências econômicas e sociais”. Técnicos especialistas em Orçamento questionam, no entanto, o fato de a Constituição restringir o uso a “despesas imprevisíveis e urgentes”.
Aliás, é bom lembrar que o acordo da MP foi acertado no encontro “histórico” desta semana entre Bolsonaro, ministros, lideranças políticas e os presidentes do Senado e da Câmara. Na reunião, o ministro Paulo Guedes conseguiu o apoio que queria depois da “debandada” da equipe que fragilizou a sua agenda liberal. No encontro, todos reafirmaram o compromisso com o teto e a tal responsabilidade fiscal.
Mas só que não.
O que está em curso é uma negociação para gastar mais em 2021. Os lados estão fazendo os seus acertos e a forma de fazê-lo. Para muitos observadores da cena política em Brasília, está cada vez mais claro que essa mudança acontecerá mais cedo (2020) ou mais tarde (2021), com ou sem Paulo Guedes.
Será com ou sem dor. Sem dor: mudando o teto logo por meio de tampão. Com dor: como tenta o ministro da Economia, acionando gatilhos de medidas automáticas de corte de despesas, como proibição de criação de despesas obrigatórias, eliminação de renúncias e gastos com pessoal e programas com o abono salarial.
Os gatilhos são tão duros e demandará muita articulação política para aprová-los. Os líderes vão querer enfrentar esse desgaste ou farão corpo mole? Nada mais urgente do que construir essa saída e com planejamento até para não faltar dinheiro para saúde e programas sociais em 2021 – esse, sim, os problemas mais urgentes.
O tamanho do ajuste de rota veremos mais à frente. Vai depender da empolgação do presidente com o aumento da popularidade e dos compromissos que estão acertados com os parlamentares do Centrão.
Bolsonaro quer chegar vivo em 2022 e com gás para sair vencedor nas eleições. Depois é que são elas.
Ascânio Seleme: Só terremoto salva
Mesmo com cenário ruim, 38% dos brasileiros querem reeleger Bolsonaro
Fernando Henrique Cardoso pode até não admitir, mas no fundo deve estar arrependido por haver se empenhado tanto pela aprovação do princípio da reeleição em 1997. Com o falso objetivo de consolidar o Plano Real, criou um monstrengo que atrapalha governos e confunde eleitores. Por sua causa, governantes em primeiro mandato trabalham principalmente para ganhar o segundo, e os eleitores acabam sendo enganados ao julgar os mandatários com base em suas “bondades”. Todos os presidentes foram reeleitos desde a aprovação da emenda, mesmo os enrolados.
A primeira prova de que o princípio torna nebulosa a gestão do postulante a um segundo mandato foi dada pelo próprio FH, que em 1998 segurou artificialmente o câmbio para não atrapalhar sua reeleição e, quando teve de soltá-lo em janeiro do ano seguinte, causou um tsunami na economia. O governante usa sem escrúpulos a máquina administrativa para se reeleger, mesmo que disso resultem quebradeira de empresas e escalada do desemprego. E ainda há um outro elemento que torna praticamente imbatível um presidente candidato, a admiração incondicional do brasileiro médio por homens poderosos.
A reeleição de Lula é um caso já estudado e explica essas premissas. O ex-presidente se valeu tanto da imagem de pai generoso quanto da de gestor poderoso, que distribui dinheiro entre os mais necessitados. Dinheiro público, claro. Lula estava envolvido até o pescoço no escândalo do mensalão, embora tenha dito que “não sabia” das movimentações criminosas do deputado cassado José Dirceu. O PT pagava a partidos e parlamentares pelo apoio que eles davam ao governo. Mais uma vez, era dinheiro público que remunerava os aliados. Um escândalo desse tamanho não foi o suficiente para impedir seu segundo mandato.
Dilma foi reeleita mesmo tendo feito um primeiro governo antipolítica. A ex-presidente passou quatro anos torpedeando partidos, especialmente o MDB do seu vice Michel Temer. Foi tão omissa que acabou permitindo a eleição de seu algoz Eduardo Cunha para presidente da Câmara, no início do segundo mandato. Na economia, expandiu gastos desordenadamente e reduziu juros na marra, resultando no aumento da inflação e do desemprego. Em janeiro de 2013, para combater o monstro que havia criado, pediu aos prefeitos de Rio e São Paulo que não dessem aumento de ônibus. O preço represado da passagem foi majorado em junho, e o que se viu em seguida virou história. Mesmo assim, Dilma foi reeleita.
E então chegamos a Bolsonaro. O presidente colecionou erros grosseiros nos seus primeiros 18 meses de governo. Os mais óbvios foram menosprezar o Congresso, ultrajar o Supremo e incentivar manifestações antidemocráticas. O país assistiu abismado àquela famosa reunião ministerial em que Abraham Weintraub disse que, se dependesse dele, “prendia estes vagabundos”, apontando para a Praça dos Três Poderes, “a começar pelo Supremo”. Além disso, os filhos do presidente, sua mulher e suas ex-mulheres estão envolvidos numa rede de gastos com dinheiro vivo de origem mal explicada, muito provavelmente das rachadinhas praticadas por toda a família.
O presidente ainda ignorou agressões ao meio ambiente e alertas globais. Mais adiante, fez pouco caso da epidemia de coronavírus, debochou das mortes por ela causadas e gerenciou mal o combate. O grande momento da sua presidência, e ainda assim dependendo do ângulo que se olhe, foi a aprovação da reforma da Previdência. Mas, como ele não se mobilizou a seu favor, a reforma deve ser atribuída ao Congresso. Seu único e verdadeiro mérito foi ter se mantido calado nas últimas cinco semanas. Não poderia haver um cenário pior para um presidente. E, mesmo assim, pesquisa revela que 38% dos brasileiros querem reelegê-lo.
Para agravar o quadro, não há no horizonte sinal de entendimento entre os diversos matizes da oposição. Lula caminha solitário à esquerda. Moro bate cabeça à direita. O centro não tem vigor nem empatia. Você pode dizer que é cedo, tudo bem. Mas, se não houver mudança radical nesse cenário já, somente um terremoto poderá evitar a reeleição de Bolsonaro.