Paulo Guedes

Vinicius Torres Freire: Economia começa mal o ano

Emprego, confiança de empresas e receita do governo têm sintomas de resfriado

Mais um ano se passou e o desemprego continua na mesma. A taxa de desemprego é praticamente igual à do início de 2018, quando também o ritmo de criação de empregos passou a cair.

A confiança das empresas de comércio e serviços baixou em fevereiro. Na indústria, cresceu, mas ainda está abaixo do que se via antes do caminhonaço de meados do ano passado. Não há dados mais precisos ou gerais de produção e vendas neste começo de 2019, mas os indicadores indiretos são fracos.

A discreta melhora no crédito bancário deu um tempo e repousou na discrição. A receita de impostos do governo federal também desacelera desde setembro. A receita total também, prejudicada pela baixa na arrecadação dos recursos obtidos com concessões.

Há sinais de resfriado na atividade econômica, como se observa nestas colunas desde o início de janeiro. As estimativas de crescimento para 2019 vêm sendo reduzidas por economistas de grandes bancos e consultorias. A gente ouve cada vez mais conversas sobre a necessidade de cortar a taxa básica de juros, o que era assunto de uma minoria até a virada do ano.

O ritmo cadente de criação de empregos é bem preocupante. Em janeiro do ano passado, o número de pessoas empregadas crescia ao ritmo anual de 2,1%. Cai desde então. Agora, a população ocupada aumenta a 0,9% ao ano, como se soube nesta quarta-feira pela pesquisa do IBGE, a Pnad Contínua.

Note-se de passagem que há uma discrepância entre os indicadores de emprego formal do Ministério da Economia (Caged, algo melhores) e os do IBGE. São dados de natureza totalmente diferente: o Caged é um registro administrativo de criação de empregos formais; a Pnad é uma pesquisa por amostragem.

Discrepâncias são normais e as taxas de crescimento acabam se aproximando, mesmo com alguma defasagem. A defasagem de agora está difícil de entender.

Isto posto, é mesmo de fraca a ruim a situação do mercado de trabalho. Um indicador indireto das precariedades, empregos ainda escassos e ruins, é a arrecadação da Previdência. Depois de baixar de modo pavoroso entre julho de 2015 e outubro de 2017, a receita previdenciária voltou a crescer até de modo razoável no início de 2018 (perto de 3% ao ano). A arrecadação ficou desde então engasgada. Agora aumenta ao passo de apenas 0,9% ao ano, segundo dados do Tesouro Nacional divulgados nesta quarta-feira.

A subutilização da força de trabalho aumentou um tico em relação a 2018. O crescimento do salário médio perdeu impulso em relação aos progressos de 2017 (avança a 0,8% ao ano). Assim, o ritmo de crescimento da soma dos rendimentos do trabalho ("massa de rendimentos") embicou para baixo, crescendo em torno de apenas 1,8% ao ano, em média, desde setembro do ano passado.

Como a recuperação econômica por ora depende quase exclusivamente de rendimentos do trabalho e confiança para consumir, estamos com um problema sério.

Nestes tempos de maluquices e ignorâncias ainda mais extremadas é bom deixar claro que o governo de Jair Bolsonaro nada tem a ver com esses resultados ruins. No entanto, o tempo passa, é ainda mais escasso nesta crise secular e tem sido desperdiçado com irrelevâncias, atitudes disparatadas e promoção de conflitos tolos, odientos e divisivos.

Degradar o ambiente social e político vai prejudicar ainda mais as expectativas de que se possa chegar a um acordo para que se possa reformar este país arruinado.


Sergio Fausto: O ponto a que chegamos

Da Constituição de 1988 à eleição de Jair Bolsonaro. Paulo Guedes embrulha os governos de FHC e do PT no mesmo pacote. Sua visão leva água para o moinho doido da extrema direita, para a qual todos do centro até a esquerda são comunistas

Em meados de 2015, a Folha de S.Paulo me convidou para publicar um artigo na Ilustríssima sobre o futuro do PSDB. Escrevi um texto dizendo que a crise do PT, já na época enredado na Lava Jato (tucanos vieram a enredar-se depois), abria espaço para o PSDB retomar a sua original posição de centro-esquerda no espectro político. Mais do que uma análise, expressava um desejo pessoal. Celso Rocha de Barros, em artigo publicado em seguida, rebateu afirmando que para o PSDB não havia mais volta possível às origens. O partido se tornara uma força de contenção da direita propriamente dita. Gostei do argumento do Celso. Realista, pensei: se assim for, o partido continuará a cumprir um papel importante.

Menos de quatro anos depois, difícil não concluir que ambos estávamos enganados. O PSDB nem se estendeu para a centro-esquerda nem serviu de dique eficiente para conter a maré conservadora, com fortes correntes reacionárias, que carregou Jair Bolsonaro ao Palácio do Planalto em outubro de 2018.

Que uma onda à direita vinha crescendo desde 2013/2014, já se sabia. Mas a força e a extensão com que rebentou na praia surpreenderam a todos: o mais desabrido dos deputados direitistas do baixo clero se elegeu presidente; candidatos desconhecidos de direita venceram as eleições para governador nos estados do Rio de Janeiro, de Minas Gerais e de Santa Catarina, além de Rondônia, contra todas as expectativas; um major da Polícia Militar de São Paulo derrotou Eduardo Suplicy na disputa pelo Senado; o PSL, partido até então inexpressivo, elegeu a segunda maior bancada da Câmara, 52 deputados, boa parte deles desconhecida na política – e por aí vai.

Demorei a me dar conta de que a maré conservadora poderia chegar lá. Fui mais sensível aos riscos de um projeto hegemônico do PT, que engendrou uma poderosa máquina de sucção de recursos do Estado para financiar o partido e seus aliados, cooptar a sociedade civil, apoiar governos e partidos amigos na redondeza, com ramificações na África. O mecanismo operava por meio de um conjunto de empresas escolhidas para receber o quinhão maior dos benefícios do governo e, em contrapartida, reinjetar o produto de contratos superfaturados num sistema que corrompeu as instituições do Estado e o sistema partidário como nunca antes na história desse país. Diga-se o que se disser sobre os excessos e abusos da força-tarefa da Lava Jato e do juiz Sérgio Moro – e se deve dizer sem hesitação –, foram eles os principais responsáveis por impedir que a corrupção sistêmica das instituições republicanas continuasse a avançar, dando ao Brasil a chance de limitar o alcance de práticas nas quais todos os partidos, sem exceção, se lambuzaram em maior ou menor grau.

Nas manifestações a favor do impeachment de Dilma Rousseff, passaram-me quase despercebidos sinais claros de que grupos abertamente de direita ganhavam protagonismo. Lembro-me daquele 13 de março de 2016, quando uma multidão se espremeu em vários quarteirões da avenida Paulista (1,4 milhão segundo a PM; 500 mil de acordo com o Datafolha), na maior manifestação de rua desde o movimento das Diretas Já.

Entrei na Paulista pela alameda Campinas e, na esquina, me deparei com um caminhão de som sobre o qual vociferava para uma turma de entusiastas um deputado federal que na época eu mal conhecia: Eduardo Bolsonaro. Sabia dele apenas o suficiente para decidir dar meia-volta e acessar a Paulista por outra rua transversal. Não poderia imaginar que dois anos depois ele seria reeleito deputado federal com a maior votação do país e seu pai se elegeria presidente da República.

Olhando hoje as pesquisas de opinião da época vê-se que teria sido possível perceber que os ventos sopravam à direita. O Datafolha, por exemplo, registrou uma clara predominância de pessoas que se declaravam de centro-direita ou de direita nas pesquisas sobre a opinião dos que participaram das manifestações pelo impeachment. As classes média e alta saíam à rua pela primeira vez: a vasta maioria dos participantes jamais havia participado de um ato público. Monopólio do PT até 2013, a praça pública se tornava definitivamente hostil ao partido de Lula. O mesmo acontecia no meio digital, até então território onde os blogueiros petistas, boa parte organizada e remunerada com recursos oficiais, se moviam com grande vantagem.

Ali, em meio a vastas emoções e pensamentos imperfeitos, eu tinha três certezas: Dilma produzira um desastre econômico, perdera as condições políticas para governar e havia base legal para o impeachment. Seu governo passara da “contabilidade criativa” ao cometimento de infrações graves e reiteradas contra as leis orçamentárias, com inegáveis propósitos eleitorais. Violara a Lei de Responsabilidade Fiscal, usando os bancos federais para financiar despesas do Tesouro, e desrespeitara a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2014, que a obrigava a cortar gastos, aumentar receitas ou ajustar a meta de superávit primário se a execução orçamentária revelasse ser impossível atingi-la. A impossibilidade se tornou evidente a partir do primeiro trimestre, mas o governo acelerou os gastos e adiou a redefinição da meta para depois da eleição, quando admitiu oficialmente que ela seria apenas uma minúscula fração da que havia sido prevista na LDO.

Quem melhor contou essa história foram os jornalistas Claudia Safatle, João Borges e Ribamar de Oliveira em Anatomia de um Desastre. Além de dissecar o cadáver econômico do governo Dilma, o livro desmonta o argumento de que a ex-presidente perdeu o cargo por práticas corriqueiras e triviais.

No entanto, até hoje tenho sentimentos ambivalentes em relação ao impeachment. De um lado, penso que ele evitou que continuássemos a cavar o buraco da crise em caminho de retorno aos anos 80, marcados por desordem fiscal, isolamento do mundo e inflação alta, crônica e crescente. De outro, não tenho dúvida de que contribuiu para a polarização entre a direita bolsonarista e a esquerda petista, ambas agarradas a mitos regressivos, embora não equivalentes.

Politicamente, o impeachment foi um alto negócio para o PT. O partido livrou-se do ônus da crise produzida por seu governo e ganhou terreno na guerra das narrativas com a tese do golpe parlamentar orquestrado pelas elites e da vitimização de Lula.

Como chegamos a esse ponto? É tentador responder com um breve exercício contrafatual. E se o PT não tivesse elegido o PSDB como seu principal adversário, depois de uma transição de poder civilizada e construtiva? E se Lula não tivesse tomado partido a favor de Dilma na disputa com os ministros e economistas ortodoxos que o aconselharam em 2005 a adotar um programa de ajuste fiscal de longo prazo que, à época, importaria em poucos sacrifícios de curto prazo e enormes benefícios a médio prazo? E se os então donos do poder tivessem aprendido a lição do mensalão, em lugar de dobrar a aposta que os levou ao petrolão? E se o PSDB não tivesse, nos estados, se associado às mesmas empresas beneficiadas pelo esquema federal de corrupção? E se tivesse punido exemplarmente Aécio Neves? E se este não tivesse ingressado com ações de anulação de mandato eletivo contra Dilma Rousseff logo após a reeleição dela à Presidência? E se ela não houvesse feito “o diabo” para vencer aquela eleição? E se a elite política do país tivesse compreendido o recado das manifestações de 2013 e promovido uma reforma política que ajudasse na recuperação do prestígio da representação, em vez de se atirar, no ano seguinte, à disputa da mais cara e corrupta campanha eleitoral da história brasileira?

Esse breve exercício contrafatual serve para deixar claro que chegamos ao ponto a que chegamos não por determinação dos deuses da história e sim por uma sequência de escolhas dos principais atores políticos dos últimos trinta anos. Poderia acrescentar ainda outro “e se”, para chamar atenção para a importância do acaso: o atentado contra a vida de Bolsonaro numa etapa crítica da campanha não estava escrito nas estrelas e impulsionou a vantagem que o ex-capitão tinha sobre os demais candidatos do campo antipetista. A facada cristalizou a polarização eleitoral Bolsonaro versus Haddad, logo em seguida oficializado como o candidato de Lula e do PT.

Seguirei daqui em diante, porém, outra linha de argumento, explorando correntes mais profundas que, a meu ver, levaram Bolsonaro ao Palácio do Planalto e a direita ao poder. Elas dizem respeito ao esgotamento dos acordos explícitos e implícitos, predominantes a partir de 1988, sobre a organização e gestão do Estado, da economia e da política.

Acordos não devem ser entendidos como conchavos espúrios. Utilizo o termo para me referir a certos consensos mínimos entre as elites, no plural e em sentido amplo, sobre a organização e gestão do Estado, da economia e da política, considerados suficientemente eficientes e legítimos pela maioria da sociedade.

No Brasil dos últimos trinta anos, esses acordos se construíram dentro dos moldes da Constituição de 1988 e se refizeram à medida que a integração do Brasil ao mundo, a consolidação da estabilidade econômica e a democratização da sociedade brasileira avançavam. A aprovação de diversas emendas à Constituição e de leis complementares expressa a capacidade que o país teve de adaptar o marco legal a esses processos de mudança, não raro contraditórios em suas exigências, sem se desviar do rumo democrático e do compromisso de ampliar o acesso a direitos universais, notadamente na área social.

A democratização, a globalização e a prescrição constitucional em favor da ampliação da cidadania desencadearam uma dinâmica social de expectativas crescentes, em particular depois de virada a página da hiperinflação. Entre o Plano Real e o término do primeiro governo Lula, houve uma evolução satisfatória da capacidade de resposta a essas expectativas, devido a uma sequência não linear, mas contínua, de reformas que construíram melhores instituições nas áreas fiscal, monetária, regulatória e, não menos importante, social.

As condições no momento da largada, na virada dos anos 80 para os anos 90, não prenunciavam sucesso nessa empreitada: hiperinflação, dívida externa “impagável”, isolamento econômico e financeiro em relação ao mundo, governos impopulares e o impeachment do primeiro presidente eleito depois do retorno à democracia.

Se as condições na largada pressagiavam fracasso, as ambições, por sua vez, não eram pequenas: tratava-se de “resgatar a dívida social” e de desconcentrar o poder: de Brasília para estados e municípios, do Executivo para o Congresso, do Estado para a sociedade, criando mecanismos de controle desta sobre aquele. Tudo isso num país historicamente marcado por elevados níveis de pobreza e desigualdade, além de práticas autoritárias e patrimonialistas. Como se fosse pouco, teríamos de cumprir essas ambições contando com um sistema de governo – o chamado presidencialismo de coalização, em ambiente multipartidário – sobre o qual pesava não apenas a opinião negativa então predominante na ciência política, mas também a experiência de crises vividas no período democrático anterior (1945-64).

Contra a opinião conservadora, para a qual a Constituição de 1988 tornava o país ingovernável, e depois de um início trôpego, o Brasil ingressou a partir de 1994 e da vitória sobre a hiperinflação numa trajetória positiva de enraizamento da democracia, forte redução da pobreza, alguma diminuição da desigualdade e melhoria da governabilidade.

Ocorre que, a partir de certo momento, o fosso entre as expectativas da sociedade e a capacidade de resposta dos governos se tornou muito grande, menos por problemas externos ao país e mais pela interrupção, quando não pela reversão, da sequência de reformas iniciada com o Plano Real.

A vala das três crises simultâneas (econômica, política e moral) que acometeram o país a partir de 2014 começou a ser cavada, sem que a maioria se desse conta, na esteira do ufanismo despertado pela descoberta das reservas do pré-sal. O incrementalismo reformista voltado à criação de instituições favoráveis ao desenvolvimento econômico e social sustentado foi substituído por um voluntarismo falsamente desenvolvimentista, apressado e míope, além de condicionado por um projeto de poder em que se articulavam o capitalismo de compadrio, a politização dos programas de transferência de renda e a hegemonia de um partido.

Passamos da euforia do pré-sal à depressão provocada pelo tombo da economia a partir de 2014, a mais profunda e prolongada recessão já registrada nas estatísticas oficiais do país. A frustração de expectativas que ela provocou foi proporcional à ascensão social que conheceram amplas camadas de menor renda no período anterior. A mobilidade social estava assentada em bases não muito sólidas, porque excessivamente dependentes do endividamento das famílias, estimulado pelo governo.

A “nova classe média” que emergira nos anos Lula teve seus sonhos subitamente interrompidos, sem aviso prévio. Menos atingidos pela crise foram os que continuaram pobres, com a renda dependendo em grande medida das transferências governamentais feitas, entre outros programas, pelo Bolsa Família, produto da junção e expansão de programas criados no governo Fernando Henrique Cardoso.

Mesmo antes de a economia despencar, já era possível observar a acumulação de frustrações com a oferta de serviços públicos. O caso da saúde é interessante. Dados de pesquisas Ibope-CNI mostram que a aprovação ao Sistema Único de Saúde, o SUS, começa a declinar sistemática e significativamente a partir de 2011, passando da faixa entre 40% e 50% para a faixa entre 10% e 20%. Minha hipótese é que a piora na avaliação popular do SUS se deveu a um duplo processo. De um lado, a um fenômeno bem conhecido dos cientistas sociais: uma vez atendidas expectativas básicas de uma população antes sem acesso a determinados bens e serviços, surgem no momento seguinte novas e mais exigentes expectativas dessa mesma população sobre a quantidade e qualidade do que lhe foi ofertado inicialmente. De outro, ao fato de que o SUS não produziu respostas satisfatórias aos problemas de governança e gestão do sistema à medida que ele foi se ampliando e tornando mais complexo.

Creio que essa hipótese ajuda a explicar a frustração de expectativas geradas com a expansão da oferta de outros serviços públicos essenciais, como a educação. Tampouco nesse caso houve a passagem da quantidade à qualidade, por assim dizer, ao menos não na velocidade e escala esperadas.

A frustração é ainda maior entre as camadas da população que melhoraram a sua renda e, em vista de uma educação pública insatisfatória, se veem impelidas a matricular seus filhos e filhas em escolas privadas, com forte impacto sobre o orçamento familiar. Processo análogo se dá na área da saúde: a demora no acesso a médicos especialistas e tratamentos de maior complexidade na rede pública leva famílias “remediadas” a fazer um enorme sacrifício financeiro para comprar planos privados.

Estamos falando de um contingente crescente de indivíduos que, pouco a pouco, a partir de 1994, à medida que o país encontrou um rumo positivo, ganhou a consciência de que são cidadãos portadores de direitos e, ao mesmo tempo, contribuintes. Sabedores do esforço tributário que o Estado lhes exige, se veem, no entanto, compelidos a comprar no mercado privado serviços que o Estado estaria constitucionalmente obrigado a lhes oferecer. O mal-estar com essa “contradição” veio à tona nas manifestações de 2013, num contexto em que a corrupção passava a ser percebida como um dos problemas públicos prioritários. Cresceu o sentimento de que “eles” (o Estado, a classe política, o governo) prometem, me cobram, eu pago (embora não receba), e eles ainda me roubam. Senti isso na pele algumas vezes, ao tentar explicar para motoristas de táxi e outros representantes da classe média que a “coisa não é tão simples assim”. Acabei por me calar.

Na esteira de sucessivos escândalos, avolumou-se o desprestígio das instituições políticas, em particular dos partidos e do Congresso – e dos personagens que neles habitam, os políticos profissionais. O desprestígio se transformou em rechaço depois do petrolão.

Se de um lado a sucessão de escândalos demonstrou o aprimoramento da capacidade do Estado de identificar e combater a corrupção, de outro pôs a nu o que os observadores mais atentos já sabiam: à medida que as campanhas eleitorais ficaram mais caras e competitivas, mais incestuosas se tornaram as relações entre partidos, políticos e empresas doadoras. Como o papel aceita tudo e a capacidade de fiscalização da Justiça Eleitoral é limitada, as prestações de contas eleitorais viraram um faz de conta.

A corrupção deixou de ser prática frequente para se tornar parte intrínseca da representação política. Não é que todos os políticos viraram corruptos, e sim que as chances eleitorais e o poder dentro dos partidos e junto aos governos passaram a depender cada vez mais do toma lá dá cá entre representantes políticos – e seus indicados para cargos públicos – e empresas interessadas no superfaturamento de contratos com o setor público. Em contraste, afrouxou-se o laço entre os partidos e os candidatos e os eleitores, em especial na representação parlamentar. A proliferação de siglas, a dificuldade de se informar sobre quem é quem nas listas de candidatos, as distorções criadas pelas coligações nas eleições para os legislativos (voto no meu partido preferido e sem saber elejo um candidato do partido coligado) – são muitos os fatores que contribuem para a má qualidade da relação entre eleitor e eleito. Nesse ecossistema floresceram espécimes como Eduardo Cunha, que se adaptam melhor à transformação da política em negócio financiado com recursos do contribuinte.

Se no caso da educação e da saúde se pode falar em frustração de expectativas, no da segurança pública o que existe é o medo da escalada da violência. Sim, há uma indústria que se alimenta do pânico em matéria de segurança pública. Mas os dados não mentem. A taxa de homicídios quase triplicou desde que começou a ser medida, em 1979. Era de 11 mortes por 100 mil habitantes em 1980; superou os 30 casos por 100 mil habitantes em 2017. Nessa área, o país regrediu inequivocamente, embora alguns estados tenham sido capazes de reduzir a taxa de homicídio.

A deterioração da segurança pública é filha da expansão do narcotráfico e de uma série de negócios ilícitos comandados por organizações criminosas e milícias igualmente criminosas, ambas com a conivência da banda podre da polícia.

Os governos do PSDB e do PT tardaram a se dar conta de que o problema exigia uma resposta coordenada e estratégica. O primeiro Plano Nacional de Segurança Pública surgiu em 2000, quando a taxa de homicídio já atingia 25 para um grupo de 100 mil habitantes (seu maior salto se deu nos anos 80). Até então o governo federal havia optado por se omitir e não meter a mão numa cumbuca que presumia ser de responsabilidade exclusiva dos estados. De lá para cá, houve melhoras pontuais, mas a tendência de deterioração da segurança pública seguiu seu curso.

Os defensores dos direitos humanos, entre os quais me incluo, demoramos a nos dar conta de que a criminalidade havia mudado de escala e de patamar, em termos organizacionais e financeiros, afetando em particular as periferias das grandes cidades. Os moradores dessas áreas se tornaram reféns das organizações criminosas – ora brutais, ora benfeitoras, mas sempre exigindo em troca a submissão absoluta – e vítimas preferenciais dos ineficazes e não raro truculentos enfrentamentos da polícia com aquelas organizações.

Nas periferias das grandes cidades (e nos morros cariocas) impera a lei do cão. No tiroteio pesado da guerra pelo controle do negócio das drogas e contra as drogas, morrem quase sempre jovens, negros e pobres. O drama é mais visível nas cidades mais populosas, mas se espalhou pelo país, em especial com a disseminação do crack. Contra esse pano de fundo, se entende por que as forças abertamente de direita voltaram ao poder, com protagonismo militar.

Se no passado a direita encontrava base importante entre os católicos, hoje ela volta ao poder com o apoio maciço dos evangélicos. Com recursos, acesso a canais de tevê e rádio e número crescente de adeptos, as igrejas neopentecostais foram aonde o povo está. Existe manipulação da fé e abuso de poder econômico, mas compreender o sucesso dessas igrejas implica reconhecer o papel que desempenham na formação de redes de solidariedade que, além de estabelecerem laços comunitários, oferecem melhores oportunidades de obtenção de emprego e de renda aos fiéis. Em muitas periferias onde a presença do Estado é precária, a única alternativa ao crime organizado é a igreja evangélica. É nesse terreno que a moral conservadora conquistou corações e mentes.

A despeito da grande presença de militares no governo Jair Bolsonaro e da aliança conservadora que em torno dele se formou, não estamos de volta a 1964 nem na iminência de regressar a um regime autoritário.

Isso não significa que não devamos estar alertas contra retrocessos – em algumas áreas já visíveis –, acarretados pelas pulsões autoritárias e retrógradas de setores do novo governo que não raro encontram apoio no gabinete presidencial.

Tão importante quanto isso, no entanto, é construir um acordo entre as forças de oposição sobre uma nova agenda de mudança, que responda ao esgotamento do ciclo aberto pela Constituição de 1988. Isso em nada enfraquece a disposição para defender o núcleo do que há de mais precioso na Constituição: os dispositivos que consagram e asseguram uma ordem política livre e democrática e oferecem instrumentos de defesa dos interesses difusos. Tampouco significa largar no meio da estrada as conquistas obtidas com a construção de sistemas públicos de educação e saúde, complementados por sistemas privados.

Não creio no pecado original, mas penso que os constituintes cometeram equívocos no desenho dos regimes fiscal, tributário e federativo, além de amarrar a administração pública à camisa de força de um modelo de estado burocrático.

O país não se tornou “ingovernável”, como profetizou o então presidente José Sarney. Nem estavam “de porre” os constituintes, como à época ironizou Mario Henrique Simonsen. O tempo, porém, se encarregou de mostrar que tais críticas, indicativas de certa antipatia pela dinâmica social e política de uma sociedade que se democratizava, não estavam destituídas de algum fundamento.

É preciso incorporar essas críticas não para retroceder à oferta centralizada, restrita e seletiva de serviços públicos de antes de 1988, mas, pelo contrário, para assegurar que a expansão desses serviços se dê de forma financeiramente sustentável. Não sendo mais possível ampliar a carga tributária para financiá-los, nada é tão importante de agora em diante quanto torná-los mais eficientes e menos vulneráveis à captura por interesses corporativos e por demandas de camadas de renda mais alta (como é frequente no caso do SUS, sobretudo por meio de decisões liminares do Judiciário).

Além de mais eficiente, a oferta desses serviços precisa se tornar mais eficaz na redução dos desequilíbrios sociais e regionais do país. Isso requer maior coordenação federativa, o que parecem não perceber os que acreditam que mais e mais descentralização seja a cura para todos os males do país.

Não há uma separação rígida entre os problemas econômicos e os sociais do Brasil. Em geral, o mundo intelectual e político se divide entre os que olham para um lado dessa equação e não olham para o outro. Sem promover a convergência desses dois olhares, o país terá dificuldade para retomar o rumo do desenvolvimento sustentado e da construção de uma sociedade mais justa.

Peço alguns parágrafos de paciência ao leitor para explicar esse ponto.

O regime fiscal e tributário desenhado pela Constituição de 1988 gerou desequilíbrios estruturais nas contas públicas, ao transferir receitas para estados e municípios, mas manter, sob a responsabilidade da União, despesas que só fariam crescer nos anos seguintes, em particular com a Previdência. A ponto de os benefícios previdenciários consumirem no presente, a despeito de reformas pontuais feitas ao longo dos anos, cerca de 50% do orçamento do governo federal.

Em proporção do PIB, o Brasil gasta com benefícios previdenciários o mesmo que o Japão, país que tem uma porcentagem pelo menos duas vezes maior de idosos. A distribuição desses benefícios, em grande medida financiada com recursos de todos os contribuintes, tem viés regressivo no Brasil, ou seja, favorece os indivíduos de maior renda que se aposentam (precocemente) pelo INSS e, em especial, os servidores públicos, membros de carreiras ligadas ao Judiciário e ao Ministério Público e ao Legislativo, que se retiram para a inatividade com aposentadoria integral com pouco mais de 50 anos, em média. Cidadã na afirmação dos direitos sociais, civis e políticos, a Constituição de 88 também consagrou, contraditoriamente, privilégios de corporações do setor público.

Por causa das crescentes obrigações de gastos, a União passou a recorrer a aumentos sucessivos de tributos não compartilhados com estados e municípios, as chamadas contribuições sociais. Com isso, a carga tributária total aumentou de 25% para 32% do pib entre 1993 e 2003, na era FHC, permanecendo ao redor desse patamar nos anos subsequentes, o que coloca o Brasil na liderança dos países que mais tributam na América Latina e além da média dos países mais desenvolvidos (acima, por exemplo, de Suíça, Coreia do Sul e Canadá). Ao rápido crescimento da carga de impostos correspondeu uma piora na qualidade do sistema tributário, com o aumento da participação dos tributos em cascata. Ao mesmo tempo, com os gastos correntes (incluindo pessoal, da ativa e aposentados) consumindo partes cada vez maiores do orçamento, os recursos para o investimento público minguaram, criando mais um freio ao aumento da produtividade e ao crescimento da economia.

Já os estados, também premidos por gastos crescentes, se lançaram a explorar as novas bases do ICM, transformado em ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços), depois de 1988. Impuseram tributação pesada sobre telecomunicações, energia, combustíveis e transportes, onerando insumos cujos custos afetam o conjunto da economia. Simultaneamente, engajaram-se na chamada “guerra fiscal”, um leilão de incentivos fiscais que no agregado solapou as bases tributárias do ICMS e distorceu as decisões de investimento, com prejuízo para a produtividade e o crescimento.

A prevalência da competição sobre a cooperação no federalismo construído a partir de 1988 limitou a capacidade do Estado de traduzir o aumento da carga tributária em serviços de melhor qualidade para a população, apesar da ampliação do acesso e da cobertura nas áreas de saúde e educação.

A falta de coordenação entre as três esferas de governo se agravou em razão do estímulo à criação de novos municípios, sem critérios e restrições adequadas – falha só corrigida com emenda constitucional aprovada em 1996. Houve uma explosão do número de governos locais nos primeiros oito anos de vida da Constituição. Aproximadamente 25% dos municípios hoje existentes surgiram depois de 1988, cerca de 90% deles com menos de 20 mil habitantes, a quase totalidade sem receita própria sequer para cobrir os gastos com a máquina pública. Ou seja, parte importante das transferências de recursos federais via Fundo de Participação dos Municípios serviu antes para financiar a criação de governos locais do que para melhorar a qualidade de vida dos habitantes daquelas cidades.

Os problemas decorrentes da dificuldade de coordenação federativa aparecem com clareza nas principais regiões metropolitanas do país, onde há grande concentração populacional, contiguidade dos territórios e infraestruturas, mas não uma autoridade pública capaz de articular as políticas de mobilidade urbana, habitação, saneamento, saúde etc. Essa situação cria mal-estar social e o que os economistas chamam, no seu jargão (que me perdoe o leitor), de “externalidades negativas”, que afetam o investimento e a produtividade.

Submetida a uma carga elevada de tributos e a um sistema complexo de tributação, a estrutura produtiva tendeu a se polarizar entre um conjunto de empresas dominantes em seus mercados, posição reforçada por barreiras de proteção que sobreviveram à abertura econômica iniciada nos anos 90, e milhares de micro e pequenas empresas que sobrevivem em condições desfavoráveis ao seu crescimento. Isso, a despeito da adoção de regimes especiais de tributação, como o Simples. Sem remover os obstáculos tributários e de acesso ao crédito para que startups possam crescer e se desenvolver, a inovação no Brasil permanecerá estruturalmente prejudicada.

Entre as forças democráticas, o primeiro a se dar conta da necessidade de reformar a Constituição foi o governo de Fernando Henrique Cardoso. O sucesso do Plano Real, ao cortar drasticamente a corrosão inflacionária das despesas públicas previstas no orçamento, pôs a nu os desequilíbrios fiscais que os críticos conservadores da Constituição anteviam. A visão sobre os problemas fundamentais para a retomada do crescimento sustentado não se limitava ao diagnóstico sobre o desequilíbrio fiscal. Incorporava igualmente a reflexão crítica sobre o modelo de industrialização por substituição de importações, cujo dinamismo se esgotara havia muito tempo. Dar um fim à era Vargas, como enunciou FHC ao início de seu mandato, significava abrir a economia e reduzir drasticamente a presença do Estado na esfera da produção de bens e serviços.

Transformado em união aduaneira, o Mercosul se constituiu em prioridade da política externa do Brasil, não por afinidade ideológica com os governos de turno nos países-membros, mas pela compreensão de que ele serviria de base para voos mais amplos na integração competitiva das empresas brasileiras na economia global, além de favorecer a consolidação de um espaço democrático no Cone Sul, depois de um ciclo de regimes autoritários na região nos trinta anos anteriores.

Igualmente importante foi o fortalecimento das políticas sociais de caráter universal, especialmente educação e saúde, de acordo com comandos inscritos na Constituição de 1988 e com o ideário social-democrata então sustentado pelo presidente e seu partido.

O ideário produziu resultados. O Sistema Único de Saúde saiu do papel. O gasto em saúde cresceu quase duas vezes acima do pib entre 1995 e 2002, resultando em forte ampliação da atenção básica, sobretudo por meio do Programa de Saúde da Família, levando à queda drástica da mortalidade materna e infantil. Na educação fundamental, a cobertura se generalizou, e os maiores avanços se verificaram nos estados e municípios mais pobres, onde cerca de 30% das crianças de 7 a 14 anos ainda se encontravam na escola.

Institucionalizaram-se também as políticas assistenciais. Foi extinta a Legião Brasileira de Assistência, símbolo de uma concepção paternalista da relação entre o Estado (personalizado na figura da primeira-dama) e a “população carente”. Implementou-se a Lei Orgânica da Assistência Social e criou-se uma rede de proteção social articulada por programas de transferência de renda pautados por critérios objetivos e, na maioria dos casos, condicionados a compromissos dos beneficiários com determinadas contrapartidas, como a matrícula de filhos na escola.

Não menos importante na redefinição do modo de relação entre o Estado e a sociedade na área social foi o programa Comunidade Solidária, ideia de uma primeira-dama que tinha horror a essa designação, a antropóloga Ruth Cardoso.

O conjunto da obra do governo FHC na área social valeu ao Brasil o prêmio Mahbub ul Haq, em homenagem a um economista paquistanês, criador do Índice de Desenvolvimento Humano. Entre 1992 e 2002, fomos um dos países que mais galgaram posições no ranking do IDH.

Digo tudo isso não para enaltecer retrospectivamente um governo do qual me orgulho de ter feito parte e que, a meu ver, deixou um legado positivo ao país, sobretudo quando avaliado à luz das dificuldades enfrentadas à época.

Digo isso porque é oportuno fazê-lo num momento em que, de um lado, o PT se agarra ao nacional-estatismo na economia e não se liberta dos seus laivos “chavo-castristas” e, de outro, com Bolsonaro na Presidência, o liberalismo econômico volta à agenda pública, mas desacompanhado da social-democracia e de mãos dadas com uma ideologia conservadora marcadamente iliberal, além de conflitante com o caráter laico do Estado e o conhecimento científico. Na sua denúncia contra o “alarmismo climático”, o populismo anticientífico não é um pormenor. Somado aos interesses dos setores atrasados do agronegócio e a uma visão ultrapassada do interesse nacional, compõe uma mistura tóxica que ameaça as chances de desenvolvimento do Brasil. Sobre essas e outras ameaças, o liberalismo instalado no governo Bolsonaro permanece silente.

O ministro Paulo Guedes gosta de embrulhar os governos de FHC e do PT no mesmo pacote para designá-los social-democratas e atacá-los como se fossem uma só e mesma coisa.

A periodização que faz da história política recente serve ao propósito de fazer de sua gestão uma espécie de marco zero do liberalismo econômico no Brasil em período democrático. Faz tábula rasa do passado, como o PT fez ao chegar ao poder. Para Lula e seu partido, nada se havia feito pelo “social” (se não desde Cabral, pelo menos desde Getúlio Vargas). Para Guedes, a modernidade do Estado e da economia terá agora seu momento inaugural. Paradoxalmente, a manobra retórica do ministro da Economia alivia a carga sobre o PT, ao deixar na penumbra o tamanho da regressão antirreformista que pouco a pouco se tornou dominante no governo petista. Leva assim, inadvertidamente, água ao moinho doido de uma extrema direita para a qual todos aqueles do centro até a esquerda do espectro político são comunistas, designação que desencadeia um discurso de ódio inaceitável numa democracia.

Se a intenção for fazer o bom debate com a direita liberal, não há por que não reconhecer que o esforço reformista do governo FHC na modernização do Estado e da economia se mostrou insuficiente e gerou efeitos colaterais negativos sobre o peso e a qualidade do sistema tributário, como já apontei. Insuficiente porque não logrou produzir um regime fiscal adaptado às tendências demográficas de longo prazo (a reforma da Previdência ficou aquém do necessário, embora a introdução do fator previdenciário tenha evitado uma deterioração mais rápida do INSS) nem mudanças mais profundas no modelo burocrático do Estado (por batalhas perdidas no Congresso ou no Judiciário em torno de emendas constitucionais que visavam a flexibilização do regime jurídico único e da estabilidade no serviço público).

Por outro lado, não foram poucas nem pequenas as reformas institucionais do aparelho do Estado, na sua relação com o setor privado e a sociedade: com o fim de monopólios estatais e o nascimento de agências setoriais independentes (sem interferência política enquanto durou o governo FHC), criaram-se capacidades públicas adequadas à regulação de serviços essenciais em uma economia de mercado; com a instituição das Organizações Sociais abriu-se o terreno para a incorporação de entidades de direito privado na gestão de equipamentos na área da saúde, da educação e da cultura, sem prejuízo do acesso livre e gratuito aos serviços prestados.

Na direção oposta, ou seja, do bom debate com a social-democracia de esquerda, tampouco se deve deixar de reconhecer a insuficiência dos avanços na ampliação da cobertura e da qualidade dos sistemas públicos de educação, saúde e assistência e de medidas para corrigir a regressividade do sistema tributário.

A pergunta cabível, para um lado e para o outro, é se teria sido possível, naquelas circunstâncias históricas, uma combinação mais virtuosa, embora não isenta de tensões e contradições, entre liberalismo e social-democracia, as duas almas que animaram as ações de governo nos mandatos de FHC. Seja qual for a resposta de cada um, não pode haver dúvida de que foram anos de disseminação e fortalecimento de uma cultura política democrática (da qual a transição para o governo Lula deu mostras inequívocas) e de respeito a valores universais, a começar pela democracia e pelos direitos humanos. Fosse só por isso, o legado dos governos de FHC já seria uma referência essencial para orientar o país na atual quadra histórica.

Considerado isoladamente, o liberalismo encarnado por Guedes e sua equipe apresenta um diagnóstico dos problemas fundamentais da economia brasileira do qual me parece difícil discordar. O ministro está correto ao apontar o desarranjo fiscal – expresso no crescimento ininterrupto da dívida pública na proporção do PIB – como o desafio imediato a ser enfrentado, bem como em assinalar que a chave do crescimento sustentado está no aumento da produtividade, que permaneceu virtualmente estagnada nos últimos trinta anos, a despeito de variações cíclicas e setoriais.

Não resta dúvida de que o estímulo à produtividade implica reduzir a intervenção discricionária e o peso do Estado sobre o setor privado. A tarefa é urgente porque o potencial de crescimento da economia brasileira dependerá cada vez mais de incrementos da produtividade, uma vez que de agora em diante já não contaremos mais com o chamado bônus demográfico e ingressaremos, com o rápido envelhecimento populacional, em fase de redução da parcela de indivíduos economicamente ativos na população total.

Nesse quadro, compreende-se ainda melhor por que a reforma da Previdência é tão importante. Não menos importante será, uma vez contido o crescimento das despesas, reduzir proporcionalmente a carga tributária. É quase inimaginável a ampliação da base de empresas capazes de se integrar competitivamente na economia global, condição necessária para a ampliação da oferta de empregos de melhor qualidade para os trabalhadores, se o Brasil se mantiver como o país de renda média com mais elevada carga tributária do planeta.

A existência desses pontos de coincidência não deve, porém, obscurecer os problemas do liberalismo de Guedes, agravados pelo conservadorismo do governo do qual faz parte.

A importância atribuída ao ajustamento do tamanho do Estado para fins de liberação do potencial de investimento do setor privado não encontra correspondência em preocupação equivalente com a construção das condições para que os benefícios de uma nova e desejável fase do desenvolvimento do Brasil sejam abrangentes e sua distribuição se dê de forma mais equitativa possível.

É forte a inclinação do novo governo a ver na regulação pública antes um desestímulo à iniciativa privada do que uma necessária proteção ao interesse da sociedade. À luz do que aconteceu em Mariana e novamente em Brumadinho, nem é necessário insistir muito nos riscos dessa preferência ideológica.

Tampouco se pode fazer vista grossa para o desafio de incorporar amplas camadas de trabalhadores a uma economia que, para crescer, terá de absorver doses bem maiores de tecnologia.

Num país em que ainda predominam trabalhadores de baixa qualificação profissional e com insuficientes anos de escolarização, salta aos olhos, na agenda de políticas do novo governo, a ausência da educação em geral – e da educação profissional em particular. O Ministério da Educação foi entregue à ala olavista, para a qual o grande desafio da educação brasileira é “combater com denodo o marxismo cultural”. Quanto à educação profissional, longe de mim defender os privilégios do Sistema S, mas ele não pode ser visto apenas ou sobretudo como fonte de custo sobre a folha de salários, como deixam entrever as declarações de Guedes a esse respeito.

Chama atenção, também, a preocupação unilateral do novo governo com a flexibilização da legislação trabalhista. Ao ampliar o espaço do negociado sobre o legislado, a reforma das relações de trabalho aprovada no governo Michel Temer representou uma atualização indispensável do marco legal vigente nessa área. Falta porém a reforma sindical, questão que não está no horizonte do novo governo, mas que deveria estar na agenda de quem acredita que a representação coletiva dos trabalhadores é parte integrante de qualquer projeto ou modelo de capitalismo democrático civilizado. Em termos práticos, é indispensável a construção de uma nova base de financiamento dos sindicatos (que não seja compulsória, mas não desestimule a contribuição voluntária) e o rompimento das amarras setoriais e territoriais que limitam a liberdade de organização sindical.

A ausência de referências à questão da equidade no dicionário do atual governo é notável porque ela nada tem de “socialista”. Ao contrário, filia-se à ideia de que, na vida coletiva, a liberdade só se realiza plenamente se houver uma busca incessante pelo nivelamento das oportunidades de desenvolvimento dos indivíduos. Isso uma economia de mercado não é capaz de atender por si mesma. Tal objetivo requer políticas públicas que, sendo financeiramente sustentáveis e periodicamente avaliadas, promovam a cooperação entre o Estado e a sociedade civil.

Em lugar da preocupação com a equidade fiscal e a melhoria da eficiência da prestação de serviços públicos essenciais à população, em particular a de menor renda, o que se vê é uma obsessão por guerras culturais e pela “despetização” da administração pública federal. Tem-se a impressão de que, à falta de uma agenda de trabalho para lidar com os problemas reais, o governo atual optou deliberadamente por fazer agitação político-ideológica em áreas em que um mínimo de espírito republicano, se não de realismo, impõe a continuidade e o aperfeiçoamento de políticas de Estado.

A educação é uma dessas áreas. Nela, desde os oito anos da gestão de Paulo Renato Souza, o mais duradouro ministro da Educação em períodos democráticos, estabeleceram-se políticas nacionais de financiamento do ensino básico, seleção e distribuição dos livros didáticos e avaliação do desempenho das escolas públicas e privadas, em moldes adequados à descentralização de receitas e competências para governos estaduais e municipais. No período mais recente, o processo de estruturação de políticas de Estado para a área de educação se desdobrou na criação da Base Nacional Comum Curricular para a educação infantil e o ensino fundamental e no projeto de reforma do ensino médio, etapa da formação escolar na qual tem sido mais tímidos os avanços em termos quantitativos e qualitativos.

Junto com o processo de estruturação de políticas de Estado, fortaleceram-se organizações e movimentos da sociedade civil comprometidos com o objetivo de superar mais rapidamente os grandes desafios da educação brasileira (cobertura, qualidade e equidade na oferta do ensino básico, a começar da primeira infância) e fazer da escola um ambiente de efetiva redução das desigualdades de oportunidade determinadas pelo local de nascimento e pela família de cada indivíduo.

Ignorar ou, pior ainda, repelir as organizações e os movimentos da sociedade civil brasileira que incidem sobre a concepção, avaliação e implementação de políticas públicas é um grave equívoco se o objetivo for atender às necessidades reais dos cidadãos brasileiros, em especial os mais pobres, independentemente de suas crenças religiosas, orientação sexual ou preferência política.

O fato de que parte da sociedade civil se tenha deixado cooptar pelos governos petistas não diminui a importância da interlocução e cooperação entre o Estado brasileiro e os movimentos e organizações não governamentais dedicados a políticas públicas. Nem os imperativos inquestionáveis da moralidade pública na transferência de recursos do governo a ONGs justificam a decisão de submeter todas elas, recebam ou não dinheiro público, à supervisão do Palácio do Planalto.

O desenvolvimento diz respeito também a padrões de convivência civilizada que não derivam automaticamente do nível de renda per capita de uma sociedade. Dependem fundamentalmente da segurança com a qual o conjunto dos cidadãos pode exercer os seus direitos políticos e civis, sem o que a maior independência econômica dos indivíduos não se traduz em maior liberdade.

Para o liberalismo representado por Guedes essas preocupações são de segunda ordem. Saindo do plano conceitual para entrar na história, não creio ser ofensivo lembrar que, no Chile, convictos liberais econômicos egressos da Universidade de Chicago se aliaram a católicos ultraconservadores e militares autoritários para, sob o porrete ditatorial do general Augusto Pinochet, fazer do país uma economia de mercado, mandando às favas quaisquer escrúpulos de consciência em relação à sistemática violação de direitos humanos. Mas, de fato, o Chile se desenvolveu sob os governos de centro-esquerda da Concertación. Sem voltar ao modelo de desenvolvimento autárquico, muito menos à irresponsabilidade fiscal e monetária do governo Allende, eles consolidaram a democracia e promoveram a mais acentuada redução do nível de pobreza entre todos os países latino-americanos.

O tempo passou e todos aprendemos (tomara) o valor universal da democracia. Não pode passar despercebida, porém, a desenvoltura com a qual os Chicago oldies aderiram à candidatura e depois ao governo de um político que se projetou fazendo elogios a ditadores e ditaduras que violaram os direitos humanos, além de declarações racistas e homofóbicas.

É cedo para predizer os rumos do governo Bolsonaro. Prevalecerão as forças do liberalismo econômico e da racionalidade burocrático-militar sobre o conservadorismo militante e não raro insensato? Em que extensão o governo testará os limites constitucionais da proteção a direitos civis e políticos? Como reagirá o Supremo Tribunal Federal nesses casos? Qual papel terá o ministro Sérgio Moro, que ao aceitar a nomeação assumiu compromisso público com a proteção das minorias?

Não temos respostas para todas essas perguntas, mas uma coisa é certa. É hora de definir com mais clareza a identidade de valores e visões que poderá organizar uma alternativa política à direita liderada por Bolsonaro e à esquerda ainda hegemonizada pelo PT. É um desafio que ultrapassa as fronteiras do PSDB e pode vir a redefinir o mapa partidário.

*Sergio Fausto é cientista político e superintendente da Fundação FHC


Maria Cristina Fernandes: Previdência testará serventia de Bolsonaro

Ambições de Moro, Guedes e caserna superam trapalhadas

A reforma da Previdência do governo Jair Bolsonaro foi talhada para arregimentar o apoio dos trabalhadores mais pobres dos centros urbanos contra a elite do funcionalismo. É este o fundamento da progressividade da proposta que reduziu a alíquota dos servidores públicos e dos trabalhadores da iniciativa privada com rendimento até um salário mínimo para 7,5% e aumentou aquela de carreiras de Estado com rendimentos alinhados pelo teto para 16,8%.

Esta será a propaganda que escorregará para a fantasia se incorporar o discurso de que a alíquota máxima será de 22%. Este percentual apenas incidirá para aqueles que recebem acima do teto de R$ 39 mil, só ultrapassado com penduricalhos que não entram na base de cálculo da contribuição previdenciária.

Entre aqueles que serão onerados com alíquotas de 16,8% estão servidores responsáveis pelo caixa do Estado (Receita, Tesouro e Banco Central), pelo sistema de Justiça (juízes, procuradores e defensores públicos) e pelas castas mais altas do Legislativo. Contra esta tropa, a proposta tem as digitais militares e a aposta redobrada na mobilização pelas redes sociais.

Entre os militares da reserva que compõem o primeiro escalão do governo, há generais que recebem aposentadorias de R$ 12 mil, o equivalente a menos de um terço dos rendimentos previdenciários da elite do funcionalismo alvo da proposta.

Ao reduzir, ainda que simbolicamente (meio ponto percentual), a alíquota dos trabalhadores de mais baixa renda, o presidente Jair Bolsonaro se dirige às periferias urbanas que engrossaram a votação do PT em 2018, e busca incorporá-las à sua base de apoio. Precisará delas para enfrentar desgastes em setores do seu próprio eleitorado que viu seu discurso de campanha envelhecer precocemente.

Ao manter a equiparação da idade mínima dos trabalhadores dos setores público e privado como cerne da proposta, o presidente apostará no discurso da justiça social para reverter o desgaste. Não terá, no entanto, facilidade em emplacar o figurino Robin Hood. Enfrentará o dissabor de trabalhadores rurais que terão que comprovar contribuição de 20 anos para uma aposentadoria hoje automaticamente concedida por idade. Encontrará ainda a resistência à elevação de 65 anos para 70 anos para o acesso ao Benefício de Prestação Continuada que atende os 3 milhões de idosos mais vulneráveis da população.

A proposta foi hábil em três lances. Mitigou os danos sobre categorias com poder de mobilização urbano, como professores e policiais. Protegeu os militares das barganhas corporativas, jogando as mudanças no seu regime para uma proposta posterior. E, finalmente, ao mandar para a legislação complementar as regras da previdência privada, também adiou o embate entre fundos de pensão de servidores e os bancos gestores de fundos de previdência.

A proposta é talhada para o embate entre redes sociais, de um lado, corredores e galerias do Congresso, espaço por excelência das corporações, do outro. O espetáculo da demissão do secretário-geral da Presidência, no entanto, mostra um golpe no modelo virtual ainda a ser superado. Um governo minoritário não é capaz de se mover sem acordos no Congresso e não é possível mediá-los quando a política é operada "on the records".

Michel Temer perdeu qualquer capacidade de operar quando teve seus diálogos com Joesley Batista expostos à luz do dia. A diferença é que a iniciativa de exibi-los partiu de um réu acuado. No governo Bolsonaro, é uma manobra apadrinhada pelo próprio presidente. Nem se o PSL fosse um partido de anjos teria chance de dar certo.

A aposta redobrada nas redes terá a 'prensa' como órgão auxiliar de sua articulação política. A surpreendente companhia feita pelo ministro da Economia ao colega da Justiça na apresentação do pacote de combate à violência e à corrupção mostra que ambos esperam que a tramitação conjunta dos projetos lhes traga benefícios mútuos.

Verbalizado ainda na transição, por Paulo Guedes, o modelo da 'prensa' parte do pressuposto de que os parlamentares não negariam reformas a um governo intransigente na defesa da moral pública. O novo Congresso ainda não havia tomado posse quando o filho mais velho do presidente se tornou vítima desse alçapão. Foi apenas a primeira. A exibição do laranjal do PSL mostrou que o partido de Bolsonaro só contribuiu com a renovação das fichas corridas do Congresso.

O enfraquecimento de Bolsonaro levou Moro a transformar o combate ao caixa dois de eixo fundamental em acessório, enferrujando precocemente a 'prensa'. O ministro deixou seu pacote refém da crítica de que tem visão unilateral do combate à violência. Credita-o mais ao endurecimento das penas do que à transparência das políticas de segurança pública e ao combate da corrupção policial.

A aliança entre Moro e Guedes ainda cobrará do ministro da Justiça a defesa de uma proposta que atinge os benefícios previdenciários de sua base no Judiciário e no Ministério Público. O ministro conta, no entanto, com o apoio de fatia das redes sociais bolsonaristas que se afastaram do presidente mas mantêm sua aposta no Partido da Justiça e em suas pretensões de poder. A aliança com os ministros da caserna é nítida no entrosamento com o qual incorporaram o combate ao narcotráfico à política de segurança nacional, ícone do alinhamento militar entre Brasil e Estados Unidos.

A dobradinha entre Moro e Guedes mostra que as ambições deste governo ultrapassam as trapalhadas da família Bolsonaro. Juntos, abriram frentes de batalha contra o Sistema S, contra os adversários da Lava-Jato e, agora, se insurgem contra as castas da Previdência. Compraram mais inimigos do que a mobilização política do governo é capaz de enfrentar. Para lhes ser útil, Bolsonaro terá que ser capaz de mobilizar a audiência.

No melhor dos cenários, a reforma da Previdência, vai operar uma mudança na base de apoio bolsonarista semelhante àquela do governo Luiz Inácio Lula da Silva. No pior, cederá espaço à aliança entre a caserna e Moro, que usufruirá da prerrogativa de liderar um Estado policial que prescinde das baionetas para se impor.


Samuel Pessôa: A Previdência em números

Entre 2016 e 2018, despesa, incluindo benefícios assistenciais, foi de 14,4% do PIB

O Congresso Nacional receberá nas próximas semanas a proposta de reforma da Previdência do governo de Jair Bolsonaro.

Uma correção: na coluna da semana passada, afirmei que o RGPS (Regime Geral de Previdência Social) urbano foi deficitário de 2002 até hoje. Não é verdade. De 2009 a 2015, foi superavitário. Agradeço ao leitor Ricardo Knudsen por apontar-me a incorreção.

Entre 2016 e 2018 esse déficit, mesmo incluindo na receita as renúncias fiscais, foi de, respectivamente, R$ 107 bilhões, R$ 139 bilhões e R$ 149 bilhões.

Em 2017, o RGPS pagou 30,3 milhões de benefícios, sendo 20,7 milhões para trabalhadores urbanos e 9,5 milhões para trabalhadores rurais. O gasto no ano foi de R$ 435 bilhões para os benefícios do sistema urbano e R$ 120 bilhões do sistema rural, totalizando R$ 555 bilhões. Esse gasto corresponde a 8,5% do PIB (Produto Interno Bruto).

Os RPPS (Regimes Próprios de Previdência Social) dos servidores civis e militares da União, estados e municípios custaram R$ 333 bilhões ou 5,1% do PIB.

Assim, chega-se a 13,6% do PIB quando somamos os dois sistemas previdenciários. Se adicionarmos os R$ 56 bilhões do BPC (Benefício de Prestação Continuada), de caráter assistencial, resulta
despesa total de 14,4% do PIB.

Se o Regime Geral inclui 30 milhões de pessoas, os Regimes Próprios atenderam, em 2017, 4 milhões de pessoas, sendo 1 milhão na União, 2,3 milhões nos estados e 662 mil nos municípios. Em geral, 30% dos benefícios são pagos para pensionistas.

O leitor pode encontrar essas e outras informações nos links goo.gl/YPxT1m e goo.gl/s47Vj2.

Vale lembrar algumas diretrizes. Primeiro, é importante haver alguma vantagem no critério de concessão do benefício do piso do sistema contributivo, em comparação ao benefício assistencial.

Uma segunda diretriz refere-se à diferenciação de gênero na idade mínima. O argumento é que as mulheres arcam com a maior parte dos custos da criação dos filhos, incluindo a gravidez e todo o período de amamentação, além da educação.

O erro desse argumento é que muitas mulheres não têm filhos e algumas têm mais filhos do que outras, além da maior expectativa de vida aos 65 anos.

Assim, o ideal é que a diferenciação de gênero considere o número efetivo de filhos de cada mulher e, para mulheres que não tiveram filhos, não deveria haver a diferenciação.

Uma possibilidade é reduzir os anos de contribuição requeridos das mulheres de acordo com o número de filhos.

Outra possibilidade, como defendeu o estudioso da educação João Batista Araujo e Oliveira em recente coluna no jornal O Estado de S. Paulo, é aumentar a licença-maternidade.

A terceira diretriz é a atual reforma manter o dispositivo que havia na anterior, de requerer idade mínima ao servidor que ingressou no sistema antes de 2003 para ser elegível ao princípio da integralidade e da paridade.

Finalmente, há o tema da necessidade de a idade mínima ser distinta em diferentes estados da Federação pois a expectativa de vida é menor nos estados mais pobres.

Em sua coluna de quarta feira da semana passada (13), meu colega Alexandre Schwartsman documentou que a expectativa de vida aos 65 anos não é distinta entre os estados.

Além disso, a idade em que as pessoas requerem o benefício é maior nos estados pobres do que nos estados ricos, pois estes concentram a concessão de benefícios por tempo de contribuição, enquanto aqueles, os benefício por idade.

A coluna deste domingo (17)  está chatíssima, mas é muito importante que toda a sociedade se engaje neste debate.

Samuel Pessôa é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.


William Waack: O berreiro do desmame

Bolsonaro e Guedes apenas começam o confronto com os interesses de cada grupo

A agenda liberal de Paulo Guedes chegou ao leitinho e, com ela, o vocabulário sobre a discussão tornou-se preciso, realista e fiel aos fatos. “O desmame não pode ser radical”, disse a ministra da Agricultura ao se referir a pretendidos cortes nos subsídios do crédito rural, anunciado pelo colega da Economia.

Nem o setor dos produtores de leite pode prescindir de tarifas de importação (diretas ou na forma de antidumping) para enfrentar competidores externos – Bolsonaro atendeu os produtores e disse no Twitter que o leitinho deles, em sentido metafórico, está garantido. Na mesma linha geral surge a tomada de decisão sobre o fim da isenção dada às contribuições previdenciárias dos produtores rurais que exportam.

A proposta de agenda liberal de Guedes supõe o fim dessa renúncia (cerca de R$ 7 bilhões por ano nos cofres do INSS), tanto por razões fiscais como pelo propósito conceitual mais amplo. A Agricultura diz que não faz sentido tirar refresco de um setor – o de exportações agrícolas – que ajuda substancialmente a gerar os superávits comerciais que a economia também precisa.

Essa é uma típica discussão que no Brasil (mas não só) anda em círculos há décadas, subordinada sempre ao curtíssimo prazo e às turbulências dos momentos de crise econômica e política. Que obrigaram sucessivos governos a esticar contas (aumentando impostos, por exemplo, ou deixando de investir) para atender a todos que demandam seu leitinho.

Seja pela típica estatolatria reinante no Brasil, seja pelo fato de que a mentalidade predominante no País não é liberal (nem importa classe social ou ramo de atividade econômica), seja pelo comodismo de deixar decisões difíceis para depois, o leitinho de cada um expressa a realidade de uma sociedade anestesiada pelo subsídio. O corporativismo é apenas um sintoma de um estado geral no qual se assume que o governo, no final das contas, acabará fazendo alguma coisa em meu benefício.

Este é o padrão cultural mais amplo que Bolsonaro e Guedes dizem estar dispostos a enfrentar. Por vezes ambos transmitem a sensação de confusão entre causa e efeitos. Queixam-se (com razão, aliás) que o consagrado método do “toma lá, dá cá” no Legislativo, do qual dependem para qualquer reforma fiscal significativa, embaralha as cartas na hora de proceder a reformas estruturantes quando, no fundo, esse jogo político não é outra coisa senão (pelo menos naquilo que é interesse setorial lícito e legítimo) a defesa do leitinho de cada grupo.

Bolsonaro e Guedes chegaram ao poder impulsionados por uma enorme onda de transformação política e aparentemente empolgados com a frase tão repetida segundo a qual é imperioso acabar com a mania, que no nosso caso dura séculos, de mamar nas tetas estatais. São certeiros no diagnóstico. “Todo mundo vem pedir subsídios, dinheiro para isso, dinheiro para aquilo”, desabafou Guedes na quarta-feira, falando em evento para servidores públicos. “Quebraram o Brasil”, sentenciou.

Pode ser (suposição meramente teórica) que Bolsonaro e Guedes compartilhem cada vírgula de uma idêntica visão de mundo, e cada mínimo impulso sobre como agir na política. No caso do leite em pó cederam ao “toma lá, dá cá” por sólidos motivos políticos. Querem o apoio de um setor? Serão obrigados a atender a pelo menos parte de suas demandas, num delicado jogo de equilíbrio, articulação e compensações, enquanto o ambiente político vai se tornando mais hostil à medida que o leitinho some da mesa.

Vamos ver como aguentam o berreiro de uma manada de bezerros desmamados.


Míriam Leitão: Guedes falha na comunicação

Paulo Guedes tem falhado na comunicação. Tem falado muito, mas sempre de improviso e sem contraditório. Em vez de esclarecer, provoca ruídos

O ministro Paulo Guedes terá que mudar radicalmente sua forma de se comunicar se quiser convencer os brasileiros das muitas reformas que planeja conduzir no país. Durante a transição, e em pouco mais de um mês de governo, ele não deu qualquer entrevista coletiva organizada. Fala em rápidas intervenções quando parado pelos repórteres. Faz apresentações a empresários e nelas solta frases fortes. Pela falta do contraditório, consegue apenas gerar mais confusão.

Foi assim com o Sistema S, com as reformas da previdência, trabalhista e a da desvinculação. A da Previdência permanece envolta nas brigas internas do governo. Não se sabe o que ela será, mas o que tem vindo a público está desconjuntado. Pode ser ou não aproveitada a reforma do governo Temer, pode ser idade mínima igual para homens e mulheres, ou diferente, pode haver um estímulo à natalidade embutido na reforma, os militares podem ou não ser incluídos. Quando há informação para todo o gosto, o nome disso é ruído.

Na quarta-feira, ao falar para uma plateia de empresários reunidos pelo site Poder 360, ele disse que conhece mais viúva que viúvo. “Elas duram mais”. Então concluiu: a idade tem que ser igual. Mas pode também ser diferente, pelo que explicou. “Se teve um filho, fica um ano a menos. Um ano a menos até determinado limite. Tem que tomar cuidado com Dona Maria que pode ter 13 filhos, não queremos estimular isso.”

A proposta é toda ruim. Confirma a ideia de que cuidar dos filhos é obrigação da mulher e não do casal, como modernamente se entende. O subsídio beneficiará a classe média, que tem menos filhos e tem registro profissional. “O Bolsonaro acha que as mulheres deveriam ter 60 anos”, disse o ministro, nessa mesma apresentação. Isso é pior do que a reforma do governo Temer. Vários países hoje igualam a idade de aposentadoria.

Sobre a reforma trabalhista, o ministro da Economia repetiu ao Poder 360 o que tem dito a empresários. Que o jovem poderá escolher: “porta da esquerda: Carta del Lavoro, Justiça Trabalhista, sindicato, você tem proteção, você tem tudo, as empresas têm que pagar, mas quase não tem emprego. É o sistema atual. Porta da direita: novo regime trabalhista e previdenciário, não tem nada, se seu patrão fizer alguma besteira com você e te tratar mal, vai para a Justiça comum, é privado, privado, privado.”

Falta explicar muita coisa. E é nisso que faz falta o contraditório, para que ele informe melhor. O que acontecerá com os direitos trabalhistas que estão em cláusula pétrea da Constituição? Quem mandará todos os juízes trabalhistas fecharem as portas dos tribunais para os jovens que entrarem pela “porta da direita”?

O ministro continuou com sua sequência de improbabilidades: “com um ano e meio todo mundo vai olhar e ver que, ao contrário do que acontece no mundo inteiro, com 50% dos jovens desempregados, aqui vai ter 100% de jovens empregados.”

O mundo não tem 50% de jovens desempregados. O desemprego é sim maior entre jovens. Em alguns países como Espanha, Grécia e Itália chega a níveis altíssimos, na casa de 30%, mas na própria zona do euro a média é bem menor, 16%. Na Alemanha (6%) e nos EUA (8,8%) o sistema trabalhista é mais flexível, e isso poderia confirmar a tese do ministro se ele não exagerasse tanto ao prometer o impossível: desemprego zero em um ano e meio e um mercado de trabalho sem leis.

O que foi explicado aos jornalistas, depois, é que o ministro está pensando em copiar a forma de entrada no FGTS, que foi opcional. Na verdade, era uma opção compulsória. O jovem trabalhador chegava no seu primeiro emprego, nos anos 1970, e era obrigado a optar pelo FGTS em vez do sistema antigo de estabilidade. O sistema anterior estava de fato ameaçando as empresas, mas quem não aceitasse “optar” não era contratado. Isso foi na ditadura. Na democracia, tudo passa pelo convencimento e pelo sistema de pesos e contrapesos. Menos de 24 horas depois, Guedes teve que explicar que a reforma trabalhista virá depois de aprovada a Previdência. Ao mesmo tempo, o ministro tem falado com prefeitos e governadores que apresentará uma PEC para desvincular e desindexar receitas e despesas.

São várias as batalhas na economia. As chances de sucesso aumentam com uma comunicação mais organizada, clara e, principalmente, democrática.


Vera Magalhães: A falta que faz a política

Estigmatizada na campanha, prática será a diferença entre sucesso e fracasso do governo

O governo Jair Bolsonaro, em seus dois primeiros meses, sofre de um déficit absoluto de política. Acontece que a prática - estigmatizada ao longo dos últimos anos, num processo que atingiu seu ápice na última campanha eleitoral - será a grande definidora do sucesso ou do fracasso da gestão do ex-capitão, algo que ele, seus auxiliares e entusiastas parecem ainda não se dar conta.

O vácuo da política não é perceptível apenas na falta de articulação entre Executivo e Legislativo, algo que pode ser explicado pela inexperiência de ministros e parlamentares e pela ausência do presidente devido a nova cirurgia a que se submeteu.

Falta interlocução entre os principais agentes do governo e instâncias como o Judiciário, a imprensa e os expoentes dos setores econômicos. Ainda impera entre os novos inquilinos do poder a sensação, entre ingênua e messiânica, de que se pode levar quatro anos de governo nas mesmas bases que vigoraram na campanha, com Deus acima de todos, muito lero-lero no Twitter, doses cavalares de bobajol ideológico e a esperança de que Paulo Guedes e Sérgio Moro façam o trabalho difícil e cuidem do que de fato importa.

Não há política nem mesmo na relação entre o presidente e o vice, Hamilton Mourão, que por cisma da família Bolsonaro passou a ser visto como alguém inconfiável, incapaz de assumir o dia a dia da administração enquanto o titular está obviamente impossibilitado de fazê-lo, às voltas com a recuperação que se vendeu como simples e rápida, quando não era.

É bem provável que, caso Guedes tenha sucesso na virtuosa pauta de sua pasta - que tem a reforma da Previdência, a desburocratização da economia, a simplificação tributária e a redução do paquiderme estatal como carros-chefes -, Bolsonaro colha uma popularidade de longo prazo e se reeleja.

Mas, para que ele obtenha esse êxito, há um longo e tortuoso caminho de negociação com o Congresso, convencimento da sociedade e blindagem para esperadas tentativas de frear essas iniciativas pela via da judicialização.

Essas forças são organizadas. São os deputados e senadores, que estão com seus canais de atuação política tradicional obstruídos pela forma de a “nova era” lidar com o Congresso; os sindicatos, ligados a uma oposição ainda em ritmo de tartaruga, mas que vai acordar, e corporações que reagirão à redução dos seus privilégios com a reforma da Previdência, entre as quais, as mais poderosas são o Judiciário e o Ministério Público.

Achar que se pode ir para uma batalha de votos no Congresso diante desses adversários tendo como forças apenas o apoio popular a Bolsonaro - que, aliás, não tem relação direta com uma pauta indigesta como a da Previdência -, as redes sociais e uma “nova” articulação política feita no varejo, e sem levar em conta os partidos e as lideranças, parece ser o caminho para o fracasso.

Quem percebeu isso nitidamente, até agora, foi só o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM). Na ausência de Bolsonaro e diante da paralisia que se abateu sobre o Planalto sem ele, tem sido o presidente da Câmara o mais realista ao dizer que, até aqui, não se sabe que base é essa com a qual o governo pretende contar. E que entupir o Congresso ao mesmo tempo com reforma da Previdência, pacote anticrimes e um caminhão de projetos na área de costumes apresentados por novos deputados ávidos por um holofote é meio caminho andado para o fracasso em todas as frentes.

No fim, será a política - nem nova nem velha, a única digna do nome - que separará lacradores de legisladores e candidatos de governantes. Quanto antes Bolsonaro e os seus perceberem isso, maiores as chances de o governo sair da paralisia em que está e engrenar.


Alon Feuerwerker: O resultado político da reforma da previdência se medirá por uma função de duas variáveis

Por enquanto são só escaramuças, apimentadas pelo folclore de figuras algo exóticas em posição de visibilidade. A guerra mesmo virá quando entrarem em debate dois pontos: a reforma da previdência, de Paulo Guedes, e o pacote de Sergio Moro. Isso, claro, se não estourar antes uma guerra de verdade na nossa fronteira norte, com o Brasil de coadjuvante dos Estados Unidos.

Mas é algo provável que a situação da Venezuela ainda fique um tempo em banho-maria, dada a tática de cerco “humanitário”. Então é também esperado que um belo dia as flores deste “recesso estendido” (pela internação do presidente) deem lugar ao debate duro sobre as aposentadorias e a segurança pública. E nos dois temas a avenida está aberta para vitórias expressivas do governo.

Aí, as impressões de que “fulano foi derrotado, sicrano não se dá com beltrano, ninguém segue a orientação do outro fulano” etc vão deixar de ser notícia, e vai sobrar a realidade crua: os líderes de fato do governo na Câmara e no Senado são os presidentes da Câmara e do Senado. E líderes de direito fracos nessa circunstância não chega a ser problema. Talvez seja solução.

E na hora do concerto os maestros vão encontrar orquestras com imensa vontade de tocar afinadas. A disputa será para ver quem é mais duro no enfrentamento dos bandidos, em certas categorias de crime. Como por exemplo a corrupção e o banditismo urbano rotineiro. E na mudança previdenciária haverá briga de rua pelo protagonismo que atraia simpatia do mercado.

Onde e quando começarão os problemas? No pacote de Moro, o céu pinta ser de brigadeiro. Também pelo ministro ter se tornado um enfant gâté da opinião pública. Mas o decisivo é não haver resistência social expressiva no horizonte para a nova ideologia dominante na área criminal. A chacina desta semana em Santa Teresa foi recebida com bocejos. É o novo normal.

Já na Previdência há um risco. Se o governo quer mesmo fazer da reforma um instrumento de justiça social, precisará apontar para as camadas burocráticas privilegiadas que engolem dezenas de bilhões/ano do orçamento. Guedes está certo: a previdência social no Brasil é um mecanismo de concentração de renda. O problema dele: esses grupos estão politicamente fortalecidos.

Os velhos ameaçados pela miséria, os idosos do campo, os jovens que provavelmente vão morrer antes de se aposentar não irão ao salão verde da Câmara pressionar e ameaçar os parlamentares. A elite burocrática sim. E dirá que atacar seus privilégios é - surpresa! - enfraquecer a “luta contra a corrupção”. E na hora h será tentador para o Congresso ceder ao poder real.

Mas isso terá um custo. Os militares, por exemplo, têm dificuldade de aceitar sacrifícios maiores e ver um procurador em início de carreira ganhar mais que um general quatro estrelas. E alguém sempre poderá lembrar aos deputados e senadores que vão esfolar o povão enquanto continua dormindo numa gaveta da Câmara dos Deputados a proibição dos supersalários do Judiciário.

Alguma reforma da previdência vai passar. E a resultante política será função de duas variáveis: 1) quanto produzirá de percepção de ter promovido justiça social e 2) quanto trará de investimentos, empregos e renda. O ótimo para o governo será muito das duas. Mas muito só de uma até ajudará a justificar por que a outra não desempenhou tão bem assim.

Agora, se a resultante for pouco das duas, aí a avenida da política vai se abrir para a oposição.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação

 


Míriam Leitão: A crise fiscal exige pressa

Por Alvaro Gribel (Míriam Leitão está de férias)

Com o presidente Jair Bolsonaro internado em um hospital de São Paulo — ontem apresentou quadro de pneumonia — o envio da reforma da Previdência ao Congresso terá que esperar. A equipe do ministro Paulo Guedes teve tempo suficiente para apresentar uma proposta robusta, mas desde a campanha eleitoral não consegue avançar sobre os detalhes. Guedes tem uma ideia de reforma, Onyx, outra, os militares, uma terceira, e o presidente, ninguém sabe.

Há várias versões sobre a mesa esperando a decisão de Bolsonaro, e o ano legislativo já começou. Ontem, a agência S&P manteve a nota do Brasil estável, três níveis abaixo do grau de investimento. E deu um recado claro: a perspectiva para o país é de recuperação lenta, mesmo com a aprovação das reformas. O PIB tende a crescer pouco nos próximos anos e a dívida continuará subindo antes de começar a cair. Em resumo, é preciso ter pressa.

A agência ainda avisou que não pretende elevar o rating do governo no curto prazo, a despeito de toda alta da bolsa e da queda do risco-país. A reforma de Temer já poderia ter sido aprovada após as eleições, o que faria as perspectivas para este ano serem melhores. Mas Bolsonaro precisa de um projeto para chamar de seu, ainda que não consiga decidir o que quer.

S&P quer ver para crer
A visão da S&P sobre o processo legislativo brasileiro destoa da análise feita pelo mercado financeiro. Para a agência, “apesar do forte capital político de Bolsonaro, a aprovação de reformas estruturais de nenhuma forma está garantida”. Ela cita a fragmentação partidária, as pautas controversas e a escolha do presidente de fugir das negociações com as lideranças partidárias. No fim, acredita que os projetos passarão, mas vai esperar para mexer na nota.

Maia vende ilusão
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, resolveu vender ilusão para justificar a reforma da Previdência. Disse que o PIB pode crescer até 6% nos 12 meses seguintes à aprovação da proposta. Não há economista no país prevendo uma recuperação nessa magnitude. Entre as instituições que responderam pesquisa do Boletim Focus, a mais otimista projeta crescimento de 3,5% este ano e no próximo. A mediana, no entanto, está em 2,5%. A Previdência é apenas uma das muitas reformas que o país terá que enfrentar para aumentar o seu PIB potencial. E seus efeitos serão sentidos no longo prazo.

Menos soja
O corte na previsão da safra de soja foi forte, por causa da estiagem. Os produtores esperavam quase 120 milhões de toneladas, e agora a revisão aponta para algo próximo a 100 milhões. O estado mais afetado foi o Paraná. Mas o preço, que subiu 7% em um ano, não deve disparar, diz Leonardo Sologuren, vice-presidente do Comitê Estratégico Soja Brasil. A cotação é determinada em Chicago, e os EUA estão colhendo um volume histórico de soja. “Outro fator é que o dólar deve ficar em patamar mais baixo na média deste ano.” A soja, usada na alimentação de animais, afeta o preço das carnes e do leite.

‘Vai acontecer’
Quem acompanha a negociação para a venda da Braskem afirma que o negócio vai acontecer. Todas as partes querem a operação, e a Odebrecht, que detém 38,4% do capital, precisa de dinheiro para reduzir a dívida. Na Petrobras, com seus 36% das ações, o novo comando tem repetido que deseja vender ativos. Há compradores interessados. A holandesa LyondellBasell é a que está mais próxima da compra, que deve envolver dinheiro e troca de ações. O negócio deve se aproximar dos R$ 50 bi. Seria a maior aquisição de uma empresa estrangeira no Brasil, três vezes maior que a venda da Embraer.

O exemplo de Portugal
Depois de passar pelo ajuste, Portugal vive um período de baixo desemprego e muita gente já esqueceu a crise, diz o executivo Vasco Campos, diretor para América Latina da multinacional portuguesa Sovena, da marca de azeite Andorinha. “O desemprego bateu em 13% e caiu para a casa de 6%. O ajuste foi duro, houve corte de salário de servidores, supressão de feriados, aumento de Imposto de Renda. Mas houve unidade nacional para superar o momento e hoje as pessoas já nem se lembram mais”, diz.
(Com Marcelo Loureiro)


César Felício: À espera do condutor

Cenário para reforma é favorável, mas não é possível errar

O mundo político tende a aguardar o restabelecimento pleno do presidente Jair Bolsonaro para dar início à batalha pela reforma da Previdência. Não há possibilidade de delegar responsabilidades neste momento dada a baixíssima tolerância ao erro que existe em relação a este tema no Congresso e no mercado.

Bolsonaro governa nas circunstâncias históricas mais propícias nos tempos recentes para realizar uma reforma da Previdência substantiva. É uma constatação mesmo de fontes que não têm motivos para apoiar o ajuste. A pista livre e seca, contudo, não impede que o condutor lance o carro no barranco. Ninguém pode arbitrar a negociação a não ser o presidente da República, que precisa curar-se de uma pneumonia antes de decidir sobre a idade mínima.

Um atraso de alguns dias na alta de Bolsonaro, por si só, não tem muito efeito na reforma. Como alerta o cientista político Cristiano Noronha, vice-presidente da consultoria Arko Advice, antes da instalação da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, a emenda da Previdência não tem como tramitar. Ressalvada a possibilidade do quadro de saúde do presidente se deteriorar, o que parece causar algum ruído entretanto são possíveis erros de comunicação sobre a recuperação presidencial da cirurgia de reversão da colostomia. Quem já passou pelo procedimento considerou exageradamente otimista as previsões iniciais de que a cirurgia duraria apenas três horas, e de fato ela durou mais, bem como avaliou que a previsão inicial de alta em apenas uma semana pouco conservadora. Talvez fosse mais prudente não ter alimentado este tipo de expectativa. Mas quem defende uma reforma profunda tem motivos para estar razoavelmente otimista.

Bolsonaro retoma a meada que Temer interrompeu depois do vendaval da JBS, com a legitimidade do voto e o mérito de ter tratado do tema durante a campanha. Não prometeu manter direitos "nem que a vaca tussa" como a sua antecessora Dilma. O agravamento da crise fiscal empurra governadores e prefeitos para se envolverem na reforma da Previdência, de um modo que não se observou no governo de Lula. A mudança nas regras atuais conta com apoio quase consensual da mídia e o ministro da Economia, Paulo Guedes, conta com um grau de credibilidade que compensa fartamente a sua inexperiência na máquina pública.

Por último, Bolsonaro tem contra si uma oposição no meio sindical, enfraquecida, não apenas pela reforma trabalhista de 2016, mas também pela derrocada petista, o que não era o caso de Fernando Henrique Cardoso nos anos 90. "O governo tem todas as condições para aprovar a reforma", resumiu o cientista político Antonio Queiroz, do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap). Está portanto nas mãos do presidente a aprovação da proposta.

Cabe a Bolsonaro não errar. Nada menos que 23 dos novos deputados atendem pela alcunha de capitão, sargento, major, cabo, delegado ou general. Destes, 14 são do PSL, ou quase um quarto da bancada da sigla. Os deputados com patente, um deles inclusive com o hábito de andar fardado pelo Congresso, representam pouco mais de um terço dos 61 integrantes da "bancada da bala", segundo cálculo do Diap. Bolsonaro não conseguirá fazer uma reforma da Previdência ampla sem pactuar com cuidado a situação de policiais e militares.

Reduzida a 77 deputados, de acordo com o Diap, a bancada ruralista tende a pressionar por condições diferenciadas para o trabalhador rural. Esta também deve ser uma demanda da bancada nordestina, de forma um pouco generalizada. São representantes de Estados em que o eleitorado rural ainda representa um contingente importante. Por outro lado, a proposta de capitalização da previdência tende a mobilizar os deputados de alguma forma vinculados ao sistema financeiro.

Definidas as linhas gerais do texto e azeitada a articulação, Bolsonaro precisa calibrar o calendário. Uma reforma da Previdência ambiciosa, por meio de uma emenda constitucional nova, não se aprova em poucas semanas, como quer fazer crer o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Há que se pensar, com muito otimismo, em aprovação na Câmara em julho e no Senado entre setembro ou outubro, se tudo der certo, na avaliação de Queiroz. Ele lembra que a reforma mais rápida foi aprovada por Lula em 2003, e tramitou por nove meses no Congresso. Ainda assim, foi votada depois de um acordo para que o Senado sugerisse alterações em uma PEC paralela.

Reforma trabalhista
O fenômeno não é brasileiro, é global: a automação da indústria, que começa a se estender para o setor de serviços, destrói empregos e induz a um movimento de redução de custos do trabalho. A liberalização do comércio mundial, e, em alguns casos, da imigração reforçam a tendência de desvalorização da mão de obra local.

Se a realidade por si só é amarga, a mistificação não precisaria ser feita. Soa cínico o discurso oficial de que o trabalhador jovem poderá optar no futuro entre ter uma carteira de trabalho azul, a porta da esquerda, com todos os direitos e poucas ofertas, ou outra verde-amarela, porta da direita, produto da livre negociação entre empregado e empregador.

Jovem que entra no mercado de trabalho não tem outro ativo para oferecer a não ser a disposição para topar qualquer empreitada. Não está na posição de escolher coisa alguma. Está claro que quem terá a opção é o empregador, a quem caberá estabelecer todas as cláusulas contratuais. A relação é obviamente assimétrica.

Na construção do discurso antitrabalhista oficial ganha destaque a identificação da CLT com a Carta del Lavoro, de Mussolini. Confundem, deliberadamente, ideologia com história. É fato que Getúlio inspirou-se no ditador italiano, mas Mussolini não era um demiurgo. Os acontecimentos históricos nas primeiras décadas do século 20, em especial a Revolução Russa e a catástrofe de 1929, levaram ao poder governos que procuraram intervir nas relações sociais para mantê-las sob controle. Foram criadas válvulas de escape, na Itália fascista, nos Estados Unidos de Roosevelt, no Reino Unido durante os governos trabalhistas, na Argentina de Perón, no México de Cárdenas. É por um imperativo histórico, e não ideológico, que no mundo inteiro estes mecanismos de proteção estão sob ameaça ou sendo revertidos.


Ascânio Seleme: O risco Bolsonaro na estreia

O governo enfim vai começar. Na volta do presidente da sua operação, no início da semana, começa para valer a administração Bolsonaro. Até a semana passada, com o Congresso não empossado e com o presidente na contagem regressiva para a terceira intervenção cirúrgica, o que se viu foi um jogo de espera. Enfim será dada a partida para o primeiro governo declaradamente de direita desde 1985. Seus projetos querem mudar a cara do país. Os dois principais, a reforma da Previdência e o pacote anticrime, são vitais para marcar o sucesso ou o fracasso da nova administração.

Normalmente, o primeiro mês de qualquer governo é de articulação para aprovar gente sua no comando das casas do Congresso, de medição da firmeza do terreno que se vai pisar, de adaptação. Bolsonaro também teve essa iniciação, embora de modo precário, por ter decidido governar sem fazer nomeações políticas, sem atender a grupos e partidos. Além disso, acabou sendo paralisado pelo escândalo causado pelo filho Flávio Bolsonaro e o seu amigo, motorista e assessor Fabrício Queiroz.

Mesmo assim, Bolsonaro dá início efetivo ao seu governo com ainda muita ficha para gastar. Os novos presidentes da Câmara e do Senado, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, foram o que melhor poderia acontecer a Bolsonaro. Pode parecer paradoxal, mas o presidente que prometeu varrer para a lata de lixo a velha política deve agradecer por ter um veterano no comando da Câmara. Por outro lado, ter escapado de Renan Calheiros no Senado é um trunfo para um início sem tempestades.

O céu é de brigadeiro também em razão dos perfis de Maia e Alcolumbre. Ninguém pode chamá-los de progressistas, no velho sentido dado à palavra pela esquerda. Não. Ambos são políticos de centro-direita, liberais e conservadores. O presidente da Câmara já explicitou este seu papel publicamente, mas nem precisava.

Alcolumbre será obviamente um presidente do Senado sem muita força, mas fiel. Por ser fraco, ele também não complica. Mas é tido como um bom articulador. E o papel dele e de Rodrigo Maia será fundamental na aprovação das reformas que o governo quer fazer. Serão eles os donos da pauta no Senado e na Câmara, que decidirão em última instância a tramitação dos projetos. E essa é uma vantagem e tanto no jogo político.

Na Câmara, Maia terá força de sobra para fazer propostas do governo tramitar com tranquilidade. O deputado teve mais votos na eleição para a presidência da casa do que os necessários para aprovar emendas constitucionais. Obviamente que este desempenho não representa aprovação automática na hora das votações, até porque partidos como o PT, que apoiaram Maia para presidente da Câmara, não votam nem amarrados nos projetos de Bolsonaro. De qualquer forma, respaldo político ajuda muito na hora de negociar.

Na entrevista que deu na terça-feira, ao receber o ministro da Economia para tratar da reforma da Previdência, o presidente da Câmara mostrou um otimismo que surpreendeu até mesmo a Paulo Guedes, que espera uma economia de R$ 1 trilhão em dez anos. Pelos cálculos de Maia, a economia vai crescer 6% nos primeiros 12 meses após a aprovação da reforma. O deputado não explicou que métricas usou para alcançar estes resultados.

Outro otimista, o presidente do Senado também deu seu apoio incondicional à reforma da Previdência e disse que pode aprová-la em três meses. Com os principais líderes do Congresso ao seulado, o novo governo pode, enfim, começar a trabalhar para cumprir sua missão de ser uma espécie de governo Temer revigorado, reformista e liberal, mas com respaldo eleitoral.

Mas ainda resta um problema, e grande. O ministro Paulo Guedes disse que a decisão final será tomada obviamente pelo presidente e acrescentou que “ele tem o cálculo político dele” para bater o martelo numa ou em outra direção. E esse é o risco. Bolsonaro exige que mulheres tenham tratamento diferenciados e chegou a propor idade mínima mais baixa, 62 para homens e 57 para mulheres. Se o presidente pensar como um político populista, e não como estadista, a reforma pode ficar pequena.


Míriam Leitão: O risco de uma reforma aguada

POR ALVARO GRIBEL
(*A colunista está de férias)

O ministro da Economia, Paulo Guedes, já começou a ceder na reforma da Previdência. Inicialmente, falou-se em uma economia de R$ 1 trilhão no período de 10 anos, que ficaria acima dos R$ 800 bi do projeto original do governo Temer. Diante da reação às medidas vazadas na última segunda-feira, Guedes disse que estaria disposto a chegar a esse valor em um período maior, de 15 anos. O problema é que, na prática, isso significa que o projeto já sairá do Executivo mais desidratado do que a PEC 287 elaborada pelo então secretário da Previdência Marcelo Caetano, que tinha uma transição suave e aumentava consideravelmente o valor economizado com o passar do tempo. Na hipótese mais conservadora, o projeto de Caetano pouparia R$ 1,2 trilhão em uma década e meia. Ao ceder logo de início, Guedes corre dois riscos: aprovar uma reforma mais branda do que a do governo anterior e em um prazo mais esticado, já que um projeto novo teria que passar pelas duas principais comissões da Câmara. Ontem, a bolsa teve a maior queda desde maio, com o mercado começando a colocar na conta as idas e vindas dessa tramitação.

‘AINDA ESTÁ MUITO CRU’

Na avaliação de um deputado do PSDB, o encaminhamento da reforma da Previdência ainda está muito no início por parte do governo Bolsonaro. Ele diz que o partido é defensor da reforma e tende a apoiá-la, mas ainda faltam os detalhes para se saber como será o ritmo de tramitação na Câmara e a adesão dos deputados. “Uma reforma dessa complexidade requer um amplo trabalho de convencimento, diálogo e liderança. É um processo e ainda está muito cru. São os detalhes que fazem a diferença, apesar de a aceitação à reforma ter aumentado bastante tanto no Congresso quanto na sociedade”, afirmou. Segundo ele, um projeto novo deve sim passar pelas comissões, e não tentar pegar carona na PEC do governo Temer. “Não tem como eliminar o debate e a possibilidade de emendas ao texto”, disse.

MARCHA À RÉ

O ano começou mal para a indústria. A produção de veículos encolheu para 196,8 mil unidades em janeiro, ou 10% a menos que um ano antes. O setor automotivo responde por mais de 20% do PIB da indústria, que já apresentava sinais de anemia no semestre passado. O mercado interno não compensou a queda nas exportações. Com a crise da Argentina, os embarques de veículos despencaram 46% na comparação com janeiro de 2018.

CANTEIRO DE OBRAS

A recuperação do mercado de trabalho depende muito do setor de construção civil, que é um dos maiores empregadores da economia. Pelos números da CBIC, a câmara da indústria, os canteiros empregam hoje cerca de dois milhões de pessoas. Em 2014, havia 3,4 milhões de empregados diretamente nas obras. José Carlos Martins, presidente da CBIC, conta que em dois anos é possível retomar esse patamar, se o segmento de construção deslanchar. O setor parou de demitir no ano passado, mas fechou o ano com saldo ainda modesto, de 17,9 mil contratações. O PIB da construção civil está em queda desde o primeiro trimestre de 2014. A aprovação da lei do distrato deixou as incorporadoras mais animadas este ano.

BOLSA REFLETE O RISCO

É ilusão achar que a alta da bolsa significa uma explosão de consumo ou de investimentos no país este ano, explica um empresário da indústria que também tem forte atuação no mercado de capitais. Segundo ele, a alta do Ibovespa reflete apenas a queda da percepção de risco no Brasil, com o fim da era petista e das políticas econômicas de curto prazo. “Ainda há muita ociosidade em todos os setores, o PIB está 5%, 6% abaixo de antes do início da crise. Até diminuir essa ociosidade, não tem explosão de investimento nem de contratação”, explicou. Segundo ele, a política liberal de Guedes é de longo prazo, e seus efeitos serão mais sentidos ao longo dos anos, e não em 2019.

COLESTEROL ELEVADO

Ivan Monteiro terá missão clara se confirmado na vice-presidência financeira da BRF: melhorar o perfil da dívida da gigante de alimentos. Espera-se que ele reduza o endividamento, aumente o prazo e diminua o custo das linhas. É algo parecido com o que ele já fez na Petrobras. A dívida líquida da BRF disparou 21% em um ano e chegou a R$ 16,3 bi no terceiro trimestre, ou 6,7 vezes a geração de caixa operacional.

(COM MARCELO LOUREIRO)