Ambições de Moro, Guedes e caserna superam trapalhadas
A reforma da Previdência do governo Jair Bolsonaro foi talhada para arregimentar o apoio dos trabalhadores mais pobres dos centros urbanos contra a elite do funcionalismo. É este o fundamento da progressividade da proposta que reduziu a alíquota dos servidores públicos e dos trabalhadores da iniciativa privada com rendimento até um salário mínimo para 7,5% e aumentou aquela de carreiras de Estado com rendimentos alinhados pelo teto para 16,8%.
Esta será a propaganda que escorregará para a fantasia se incorporar o discurso de que a alíquota máxima será de 22%. Este percentual apenas incidirá para aqueles que recebem acima do teto de R$ 39 mil, só ultrapassado com penduricalhos que não entram na base de cálculo da contribuição previdenciária.
Entre aqueles que serão onerados com alíquotas de 16,8% estão servidores responsáveis pelo caixa do Estado (Receita, Tesouro e Banco Central), pelo sistema de Justiça (juízes, procuradores e defensores públicos) e pelas castas mais altas do Legislativo. Contra esta tropa, a proposta tem as digitais militares e a aposta redobrada na mobilização pelas redes sociais.
Entre os militares da reserva que compõem o primeiro escalão do governo, há generais que recebem aposentadorias de R$ 12 mil, o equivalente a menos de um terço dos rendimentos previdenciários da elite do funcionalismo alvo da proposta.
Ao reduzir, ainda que simbolicamente (meio ponto percentual), a alíquota dos trabalhadores de mais baixa renda, o presidente Jair Bolsonaro se dirige às periferias urbanas que engrossaram a votação do PT em 2018, e busca incorporá-las à sua base de apoio. Precisará delas para enfrentar desgastes em setores do seu próprio eleitorado que viu seu discurso de campanha envelhecer precocemente.
Ao manter a equiparação da idade mínima dos trabalhadores dos setores público e privado como cerne da proposta, o presidente apostará no discurso da justiça social para reverter o desgaste. Não terá, no entanto, facilidade em emplacar o figurino Robin Hood. Enfrentará o dissabor de trabalhadores rurais que terão que comprovar contribuição de 20 anos para uma aposentadoria hoje automaticamente concedida por idade. Encontrará ainda a resistência à elevação de 65 anos para 70 anos para o acesso ao Benefício de Prestação Continuada que atende os 3 milhões de idosos mais vulneráveis da população.
A proposta foi hábil em três lances. Mitigou os danos sobre categorias com poder de mobilização urbano, como professores e policiais. Protegeu os militares das barganhas corporativas, jogando as mudanças no seu regime para uma proposta posterior. E, finalmente, ao mandar para a legislação complementar as regras da previdência privada, também adiou o embate entre fundos de pensão de servidores e os bancos gestores de fundos de previdência.
A proposta é talhada para o embate entre redes sociais, de um lado, corredores e galerias do Congresso, espaço por excelência das corporações, do outro. O espetáculo da demissão do secretário-geral da Presidência, no entanto, mostra um golpe no modelo virtual ainda a ser superado. Um governo minoritário não é capaz de se mover sem acordos no Congresso e não é possível mediá-los quando a política é operada “on the records”.
Michel Temer perdeu qualquer capacidade de operar quando teve seus diálogos com Joesley Batista expostos à luz do dia. A diferença é que a iniciativa de exibi-los partiu de um réu acuado. No governo Bolsonaro, é uma manobra apadrinhada pelo próprio presidente. Nem se o PSL fosse um partido de anjos teria chance de dar certo.
A aposta redobrada nas redes terá a ‘prensa’ como órgão auxiliar de sua articulação política. A surpreendente companhia feita pelo ministro da Economia ao colega da Justiça na apresentação do pacote de combate à violência e à corrupção mostra que ambos esperam que a tramitação conjunta dos projetos lhes traga benefícios mútuos.
Verbalizado ainda na transição, por Paulo Guedes, o modelo da ‘prensa’ parte do pressuposto de que os parlamentares não negariam reformas a um governo intransigente na defesa da moral pública. O novo Congresso ainda não havia tomado posse quando o filho mais velho do presidente se tornou vítima desse alçapão. Foi apenas a primeira. A exibição do laranjal do PSL mostrou que o partido de Bolsonaro só contribuiu com a renovação das fichas corridas do Congresso.
O enfraquecimento de Bolsonaro levou Moro a transformar o combate ao caixa dois de eixo fundamental em acessório, enferrujando precocemente a ‘prensa’. O ministro deixou seu pacote refém da crítica de que tem visão unilateral do combate à violência. Credita-o mais ao endurecimento das penas do que à transparência das políticas de segurança pública e ao combate da corrupção policial.
A aliança entre Moro e Guedes ainda cobrará do ministro da Justiça a defesa de uma proposta que atinge os benefícios previdenciários de sua base no Judiciário e no Ministério Público. O ministro conta, no entanto, com o apoio de fatia das redes sociais bolsonaristas que se afastaram do presidente mas mantêm sua aposta no Partido da Justiça e em suas pretensões de poder. A aliança com os ministros da caserna é nítida no entrosamento com o qual incorporaram o combate ao narcotráfico à política de segurança nacional, ícone do alinhamento militar entre Brasil e Estados Unidos.
A dobradinha entre Moro e Guedes mostra que as ambições deste governo ultrapassam as trapalhadas da família Bolsonaro. Juntos, abriram frentes de batalha contra o Sistema S, contra os adversários da Lava-Jato e, agora, se insurgem contra as castas da Previdência. Compraram mais inimigos do que a mobilização política do governo é capaz de enfrentar. Para lhes ser útil, Bolsonaro terá que ser capaz de mobilizar a audiência.
No melhor dos cenários, a reforma da Previdência, vai operar uma mudança na base de apoio bolsonarista semelhante àquela do governo Luiz Inácio Lula da Silva. No pior, cederá espaço à aliança entre a caserna e Moro, que usufruirá da prerrogativa de liderar um Estado policial que prescinde das baionetas para se impor.