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Foto: Senado Federal

George Gurgel de Oliveira: O 20 de novembro, a população afrodescendente e os desafios da sociedade brasileira

Cidadania23*

Devemos aproveitar o mês de novembro para uma reflexão sobre o presente e o passado da sociedade brasileira em relação à sua história, desde a chegada da população negra como escrava, das suas lutas pela libertação e a realidade da população negra hoje no Brasil.

Saber como tudo isso se desenvolveu e os fundamentos da escravidão no Brasil, assim como o processo de libertação da escravatura até à atualidade, são desafios para avançarmos e superarmos a difícil realidade enfrentada pela população negra ainda hoje na sociedade brasileira.

As lutas de libertação da população negra

A escravidão africana, até meados do século XIX, era um dos fundamentos da vida econômica na América e na Europa. Fazia parte da estrutura das relações políticas, econômicas e sociais, assim como tornou-se base de acumulação de riqueza dos países europeus, inclusive da Inglaterra, berço da revolução industrial.

A cultura do racismo nasceu como uma maneira de exclusão dos povos africanos da vida e das conquistas da sociedade humana durante o século XV, foi se desenvolvendo e deixando marcas profundas até à atualidade. Desde então, o escravismo passou a ser diretamente relacionado aos povos africanos, como uma maldição, a partir de uma visão cultural e religiosa eurocêntrica nas colônias da América, na Europa e no próprio continente africano. O Brasil foi o país de maior concentração de escravos africanos do mundo. Chegou a uma população de 5 milhões de escravos ao longo de mais de 300 anos em que perdurou o escravagismo negro em nosso país.

A escravidão na América já tinha precedentes no continente: houve escravização de indígenas e com a chegada de Cristovão Colombo, em 1492, iniciou-se um massacre e o escravismo destas populações indígenas em todo o continente americano, inclusive no Brasil, a partir da colonização portuguesa.

A abolição da escravatura em nosso país, em 13 de maio de 1888, assinada pela princesa Isabel, foi fruto das lutas históricas e das mudanças que já vinham acontecendo na sociedade brasileira, pressionada pelas transformações políticas, econômicas e sociais que aconteciam na Europa, na própria América, a exemplo do movimento de libertação dos escravos no Haiti, que foi fundamental na proclamação da República naquele pais. O fim do escravismo no Brasil atendia também aos interesses da Inglaterra em plena industrialização, que necessitava de novos mercados e de matéria prima fora da Europa para consolidar a sua hegemonia no cenário internacional.

As leis abolicionistas no Brasil promoveram a emancipação dos escravos de maneira gradual. A primeira foi a Lei Eusébio de Queiroz, em 1850. Posteriormente, a Lei do Ventre Livre, em 1871, e a Lei dos Sexagenários, em 1885. Finalmente, a lei assinada pela Princesa Isabel, em 13 de maio de 1888, aboliu a escravidão no Brasil. As principais lideranças negras abolicionistas foram: André Rebouças, José do Patrocínio e Luiz Gama. Ainda devem ser destacadas as lideranças femininas de Maria Tomásia, Adelina e Maria Firmina dos Reis, entre outras brasileiras.

Ressalte-se que a abolição da escravatura no Brasil atendeu também aos interesses das oligarquias nacionais que já não podiam manter o custo da mão de obra escrava, base da acumulação da riqueza colonial, ainda em função da realidade internacional e em razão do que o Brasil já representava em função das suas riquezas naturais, particularmente minerais, produção/potencialidades agrícola e pecuária, um espaço de acumulação e de mercado da economia capitalista mundial.

Em uma outra perspectiva, aconteceu a luta dos quilombolas. Os quilombos eram organizados como espaços de resistência, de libertação, no caminho de construção de novas relações políticas, econômicas e sociais. O de Palmares é o mais conhecido e aclamado com a liderança de Zumbi, cuja data de sua morte, 20 de novembro, passou a ser a data nacional de resistência e de luta pelos direitos da população negra no Brasil, desde 2011.

A libertação da população negra no Brasil desde os primórdios até à atualidade é o resultado das lutas de resistência dos movimentos de libertação desde quando os(as) escravos(as) chegaram ao Brasil, dos movimentos Quilombolas e dos abolicionistas, de resistências e de conquistas no processo de emancipação da população negra como parte integrante das lutas de transformação da sociedade brasileira, com seus conflitos e contradições históricos e atuais.

O 20 de novembro, dia da consciência negra, é um momento de reflexão e ação sobre a atual realidade política, econômica e social do Brasil, particularmente da população negra, na perspectiva de superação desta nossa difícil realidade que excluiu e continua excluindo a população negra brasileira.

Quais os desafios?

Os desafios históricos de inclusão da população negra na sociedade brasileira continuam atuais.

A abolição da escravatura, no século XIX, não incorporou a população negra à nova realidade política, econômica e social capitalista. Sem a terra e a escolaridade necessárias, os(as) negros(as) libertos(as), na sua maioria, ficaram à margem da sociedade brasileira, situação que continua até à atualidade, apesar das conquistas e dos avanços da população negra no Brasil, consolidadas na Constituição de 1988 e os seus desdobramentos político-institucionais.

Desde então, por tudo o que o Brasil representava e continua representando, inicialmente como Colônia, depois como Monarquia até à proclamação da República e atualmente, a população negra continua sem a devida representação na vida política, econômica e social no País. A realidade da Bahia é a mais perfeita tradução desta falta de representação política, econômica e social da população negra brasileira.

Atualmente quais são os compromissos dos que governam, da sociedade e da cidadania em geral frente a essa realidade de exclusão da população negra brasileira?

A agenda do Movimento Negro e dos outros movimentos políticos, econômicos, sociais, ambientais e multiculturais que lutam pela inclusão da população negra no Brasil deve ser a agenda de toda a sociedade brasileira, na qual a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, a ciência e a tecnologia seriam os fundamentos de construção de políticas públicas afirmativas, inclusivas para a população negra e para todas as populações discriminadas da nossa sociedade.

No Brasil, particularmente os(as) trabalhadores(as) de menor renda e a população desempregada em geral, na sua maioria negra, continuam enfrentando sérias dificuldades econômicas e sociais, entre as quais a falta de uma renda emergencial permanente que lhes assegure o mínimo de dignidade para atravessarem a crise agravada com a pandemia que atinge principalmente a população de baixa renda, as mulheres na sua dupla jornada de trabalho, a população indígena e negra, historicamente excluídas no Brasil.

A inclusão da população negra – 54% da população brasileira, segundo o IBGE – deve ser realizada a partir de pautas afirmativas e de reparação com o olhar do presente no caminho de um futuro que unifique a sociedade brasileira construindo uma agenda nacional para a saída da crise no caminho da consolidação e ampliação da democracia. Os negros, homens e mulheres, e suas representações no Brasil devem estar em diálogo permanente com a opinião pública e a sociedade em geral, fortalecendo suas redes sociais e de comunicação, defendendo a melhoria das condições de vida da população negra, ampliando sua participação nas organizações do Estado, do Mercado e da Sociedade Civil; apostando em uma agenda nacional reformista que retire o Brasil desta grave crise política, econômica, social, ambiental e de valores que estamos vivendo.

Portanto, a população negra e a sociedade brasileira em geral estão desafiadas a construir uma agenda propositiva a ser pactuada para o enfrentamento dos reais problemas nacionais agravados com a pandemia: realizar as reformas no caminho de uma nova economia, pensando o Brasil nos próximos 5, 10, 15 e 20 anos, considerando a sua dimensão continental, as potencialidades nacionais e regionais, seus ativos naturais e a diversidade étnica e cultural.

A base desta reforma democrática é a educação, a ciência e a tecnologia que devem ser incorporadas como estruturantes e estratégicas, melhorando a qualidade de vida dos que trabalham, da população negra e de toda a sociedade brasileira nas próximas décadas.

Assim, a população negra e os brasileiros em geral estão desafiados à construção de uma sociedade que supere os conflitos e as contradições nela gerados historicamente, no caminho de uma sociedade mais democrática, inclusiva na sua organização política, econômica e social, e melhor distribuidora da riqueza produzida por toda a sociedade.

O novo governo que se inicia, em 2023, sob a liderança do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e amparado em uma frente ampla, deve ser um momento de reflexão e avaliação da difícil realidade social, econômica e ambiental da população brasileira, na perspectiva de que nos próximos quatro anos o governo e a sociedade em geral construam políticas públicas que venham efetivamente melhorar a vida dos excluídos da sociedade brasileira, cuja maioria é negra.

Incorporar a população negra na vida política, econômica e social é enfrentar e superar definitivamente no Brasil o legado histórico e atual de exclusão da população negra na sociedade brasileira, afirmando-a como um dos fundamentos de construção de um Brasil com mais democracia, liberdade, igualdade e fraternidade.

Estamos desafiados(as)! (Blog Democracia Política e novo Reformismo – 19/11/2022)

George Gurgel de Oliveira, professor, doutor, da Oficina da Cátedra da Unesco-Sustentabilidade e do Conselho do Instituto Politécnico da Bahia

Texto publicado originalmente no Cidadania23.


“O bolsonarismo está diretamente relacionado ao aprofundamento do racismo no Brasil” - Foto: Christian Parente | Divulgação

Silvio Almeida: “Vamos ter que desbolsonarizar o Brasil”

Osvaldo Lyra | A tarde

O professor Silvio Almeida é um dos principais pensadores brasileiros da atualidade. Além de filósofo e advogado tributarista, ele estuda as relações raciais no pais e é enfático ao afirmar que “o racismo é uma questão estrutural, no sentido de que o racismo organiza as hierarquias sociais, a vida cotidiana, organiza o imaginário brasileiro”.

Integrante da equipe de transição do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, ele diz, nessa entrevista exclusiva ao A TARDE, que o “bolsonarismo está diretamente relacionado ao aprofundamento do racismo”. “Vamos ter que desbolsonarizar o Brasil”, disse o filósofo, ao enfatizar que “a vitória de Lula abre espaço para a recomposição da democracia”.

Questionado sobre como pensar uma política de segurança pública e as questões raciais diante do contexto atual, Silvio Almeida diz que a “segurança tem que ser repensada sob o prisma da igualdade racial”. “Política de segurança pública é política de direitos humanos”.

Confira:

Vivemos em uma sociedade ainda muito preconceituosa, onde a capacidade das pessoas muitas vezes é medida pela cor da pele. No entanto, a gente está no mês da consciência negra. É importante pensar em ações afirmativas, ainda mais falando para a Bahia, falando para Salvador, que é a cidade mais negra fora da África?

Eu acho que o mês da consciência negra tem papel crucial para que nós possamos mergulhar na compreensão da condição negra não só no Brasil, mas no mundo. Porque a condição negra daqui também se conecta fortemente com o ser negro no mundo. E mais do que isso, as circunstâncias em que o mundo se encontra expande a importância do mês da consciência negra e a própria ideia de consciência negra. Eu digo isso porque nós estamos vivendo um contexto de crise. Quando a gente fala de crise, nós estamos falando, portanto, de um contexto em que a grande baliza civilizatória, as grandes crenças... Eu não falo de religião, eu falo das nossas crenças das instituições políticas, da regularidade da vida econômica, das nossas balizas éticas. Tudo isso está em xeque agora diante de um desarranjo que vai levando as pessoas ao desamparo, ao desespero. As condições precárias, as condições de vida, de existência rebaixadas que o racismo renegou aos negros do mundo passam a servir de parâmetro para a destruição de outras vidas que não apenas vidas negras. Isso é importante. Então, o mês da consciência negra é uma reflexão sobre a condição negra no mundo, mas é uma reflexão, e quando eu falo de reflexão não é só um olhar passivo, mas também a formulação de estratégias políticas para que nós possamos, ao pensar na condição negra, pensar também na superação dos grandes problemas da humanidade. Por isso que esse mês da consciência negra, principalmente no contexto brasileiro, em que nós estamos no período de transformação, de mudanças, uma nova fase do Brasil, é também o chamado para que nós pensemos a condição negra como condição existencial, e nesse sentido, pensar também os rumos da humanidade e do Brasil. E não é só pensar sobre as ações afirmativas. Mas pensar também em como o racismo cria um déficit naquilo que nós chamamos de humanidade. Como ele inviabiliza a criação de uma humanidade que seja projetada em direção ao futuro. 

Em seu livro “Por uma outra globalização”, o professor Milton Santos reflete sobre a globalização com fábula, com perversidade, a globalização como possibilidade, nos convidando justamente a uma nova construção global. É chegada a hora de acabarem as barreiras que impedem a igualdade entre os povos, com mais oportunidade e acesso a todos?

Sim. O professor Milton Santos, que é uma grande referência intelectual, há muitos anos enxergou isso que a gente falava. Ou seja, quando ele anunciou a necessidade de se pensar numa nova globalização, ele estava justamente falando sobre pensar uma nova forma de relações econômicas e sociais a partir desse modelo existente hoje. ]

Eu estou falando do quê? Eu estou falando que o professor Milton Santos está nos convidando a pensar como vai ser fundamental que nós mudemos a forma com que nós reproduzimos a nossa economia, além da maneira com que nós organizamos nossas instituições políticas e como elas são baseadas na violência, na repressão, na discriminação. Isso em nome de um determinado modo de organização da economia.

 Ele está nos convidando, portanto, a redesenhar, a reconfigurar a nossa forma de relação uns com os outros e a nossa forma de relação com o planeta. Ele está olhando para o regional, para o local, mas ele entende que tanto o regional como o local são resultado de uma interação com o global. Genial. 

A gente vive um tempo de retrocessos, nas mais variadas áreas, ao longo dos últimos anos do governo Bolsonaro. Qual o impacto desses acontecimentos nas discussões raciais do país, em especial nos partidos progressistas e nas instituições democráticas de direito?

Bolsonaro é um sintoma. É importante dizer isso. O bolsonarismo é um sintoma de um país que tem problemas estruturais muito graves, que carrega consigo pendências que não se resolveram ao longo da história, que se juntam mais uma vez em um contexto global de crise que vai certamente levando à ascensão de fascismos e de versões mais diferentes da extrema direita. E a nossa versão da extrema direita, a nossa versão do fascismo damos o nome de bolsonarismo.

Ou seja, é a soma das nossas deficiências estruturais, da decadência das nossas instituições políticas, e também de uma soma de sentimento de precarização da vida. O Brasil é um país que não consegue vencer a dependência econômica, o que se reflete na desigualdade profunda, reflete na precarização do trabalho, reflete nessa tentativa frequente de captura do orçamento público por parte de grupos específicos, grupos privados, empresários. E isso reflete também na violência social. Isso é a dependência econômica.

O segundo problema é a nossa aversão à participação popular nos processos políticos, ou seja, uma aversão à democracia, o autoritarismo. Nós não conseguimos criar espaços públicos de resolução de processos, formas de participação popular efetiva. ]

Então, vejam como o bolsonarismo se alimenta muito disso. E, por fim, a questão fundamental que é sua pergunta: o racismo. O racismo é uma questão estrutural no Brasil, no sentido de que o racismo organiza as hierarquias sociais, organiza a vida cotidiana, organiza o imaginário brasileiro. 

Então, não tenha dúvida. O bolsonarismo está diretamente relacionado ao aprofundamento do racismo no Brasil, ao racismo escancarado, e eu vou ser mais direto ainda. Eu acho que o bolsonarismo traz para o Brasil de maneira aberta, de uma maneira mais forte algo que é tipicamente dos países como os Estados Unidos, países da Europa e África do Sul.

Ou seja, o que você tem com o bolsonarismo é o flerte com a extrema direita racista nazifascista internacional e uma construção de um pensamento de supremacia branca no Brasil. O detalhe é que eles não estavam bem delineados na realidade brasileira. Nós estamos falando de supremacismo branco, e uma espécie de demonstração escancarada de que se pensa os negros, indígenas a partir de um prisma de inferioridade.

Então, eu acho que está tudo ligado. A dependência econômica, a aversão à democracia, o autoritarismo, o racismo são problemas estruturais no Brasil que se aprofundam no momento de crise e que o bolsonarismo é o veículo fundamental disso. Uma coisa que eu acho que é nossa tarefa nos próximos anos é, tal como os alemães tiveram a tarefa de desnazificar a Alemanha, nós vamos ter que desbolsonarizar o Brasil.

Qual o papel do poder público no combate ao racismo e na promoção da igualdade racial no Brasil e como o senhor viu a vitória do presidente Lula para o combate a intolerância e ao próprio racismo estrutural do país?

O poder público tem papel fundamental. Mais uma vez, nós temos que aprender a trabalhar com as contradições e até com os paradoxos. O racismo só consegue se reproduzir se houver a participação das estruturas políticas estatais.

Ou seja, na criação de um imaginário permanente de racismo, de inferioridade dos negros e indígenas no Brasil... É fundamental que haja uma ação estatal em torno disto. As desigualdades que se refletem na vida das pessoas negras no Brasil são também parte de uma ação ou de uma omissão estatal, porque no fim das contas o estado age também se omitindo. E nesse sentido o estado é fundamental, é um território em permanente disputa. E, portanto, é fundamental uma ação estatal no combate ao racismo. Isso tem efeitos mais perversos, que é o extermínio da juventude negra que ocorre no país, nas periferias, nas favelas.

Então, se o estado é capaz de provocar isso, esse mesmo estado em disputa e nas suas contradições, ele tem papel fundamental também para barrar isso. Então, a vitória do presidente Lula é, de fato, uma abertura de caminhos e acho que se abre também a possibilidade de uma disputa por esse território, um estado que a sociedade brasileira tanto clama... Abre-se, com o presidente Lula, a possibilidade de organizarmos programas de redução da desigualdade, abre-se a possibilidade de disputarmos sim programas de proteção à juventude negra.

Ou seja, o presidente Lula nos coloca da melhor maneira possível em uma encruzilhada. O que quer dizer isso? Ele nos coloca, portanto, diante de caminhos e possibilidade, o que é uma coisa boa. Porque até então nós estávamos sem esse caminho, sem essa possibilidade. Então, agora nós precisamos escolher os melhores caminhos, disputar os melhores caminhos nessa encruzilhada que a vitória do presidente Lula nos colocou. Portanto, acho que a perspectiva em torno de um efetivo combate à desigualdade racial no Brasil agora se faz no campo da disputa institucional, o que é muito importante para nós.

O senhor é uma das grandes vozes antirracistas do país e tem boas chances, inclusive, de se tornar ministro do presidente Lula, caso a pasta da Justiça seja desmembrada da Segurança Pública e pode também lá na frente ser indicado para uma vaga no Supremo. Como estão essas articulações?

São especulações. Nada foi conversado a respeito disso. Isso é uma decisão que cabe única e exclusivamente ao presidente Lula, que pelo que eu saiba ainda não tomou nenhum tipo de decisão. O que eu posso dizer pessoalmente é que eu estou na equipe de transição para ajudar o Brasil da melhor maneira possível. E a equipe de transição serve para fazer um diagnóstico sobre o estado de coisas que se encontram no Brasil, depois da devastação que foi o governo Bolsonaro nos últimos 4 anos.

Então, o que nós vamos fazer, junto com os companheiros e companheiras da equipe de transição, é entregar ao presidente Lula esse diagnóstico, colocando todos os nossos melhores esforços para que ele possa tomar as decisões que lhe cabem e que são resultado do mandato que o povo brasileiro deu a ele.

Em relação a mim, nada posso dizer, nada foi decidido, nada foi resolvido. Não há nenhuma articulação nesse sentido e, mais uma vez, essas decisões são tomadas única e exclusivamente pelo presidente Lula e a sua equipe e estou à disposição para servir ao Brasil agora na equipe de transição na área de direitos humanos.

Como pensar uma política de segurança pública e as questões raciais diante do contexto atual do Brasil, além dos problemas estruturais, sistêmicos, históricos e sociais das causas da violência que sempre acaba penalizando jovens, negros e a população menos favorecida?

Não existe política de segurança pública que não passe por uma redistribuição do que nós entendemos por segurança. Segurança de quê? Segurança para quem? Nós pensamos segurança no Brasil como segurança para o patrimônio e segurança para as instituições e para o estado. O que nós temos que pensar agora é segurança para as pessoas. Segurança para os negros, para os indígenas.

Então, veja, o estado brasileiro historicamente tem sido veículo de desorganização da vida comunitária. O estado tem entrado nas comunidades, desorganizado a vida das pessoas em nome da segurança. Segurança dos mais ricos, dos brancos, dos moradores dos centros urbanos e das localidades mais ricas e mais abastadas da sociedade.

O que nós precisamos fazer a partir de agora é redefinir a ideia de segurança para pensar a segurança como um veículo, primeiro, de organização comunitária. Segundo, a segurança tem que ser pensada a partir de um prisma necessariamente antirracista.

Não existe a possibilidade de pensar segurança se não pensar também como a gente consegue colocar na agenda da chamada segurança pública políticas antirracistas. Eu quero dizer que o racismo é um fator de insegurança social, um fator de conflito.

Então, toda política de segurança pública que não pense na questão racial está simplesmente realimentando os instrumentos de violência e fazendo com que o estado, mais uma vez, desorganize a vida comunitária e coloque as pessoas dentro de um prisma de insegurança. Então, a gente tem que rever isso. Rever a nossa noção de segurança e, a partir daí, criar os instrumentos sociais para proteger a vida das pessoas mais pobres, para proteger a vida dos negros. E parece uma coisa muito comum, parece uma coisa trivial, mas não é trivial.

Porque, veja, o aparato de segurança não é utilizado para que as pessoas negras, as populações mais fortes sejam protegidas. Então, como é que a gente consegue criar formas, sistemas de proteção? Outra coisa que eu acho fundamental: no Brasil, precisamos ressignificar a relação entre segurança e território.

Nós precisamos estender aos territórios das favelas, das periferias, dos lugares mais pobres, mais afastados, precisamos estender também essa possibilidade de que as pessoas sejam respeitadas. Eu estou dizendo isso porque eu considero, por exemplo, que uma política de direitos humanos no Brasil não pode ser só uma política que levante bandeiras éticas e diga o seguinte: olha, nós respeitamos os direitos humanos. Não é isso. Nós precisamos, portanto, fazer da política de direitos humanos, que é uma política de segurança pública, tem que estar conectado.

Política de segurança pública é política de direitos humanos. Nós precisamos, portanto, fazer com que isso seja difundido também ideologicamente. Então, é uma disputa ideológica. No sentido de dizer que a forma correta de se pensar segurança é pensar a partir de uma política que respeita os direitos humanos. E quem não entender isso, eu falo inclusive das autoridades, tem que ser responsabilizado. Falar de direitos humanos não quer dizer que não tenhamos que usar a força do estado, que nós não tenhamos que ser mais duros. Mas essa dureza, essa força tem que ser usada para proteger as pessoas de populações mais vulneráveis.


No true crime à brasileira, a vítima é sempre negra

Folha de São Paulo Piauí*

Em 300 anos de escravidão regulamentada por lei, mais 41 anos de República Velha, uma década e meia de Era Vargas, 19 anos da hoje chamada Quarta República (1946-1964), 21 anos de ditadura e pouco mais de 30 desde a promulgação da Constituição de 1988, a sociedade brasileira ostenta uma característica de impressionante imutabilidade, que é também um de seus pilares: a violência racial. Só nos 34 anos que se seguiram à redemocratização, quando houve certo consenso em oficializar a distribuição irrestrita da cidadania, já tivemos: policial acusado de homicídio qualificado alegando que a vítima foi responsável por sua própria morte ao ter dado cabeçadas na porta de uma viatura; secretário de Segurança Pública promovendo PM que entrou numa favela e executou moradores sumariamente; Ministério Público arquivando casos cheios de provas de tiros à queima-roupa; Tribunal de Justiça anulando condenação do júri… Este texto poderia ser todo ele uma lista.

Entre 2021 e 2022, o Núcleo de Justiça Racial e Direito da FGV-SP se dedicou a analisar oito casos dessa lista: o massacre no presídio do Carandiru (1992); a execução sumária de Mário Josino na Favela Naval (1997), em Diadema (SP), quando policiais militares foram filmados agredindo moradores; a chacina do Borel, no Rio de Janeiro, com quatro execuções sumárias (2003); o desaparecimento do corpo do pedreiro Amarildo Dias de Souza, na favela da Rocinha, no Rio (2013); a chacina do Cabula (2015), quando a Polícia Militar executou doze jovens negros na Vila Moisés, Salvador (BA); a tortura e morte de Luana Barbosa dos Reis (2016), em Ribeirão Preto (SP); o massacre de Paraisópolis (2019), quando o cerco da Rota ao baile da DZ7 resultou na morte de nove jovens; e o assassinato de João Alberto Silveira Freitas por forças da segurança privada no Carrefour do Passo d’Areia (2020). São oito casos, 140 mortes e, até muito recentemente, apenas nove condenações confirmadas. Isso porque foi somente ontem – 17 de novembro de 2022, mais de 30 anos após os fatos – que o Supremo Tribunal Federal declarou o trânsito em julgado da condenação de 74 policiais militares acusados de participar do Massacre do Carandiru.

O estudo Desafios da Responsabilidade Estatal pela Letalidade de Jovens Negros: Contextos Sociais e Narrativas Legais no Brasil (1992-2020) investiga o que acontece depois que crimes cometidos por agentes de segurança vão parar nas mãos das instituições do sistema de justiça criminal. O projeto também deu origem a um memorial online que documenta cada uma das histórias e um podcast com oito episódios chamado Justiça em Preto e Branco.

Todo o projeto parte de dois consensos no campo acadêmico antirracista voltado para a relação entre raça, justiça e violência: 1) no Brasil, a letalidade policial afeta desproporcionalmente a população negra; 2) a ausência de responsabilização do Estado nesses homicídios. Partindo dessas duas premissas, analisamos as respostas institucionais às mortes, considerando também demandas históricas do associativismo negro e das articulações políticas lideradas por familiares de vítimas.

Ocorridas em diferentes momentos do pós-redemocratização, as oito histórias tiveram em comum repercussão midiática e mobilização social. Pensamos que a atenção pública poderia ter motivado respostas mais eficientes à violência letal contra a população negra. Mas, mesmo nesses casos marcantes, não houve o mínimo zelo procedimental por parte de autoridades, em especial, das do sistema de justiça criminal, que, em vez disso, têm aprimorado um repertório, ao mesmo tempo padronizado e adaptável, de práticas e discursos para não responsabilizar indivíduos e órgãos do Estado. 

Investigamos então os mecanismos, normas, recursos administrativos e interpretações jurídicas mobilizados nesses processos de não responsabilização. Como essas narrativas jurídico-institucionais criadas em torno dos assassinatos cometidos por policiais reproduzem valores de uma cultura e uma prática jurídicas racializadas? Qual o impacto das mobilizações e da pressão da mídia? Repercussão e mobilização redundaram em mudanças políticas? Foram algumas de nossas perguntas.

O foco foi a Justiça, já que a engrenagem que faz a administração burocrática das mortes conta com autoridades judiciais, as quais aceitam acriticamente versões de policiais sob investigação. Outra peça chave aqui é o Ministério Público, que se destaca em todos os casos por não desempenhar sua função constitucional de controle externo das polícias, tanto na avaliação de operadores do direito, quanto de familiares de vítimas e ativistas que ouvimos. 

Dos 28 anos entre o primeiro caso – Massacre do Carandiru (1992) – e o mais recente – Beto Freitas (2020) –, identificamos algumas linhas de continuidade. Entre elas, decisões discricionárias proferidas em 2ª instância anulando as (raras) condenações de policiais em primeira instância pelo Tribunal do Júri. Isso ocorreu em três dos oito casos analisados – o que, na verdade, representa a totalidade de casos que havia ido a júri até o momento de realização da pesquisa. Na Chacina do Borel, uma das condenações, que já havia inclusive recebido um segundo veredito do Tribunal do Júri, foi anulada pela 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio, em 2005. A justificativa se apoiou na inusitada afirmação de que os jurados haviam se mostrado vacilantes e incoerentes ao responderem às perguntas direcionadas ao Conselho de Sentença.

Nos casos do Massacre do Carandiru e da Favela Naval, condenações do Tribunal do Júri também foram modificadas em 2ª instância. O Coronel Ubiratan, que conduziu a invasão da Casa de Detenção de São Paulo, em 1992, e foi originalmente condenado a 632 anos, teve sua sentença revertida, em 2006. De forma semelhante, no ano 2000, desembargadores do TJSP anularam o júri de Otávio Lourenço Gambra, o “Rambo”, PM responsável pela morte do mecânico Mário José Josino, vítima fatal do caso Favela Naval, sob a justificativa de que a decisão dos jurados havia contrariado a prova dos autos. Avaliou-se que não existiam evidências para condenar o policial por outras três tentativas de assassinato: somente foi admitida a condenação quanto à morte de Josino, que, além de ter sido filmada, “Rambo” confessou. 

A anulação de veredictos do Júri é apresentada como medida excepcional na Constituição Federal. Nas histórias que estudamos ela é a regra.  A investigação dos homicídios cometidos por policiais está entregue às próprias corporações, que tendem a corroborar narrativas de legítima defesa, ainda que diante de provas irrefutáveis de execução. E o Poder Judiciário, em vez de se contrapor, dá continuidade a essa cadeia de chancelamento das versões policiais. A Chacina do Cabula exemplifica outra estratégia nesse sentido: a absolvição sumária dos acusados, sem que sequer houvesse instrução processual ou Júri. Nesse caso, a decisão foi posteriormente anulada, mas atrasou significativamente o andamento processual.

Nesse sentido, duas mudanças são urgentes: a legitimação das versões das testemunhas de acusação, bem como de eventuais vítimas sobreviventes; e o reconhecimento do racismo como motivador da violência policial e impulsionador do modo de agir do Poder Judiciário.

Todos os levantamentos apontam que negros morrem mais do que brancos, por homicídios em geral e pela ação da polícia. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública indicam que, em 2021, das 6.145 vítimas de mortes decorrentes de intervenções policiais, 84,1% eram negras. As cifras de guerra racial tornam mais escandalosa a ausência de respostas também em termos de políticas públicas que, junto com o sistema de justiça, tem contribuído deliberadamente para o apagamento das evidências do racismo de Estado.

A linha temporal dos casos analisados explicita, de outro lado, a importância das estratégias de familiares, movimentos e organizações internacionais no estímulo ao debate e no questionamento dos silêncios institucionais sobre o peso de raça, gênero, sexualidade e classe/território, nas mortes provocadas por policiais. Assim, os casos de Luana Barbosa, Amarildo, João Alberto e Paraisópolis chegaram ao Judiciário a partir da denúncia do racismo como causa das mortes.

O que observamos na Justiça são barreiras a esses argumentos. O caso de Luana Barbosa é paradigmático por demonstrar a retirada sistemática do conteúdo referente à raça ao longo das instâncias do fluxo processual. Na cidade de Ribeirão Preto, SP, em abril de 2016, Luana, mulher negra e lésbica, saía de casa com o filho quando foi abordada por uma viatura com três policiais homens. Luana, que na ocasião vestia roupas consideradas masculinas, reivindicou seu direito de ser revistada por uma policial mulher – protesto ao qual um dos PMs reagiu com a frase “se quer andar que nem homem, vai ser tratada como homem”, seguida de socos e chutes, com os agentes chegando a esfregar seu rosto no chão. Tudo na frente do filho, então com 14 anos, e de outras testemunhas. Levada à delegacia na condição de agressora dos policiais, Luana foi liberada no mesmo dia. Em mais cinco, ela morreria em decorrência de lesões cerebrais, que ocorreram no caminho até a delegacia. 

Na última movimentação processual acompanhada pela pesquisa na 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de SP, mesmo com o arcabouço probatório e a sustentação oral da assistente de acusação abordando a problemática do racismo interseccionado a gênero e classe, a decisão dos desembargadores foi por manter a sentença de pronúncia dos réus no artigo 121, caput, do Código Penal, mas afastar as qualificadoras indicativas do motivo de agir dos policiais: racismo e sexismo. Os PMs declararam que foi Luana que jogou repetidas vezes sua cabeça na porta da viatura, sendo a responsável por sua própria morte. A decisão dos magistrados foi ratificada pelo procurador da República. 

A Pesquisa sobre Negros e Negras no Poder Judiciário (2021), do Conselho Nacional de Justiça, aponta que escolas de magistratura que atuam com a formação continuada não têm, em sua maioria, promovido cursos que abarquem temáticas relacionadas à raça. Apenas 32,6% das escolas tiveram cursos nos últimos doze meses envolvendo o assunto, e 16,9% das escolas mapearam o interesse de magistrados e servidores sobre isso. O desinteresse se reflete ainda na insuficiência de dados sobre o perfil de quem acessa a justiça na condição de usuário ou réu.

Compreender e reconhecer a composição de raça e gênero dentro das instituições da Justiça é uma tarefa primordial para o enfrentamento ao racismo institucional. Essa política somada às ações afirmativas e à educação continuada na temática racial são medidas que põem em questão a manutenção de uma maioria de juristas brancos desconectada dos efeitos do racismo no acesso à justiça.

Já a possibilidade de fortalecimento do controle social das polícias passa necessariamente por uma escuta simétrica das demandas e análises políticas dos movimentos negros e movimentos de familiares de vítimas da violência do Estado. Levando a sério o questionamento sobre a diferença entre o que o Estado chama de justiça e o entendimento das pessoas diretamente impactadas pela violência racial é que poderemos começar a caminhar para superar o silêncio e a negação, dupla de fiéis escudeiros do racismo no Brasil: um racismo que mata.

Texto publicado originalmente na Folha de São Paulo Piauí.


Magistrada avalia que intolerância cresce a olhos nus no DF e no país

 Arthur de Souza*, Correio Braziliense

Juíza substituta do Tribunal de Justiça do DF e Territórios (TJDFT), Paula Ramalho foi a entrevistada de ontem do programa CB.Poder, parceria entre Correio e TV Brasília. À jornalista Ana Maria Campos, ela destacou o aumento nos casos de racismo e de injúria racial no Distrito Federal, além de comentar sobre uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que acabou com a prescrição para o segundo tipo de crime.

Questionada sobre sobre a atitude agressiva de um policial militar com um negro, durante uma abordagem ocorrida neste fim de semana, em Planaltina, a magistrada disse que existe "uma ideologia disseminada e muito enraizada, não só no ambiente policial, mas na sociedade como um todo, que construiu a imagem do 'negro perigoso'."  

A gente publicou uma reportagem na semana passada mostrando que o número de casos de injúria racial e de racismo tem crescido no Distrito Federal. A senhora consegue constatar isso no dia a dia do seu trabalho?

Sim. Na verdade, tenho atuação predominante na área criminal e, ao longo desses oito anos em que desempenho a função de juíza no TJDFT, a gente tem se deparado com processos que chegam até nós envolvendo denúncias, seja relativas ao crime de injúria racial, seja relativo ao crime de racismo. Nos últimos tempos, a reportagem demonstra bem que houve um aumento do número de casos. E isso não é só no DF. Embora os números daqui causem um certo espanto, me parece ser um cenário nacional. Recentemente, foi publicado no Anuário de Segurança Pública, dados de 2021 e 2022 — consolidados em agosto — indicando que, no Brasil como um todo, houve um aumento expressivo dos casos de racismo.

Primeiro explique, por favor, qual é a diferença entre a injúria racial e o crime de racismo?

A injúria racial é um crime em que o que é atingido é a honra de alguém, é aquela apreciação subjetiva que a pessoa tem a respeito de si mesma perante a coletividade. Então, na injúria racial existe uma ofensa a uma pessoa determinada ou a um grupo de pessoas e, nessa ofensa, são utilizados termos e/ou palavras que digam respeito a sua cor, a sua raça, a sua etnia. Enquanto que os crimes de racismo têm previsão em uma lei específica, que é a Lei nº 7.716/1989. Essa lei traz vários tipos de crime de racismo que envolvem, na maioria das vezes, negar ou dificultar acesso a determinado bem, serviço ou produto. Por exemplo, há uma previsão de que se você negar matrícula ou dificultar a matrícula de alguém em estabelecimento de ensino por conta de cor, raça, etnia ou procedência nacional, isso configura um crime de racismo. A gente tem um passado de praticamente mais de três séculos de comércio escravagista. O Brasil foi o país que mais recebeu pessoas escravizadas vindas do continente africano e, mesmo após a abolição, a gente teve uma abolição formal, mas, do ponto de vista material, não foram dadas às pessoas negras as condições para que elas tivessem sua cidadania e sua dignidade garantidas pelo estado brasileiro.

A decisão do STF (sobre os crimes de injúria racial) foi importante. Explica para gente como foi isso?

Foi uma decisão dada em um habeas corpus, que é um processo que busca proteger a liberdade de locomoção de uma pessoa, e o ministro relator foi o Edson Fachin. É um caso que veio do DF, inclusive. A pessoa estava sendo acusada de injúria racial e o que ela dizia, em sua defesa, era que tinha passado o tempo do estado apurar e punir essa conduta ou, em termos jurídicos, houve a prescrição. O Ministério Público falou que não houve prescrição, porque a injúria racial, assim como o racismo, deve ser tida por imprescritível, já que a nossa constituição repudia o racismo e ela mandou que a lei considerasse o racismo crime inafiançável e imprescritível. Essa tese do Ministério Público acabou sendo acolhida pelo ministro Fachin quando ele diz que, tanto os crimes de racismo previstos na lei especial quanto a injúria racial prevista no código penal, são espécies de um mesmo fenômeno que é repudiado pela constituição, que é o fenômeno do racismo. Então, existe uma vinculação muito próxima entre essas duas figuras e, para que o racismo seja extirpado, ambas as figuras devem ser tratadas com rigor, e foi esse o entendimento que acabou acolhido por maioria no Supremo Tribunal Federal.

Essa decisão tem efeito de repercussão geral?

Ela foi dada em um processo que a gente chama de processo subjetivo ou individual, que é o habeas corpus. Mas, como foi uma decisão do plenário que, inclusive, faz referências a outros processos que o STF decidiu em sede de controle concentrado, ela tem uma força persuasiva muito grande, embora ainda não conte com esse efeito vinculativo.

A senhora considera essa decisão um avanço, em termos da legislação?

Com certeza. Aqui no DF, a gente tem, de certa forma, uma vantagem, porque o nosso tribunal é reconhecido pela sua celeridade. Dificilmente, casos de injúria racial, ainda que se considere prescritível, dificilmente prescrevem, porque a atuação da Justiça aqui é relativamente célere. Mas, infelizmente, essa não é a realidade do país como um todo. Assim, considerar a injúria racial prescritível, significa dizer que muitos casos deixarão de ser apurados e punidos porque passou muito tempo e a justiça não agiu de modo célere e, com essa decisão, isso não acontece mais, a qualquer tempo, essa prática poderá ser punida.

A senhora acha que algumas pessoas cometem esse tipo de crime por acreditarem que elas vão ficar impunes, que isso não acarreta uma pena ou uma punição?

Acredito que a incerteza ou a garantia da impunidade, sem dúvida alguma, atua como fator que serve como estímulo ou, pelo menos, deixa de inibir as pessoas que tenham esse tipo de conduta ou esse tipo de pensamento. Nos tempos atuais, temos visto uma compreensão muito "elástica" da liberdade de expressão, como se fosse um direito absoluto. Então, sem dúvida alguma, a falta de punição em relação a esse tipo de situação, pode servir como estímulo para que essa prática se perpetue, e que as pessoas se vejam no mínimo não desestimuladas a expressar esse tipo de pensamento.

Qual é a pena para esses tipos de crimes?

Para a injúria racial, que tem previsão no código penal, a pena mínima é de um ano, e a máxima é de três anos de reclusão, que é um tipo de pena privativa de liberdade. Já na 7.716/1989, que tipifica os crimes de discriminação racial, a gente tem pena variáveis, porque são cerca de 17 figuras criminais. Aí tem penas que variam de um a três anos, assim como a injúria racial, e tem umas que vão de dois a cinco anos, que é a maior das penas previstas nessa lei específica. Mas, pela quantidade de penas, a verdade é que, muito dificilmente, alguém iria cumprir essa pena presa. Muitas vezes, quando a pena não supera os quatro anos, pela nossa lei, o autor tem o direito de cumprir penas alternativas. Então, quando há a condenação, muitas vezes a pena é: prestar serviços para a comunidade, fazer o pagamento de prestação pecuniária para algum tipo de entidade que a justiça indique ou assinale. Então, a rigor, muito dificilmente a prisão vai ser a resposta do estado, que vai se dar por meio de outras penas, na maioria das vezes.

Por que a sociedade não avança no sentido de reduzir esse tipo de crime?

Essa é uma pergunta muito complexa e a resposta para ela, evidentemente, não é das mais simples. Vários pensadores intelectuais destacam que o racismo é um fenômeno estrutural na sociedade brasileira, que não se revela apenas nessas condutas individuais, em que alguém ofende a outra pessoa ou alguém, por exemplo, num restaurante, deixa de atender ou atende mal um cliente por conta de sua cor. O racismo, na verdade, é uma ideologia que está tão arraigada na sociedade brasileira, que faz com que as pessoas vinculem características da população negra a coisas negativas, não desejáveis ou não valorosas. Desarticular todo esse sistema e estrutura racista, em que se funda o estado brasileiro, é algo que demanda realmente muito tempo. Se a gente parar para ver, voltando rapidamente para a questão histórica, faz pouco tempo que o estado brasileiro começou a se movimentar para poder desarticular essa estrutura. A gente tem, por exemplo, uma lei de política afirmativa de cotas, tanto na parte educacional quanto no serviço público, que veio a completar 10 anos recentemente. A própria lei que criminaliza essas condutas de descriminação racial é de 1989, ou seja, completou pouco mais de 30 anos anos de vigência. A injúria racial mesmo, foi incluída no código penal em 1997, pouco mais de 20 anos. Então, se a gente pega três séculos em que o discurso racista foi incutido na sociedade brasileira e pega o período de tempo em que isso vem sendo desmontado ou desarticulado, acho que isso nos ajuda a entender o porquê de não ter havido ainda tantos avanços em relação a isso. E, de fato, a impressão que a gente tem no momento é que realmente há retrocesso, e acho que esse retrocesso está um pouco ligado ao tensionamento que há no tecido social brasileiro. A gente, nos últimos tempos, tem visto a olhos nus um crescimento da intolerância. E aí, os grupos mais vulneráveis são justamente, negros, mulheres, população LGBTQIA .

Como é que a senhora avalia essa política de cotas e de ações afirmativas para colocar e dar oportunidade para as pessoas de evoluírem, estudarem e crescerem?

Sou nordestina, minha família é de Alagoas. Quando tomei posse na magistratura, meus pais vieram e, à época, na cerimônia em si a gente tinha um desembargador negro. Aí eu lembro que um outro dia, conversando com meu pai, ele falando sobre esse tema de polícia de cotas, ele falou sobre esse desembargador e disse: "tá vendo? quem quer e se esforça, consegue!". Então, existe dentro da população, de um modo geral, esse senso comum de que com o esforço e com dedicação, as pessoas conseguiriam romper esses obstáculos causados por uma estrutura racista. Só que o ponto é que não é justo que pessoas por conta de sua cor, da sua raça, de sua procedência nacional e de sua etnia, tenham que enfrentar tantos obstáculos partindo de condições desiguais se comparadas às pessoas de pele branca, por exemplo. Assim, vejo a política de cotas como política de compensação, o estado brasileiro está compensando todos os danos que causou à população negra, historicamente falando, e também está buscando criar condições de igualdade de partida. Por mais que a gente encontre figuras que furam esse bloqueio, digamos assim, são poucas ainda.

A senhora acha que esse momento de embate eleitoral, muito pela polarização política, também pode incentivar esse atrito de racismo e descriminação?

Sim e, nesse caso, não se trata de uma mera opinião. A gente tem dados que confirmam aumento expressivo dos chamados crimes de ódio, que envolvem racismo, xenofobia e misoginia, nesse período eleitoral. Existe uma associação civil que recebe denúncias, digamos assim, de fatos ocorridos no ambiente virtual. E essa associação, em matéria divulgada até no site do Senado, indicou que neste ano de 2022 houve um aumento de cerca de 65% nas denúncias de situações, no ambiente virtual, envolvendo racismo, intolerância, preconceito, racismo contra as religiões de matriz africana e ofensas dirigidas às mulheres. Tudo isso cresceu bastante, até porque, se olharmos o cenário eleitoral como foi delineado, a gente viu que um determinado candidato — o que se sagrou vencedor — tinha um voto majoritariamente de pessoas negras e de mulheres. Isso acabou fazendo com que, no embate eleitoral, muitas vezes houvesse ofensas pautadas nesses marcadores: raça, gênero e procedência nacional, como no caso dos nordestinos. E tudo isso realmente ficou muito intensificado, dada a violência verbal que marcou todo esse período eleitoral, infelizmente.

A gente teve um caso nesse fim de semana (no DF), de um policial militar que foi agressivo com uma pessoa negra durante uma abordagem. Como se pune um caso como esse?

Existe uma ideologia disseminada e muito enraizada, não só no ambiente policial, mas na sociedade como um todo, que construiu a imagem do negro perigoso. A pessoa suspeita e que recebe as abordagens mais truculentas da polícia, em geral, tem cor, tem um perfil, e esse perfil é justamente da população negra, em especial do homem negro, que é muito vitimado por essas ações e abordagens ilegais, da maneira como são feitas, pelo menos, por parte da polícia. É claro que a gente não pode dizer que isso é um problema desse policial, em específico. Na verdade, o problema é estrutural e o combate a ele demanda atuação enérgica, não só dos órgãos de controle da polícia, como o Ministério Público — que tem por função também controlar e exercer a fiscalização da atividade policial —, como também um trabalho interno de educação antirracista dentro das próprias polícias, fazendo com que esses policiais, desde o seu ingresso na polícia, compreendam que existem protocolos a serem seguidos durante a abordagem, e que o motivo da abordagem jamais pode ser simplesmente essa fundada suspeita baseada na cor, no jeito de vestir, no jeito de andar e no local onde a pessoa está, de maneira isolada.

*Matéria publicada originalmente no Correio Braziliense


Militantes do Movimento Negro fazem ato na Praça dos Três Poderes em defesa dos negros e contra a violência racial no Brasil. (Foto: Pedro Ladeira/Folhapress, PODER)

Evangélicos negros dizem em manifesto que Bolsonaro usa fé para racismo

Folha de São Paulo*

Organizações negras evangélicas publicam nesta sexta-feira (28) o Manifesto Negro Protestante Brasileiro, com demandas do movimento. São 14 entidades, de 13 estados diferentes

Aos governantes, as entidades denunciam o extermínio e encarceramento da juventude negra, "intencionalmente promovida por parte do braço armado do Estado brasileiro".

Defendem a garantia da saúde da população negra e destacam que os problemas da pauta socioeconômica do Brasil, tais como queda do poder aquisitivo, crescimento do número de pessoas em situação de rua e o aumento da fome, são minimizados pelo governo do presidente Jair Bolsonaro (PL).

Denunciam ainda o racismo ambiental, cometido contra os povos originários, população ribeirinha, quilombolas, sendo a população negra a maioria desses contingentes.

As organizações afirmam ainda que a fé cristã foi usada pelo atual governo para justificar racismo, machismo e LGBTfobia e sustentam que a bancada evangélica no Congresso cometeu perjúrio e espalhou mentiras em nome de Deus. Criticam também a herança escravocrata existente ainda nas igrejas e o silêncio dos púlpitos em relação ao racismo.

Pedem também o reconhecimento da importância do movimento negro e que acolham, sem reservas, todas as manifestações culturais provenientes dele.

Por fim, o manifesto recomenda aos eleitores que escolham seus governantes tendo como base o voto laico.

Assinam o documento a Aliança de Negras e Negros Evangélicos do Brasil, Coletivo Reverendo Martin Luther King Jr., Coletivo Independente de Pessoas Negras da Igreja Metodista, Coletivo Negro Evangélico Cuxi, Coletivo Núbias, Coletivo O Que Tem no Brasil, Coletivo Zaurildas, Fórum de Negritude da Aliança de Batistas do Brasil, Grupo de Estudos Antirracista África Bíblica, GT "Teologia e Negritude" da FTL, Movimento Negro Evangélico do Brasil, Pastoral de Negritude Igreja, Batista do Pinheiro, Pastoral da Negritude Rosa Parks e Rede Mulheres Negras Evangélicas.

"Considerando que a população negra é o maior número de adeptos do protestantismo brasileiro, é importante que organizações negras evangélicas manifestem-se sobre esse momento histórico que vivemos, de ameaça à democracia e do bem-estar e qualidade de vida dessa população", afirma Vanessa Barboza, secretária executiva da Rede de Mulheres Negras Evangélicas.

Segundo ela, o manifesto sinaliza uma "voz profética" de denúncia do perigo que correm e dos danos já causados pelo governo Bolsonaro nos últimos anos.

Texto publicado originalmente na Folha de São Paulo.


Em nota, Igualdade 23 repudia ataques racistas contra Seu Jorge

Cidadania23*

A Coordenação do Coletivo Igualdade 23 do Cidadania divulgou nota pública (veja abaixo), nesta quarta-feira (19), na qual repudia ‘os ataques racistas contra o cantor Seu Jorge, em Porto Alegre (RS), ocorridos na última sexta-feira (14), durante um show do artista em clube da cidade.

“Ainda que fique provado, o que Seu Jorge nega, que a violência tenha sido desencadeada após manifestações político-partidárias, não há justificativa para os ataques”, diz trecho do texto.

A nota também chama atenção para o fato de o País já ter arcabouço jurídico para punir casos de racismo, e para que esse caso ‘sirva de incentivo ao combate ao racismo e violências correlatas, ocorram com qualquer pessoa e em qualquer lugar do Brasil’.

“O racismo à brasileira é persistente e desconhece reputações, condição social ou carismas

Os ataques racistas contra o cantor Seu Jorge em Porto Alegre ocorridos na última sexta-feira, 14, demonstram o quanto essa chaga social é persistente e incomodamente diversificada no país, ou seja, atinge pessoas de diversas classes socias, gente simples, de classe média e até personalidades de reconhecida reputação e carisma social como o caso do artista, cantor e ator, amado por muitos públicos.

Ainda que fique provado, o que Seu Jorge nega, que a violência tenha sido desencadeada após manifestações político-partidárias, não há justificativa para os ataques. Sabidamente, é bastante usual que ícones das artes se manifestem publicamente sobre suas preferências ideológicas, sem que isso legitime virulência por parte do público onde quer que seja.

Até aqui é animadora a reação da direção do Grêmio Náutico União, palco do triste episódio, que prometeu tomar todas as providências cabíveis para que o assunto não fique na impunidade nas estatísticas.

Apesar disso, gera suspeita a informação de que os administradores do local apagaram todas as fotos e vídeos que envolviam a apresentação do cantor.

Entra em cena a Polícia Civil do Rio Grande do Sul, instituição a quem cabe as investigações via inquérito para apurar as denúncias de racismo contra Seu Jorge.

O que vem sendo veiculado é que parte do público ofendeu o cantor o comparando a um “macaco”, insulto acompanhado de imitações corporações, segundo testemunhas do ocorrido.

É instigante a propósito desse fato recordar que a primeira lei contra a discriminação racial brasileira, a Afonso Arinos, teve a tramitação e aprovação impulsionada pelo caso de racismo contra uma bailarina negra. Katherine Dunham, afro-americana, impedida de se hospedar em um hotel em São Paulo devido à sua cor de pele, em 1951.

Não esperamos que o desrespeito a essa estrela das artes, nesse caso um brasileiro, Seu Jorge, se traduza em nova legislação. Já temos suficiente arcabouço para punir casos assim. Clamamos que o imbróglio sirva de incentivo ao combate ao racismo e violências correlatas, ocorram com qualquer pessoa e em qualquer lugar do Brasil.

Coordenação do Coletivo Igualdade 23 do Cidadania

Texto publicado originalmente no portal do Cidadania23.


O advogado e sociólogo José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares - Mathilde Missioneiro - 18.out.22/Folhapress

O voto negro pode e deve salvar o Brasil

José Vicente* | Folha UOL

Forjados na resistência ancestral da luta e do combate à escravidão, ao racismo e à exclusão, os negros subverteram a lógica política de raça inferior imposta pelo racismo branco e a ideologia da branquitude e colocaram por terra o destino manifesto da ciência eugenista brasileira, que apontava o dia e a hora para sua eliminação e apagamento do imaginário da nação. Diferentemente do vaticínio, transformaram e converteram a falsa sina arquitetada em renascimento, superação e potência para a construção dos meios para a erradicação da desigualdade de direitos, oportunidades e participação social. E, para tanto, o caminho da política foi e é inevitável.

Todavia, se a luta e a resiliência negra serão sempre o combustível para a realização dessa infinita jornada de transformação, foi e é a democracia restabelecida —formalizada a partir da Constituição Cidadã de 1988 e de suas premissas de garantia e prevalência dos direitos humanos, combate ao racismo, garantia da igualdade racial, promoção das ações afirmativas e defesa da dignidade da pessoa humana— que constituiu e consolidou os pilares fundamentais para a ressignificação e valorização da sua trajetória histórica e social, do fortalecimento da autoestima, do pertencimento, da inclusão e da esperança.

As eleições de 2022 evidenciaram tudo isso, além do novo peso e protagonismo do negro na cena política brasileira. Representando 54% dos brasileiros, a maioria dos evangélicos, dos católicos e das mulheres, os negros se transformaram numa força votante poderosa e poderão reger e definir os destinos das forças políticas do país. Neste pleito, pela primeira vez na história a maioria dos candidatos (49,49%) se autodeclarou negra, ante 48,93% de brancos. Houve ainda dois candidatos negros à Presidência da República: Léo Péricles (UP) e Vera Lúcia (PSTU).

Os negros agora passam a responder por 25% dos senadores, 26,5% dos deputados federais e 40% dos 15 governadores eleitos no primeiro turno. Entre os parlamentares, 23% estão no espectro da esquerda, e 52% no da direita.

Alguns dos deputados federais negros eleitos em 2022

Deputada federal Silvia Cristina (PL-RO)

Deputada federal Silvia Cristina (PL-RO) Gabriela Biló - 18.mai.22/Folhapress

A democracia, a luta e a resistência, mas também a contribuição das forças progressistas e de esquerda, até aqui recepcionaram e ajudaram a efetivar as mais importantes reivindicações sociais, políticas e comunitárias desses brasileiros —elementos consolidadores de uma construção evolutiva. Foi com Leonel BrizolaFernando Henrique CardosoLuiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff que a história milenar dos negros chegou às escolas e aos livros escolares e seus personagens tornaram-se heróis nacionais, ganharam feriados estaduais e municipais. Tornaram-se nomes de prédios, viadutos, praças e ruas. Foi com Lula e Dilma que os negros chegaram aos cargos de ministros de Estado e da Suprema Corte. Com eles e com as cotas raciais nas universidades e serviços públicos, negros se formaram médicos, advogados, juízes, promotores de Justiça, diplomatas, empresários e oficiais das Forças Armadas.

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Tornaram-se protagonistas nos filmes e novelas e estamparam as primeiras páginas de revistas e jornais.
Pode ser pouco, mas já foi algo revolucionário. Perder essas conquistas significará retornar à estaca zero, sem qualquer possibilidade de começar de novo. Todos esses avanços, sua consolidação e ampliação somente são e serão possíveis e indestrutíveis num ambiente de profundo respeito aos fundamentos democráticos. Onde a democracia seja inegociável e defendida. Onde a prevalência do respeito às instituições e à dignidade da pessoa humana sejam valores prioritários, inexpugnáveis e inconcessíveis.

Cotistas reafirmam importância de cotas para acessar universidade

O advogado Nelson Moralle, 60, foi cotista da primeira turma de direito da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) que aceitou cotas, em 2013
O advogado Nelson Moralle, 60, foi cotista da primeira turma de direito da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) que aceitou cotas,  Eduardo Anizelli/Eduardo Anizelli/Folhapress

Numa disputa eleitoral em que um dos lados se apresenta como perigo e afronta à ordem pública e às instituições e se manifesta abertamente como possibilidade de ruptura e destruição da democracia e de seus valores, mais do que obrigação, é uma exigência que o eleitor negro consciente coloque-se de pé e faça do seu voto instrumento de garantia das suas conquistas e de segurança e defesa da democracia e do país. O voto negro pode e deve salvar o Brasil.

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

*José Vicente é advogado, sociólogo e doutor em educação, é fundador e reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, apresentador do programa "Negros em Foco" (TV Cultura), líder do movimento "Cotas sim" e membro do Conselho Editorial da Folha

Coluna publicada originalmente na Folha UOL


Revista online | Quilombos Urbanos: Identidade, resistência e patrimônio

Wanessa Sabbath*, especial para a revista Política Democrática online (48ª edição: outubro/2022)

Nosso país é plural em diversidade natural, cultural, religiosa e o papel de qualquer liderança em nosso país vem com a responsabilidade de abranger e respeitar todos os povos, entre eles, os povos originários indígenas e quilombolas. Diferente do conceito civilista de propriedade privada, quilombos e aldeias são porções de terra do território nacional habitadas por uma ou mais etnias como os indígenas e quilombolas. 

Esses povos originários abrangem suas atividades produtivas para sustento próprio, como plantio de alimentos, confecção de artesanatos para além de garantir seu bem-estar, necessário à reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições que são guardados e mantidos a séculos. Além do zelo imprescindível à preservação dos recursos naturais, nossos povos têm por costume manter uma relação muito mais saudável e sustentável de contato com a natureza – bem como os patrimônios diversos construídos pelas mãos dos nossos antepassados.

Veja todos os artigos da edição 48 da revista Política Democrática online

Os quilombos são exemplos de respeito e acolhimento da diversidade, local onde existiam africanos e indígenas de diferentes etnias, bem como representantes de diferentes povos de resistência comungando do mesmo espaço, onde o respeito e a preservação das histórias e costumes de cada um constitui a base das vivências.

"É um direito humano e universal a vida, a liberdade e a segurança pessoal sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”. Esses e outros artigos estão, na íntegra, publicados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (resolução 217 A III) em 10 de dezembro de 1948.

É por isso que, como brasileiros, diversos, plurais, nos cabe esse papel de refletir. É por isso também que devemos fazer esse resgate diário sobre o que é o nosso país e quem somos.

Confira, a baixo, galeria de imagens:

Região quilombola no municpio de Presidente kennedy em Espírito Santo | Foto: Leonardo Mercon/Shutterstock
Vacinação Quilombolas | Foto: Igor Santos/Secom
Casa Amarela Quilombo Afroguarany antiga Mansão Florentina
Fotos da rua da consolação na época do café
Casa Amarela Quilombo Afroguarany antiga Mansão Florentina (1)
Quilombo em 1920
Região quilombola no município de Presidente kennedy em Espírito Santo
Tia Eliza
Vacinação Quilombolas
Quilombo do Frechal
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Casa Amarela Quilombo Afroguarany antiga Mansão Florentina
Fotos da rua da consolação na época do café
Casa Amarela Quilombo Afroguarany antiga Mansão Florentina (1)
Quilombo em 1920
Região quilombola no município de Presidente kennedy em Espírito Santo
Tia Eliza
Vacinação Quilombolas
Quilombo do Frechal
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O Brasil é um imenso Quilombo! 

O quilombo é o epicentro do fenômeno da quilombagem, que foi organizado e dirigido pelos próprios africanos escravizados durante o escravismo brasileiro em todo o seu território. Um verdadeiro movimento de mudança social provocado, que desgastou significativamente o sistema escravista, social, econômico e militar, contribuindo para a crise do escravismo, que mais tarde foi substituído pelo trabalho “livre”. Os quilombos foram muito mais do que esconderijos de povos de resistência: foram, com certeza absoluta, a maior forma de protesto, luta e resistência contra o sistema escravista e um espaço onde os pretos puderam desenvolver seus costumes e reafirmar sua identidade. Estes espaços de resistência não ocorreram apenas nas áreas rurais, existem muitos relatos da existência também em áreas urbanas. Esses locais ou eram cômodos e casas coletivas no centro da cidade ou núcleos semi-rurais. Vale ressaltar que importantes núcleos negros nasceram desse tipo de configuração.

No final do século XIX, quando muitas mudanças ocorriam no Brasil, como a “abolição” formal da escravatura, e a adesão ao regime político republicano, a cidade de São Paulo se consolidava com a mudança de ricos fazendeiros da lavoura de café. Os cafeicultores foram morar nas regiões da Avenida Paulista, Campos Elíseos e Higienópolis, trazendo consigo pretos escravizados e trabalhadores domésticos “livres”, que foram residir próximo aos seus senhores e patrões em residências coletivas conhecidas como Quilombos Urbanos ou Irmandades Negras, na área central da cidade.

Sobre a autora

*Wanessa Sabbath é cantora, compositora, atriz e fundadora da @casaamarelaquilombo, ocupação cultural que visa abrir espaço à cultura afro-brasileira integrando as periferias ao centro da cidade utilizando a arte como transformador social.

** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de outubro de 2022 (48ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.

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Dez anos de cotas raciais nas universidades (Foto: Agência Brasil)

71% dos estudos sobre cotas raciais avaliam política positiva, mostra análise

Geledés*

Levantamento realizado pelo Consórcio de Acompanhamento das Ações Afirmativas em 980 publicações sobre políticas de ação afirmativa no ensino superior brasileiro aponta que 71% dessas pesquisas avaliaram positivamente as cotas raciais e 62% as cotas sociais. Os estudos analisados foram publicados entre 2006 e 2021.

Sobre as cotas raciais, 53% dos estudos avaliaram a política como “bastante positiva”, 18% como “levemente positiva” e 12% como negativas (com 16% sem identificação clara). Já em relação às cotas sociais, 43% foram “bastante positivas”, 19% “levemente positivas” e 12% negativas (25% sem identificação).

Esse é um dos achados que foram apresentados nesta quinta-feira no evento “Dez anos da Lei de Cotas: resultados e desafios”, no Museu Afro-Brasil, no Parque Ibirapuera, em São Paulo.

Na primeira parte do evento, dedicada à importância das cotas, Sueli Carneiro, fundadora da Geledes – Instituto da Mulher Negra, defendeu a Lei de Cotas especialmente em um “cenário temerário que clama pela defesa intransigente de projetos de democratização da educação” no país.

— Queremos de volta aquela democracia de baixo impacto que, apesar dos pesares, nos garantiram avanços como a Lei de cotas. Que a coragem demonstrada pela sociedade no dia de hoje nos inspire a defender estas conquistas — afirma a filósofa e escritora que é pensadora central sobre o feminismo negro.

O consórcio, que inclui especialistas da UFRJ, UnB, UFBA, UFMG, UFSC, Unicamp e Uerj, foi criada, frisam os acadêmicos, como contraponto à “ausência de propostas do governo federal para a revisão da Lei de Cotas, prevista para este ano”. O grupo tem, entre seus objetivos principais, entender as consequências de uma década com a legislação em vigor no ensino superior, saber se os beneficiários conseguem concluir suas graduações e adentrar no mercado de trabalho, analisar trabalhos acadêmicos sobre o tema e comparar o desempenho entre cotistas e não-cotistas no momento em que entram nas universidades e durante a graduação.

A Lei das Cotas completa dez anos em 2022. No entanto, houve uma fase experimental que durou de 2002 a 2007, quando a política chegou a 40 instituições de ensino superior públicas brasileiras. Depois disso, entre 2008 e 2011 o país viveu uma fase em que o Reuni, programa de expansão das universidades federais, garantia incentivos para quem implementasse as cotas. Só em 2012 foi aprovada a lei federal.

De 2001 a 2020 o número de pretos, pardos e indígenas matriculados em universidades públicas no Brasil passou de 31% para 52% do total de estudantes. E os de classe C, D e E de 19% para 52%. Os dados, amealhados pelo Consórcio de Acompanhamento das Ações Afirmativas a partir de informações incluídas na Pnad Contínua, são de alunos de todos os cursos universitários de instituições federais, estaduais e municipais, de 18 a 34 anos, e não incluem apenas os que entraram nas faculdades através da Lei Federal de Cotas e de outras políticas afirmativas. Eles foram

— Neste período, também houve um aumento de quase 6% do número de pessoas que passaram a se identificar como pretos, pardos e indígenas no país, mas, sozinho, isso não explica tamanha mudança da cara do ensino superior brasileiro. As cotas, como apontam vários estudos produzidos desde 2012, foram fundamentais para aumentar o interesse destas pessoas pela universidade — diz o sociólogo Luiz Augusto Campos, professor de Ciência Política do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-Uerj) e um dos 31 acadêmicos de sete universidades e oito grupos de pesquisa que criaram o Consórcio no fim do ano passado.

Uma das pesquisas destacadas no encontro desta quinta-feira, comandada pelas professoras de ciência política da UFMG Ana Paula Karuz e Flora de Paula Maia compara justamente o desempenho médio de cotistas e não-cotistas no Enem de ingressantes em todos os cursos da universidade (admitidos entre o primeiro semestre de 2016 e o segundo semestre de 2020) com o desempenho acadêmico no mesmo período. O resultado mostra uma desvantagem significativa dos alunos cotistas pretos, pardos e indígenas de baixa renda em relação aos não-cotistas que não se repete na média da nota semestral global de graduandos da UFMG, em que a diferença se esvai.

— Fica claro que a desvantagem destes alunos (cotistas) nas etapas anteriores do ensino não influem no desempenho durante o curso superior. E não se trata de uma especificidade da UFMG. A UFBA está em processo final de pesquisa comparativa de desempenho e os resultados são semelhantes — diz Campos, que é coordenador do Observatório das Ciências Sociais (OCS) e do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA) da Uerj, pioneira na implantação de políticas afirmativas no ensino superior, uma década antes da implementação da Lei Federal de Cotas.

Já Ana Paula Karruz, explica que a diferença de desempenho é de apenas 5 pontos numa escala de 0 a 100, em 85 dos 86 cursos analisados.

— A mensagem é clara, uma vez que entram na universidade o desempenho é muito próximo. A lição da UFMG é que não prestamos qualquer apoio às ideias de que haveria queda acadêmica. O foco é o oposto: há um desempenho superior, se relacionado diretamente às notas do Enem — afirmou Ana Paula Karruz, da UFMG.

Um dos casos mais interessantes apresentados no encontro foi o da UFSC, instituicao publica no estado mais branco do país. Em 2005, 8.5% dos estudantes da instituição eram negros para uma população de 11,7% de negros. Com a adoção da lei de cotas em 2008 o quadro foi mudando e em 2000 os números se equipararam: 18.8%. Mais: no curso de Medicina, de 2008 a 2012 apenas 3% dos médicos formados eram negros, de 2017 a 2021 passou para 23%.

— Buscar essa igualdade entre estudantes e o números de pretos e pardos na população era o mínimo que queríamos fazer em uma universidade pública. Mas talvez foi possível conseguir este aumento neste período porque o número de beneficiados não passa de 20%, a grita é menor — afirma o professor Mauricio Tragtenberg, da UFSC.

Outra pesquisa inédita mostrou o aumento do número de estudantes pretos, pardos e indígenas em todas as universidades federais, de 2012 a 2016. Os números mostram o aumento especialmente em cursos tradicionalmente classificados como “de elite”, como Relações Internacionais, Medicina, Odontologia, Direito e Engenharia

— Os números mostram que as políticas afirmativas aplicadas não criaram guetos de exclusão — afirmou o pesquisador Adriano Senkevics, do INEP.

Senkevics também lembrou que a velocidade do avanço de entrada de estudantes de classe C, D e E (menos favorecidas) diminuiu nos últimos anos e que a pandemia deve ser um fator para a desaceleração, mas faltam dados para se confirmar esta percepção e entender essa detecção “preocupante”.

Outro estudo, qualitativo, do sociólogo Jefferson Belarmino de Freitas, do IESP-Uerj, e do cientista político João Feres Júnior, também da Uerj, concluído em maio, mostra, através de entrevistas com os graduandos, como as cotas raciais na instituição fluminense ultrapassaram os benefícios individuais e aumentaram a disseminação de valores antirracistas.

O racismo se tornou mais perceptível nas vidas de estudantes pretos e pardos, por exemplo, ao passarem a circular em espaços nos quais a presença de negros ainda é minoritária, e no próprio processo de aprendizado social que os levam a articular melhor a dimensão do problema. Os efeitos sociais e políticos da disseminação de valores antirracistas, proporcionados pelas cotas, ultrapassa, defendem os pesquisadores, os portões das universidades e chega, como revelam os depoimentos, às famílias e locais de trabalho dos beneficiados.

Amparado por pareceres de diversos juristas e da ONG Conectas Direitos Humanos, o Consórcio defende que a Lei de Cotas, não pode, de forma alguma, ser suspensa se a revisão prevista para este ano for adiada para 2023. Na avaliação de especialistas em ensino superior, a lei em vigor não prevê sua revogação após dez anos, mas sim uma reavaliação. Hoje, 109 universidades públicas adotam algum tipo de ação afirmativa, contra 79 em 2012 e apenas 6 em 2003.

— Há mais pessoas negras e pobres na universidade pública? Sim. Diferentes pesquisas mostram que houve uma grande diversificação racial e socioeconômica. Nossa avaliação é a de que o saldo é claramente positivo e que melhorias pontuais podem ser propostas e feitas a partir de dados e pesquisas – diz Campos.

*Texto originalmente publicado no Geledés.


O antirracismo na prática | Foto: digitalskillet /Shutterstock

O antirracismo na prática e o tratamento diferenciado às pessoas brancas

Geledés*

Se você é uma pessoa branca e ainda não leu Grada KilombaSueli Carneiro, Lélia GonzalezCida BentoÂngela Davisbell hooks ou Frantz Fanon talvez você esteja longe de exercer seu antirracismo de modo pleno e consciente. Por outro lado, entendo que apenas ler essas autoras e autores não faz de ninguém antirracista automaticamente, até porque, para este tipo de luta, é preciso bem mais que um envolvimento intelectual, mas acredito que ao lê-los, há grandes chances de você, pessoa branca, compreender com mais profundidade as nuances e sutilezas do racismo e, assim, captar as camadas dos argumentos e ações racistas com mais precisão.

Toda vez que vemos episódios de racismo ganhar espaço nas redes e nas grandes mídias geralmente são casos emblemáticos, como xingamentos e agressões racistas. Raramente vemos associados à outras cenas menos explicitas, mas tão violentas quanto. Digo isso, porque as “micros violências” que negros e negras são submetidos todos os dias não ganham relevância nem destaque. Por isso que, para além de denunciarmos esses casos nefastos de racismo explicito, é necessário também um aprofundamento nessa questão e que passa pela leitura dos autores e autoras que citei no início desta coluna.

Dias atrás, veio à tona mais um desses episódios assombrosos de racismo explícito. O caso envolvendo os filhos dos atores Giovana Ewbank e Bruno Gagliasso, rendeu aplausos e apoio público, principalmente à Giovana que partiu para cima de uma senhora racista, em Portugal. Aliás, muito simbólico que este caso tenha acontecido em terras portuguesas, o que demonstra que o país também precisa discutir com mais profundidade e urgência as questões raciais. Creio que Giovana fez o que tinha de ser feito: disse tudo que uma racista deve ouvir. O que evidencia uma postura ética de quem de fato não aceita o racismo de forma alguma.

Portanto, não há dúvidas de que Giovana exerceu o antirracismo na prática, tanto nas palavras, quanto nas ações. Foi de certo modo uma atitude bem didática de como pessoas brancas podem agir diante do racismo. Além disso, o fato de o episódio envolver crianças gerou ainda mais comoção e indignação. Em poucas horas a internet sacudiu com elogios à Giovana e mensagens de apoio. Lembrando também que essa não foi a primeira vez que o casal passou por situações parecidas como essa, por causa de seus filhos negros.

O fato é que o tratamento de apoio dado à Giovana também revela o quanto o privilégio branco incide até nestes momentos de denúncia, porque mostra o quanto esse mesmo privilégio pode mascarar a luta antirracista. Isto significa dizer que, pessoas brancas e famosas como é o caso de Giovana e Bruno, expõe uma sociedade que reconhece com mais facilidade e empatia a luta contra o racismo quando os protagonistas dessa luta são brancos. Essa constatação, por outro lado, não invalida e nem deve servir para inibir outras pessoas brancas de agirem com firmeza diante do racismo.

Pois a questão que se coloca aqui é a de que não há uma igualdade de tratamento entre brancos e negros mesmo quando estão do mesmo lado na luta antirracista. Porque não esqueçamos que homens e mulheres negras são vítimas dessas violências todos os dias, mas dificilmente ganham adesão e apoio popular nesta proporção. Isso quando não são qualificados como agressivos ou que não sabem dialogar. Em outras palavras, uma pessoa branca pode dizer o que quiser diante de um racista, pode pôr o dedo na cara sem qualquer receio de retaliação, ou de ser acusada de barraqueira, o que muito provavelmente não aconteceria com uma mulher negra na mesma situação.

Reforço que acho bastante positivo que Giovana tenha tido essa postura diante de um episódio de racismo e que se utilizou do seu lugar de privilégio e de prestígio para a luta antirracista. No entanto, não percamos de vista que ainda estamos longe, muito longe de uma igualdade racial no Brasil.

*Texto publicado originalmente no Geledés.


Arquivo/ Agência Brasil

Desnutrição aumenta no Brasil; índice é maior entre meninos negros

BBC News Brasil*

A desnutrição entre crianças de 0 a 19 anos cresceu, no Brasil, entre os anos de 2015 e 2021, afetando de forma mais grave os meninos negros. De acordo com o Panorama da Obesidade de Crianças e Adolescentes, divulgado hoje (26), pelo Instituto Desiderata, há um crescimento da fome nos últimos anos, levando à desnutrição em todos os grupos etários, de 0 a 19 anos de idade.

De acordo com o levantamento, o índice de desnutrição caiu de 5,2%, em 2015, para 4,8%, em 2018, aumentando a partir daquele ano em todos os grupos etários acompanhados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Em 2019, essa taxa subiu para 5,6%, atingindo 5,3%, em 2021.

A desnutrição entre meninos negros (pretos e pardos), entretanto, foi dois pontos percentuais acima do valor observado entre meninos brancos, ampliando a diferença a partir de 2018. O ápice foi observado em 2019 (7,5%). Em 2020, o percentual foi 7,2% e, em 2021, 7,4%.

Já entre os meninos brancos, a curva foi inversa, com redução do percentual da desnutrição a partir de 2019, quanto atingiu 5,1%, passando para 5%, em 2020, e para 4,9%, em 2021.

“Os meninos negros estão sendo mais afetados pela fome, pela desnutrição. A gente pode atribuir isso à desigualdade racial e de renda no Brasil. A gente sabe que a população negra ocupa as camadas mais pobres da sociedade, em detrimento da população branca, que ocupa outros grupos, como a classe média e classes mais altas”, apontou o gestor de Projetos de Obesidade Infantil do Instituto Desiderata, Raphael Barreto, doutorando em saúde pública pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Elaborado a partir de dados do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN) do Ministério da Saúde, gerados pelas unidades do Sistema Único de Saúde (SUS), o Panorama mostra aumento da insegurança alimentar de 2015 a 2021, aumentando as incidências de desnutrição e também de obesidade

Obesidade

O panorama apontou que o excesso de peso vem crescendo em todos os grupos raciais, mas, especialmente, entre os meninos brancos. “Meninos brancos têm sido mais afetados pelo excesso de peso. A gente pode atribuir isso também à insegurança alimentar”.

Barreto explicou que, no placar da má nutrição produzido pela insegurança alimentar, os grupos mais vulneráveis não têm acesso ao mínimo, que são três refeições por dia, e passam por um quadro de fome e desnutrição. Já outros grupos são afetados pela crise econômica e inflação, mas ainda conseguem comprar alimentos, em geral, ultraprocessados e açucarados, como macarrão instantâneo, salsichas, doces, sucos artificiais. “Produtos que fazem mal à saúde, mas que são possíveis comprar”.

Em 2021, a condição de excesso de peso decorrente da má nutrição foi mais registrada entre meninos de 5 a 9 anos de cor branca.

Nos últimos sete anos, o consumo de alimentos ultraprocessados na faixa etária de 2 a 19 anos superou 80%. Em 2021, 89% das crianças de 5 a 9 anos relataram o consumo de, ao menos, um ultraprocessado no dia anterior à avaliação de acompanhamento no SUS.

Feijão em falta no prato

Raphael Barreto chamou a atenção para a redução do consumo de feijão, no Brasil, ano após ano. Esse grão é considerado um marcador de alimentação saudável, fundamental para a prevenção da anemia por deficiência de ferro. Além disso, possui minerais, vitaminas e proteínas, ajuda a inibir o aparecimento de doenças cardíacas e a diminuir o colesterol.

De 2015 até 2020, o indicador referente ao consumo de feijão tinha valores acima de 80%. Em 2021, entretanto, a taxa diminuiu 30 pontos percentuais em todos os grupos etários de 2 a 19 anos, atingindo a marca de 54,5%.

“Em 2020, 84% das adolescentes de 10 a 19 anos tinham ingerido feijão na data anterior à consulta no SUS, sendo que a partir de 2021, esse número cai para 54,5%. Tem uma redução importante no consumo de feijão. A gente vê que a insegurança alimentar e a crise econômica estão tão fortes que um alimento básico, como o feijão, está faltando no prato dos brasileiros”.

Pandemia

Segundo o gestor de Projetos de Obesidade Infantil do Instituto Desiderata, o cenário pandêmico agravou as desigualdades sociais, potencializando os efeitos da crise econômica e tornando maior o quadro da obesidade, em função do distanciamento social.

Com a redução das atividades externas e o isolamento em casa, as crianças e os adolescentes estiveram expostos a mais tempo de tela (computador, televisão ou celular), reduziram as atividades físicas e a ida à escola.

“Isso também contribuiu para o aumento da obesidade, além, principalmente, do consumo de alimentos ultraprocessados. A gente percebe que tem um aumento no preço dos alimentos, em geral, como os minimamente processados, in natura, como verduras, frutas e legumes. As proteínas aumentaram de preço, mas os alimentos ultraprocessados não aumentaram tanto”.

Segundo Barreto, os alimentos ultraprocessados causam mal à saúde e trazem risco de aumento da obesidade, hipertensão, diabetes e outras doenças crônicas não transmissíveis. “As famílias não conseguiram mais manter a alimentação baseada em alimentos minimamente processados ou in natura e tiveram que migrar para o alimento que dá para comprar e que, ultimamente, é o ultraprocessado”, indicou.

Entre os adolescentes de 10 a 19 anos de idade, o consumo de alimentos ultraprocessados atingiu 86,8%, no ano passado, quase o mesmo índice de 2015 (86,9%), depois de cair para 82,2%, em 2020.

O panorama revela ainda tendência de crescimento desse índice. Entre janeiro e junho de 2022, o consumo de alimentos ultraprocessados já está em 93%. Também na faixa de 5 a 9 anos de idade, os alimentos ultraprocessados tiveram consumo de 89%, em 2021, com registro de 92,9% nos seis primeiros meses de 2022. “Nos últimos sete anos, há um aumento do consumo desses alimentos no Brasil, entre crianças e adolescentes”.

Alerta

De acordo com Raphael Barreto, o Panorama da Obesidade de Crianças e Adolescentes faz um alerta para o cenário da insegurança alimentar e da obesidade no país e para a necessidade de fortalecimento de algumas políticas públicas, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), destinado à rede de escolas públicas.

“Muitas crianças ficaram sem acesso à escola durante a pandemia, e aquele era o lugar onde podiam realizar, muitas vezes, a única refeição do dia”.

Para ele, é necessário fortalecer esse programa, baseado no Guia Alimentar da População Brasileira, que indica quais são os alimentos mais nutritivos, os que são mais indicados para a boa digestão e os que trazem mais benefícios à saúde.

As escolas também são importantes ambientes de proteção nutricional quando há políticas voltadas para as cantinas. “É preciso que as cantinas escolares não possam vender alimentos que causam mal à saúde das crianças e adolescentes, devendo fornecer alimentos minimamente processados ou in natura”, defendeu o gestor, destacando que a medida pode ser estendida a escolas privadas.

O Instituto Desiderata trabalha em articulação com o Poder Público e encaminhará o levantamento às secretarias municipais e estaduais de Saúde e Educação.

Ministério

Em resposta à Agência Brasil, o Ministério da Educação informou que o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) existe no país desde a década de 40 e tem apresentado avanços significativos com relação a seus objetivos, gestão, execução, abrangência e articulação com outros setores, além da educação.

“A agenda da prevenção da obesidade infantil é prioridade na gestão do Pnae desde 2017. Desde então, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) realiza a Jornada de Educação Alimentar e Nutricional (EAN) que incentiva o debate e a prática das ações de EAN no ambiente escolar e dá visibilidade àquelas já desenvolvidas nas escolas públicas de educação infantil, tendo como tema norteador a promoção da alimentação saudável e a prevenção da obesidade infantil no ambiente escolar”, explicou o ministério, em nota.

A pasta esclareceu que, em 2018, foi realizada uma pesquisa de cardápios, “um estudo transversal descritivo”, nas cinco regiões brasileiras, com objetivo de avaliar qualitativamente os cardápios planejados para as creches atendidas pelo Pnae, para monitorar a presença e a frequência dos grupos alimentares fornecidos para essa faixa etária.

O ministério informou também que, apesar da pandemia da covid-19 e do desafio das aulas remotas, o Fnde publicou a Resolução nº 06, em maio de 2020, que estabelecia novas regras para a alimentação escolar. Para as creches, em especial, a resolução trouxe a proibição expressa do fornecimento de produtos ultraprocessados, doces, uso de açúcar, mel e adoçantes para crianças até 3 anos.

Os principais documentos norteadores para as alterações das regras foram o Guia Alimentar para a população brasileira e o Guia Alimentar para crianças brasileiras menores de 2 anos. “A grande inovação é a substituição do termo alimentos básicos por alimentos in natura, minimamente processados, processados, ultraprocessados e ingredientes culinários, alinhados aos conceitos trazidos pelos guias.

Segundo o ministério, existem hoje parâmetros de aquisição de alimentos com recursos federais que determinam que, no mínimo, 75% dos recursos deverão ser destinados à aquisição de alimentos in natura ou minimamente processados; no máximo, 20% dos recursos poderão ser destinados à aquisição de alimentos processados e de ultraprocessados; e, no máximo, 5% dos recursos poderão ser destinados à aquisição de ingredientes culinários processados. Há ainda uma recomendação complementar de que seja, no mínimo, da ordem de 50 o número de diferentes tipos de alimentos in natura ou minimamente processados adquiridos anualmente pelos municípios.

Na avaliação do Ministério da Educação, o Pnae tem um papel fundamental na segurança alimentar e nutricional da população brasileira. Está presente nos 5.570 municípios brasileiros, “atendendo, de forma universal e em caráter suplementar, a mais de 40 milhões de estudantes da educação básica brasileira, em 150 mil escolas, incluindo as federais e as filantrópicas e comunitárias conveniadas com o poder público”. Equipes de nutricionistas elaboram os cardápios, respeitando os hábitos e cultura locais, “com alimentos adequados e saudáveis e, dependendo da etapa/modalidade de ensino, o estudante pode receber até 70% das necessidades nutricionais diárias”, afiançou a pasta, por meio de sua assessoria de imprensa.

*Texto publicado originalmente na Agência Brasil.


Parcela de negros entre os inscritos do Enem saltou de 51% para 60% entre 2010 e 2016

Enem mais negro: por que número de candidatos pretos e pardos cresceu ao longo dos anos

Thais Carrança*, Da BBC News Brasil em São Paulo

Entre 2010 e 2016, a proporção de pretos e pardos — grupos que juntos formam a população negra brasileira — entre os candidatos saltou de 51% para 60%, enquanto a parcela de brancos diminuiu de 43% para 35%.

Intrigado com a mudança, num período marcado pela adoção das cotas sociais e raciais nas universidades públicas, mas também pelo avanço do orgulho de ser negro no país, o pesquisador Adriano Senkevics decidiu investigar os motivos por trás dessa tendência.

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Seria o forte aumento no número de candidatos — que saltou de 4,6 milhões para 8,6 milhões em apenas seis anos — que estaria ampliando o acesso de grupos antes excluídos?

Ou, diante da alta concorrência, candidatos negros teriam de fazer a prova mais vezes até serem aprovados?

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E qual o peso nessa mudança de pessoas que antes se consideravam brancas mas, ao tentar a prova mais de uma vez, passavam a se autodefinir como pardas?

Ou então, que passavam de pardas a pretas, num processo de "escurecimento" da população também identificado em outras pesquisas demográficas, como a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) e o Censo do IBGE, que nenhuma relação têm com o acesso ao ensino superior.

Doutor em educação pela USP (Universidade de São Paulo) e pesquisador do Inep, órgão responsável pela realização do Enem, Senkevics descobriu que cada um desses três fatores contribuíram para a mudança, ainda que com pesos distintos.

Em artigo publicado neste mês pela Dados Revista de Ciências Sociais, periódico científico mantido pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), o pesquisador se debruçou sobre o tema.

A BBC News Brasil conversou com ele para entender melhor os principais resultados desse estudo, que é o primeiro a investigar o fenômeno da "reclassificação racial" — isto é, das pessoas que mudam sua autodefinição de raça ou cor — no Enem.

Uma mudança cultural no Brasil

Senkevics conta que muita gente pensa que ele decidiu olhar para o aumento da proporção de negros no Enem e o fenômeno da reclassificação racial dos candidatos pensando em captar fraudes nas cotas, mas ele deixa bem claro que essa não é a intenção do estudo.

"O que me motivou foi uma curiosidade científica com relação a esse movimento de as pessoas se classificarem cada vez mais como negras", diz o pesquisador.

"Trata-se de um fenômeno cultural brasileiro, que é a assunção cada vez maior da identidade e do pertencimento negro, num país historicamente racista e cujo racismo foi apoiado num processo de 'embraquecimento' histórico, de negação de identidades raciais negras e indígenas e desvalorização da história e cultura dessas parcelas da população", acrescenta.

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Legenda da foto,'Trata-se de um fenômeno cultural brasileiro, que é a assunção cada vez maior da identidade e do pertencimento negro', observa Senkevics

O estudo é dividido em três partes.

Na primeira delas, o pesquisador do Inep olha para os novos inscritos, ou seja, as pessoas que estão prestando o Enem pela primeira vez. Nesse grupo, o percentual de negros passou de 51,5% para 57% nos seis anos analisados.

Para Senkevics, a mudança no perfil racial aqui reflete alterações no cenário educacional brasileiro. A primeira dessas mudanças é o aumento na proporção de jovens que concluem o ensino médio, com redução da repetência e da evasão escolar nessa fase do ensino.

Como resultado desse processo, mais jovens de baixa renda, negros e estudantes vindos de famílias menos privilegiadas se tornaram aptos a tentar uma vaga no ensino superior.

"O perfil de quem termina o ensino médio foi se tornando cada vez mais heterogêneo e representativo da população", observa o especialista em educação. "O jovem de classe alta, de família mais escolarizada, já fazia o Enem. A novidade é que vai entrando um perfil novo, que vai aumentando sua presença cada vez mais nesse período."

Além disso, políticas de ampliação do acesso às universidades geraram um incentivo para estudantes que antes talvez não acreditassem na possibilidade de ingressar numa faculdade passarem a ter mais esperança com relação ao processo seletivo.

Entre essas políticas, o pesquisador cita o programa de bolsas de estudo Prouni, o programa de financiamento estudantil Fies, o sistema único de oferta de vagas Sisu e a lei de cotas.

Por fim, Senkevics destaca que esses novos inscritos estão sujeitos às mesmas mudanças culturais e demográficas identificadas na população brasileira em geral e, portanto, mais jovens talvez estejam se percebendo como negros mesmo antes de se inscreverem no Enem, contribuindo para a mudança no perfil racial dos novos inscritos.

Negros são maioria entre inscritos reincidentes

Na segunda parte do estudo, o pesquisador olha para os estudantes que prestam o Enem mais de uma vez. Em 2011, os inscritos reincidentes eram 36% do total, chegando a 65% em 2016.

Entre os estudantes que prestam o Enem uma ou duas vezes, há pouca diferença no perfil racial, com brancos superando pardos em cerca de 1 ponto percentual.

Mas, a partir da terceira tentativa, a parcela de pardos passa a superar a de brancos, chegando a 48% de pardos para 30% de brancos entre aqueles que se inscreveram sete vezes, uma diferença significativa, de 18 pontos percentuais.

Jovem negra em uma biblioteca
Pretos e pardos têm taxas de abstenção maiores nos dias de provas e médias de desempenho menores, fatores que ajudam a explicar porque negros prestam o Enem mais vezes

"A pessoa pode fazer o Enem quantas vezes ela quiser; como o ensino superior é muito disputado e o processo seletivo é muito afunilado, uma pequena parte dos inscritos vai ter sucesso", observa Senkevics. "Candidatos menos preparados, com origens menos privilegiadas, como boa parte da população negra, podem ser obrigados a fazer o exame mais de uma vez."

O pesquisador destaca alguns indicadores que mostram as dificuldades dos candidatos negros no Enem: pretos e pardos têm taxas de abstenção maiores nos dias de provas (quando a pessoa se inscreve mas não consegue comparecer no dia do exame) e médias de desempenho menores, em relação aos brancos.

Essas dificuldades podem levar um candidato a se inscrever novamente na prova. Quando isso acontece, surge a possibilidade de reclassificação racial, que ocupa a terceira parte do estudo.

Os candidatos que 'mudam de raça'

Na pesquisa, Senkevics buscou analisar como se dão esses movimentos de reclassificação entre brancos, pardos e pretos.

E o que ele encontra é que, apesar de as alterações acontecerem em todas as direções, o saldo líquido das mudanças resulta em uma redução de 5% no número de brancos, aumento de 1% no de pardos e ganho de 13,7% na quantidade de pretos.

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Legenda da foto,Senkevics analisou como se dão movimentos de reclassificação entre brancos, pardos e pretos

O pesquisador observa que vários dados sugerem que essa reclassificação tem pouca relação com possíveis tentativas de fraude.

Uma evidência disso, segundo Senkevics, é o fato de que mudanças semelhantes acontecem em diversas outras bases de dados que não têm qualquer incentivo para que as pessoas "se escureçam", como a Pnad, o Censo e a antiga Pesquisa Mensal de Emprego do IBGE.

Outro ponto é a reclassificação de pardos para pretos, uma mudança que não dá vantagem nenhuma na política de cotas, que é voltada para negros de maneira geral.

"A pessoa que é parda já é beneficiária da política afirmativa racial", observa Senkevics.

"Então o que eu entendo que explica essa grande migração de pardos para pretos é que não há outra motivação que não a questão cultural, porque a categoria 'preto' é muito mais alvo do processo de ressignificação do que 'pardo'", acrescenta o pesquisador.

"O pardo não é sequer uma categoria nativa, não é usada pelas pessoas nos seus processos de autoidentificação, é uma categoria mais demográfica do que exatamente sociológica", observa o analista.

"Enquanto isso, toda a questão da valorização da negritude vem muito em cima da ideia de ser preto. Então é uma categoria que tem uma militância maior, em torno da qual a conscientização racial se construiu e que marca mais uma diferença com relação ao branco."

O especialista destaca ainda estudos do pesquisador David De Micheli que mostram que a autoidentificação como preto é maior entre os mais escolarizados, o que estaria ligado à maior exposição dessa parcela da população ao debate antirracista, ao resgate da história afro-brasileira e de seus elementos culturais e à militância negra por direitos.

Queda no percentual de negros no Enem de 2021

Apesar do processo social de empoderamento da população negra em curso, o Enem mudou bastante desde o período estudado por Senkevics.

Desde 2016, o número de inscritos na prova tem caído ano após ano, recuando de 8,6 milhões naquele ano, para apenas 3,4 milhões em 2021.

A proporção de pessoas pretas, pardas e indígenas também diminuiu no ano passado, de 62,3% em 2020, para 55,7% em 2021.

Faixa estendida pelo coletivo artístico Frente 3 de Fevereiro no Museu de Arte do Rio questiona 'Onde estão os negros?'
Legenda da foto,Proporção de pretos, pardas e indígenas diminuiu no Enem do ano passado, de 62,3% em 2020, para 55,7% em 2021

Segundo analistas, diversos fatores explicam a redução no interesse pelo Enem. Um deles é que, desde 2017, a prova deixou de servir como certificação para o Ensino Médio.

O que explica menor número de inscritos no Enem em mais de uma década

A partir daquele ano, candidatos que não se formaram na idade usual e buscavam o diploma passaram a prestar o Encceja (Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos), que havia deixado de ser aplicado em 2009.

Os especialistas também apontam uma piora nas perspectivas de acesso ao ensino superior, com redução nas bolsas oferecidas pelo Prouni, queda acentuada nos contratos de financiamento firmados através do Fies e estagnação no processo de ampliação das vagas em universidades públicas.

A esse cenário, somou-se a pandemia, que afetou de forma muito desigual ricos e pobres, reduzindo a taxa de conclusão do ensino médio e fazendo com que muitos estudantes negros e de baixa renda não se sentissem preparados para tentar uma vaga no ensino superior.

Será preciso acompanhar nos próximos anos se o Brasil vai retomar sua trajetória de gradual inclusão de negros e filhos de famílias pobres nas universidades ou se serão duradouros os impactos causados pela pandemia e pelo desmonte das políticas públicas de educação apontado por especialistas.

*Texto publicado originalmente na BBC Brasil