negros

Cristovam Buarque: Lei incompleta

A Lei Áurea é considerada um marco social, pela extinção do regime escravocrata, e marco legal pela simplicidade de apenas um artigo: “É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil”. Nada mais do que 12 palavras e acabou a infâmia de tratar pessoas como mercadoria.

Esta simplicidade deixou a lei incompleta e de certa forma inócua para o propósito de ir além da proibição da venda, compra e propriedade de pessoas, e de servir também para a garantia da liberdade, promoção social e progresso dos afrodescendentes no Brasil. Aquele artigo simples foi capaz de acabar com os grilhões, mas não de incorporar a população negra à sociedade brasileira. Manteve-se a desigualdade, a exclusão, a pobreza e, consequentemente, o racismo.

Teria sido diferente se a Lei Áurea tivesse mais um artigo: “Fica estabelecido no Brasil um sistema único, público, de educação para todos”. Mas a lei ficou incompleta. Ao longo dos 134 anos de sua vigência, comemorados na semana que passou, o Brasil sem escravismo manteve a escravidão, porque sem educação as algemas físicas que aprisionavam os escravos se transformaram em algemas mentais que amarram todos os pobres brasileiros. Não apenas os negros, mas sobretudo estes, por formarem a maior parte dos pobres do País.

Ao longo destes 134 anos, desde 1888, o Brasil manteve uma desigualdade abismal entre a educação dos que podem pagar por uma boa educação e aqueles que não podem. Se desde aquela época os descendentes dos escravos e seus senhores estudassem em um mesmo sistema escolar com qualidade para todos brasileiros, ao longo destas três ou quatro gerações, a desigualdade que ainda existisse, além de pequena, seria graças ao talento dos que se dedicam aos estudos. A desigualdade não seria herança financeira, que termina sendo também herança racial. Sem o segundo artigo, a Lei Áurea ficou incompleta.

Além da lei incompleta de 1888, atravessamos toda a história pós-abolição e republicana sem acrescentar o artigo e outras ações que faltam. Por 40 anos depois da Lei, nem ao menos criamos um Ministério da Educação; quando criado já nos anos 1930, serviu para coordenar a educação da minoria dos filhos da população branca e rica, ou quase rica, nas poucas escolas de base que foram criadas ao longo das décadas. A obrigatoriedade de vaga aos seis anos só veio em 1988 com a Constituição; aos 4 anos, em 2013; a obrigatoriedade de vaga até os 17 anos, só em 2016; o Piso Nacional Salarial para o Professor, em 2008.

Até hoje, o Brasil deixa a educação nas mãos dos pobres e desiguais municípios. Foram feitas leis como a Merenda Escolar (1955), Emenda Calmon (1983), Livro Didático (1985), Fundef (1996), PNE-I (2001), Fundeb (2007), Piso Salarial do Professor (2008), PNE-II (2011), BNCC (2020), e o Brasil continua com educação entre as piores do mundo e provavelmente a mais desigual entre todos os países.

Até hoje, o Brasil não decidiu completar a Lei Áurea criando um Sistema Nacional de Educação de Base. A sociedade brasileira, seus eleitores e líderes continuam com a mesma visão da Princesa Izabel e do Primeiro-Ministro João Alfredo – basta o primeiro e único artigo da Lei Áurea, a educação de cada criança é assunto da família ou do prefeito, não do país. O resultado é que um século e meio depois da Lei Áurea, temos duas vezes mais adultos analfabetos do que no ano da abolição incompleta, todos eles pobres e quase todos afrodescendentes.

Na verdade, todos os governos seguintes, ditadura ou democracia, de direita ou esquerda, negaram-se a assumir a educação de nossas crianças como uma questão nacional: levar a sério o artigo da Constituição que assegura a educação como um direito de todos os brasileiros e tornar a educação como o vetor do progresso do país.

Nos navios negreiros, havia marujos com a tarefa de impedir os escravos desesperados pularem no mar, já que a morte deles era uma perda financeira para o proprietário. Hoje, não oferecemos escolas que assegurem a seus alunos quererem permanecer nelas, e se eles quiserem pular no mar da deseducação, aceitamos que o façam sem percebermos a perda que isso representa para o futuro de cada um deles, para suas famílias e para todo o País.

Faz 134 anos que demos alforria aos escravos, mas não os libertamos, porque não lhes demos a educação, sem a qual a liberdade é apenas uma ilusão. Por falta de um artigo a mais na Lei Áurea, mantivemos uma última trincheira da escravidão, mantivemos os descendentes dos escravos em um novo tipo de servidão e amarramos o progresso do país.

*Professor Emérito da Universidade de Brasília

Fonte:

Correio Braziliense

https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2021/05/4925679-lei-incompleta.html


Folha de S. Paulo: Um ano após Floyd, Minneapolis busca reforma policial ampla e preservar luto

Marina Dias, Folha de S. Paulo

Em um posto de gasolina desativado em Minneapolis, Eliza Wesley improvisou uma cabine de vigilância para tentar proteger o luto e a dor. Do outro lado da rua, ela vê o cruzamento onde George Floyd foi assassinado, há um ano, e intervém aos berros quando entende que alguém não está respeitando as homenagens ao homem que gerou a maior onda de protestos antirracismo nos EUA desde Martin Luther King.

“Este é um lugar sagrado”, explica Eliza, que se voluntariou para fazer a guarda diária do local cheio de velas, flores e cartazes coloridos. “As pessoas vêm aqui e querem fazer vídeos, fotos. Tudo bem, mas não é só disso que se trata. É sobre comunidade, sobre o que significa a gente continuar aqui, refletindo sobre o que aconteceu com um homem negro.”

De óculos escuros modelo aviador, jaqueta amarela florescente e boné, a americana de 52 anos se intitula encarregada da praça criada e mantida por moradores em memória do que aconteceu em 25 de maio do ano passado.

Ali, misturam-se certo alívio pela recente condenação do ex-policial branco Derek Chauvin —que sufocou Floyd com o joelho por quase dez minutos— e a espera exaustiva pela reforma no sistema policial, que parece longe de acontecer.

Enquanto Minneapolis abraça a volta à normalidade após os protestos e o fim das restrições da pandemia, o memorial sob os olhos de Eliza não quer normalizar nada. Logo na entrada de um dos quatro quarteirões interditados, a placa anuncia que aquele é um “estado livre”, espécie de santuário resguardado por pessoas negras que se revezam dia e noite, inclusive no rigorosíssimo inverno da cidade, que pode chegar a temperaturas de -15 ºC.

Um dos avisos é direcionado aos visitantes brancos: “Não faça ser sobre você. Venha escutar, aprender, lamentar e testemunhar. Lembre-se que você está aqui para apoiar, e não para ser apoiado.”PUBLICIDADE

Não há ódio, diz Eliza, mas pedido de respeito, como se aquele espaço fosse a forma de lembrar a todos que a luta continua. “Não dá para respirar, porque ainda não acabou.”

Durante os 22 dias do julgamento que condenou Chauvin em três categorias de homicídio, ao menos 64 pessoas foram mortas por policiais nos EUA. Duas delas eram o jovem negro Daunte Wright, baleado em uma abordagem de trânsito a poucos quilômetros de Minneapolis, e Ma’Khia Bryant, adolescente negra morta a tiros em Ohio, uma hora antes do anúncio do veredito.

Um ano depois do assassinato de Floyd, as mudanças estruturais na polícia avançaram pouco não só na cidade onde o crime aconteceu —e onde as promessas políticas eram mais ousadas—, mas também em termos de legislações federais.

Em março, a Câmara dos Representantes dos EUA aprovou a chamada Lei George Floyd de Justiça no Policiamento, que proíbe táticas policiais controversas, como o estrangulamento, e facilita o caminho para ações judiciais contra agentes que violarem direitos de suspeitos. Mas a medida parou no Senado, onde precisa de 60 dos 100 votos da Casa para ser efetivada.

Os senadores estão divididos hoje entre 50 votos para os democratas e 50 para os republicanos —com desempate nas mãos da vice-presidente Kamala Harris—, e analistas são céticos quanto ao apoio de ao menos dez republicanos a um projeto como este.

Em Minneapolis, a Câmara Municipal chegou a prometer no ano passado desmantelar o Departamento de Polícia e reconstruir o sistema de segurança com a ajuda da comunidade, mas a proposta acabou naufragando.

O prefeito Jacob Frey, do Partido Democrata, é contrário à ideia, e vereadores, que antes defendiam a ideia, recuaram diante da pressão de moradores.

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Pesquisa realizada em agosto pelo jornal local Star Tribune mostra que diminuir o tamanho do Departamento de Polícia não conta com apoio maciço da população. Cerca de 40% dos moradores de Minneapolis eram favoráveis à ideia, e, entre residentes negros, o índice era de 35%.

Até agora, a cidade aprovou um projeto de lei que proíbe estrangulamentos e coloca em prática novos requisitos para diminuir a violência nas abordagens da polícia, mas ativistas e especialistas querem mais.

Vice-presidente da Fundação Minneapolis, Chanda Smith Baker diz que o caso de Floyd foi um marco histórico, mas ainda não é possível dizer que as manifestações produziram resultados significativos e permanentes na estrutura policial.

“É claro que, pela quantidade de atenção e o quão perturbado o mundo estava com a morte de Floyd, algo diferente aconteceu. Mas isso só vai importar se continuarmos a pressionar por mudanças em todos os níveis”, afirma. “Só porque houve vitória em um lugar não significa que transformamos o sistema.

A polícia americana mata cerca de mil pessoas por ano, sendo que os negros têm probabilidade quase três vezes maior de serem as vítimas em comparação aos brancos. Segundo levantamento da Universidade Estadual de Bowling Green, 104 policiais não federais foram presos por acusações de homicídio do início de 2005 a junho de 2019. Destes, apenas 35 foram condenados.

Chanda diz que o racismo sistêmico, a falta de compreensão dos americanos sobre o problema e a pouca vontade política em impulsionar mudanças explicam parte desse cenário difícil de ser revertido.

“As comunidades não são ingênuas. Ter um oficial [Chauvin] responsabilizado não indica que outros também serão. Há um reconhecimento de que não podemos permitir que o julgamento e seu veredito sejam o fim da história.”

Morador de Minneapolis, Damien Markham afirma que a condenação de Chauvin veio “apenas para a gente não colocar fogo na cidade de novo”.

Aos 33 anos, ele ajuda na manutenção da praça em homenagem a Floyd e diz que a solução para acabar com “o ciclo sem fim” de assassinatos de pessoas negras por policiais é inclusão econômica. “Eles não matam pessoas negras com dinheiro, matam pessoas negras pobres. Se tivermos dinheiro, eles vão nos deixar em paz.”

O memorial de Floyd virou ponto turístico e foco de disputa entre ativistas e a prefeitura de Minneapolis, que quer reabrir a rota para carros e ônibus no cruzamento entre as movimentadas rua 38 e avenida Chicago, onde o crime aconteceu. Moradores dizem que, desde que a praça foi montada, com uma escultura de punho fechado no meio —símbolo de solidariedade e resistência—, o policiamento na região diminuiu.

Na terça (11), Cory S. estava mostrando o local para a mãe, que vive no Texas. “Tem menos policiamento agora, mas também mais consciência sobre racismo e desigualdade social.”

Especializada em trabalhos com populações marginalizadas, Chanda afirma que “sempre vai haver necessidade de algum nível de policiamento”, mas é possível chegar a um meio termo entre o que existe hoje e o desmantelamento total da corporação. “Violações de trânsito, problemas de saúde mental ou de abuso de substâncias químicas, por exemplo, não devem ser atendidas com estratégias de policiamento.”

Parlamentares de Minnesota, onde fica Minneapolis, estudam proposta que permitiria a equipes de saúde mental responderem, em alguns casos, a chamados de emergência. Mas o Senado do estado, controlado por republicanos, não parece disposto a aprovar a medida.

As divergências políticas sobre o tema se espalham por todo o país. Legisladores nos 50 estados americanos apresentaram mais de 2.000 projetos de lei relacionados ao policiamento no ano passado, e só cerca de 12 deles conseguiram chancelar medidas mais abrangentes.

O presidente Joe Biden tem pressionado os parlamentares a aprovarem a reforma no sistema policial, e o Departamento de Justiça decidiu investigar se a polícia de Minneapolis tem “padrão ou prática” de discriminação ou uso de força excessiva nas abordagens, o que foi considerado um progresso.

Diante de um sistema historicamente racista, Biden precisa fazer da questão racial prioridade se quiser avançar com mudanças que nem mesmo Barack Obama, o primeiro presidente negro dos EUA, conseguiu implementar.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/05/um-ano-apos-floyd-minneapolis-busca-reforma-policial-ampla-e-preservar-luto.shtml


Abolição não significa libertação do homem negro, diz historiador e documentarista

Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP

historiador e documentarista Ivan Alves Filho, licenciado pela Universidade Paris-VIII (Sorbonne) e pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris em História, diz que “o 13 de Maio deixou marcas profundas na vida nacional”, em artigo publicado na revista Política Democrática Online de maio (edição 31), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília.

“A passagem da ordem escravista para a capitalista se processara a duras penas, após três séculos e meio de trabalho compulsório”, afirma ele, na publicação. Todos os conteúdos da revista podem ser acessados, gratuitamente, no portal da FAP.

Veja a versão flip da 31ª edição da Política Democrática Online: maio de 2021

De acordo com o documentarista, a passagem ocorreu em um período de transição relativamente longo até o capitalismo, quando, segundo ele, formas não capitalistas ainda se apresentavam em diferentes pontos do país, entre os séculos 19 e 20. “Estou-me referindo à meia, ao colonato, ao aviamento e ao barracão”, pondera.

“Mas se a abolição libertou o homem escravizado, isso não significa que tenha libertado o homem negro. Uma vez livre, o negro de todos os quadrantes do país encontrara inúmeras dificuldades para se integrar à nova realidade marcada pela dominação cada vez mais acentuada do capital”, analisa o autor, no artigo publicado na revista Política Democrática Online.

Segundo Ivan, em 1823, ao propugnar por uma ruptura gradual com o modo de produção escravista, José Bonifácio já havia advertido para a necessidade de, paralelamente, realizar uma reforma agrária que possibilitasse a inserção social do negro.

Veja todos os autores da 31ª edição da revista Política Democrática Online

“Ele não só não seria ouvido, mas também D. Pedro II regulamentaria, em 1850, uma Lei das Terras que praticamente impediria o aceso do trabalhador negro à propriedade no campo. Essa lei foi sancionada exatamente no mesmo ano da supressão do tráfico negreiro, anunciando o começo do fim da escravidão”, analisa

Na avaliação do historiador, se, por um lado, o negro não seria mais escravizado, por outro, permaneceria atrelado ao latifúndio. “Ou seja, a terra deixava de ser doada no Brasil, só podendo ser obtida mediante compra a partir daí. E era muito difícil ao descendente de escravos, naturalmente, reunir recursos suficientes para adquirir uma gleba para trabalhar”, acentua.

A íntegra da análise do historiador está disponível, no portal da FAP, para leitura na versão flip da revista Política Democrática Online, que também tem artigos sobre política, economia, tecnologia e cultura.

O diretor-geral da FAP, sociólogo Caetano Araújo, o escritor Francisco Almeida e o ensaísta Luiz Sérgio Henriques compõem o conselho editorial da revista. O diretor da publicação é o embaixador aposentado André Amado.Leia também:

Santos Cruz: ‘Instituições não aceitarão ações aventureiras do governante’

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Fonte:


RPD || Ivan Alves Filho: 13 de Maio, um ponto de convergência

Como única revolução social brasileira até o momento, ao consagrar juridicamente uma mudança que já vinha se operando no modo de produção, o 13 de Maio deixou marcas profundas na vida nacional. A passagem da ordem escravista para a capitalista se processara a duras penas, após três séculos e meio de trabalho compulsório. E ocorreu um período de transição relativamente longo até o capitalismo, quando formas não capitalistas ainda se apresentavam em diferentes pontos do país, entre os séculos XIX e XX. Estou-me referindo à meia, ao colonato, ao aviamento e ao barracão. 

Mas se a Abolição libertou o homem escravizado, isso não significa que tenha libertado o homem negro. Uma vez livre, o negro de todos os quadrantes do país encontrara inúmeras dificuldades para se integrar à nova realidade marcada pela dominação cada vez mais acentuada do capital. 

Lá atrás, ou seja, em 1823, ao propugnar por uma ruptura gradual com o modo de produção escravista, José Bonifácio já nos advertira para a necessidade de, paralelamente, realizar uma reforma agrária que possibilitasse a inserção social do negro. Ele não só não seria ouvido, mas também D. Pedro II regulamentaria, em 1850, uma Lei das Terras que praticamente impediria o aceso do trabalhador negro à propriedade no campo. Essa lei foi sancionada exatamente no mesmo ano da supressão do tráfico negreiro, anunciando o começo do fim da escravidão. Se, por um lado, o negro não seria mais escravizado, por outro, permaneceria atrelado ao latifúndio. Ou seja, a terra deixava de ser doada no Brasil, só podendo ser obtida mediante compra a partir daí. E era muito difícil ao descendente de escravos, naturalmente, reunir recursos suficientes para adquirir uma gleba para trabalhar. 

Outro ponto que me parece fundamental tem que ver com uma certa incompreensão do caráter das transformações sociais entre nós. Ainda que tivesse combinado diferentes formas de luta, que iam dos embates armados dos quilombolas às manifestações na imprensa e no próprio Parlamento, prevaleceria a saída institucional. A Abolição, nunca é demais lembrar, foi uma luta nacional, de negros e brancos. Nem o Estado tinha força suficiente para barrar as mudanças nem a sociedade civil conseguia alterar tudo de chofre ou colocar o Estado abaixo. Daí a via negociada. Nem revolução nem conciliação: negociação.  

Eis o que nos desnorteia um pouco. A isso vem se somar outra particularidade do processo histórico brasileiro: a escravidão teve por aqui um conteúdo étnico, o que já não ocorria na escravidão antiga. Durma-se com um barulho desses.  

Por outro lado, talvez caiba recordar a lição dada pelo samba de enredo da Vila Isabel, em 1888: é preciso um certo “jogo de cintura…(para fazer) valer seus ideais”. Dir-se-ia que a Abolição entendeu essa nossa particularidade, logrando convergir todas as lutas para o campo institucional.  

*Ivan Alves Filho é historiador, licenciado pela Universidade Paris-VIII (Sorbonne) e pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris em História; jornalista e documentarista brasileiro. É autor de mais de uma dezena de livros.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de maio (31ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

Fonte:


O Globo: Sem política de inclusão, elite das Forças Armadas não tem diversidade

Thiago Herdy, O Globo

Representação de pretos na elite militar é inferior à observada na população em geral Foto: Editoria de Arte

SÃO PAULO — O topo da carreira nas Forças Armadas reproduz a desigualdade existente em outras instâncias de comando de instituições públicas e empresas privadas no país. Documentos de Marinha e Aeronáutica, obtidos pelo GLOBO via Lei de Acesso à Informação, mostram que apenas três integrantes da elite — todos da Força Aérea — se declaram pretos, em um universo de 228 militares do alto escalão. Os retratos, colocados lado a lado aos dos 172 colegas do Exército — que não dispõe dos dados, o que dificulta inclusive a mudança do quadro, segundo especialistas —, evidenciam a falta de diversidade.

InfográficoVeja o retrato da desigualdade nas Forças Armadas

A representação de pretos na elite militar é apenas um quinto daquela encontrada na sociedade brasileira como um todo. Entre os oficiais-generais da ativa (nomenclatura que contempla o topo das três Forças), apenas 1,75% são pretos, número que vai a 9,4% na população geral. Como as informações dos dados oficiais nem sempre seguem o padrão de cor definido pelo IBGE — na Marinha, por exemplo, há a possibilidade de se autodefinir como “moreno” —, O GLOBO acrescentou à lista a observação das fotografias de todos os oficiais-generais. A identificação visual incorporou outros quatro oficiais pretos aos três autodeclarados, totalizando sete num universo de 400. Nenhum deles ostenta quatro estrelas, o grau máximo que um oficial da elite pode atingir.

Estudo sobre representatividade racial nos espaços decisórios da Aeronáutica, publicado no ano passado pela Escola Nacional de Administração Pública, apontou a ocorrência de “um importante quadro de desigualdade racial” na “distribuição de espaços de poder” da Força Aérea. O trabalho menciona, no entanto, que não se trata de uma particularidade, mas o “retrato fiel do quadro de exclusão social presente no Brasil”.

Em países com debate público sobre igualdade racial nas Forças Armadas, como os Estados Unidos, oficiais de cor preta representam 9% dos comandantes da instituição, percentual mais próximo à representação de pretos na população norte-americana — 13%, segundo o último Censo.

Diretor-executivo do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert), o advogado Daniel Silveira ressaltou que a própria ausência de dados sobre militares em postos de comando reduz a capacidade de modificação do cenário:

— A negação de discussão se equivale à negação da construção de um país mais inclusivo. Considerando que as Forças Armadas também são instituição pública e empregadora, você não pode simplesmente excluir dos espaços mais empoderados a população negra. Ela também quer se ver refletida neste espaço de decisão.

Silveira diz ser importante reconhecer que os pontos de partida para acesso a oportunidades não apenas no Exército, Marinha e Aeronáutica, mas em toda sociedade, são diferentes para cada grupo.

— O próprio STF já afirmou que uma meritocracia que não considera os diferentes pontos de partida equivale a uma espécie de aristocracia velada.

Oportunidades e herança

Com a experiência de quem discute a desigualdade entre pretos e brancos no mundo corporativo, o sociólogo Mário Rogério, do Ceert, avalia que, conforme uma pessoa preta avança na hierarquia, mais discriminação sofre.

— Ocupar este lugar (de comando) não foi algo pensado para o negro. Atuar como soldado raso, fazer comida, cuidar da limpeza, este foi o lugar pensado para ele — aponta Rogério, acrescentando que é “difícil ter voz de defesa” quando se está isolado.

A progressão na carreira militar ocorre por critérios diversos, como concurso público, antiguidade, experiência medida por pontuação e escolha direta de superiores hierárquicos. Desde 2014, a lei prevê cota de 20% das vagas para pretos e pardos em concursos para a administração pública federal. No entanto, as Forças Armadas resistiram à previsão de vagas até 2018, quando foi assinado um Termo de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público Federal. A medida tem efeito inclusive sobre o acesso a concursos dentro das corporações.

— As cotas raciais foram um incentivo, mas quando isso vai se equilibrar? É daqui a dez, 15 anos. É uma herança do passado, da falta de oportunidade — sugere o contra-almirante negro Sérgio Gago Guida, que está na reserva.

Embora diga nunca ter se sentido vítima de preconceito ao longo da careira militar, ele avalia que a “falta de oportunidade” e a má qualidade da educação em regiões periféricas contribuem para a baixa diversidade. No Exército, o general-de-brigada André Luiz Aguiar Ribeiro é o único de cor preta entre os 172 da elite. Procurado, ele afirmou que só poderia tratar do tema com autorização do Exército, o que não ocorreu.

O Ministério da Defesa afirmou que “não há qualquer seleção pautada na cor ou raça de uma pessoa” e que todos os processos seletivos levam em conta “meritocracia, isonomia e impessoalidade”. A nota acrescenta que a todos são oferecidas as “mesmas condições de acesso à qualificação técnico-profissional necessária para atender aos requisitos para a promoção”. Procurados, os comandos de Aeronáutica, Marinha e Exército não quiseram comentar.

Fonte:

O Globo

https://oglobo.globo.com/brasil/sem-politica-de-inclusao-elite-das-forcas-armadas-nao-tem-diversidade-25009900


Nelson de Sá: New York Times alerta contra capa falsa pró-Bolsonaro

O perfil de relações públicas do New York Times no Twitter publicou uma mensagem, em português, com um aviso sobre a imagem abaixo, de uma capa adulterada do jornal. Diz o NYT:

“Estamos cientes de que uma versão manipulada da primeira página do New York Times circula na internet com matérias falsas e uma imagem de manifestações a favor do presidente Jair Bolsonaro. O New York Times não publicou essa capa.”

O jornal sugere acompanhar a cobertura de Brasil aqui. A capa já havia sido objeto de serviços de verificação no Brasil, como Lupa.

Fonte:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/nelsondesa/2021/05/nyt-alerta-para-capa-falsa-pro-bolsonaro.shtml


Vacinação Quilombolas | Foto: Igor Santos/Secom

O Globo: Covid-19 - Prioridade da vacinação de quilombolas, de ribeirinhos e de outros grupos é ignorada em nove estados

Estudo mostra ainda que menos de 60% dos indígenas aldeados já receberam a primeira dose e que menos de 4% dos quilombolas foram imunizados

Cíntia Cruz e Julia Noia, O Globo

RIO — Levantamento do GLOBO com base na pesquisa "Planos de vacinação nos estados e capitais do Brasil", do Observatório Direitos Humanos Crise e Covid-19, nove estados não colocaram pelo menos um grupo entre quilombolas, população ribeirinha, em situação de rua e privada de liberdade como prioritários na imunização contra o Sars-CoV-2. Juntos, eles correspondem a mais de 1,7 milhão da população do país e integram pelo menos 6.023 comunidades.

TestagemCovid-19: Teste detecta qual das cinco variantes paciente apresenta

Os quatro grupos constam como prioritários na última versão do Programa Nacional de Imunizações (PNI), de 15 de março. Entretanto, há falta de transparência quanto ao período em que essas populações devem ir aos postos se vacinar. Com a recente alteração no plano, que adianta a vacinação de forças de segurança e profissionais da educação, a população privada de liberdade e a que está em situação de rua, involuntariamente expostas ao vírus, ficam ainda mais atrás na fila de vacinação.

Os quilombolas não são grupo prioritário em Roraima, Acre e Alagoas. Já ribeirinhos estão fora dos planos do Pará, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Sergipe e Alagoas. A população privada de liberdade não consta como preferencial em Alagoas. Já Pará e Alagoas não colocaram as pessoas em situação de rua como prioridade. Na maioria dos estados do país, esses grupos são prioridade no papel, mas não os planos não informam quando elas serão imunizadas.

O estudo do Observatório Direitos Humanos Crise e Covid-19 mostra ainda que menos de 60% dos indígenas aldeados receberam a primeira dose do imunizante, embora estejam na primeira fase das campanhas em todos os estados. No caso dos povos de comunidades quilombolas, que figuram entre os primeiros a serem vacinados na maior parte dos estados, a estatística é ainda mais alarmante: menos de 4% foram imunizados.

Desigualdade e violência

Responsável pela pesquisa do Observatório Direitos Humanos Crise e Covid-19, Felipe Freitas explica que a carência de vacinação desses grupos reflete a desigualdade e a violência que as populações sofrem, inerentes à história brasileira.

— O Brasil é um país violento, e ainda mais em relação a esses públicos: negros, quilombolas, indígenas, pessoas em situação de rua, ribeirinhos. A gestão da pandemia tem revelado a radicalização desse processo de autorização da morte desses grupos — diz.

Paulo de Paiva, de 61 anos, vive num quintal com nove casas que abrigam 19 adultos e 19 crianças. O terreno fica no quilombo Maria Conga, em Magé, Baixada Fluminense. A imunização dos quilombolas, que seria do dia 12 ao 16 de abril, foi interrompida no dia 15 por falta de doses.

— Estava marcado para o dia 16, mas as doses acabaram. Tenho muito medo de pegar essa doença por causa da minha idade. A comunidade aqui é grande, muitas crianças. As pessoas saem para trabalhar e podem acabar trazendo o vírus — conta Paulo, morador do quilombo há 30 anos.

Aos 74 anos, o bombeiro hidráulico Lourival Ribeiro já poderia ter sido vacinado em seu município, mas preferiu esperar pelas doses destinadas aos quilombolas. Hipertenso, Lourival lamenta a falta do imunizante na comunidade e criticou a organização do poder público:

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— Faltou informação de fora para saber o número da população do quilombo. Foi tudo muito rápido. Em três dias, não dá para vacinar um lugar com tantas pessoas.

A presidente da Associação das Comunidades Quilombolas do Estado do Rio de Janeiro (Acquilerj), Ivone Bernardo, diz que os três quilombos no município de Magé têm, ao todo, 1.987 pessoas acima de 18 anos — idade mínima para a população quilombola receber a dose do imunizante. Mas o Ministério da Saúde mandou uma quantidade muito menor:

— As vacinas que estão chegando não estão na quantidade correta e a prefeitura de cada município precisa avisar ao ministério. Mandaram 155 doses de vacinas para Magé, que tem três quilombos certificados. Metade da população do Maria Conga ainda não foi vacinada.

Em nota, a Prefeitura de Magé afirmou o cadastro foi apresentado diretamente pelos quilombos ao estado e que recebeu apenas 155 doses, 7,8% do necessário para imunizar os quilombolas do município.

Biko Rodrigues, coordenador executivo da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), afirma que o governo federal utilizou dados defasados para calcular a quantidade de doses:

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— O número com o qual o estado brasileiro está trabalhando está muito abaixo do número de famílias quilombolas que existem no país hoje. Ele trabalha com 2 milhões de doses para quilombolas e, pela estimativa da Conaq, esse número é quatro vezes maior, com dados que temos das secretarias estaduais — diz.

Rodrigues explica que o governo se baseou em dados de famílias inscritas no CadÚnico e beneficiárias do Bolsa Família., mas argumenta que há quilombolas que sequer têm registro civil.

— Existem comunidades ainda sem registro,  pessoas em território quilombola que ainda não têm certidão de nascimento, que não têm a primeira identidade. Isso são muitos. Trabalhamos com número de sete a dez milhões de pessoas. Por causa da omissão do estado brasileiro, muitas pessoas quilombolas vão ficar sem vacina — avalia.

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Já o presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, Hugo Leonardo, afirma que a vulnerabilidade dos grupos privados de liberdade é um dos principais fatores que justifica a prioridade na fila da vacina. Ele lembra que eles não têm condição de realizar o isolamento social e, na maioria das unidades, não tem acesso a equipamentos de proteção, como máscaras e sabonetes.

— Estamos falando de cuidados mínimos para evitar o contágio — afirma.

Na Região Norte, a diretora-executiva da Oficina Escola Lutheria da Amazônia (OELA), Jéssica Gomes, aponta que houve falta de logística na compreensão do movimento das marés na região e a quantidade de doses ofertadas para a população ribeirinha, que vivem ao longo do curso dos rios.

— Desde março, temos novos óbitos de pessoas ribeirinhas que já deveriam ter sido imunizadas — afirma Gomes.

Entrevista: Ministro da Saúde vai lançar protocolo para uso de medicamentos contra Covid-19, incluindo cloroquina, de ineficácia comprovada

Com a vacinação, a rotina de Alexandre Pankararu, de 46 anos, indígena morador da cidade de Jatobá, no sertão de Pernambuco, é marcada por frustração, isolamento e medo de pegar a doença. É que, por não morar em aldeia, não foi contemplado dentro do grupo prioritário do Programa Nacional de Imunizações. Apesar de morar na zona urbana há dez anos, ele e sua esposa, da aldeia Caiuá, estão construindo uma casa para retornar à vida aldeada em um mês, mas, por não estarem imunizados, sentem-se afastados dos rituais, do cotidiano e da família, já vacinados contra a Covid-19:

— É um puro descaso. Eu acho que faz parte de um plano de genocídio do estado. Se a gente fosse tão afastado, morasse a dois mil quilômetros, mas eu moro a um quilômetro. A gente vive aqui dentro da aldeia, só não dormimos aqui. Por que não podemos solicitar a vacina? Nós (desaldeados) nos sentimos marginalizados. Também não há a sensação de pertencimento porque não podemos participar dos nossos rituais — lamenta Xandão, como é conhecido na aldeia.

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Diante disso, a Associação de Indígenas Não Aldeados Karaxuwanassu, de Pernambuco, enviou, desde o começo da vacinação no estado, ofícios a prefeituras locais, deputados estaduais, organizações voltadas para a causa indígena, para o Ministério da Saúde (MS) e entraram com ação no Ministério Público Federal (MPF) para questionar o motivo de não terem sido incluídos no calendário prioritário de vacinação. Segundo uma liderança da associação, o MS foi questionado no dia 3 de março, mas não responderam à demanda. Eles anda protocolaram duas ações no MPF, nos dias 3 de março e 14 de abril, que foram encaminhadas para investigação na Procuradoria da República de Pernambuco.

No dia 20 de abril, a associação, por meio da Defensoria Pública de Pernambuco, retornou com a demanda feita junto ao Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) para que o grupo fosse incluído como prioritário. Em resposta, o DSEI encaminhou o pedido ao Ministério da Saúde que, no dia 7 de abril, enviou ofício ao Governo de Pernambuco para especificar a quantidade de indígenas em zonas urbanas por município da federação e, dentro dessa população, quais não teriam acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS).

Respostas

A Prefeitura de Magé disse que recebeu uma nota técnica normativa do estado do Rio de Janeiro para realizar a vacinação da comunidade quilombola, que apresentava um público de 140 pessoas no Quilombo do Feital, 597 no Quilombo Kilombá e 1.250 no Quilombo Maria Conga, totalizando 1.987 quilombolas. O cadastro, segundo o município, foi apresentado diretamente dos quilombos ao estado, e a prefeitura recebeu, via nota técnica do governo federal, as informações sobre o público a ser vacinado nos quilombos. Magé recebeu 155 doses, 7,8% das doses necessárias para imunizar os quilombolas do município, informou a prefeitura.

O governo municipal disse ainda que criou um calendário, fez ampla divulgação e criou uma agenda para vacinação em cada espaço dos quilombos, mas que interrompeu a imunização porque as doses destinadas aos idosos, que foram usadas nos quilombolas, não têm previsão de serem repostas, pois houve um conflito de informações em que o Ministério da Saúde aponta uma meta de vacinação do público quilombola de 155 pessoas, com envio de doses somente para essa quantidade. A prefeitura disse que aguarda retorno da Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro afirmando que serão enviadas as doses para os quilombolas.

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O Ministério da Saúde informou que a estimativa inicial para definição do grupo prioritário “Povos e Comunidades tradicionais Quilombolas”, que foi inserido no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação Contra a Covid-19 (PNO), foi realizada de acordo os dados disponíveis pelo IBGE 2010, população de 1.133.106. A pasta ressaltou que o plano é dinâmico e está em constante atualização, e que está revisando o levantamento dos dados relativos a esta população, junto aos estados e municípios.

A Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro informa que não há população ribeirinha no estado e que a população em situação de rua faz parte da 4ª fase de imunizações e serão vacinados assim que as doses destinadas aos grupos desta fase forem distribuídas pelo Ministério da Saúde. Com relação aos povos quilombolas, disse que o PNI prevê 15 mil pessoas desta população a serem vacinadas no estado do Rio. A secretaria ressaltou que parte dos quilombolas foi imunizada nos grupos por faixa etária, de acordo com a base populacional usada pelo PNI. Disse ainda que, se houver subdimensionamento desta população, as doses serão garantidas pelo Ministério da Saúde, a partir de uma comunicação ao PNI.

A Secretaria de Estado da Saúde de Alagoas informa que segue o Plano Nacional de Vacinação contra a Covid-19 e que, em Alagoas, estão contemplados os quilombolas, indígenas, população privada de liberdade (já vacinados e/ou em processo de vacinação), além das populações em situação de rua e ribeirinha, que deverão ter o processo de imunização concluído ou iniciado em outras fases, a partir do envio de novas remessas de imunizantes por parte do Ministério da Saúde.

Sergipe informou que a comunidade ribeirinha está sendo vacinada de acordo com o cronograma de vacinação da população em geral e que, segundo nota técnica do Ministério da Saúde, Sergipe não é contemplado com vacinas direcionadas às comunidades ribeirinhas.

Santa Catarina, Rio Grande do Norte e Pernambuco afirmam que não têm população ribeirinha. A Secretaria de Saúde do Estado de Roraima e o Governo do Acre disseram que não têm comunidades quilombolas.

Os estados de Pará e Rio Grande do Sul não responderam.

*Estagiária sob supervisão de Emiliano Urbim


Douglas Belchior: Metade da população brasileira hoje enfrenta a fome e a falta de direitos

Uma multidão de miseráveis cresce a cada dia, sob a anuência de um governo fraco, arrogante, incapaz

O Brasil vive um momento de anormalidade democrática. Enfrentamos um progressivo desmonte das políticas de direitos sociais e civis da população. Durante a pandemia, o que temos observado é uma gestão negligente que está sendo imposta ao país.

Essa negligência pode ser comprovada pela demora na aquisição de vacinas e pela ausência de um plano nacional de vacinação efetivo que defina os grupos prioritários e cuide das pessoas que são as mais expostas, vulneráveis. No entanto, o que vemos é uma tentativa perigosa de privatização da vacina, que vai instituir um sistema de fura-fila.

Enquanto isso, o presidente ignora perigosamente os apelos de quem tem fome e os índices que revelam a quantidade absurda de quase 117 milhões de brasileiros que, em algum momento, já viveram algum tipo de insegurança alimentar. Esses dados fazem parte do estudo realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), divulgado há poucos dias.

A fome já é a realidade vivenciada por 19 milhões de pessoas e mais de 43 milhões não dispunham de alimentos suficientes. Ou seja, o empobrecimento da população está se agravando e a pandemia está evidenciando os nichos e os abismos sociais existentes neste país.

Como resposta ao agravamento da pandemia, ao invés de propor um auxílio digno, o Governo responde com um benefício que é quatro vezes menor. Quem consegue fazer uma análise mais ampla, vê o quanto o país piorou ―e muito― em todos os setores nos últimos dois anos, especialmente na área social.

Pior ainda é saber que, do orçamento geral da União, sobrou o equivalente a 28 bilhões de reais de verba destinada ao auxílio emergencial no ano passado. Mas, para este ano, estabelece-se o limite de 44 bilhões de reais acima do teto. Qual a razão disso: maldade ou indiferença?

A fome e a miséria aumentaram, assim como a concentração de renda. Basta lembrar dos 11 novos bilionários que este ano entraram para o seleto grupo dos mais ricos do mundo da revista Forbes.

Essa política higienista, racista e genocida tem escancarado e explicitado todas as desigualdades e intensificado o sofrimento das pessoas. Falta habitação, acesso à água limpa e potável, trabalho, renda e educação. Todos esses segmentos sofreram mudanças radicais e profundas.

Não vemos qualquer iniciativa por parte do Governo para atuar preventivamente, evitando mortes que, a cada dia, batem recordes absurdos. Não é possível achar normal 4 mil mortes diárias. Como também não é natural obrigar os médicos a praticarem a tortura à medida que faltam medicamentos do kit intubação.

Na ausência dessas drogas mais modernas e eficientes, hospitais do Rio de Janeiro já amarram seus pacientes semiconscientes, alguns até conscientes, para não retirarem os tubos usados na intubação.

O país piorou muito nos últimos dois anos porque tem na sua direção um presidente insano e indiferente, que não esconde suas características de supremacista branco. Infelizmente, não chegamos ainda ao pior dessa situação.

Com a pandemia sem controle e sem perspectiva de vacinar o maior número possível de pessoas, estamos condenando os mais pobres a uma vida miserável. E os mais pobres entre os pobres estão sendo empurrados para a fome na sua versão mais cruel. Aqui, falamos, na grande maioria, de mulheres negras, periféricas, mães-solo.

Além de todas as mazelas que assistimos cotidianamente, este ainda é um país que sangra com o racismo e todas as desigualdades decorrentes do racismo presente nos países de herança colonial e escravocrata.

Tem gente com fome, aos milhares, dependendo quase exclusivamente da ação da sociedade civil organizada e de suas campanhas de apoio humanitário. E o Estado e seus gestores prevaricam, à revelia da Constituição. Até quando viveremos essa situação?

É por isso vamos continuar repetindo, como um mantra, #auxilio emergencial até o fim da pandemia!

Douglas Belchior, professor da Uneafro Brasil e membro da Coalizão Negra por Direitos e Paola Carvalho, diretora de Relações Institucionais da Rede Brasileira de Renda Básica


Ana Paula Xongani: "Coded Bias" - O que acontece quando os algoritmos reproduzem o racismo?

Recentemente, alguns criadores de conteúdo na internet colocaram fotos de pessoas brancas em seus perfis e, a partir do resultado de engajamento das postagens, sinalizaram um possível comportamento racista dos algoritmos. Desde então, cresce meu interesse pelo tema. Afinal, além de ser uma mulher negra, sou uma mulher negra que produz conteúdo para a internet.

Não é de hoje que o resultado de qualquer pesquisa nas ferramentas de busca violenta pessoas negras. Mesmo com ações e manifestações de diversas entidades, ainda é recorrente, por exemplo, que você precise adicionar a palavra "negra" para aparecer a imagem de uma família negra quando você busca pela palavra "família". Ora, uma família negra não é uma "família"?

No campo da estética e da moda não é diferente. A busca por referências do que é belo, do que é tendência, certamente nos entregará uma maioria de produções brancas, vindas de países europeus ou dos Estados Unidos. Por que isso acontece? Se a tecnologia é tão "inteligente", por que se comporta desta forma?

Bem, a pergunta que a gente precisa fazer é: quem desenvolve a tecnologia? Quem a programa? Quem desenvolve os algoritmos que respondem quando a gente pergunta algo para as plataformas digitais?

Nos últimos dias, o assunto me impactou novamente, desta vez pelo lançamento do documentário "Coded Bias", da Netflix, e pelo e-mail da minha seguidora Dayana Morais da Cruz, que propôs a pauta desta coluna. Ela é pós-graduanda em Legislativo, Território e Gestão de Cidades e trabalha numa empresa de RH com foco em diversidade e inclusão.

A área em que ela atua é um bom exemplo para ilustrar uma linha de raciocínio. Por exemplo, é conhecido que existem processos enviesados nas práticas de recrutamento e contratação de empresas. Eles já começam quando filtram currículos por universidades específicas, deixando de fora milhares de candidatos talentosíssimos; continuam quando selecionam pela fluência em outras línguas, quando vivemos em um país que apenas 5% da população fala inglês... E por aí vai.

Os "filtros" que, numa perspectiva offline, há tanto tempo organizam o raciocínio corporativo, também estão refletidos nos softwares que crivam perfis de profissionais a serem contratados pelas empresas. Tá, mas o que eu tenho a ver com isso, Xongani? Você deve estar se perguntando.

Posso começar a responder sua pergunta com a mesma palavra: filtros. Você que, assim como eu, usa as redes sociais toda hora, já deve ter aplicado um filtro em alguma foto ou usado aqueles aplicativos que "melhoram a pele", "envelhecem", "rejuvenescem". A partir disso, faço duas perguntas. Primeira: o que significou "melhorar"? Tem a ver com "afinar traços"? Mudar características que são suas para colocá-las dentro de um padrão de beleza? Segunda: para onde vai essa quantidade de imagens que estamos produzindo? Para onde vai a foto do meu rosto?

"Para se cadastrar no aplicativo Meu Gov, do Governo Federal, por exemplo, é preciso cadastrar uma foto para ter o selo de validação facial. Para onde vão tais informações e como elas são usadas, a gente não tem certeza", comenta Dayana.

Ela traz ainda referências de vários profissionais, brasileiros e gringos, que estão apontando todos os problemas das tecnologias, como Tarcízio Silva, pesquisador e mestre em Comunicação e Cultura; Sil Bahia, coordenadora da Pretalab; e Joy Buolamwini, do MIT, cujas pesquisas são a base do documentário da Netflix e também responsáveis por provocar revisões na legislação que regula as práticas de reconhecimento facial.

A questão é a seguinte: os algoritmos trabalham a partir do que aprendem com os seres humanos que os desenvolvem. "É comum que os algoritmos tenham sido treinados com uma massa de dados muito maior de pessoas brancas do que pessoas negras. Isso faz com que os sistemas tenham falhas em reconhecer características relevantes em pessoas negras", escreveu o cientista de dados Lucas Santana.

Com a ausência de profissionais, sobretudo de profissionais negros, que estejam realmente trabalhando para transformar os vieses no aprendizado das "máquinas", elas continuarão sendo criadas a partir de modelos que não correspondem à realidade. E, como explica o Lucas, isso gera um número elevado de erros.

Dayana complementa ainda que há um papel importante desses algoritmos na organização do comportamento das redes, uma vez que afunilam o acesso a partir de interesses e, assim, acentuam as bolhas e polarizações.

São muitas informações e eu sei que o tema é complexo, mas precisamos nos aproximar dele, porque compartilhamos informações pessoais nas redes e passamos horas por lá diariamente. É necessário entender o que está acontecendo para que elas não mais reproduzam ou potencializem desigualdades. Recomendo, como começo de conversa, uma olhada no conteúdo da galera toda que eu mencionei aqui.


Alê Garcia: A presença do cinema negro no Oscar 2021

Vimos, no final de 2020, como o Emmy estabeleceu um recorde ao nomear o maior número de atores negros em  72 anos de história. Foram 35 das 102 atuações indicadas.  

Corta pra o Globo de Ouro, em fevereiro de 2021:  a despeito da chamada “invasão do cinema afro-americano” teve um número pífio de negros na premiação, com a falta de importantes nomes, tanto em artistas como em produções.

De tempos em tempos, temos a oportunidade de nos tornarmos espectadores de importantes mudanças estruturais. Achávamos que teríamos isto este ano.

Em 2015 e 2016, o Oscar só nomeou atores brancos nas categorias de atuação, mesmo com  diversos nomes negros merecedores de estarem na corrida. Que o digam Will Smith por “Um Homem Entre Gigantes”, Idris Elba por “Beasts of no Nation” e Samuel L. Jackson por “Os 8 Odiados”. Naquele momento teve início o movimento #OscarSoWhite, levante extremamente necessário que contou com o apoio de nomes como Spike Lee e Jada Pinkett Smith, que boicotaram a cerimônia.

Desde então foram anunciadas medidas para as próximas premiações, como a entrada de novos membros dos mais diversos países, idades e raças. Além do desligamento de votantes que nem estão mais na ativa na indústria cinematográfica.

No entanto, somos obrigados a assistir, todo ano, a este sobe e desce dos indicados, sempre iludidos sobre um equilíbro entre negros e não-negros no Oscar,  normalizando nossa presença na maior premiação da indústria cinematográfica do mundo.

Mas a normalização ainda não chegou.

Pensávamos que este ano teríamos no mínimo sete atores e atrizes negros indicados, o que — então sim —  bateria o recorde de 2017, ano em que a Academia se viu pressionada a indicar o máximo possível de negros. 

O máximo possível foram seis.

Tivemos Denzel Washington e Viola Davis disputando por “Um Limite entre Nós”, além de Mahershala Ali e a Naomi Harris, por “Moonlight”. Ruth Negga disputou por “Loving” e Octavia Spencer por “Estrelas Além do Tempo”. Entre os seis indicados, só Viola Davis e Mahershala Ali levaram suas estatuetas, como Coadjuvantes.

Mas este ano continuamos com seis indicados. Quando vamos ultrapassar este número? E quando pararemos de contar, já que será algo tão normalizado que nem mais celebraremos o fato?

Enquanto isso não acontece, temos, entre os indicados: como Melhor Ator, Chadwick Boseman, que concorre postumamente por sua sensível interpretação em “A Voz Suprema do Blues”. E, considerando que o ator falecido em 2020 já foi premiado no Globo de Ouro, no Screen Actors Guild e no Critics Choice Awards, temos o favorito para ganhar o Oscar nesta edição. Por seu talento óbvio, mas também porque é praxe a premiação póstuma como última consagração — que o diga Heath Ledger e seu Oscar de Melhor Ator Coadjuvante em 2009, ano seguinte à sua morte.

Pelo mesmo filme, temos a incrível Viola Davis, concorrendo a Melhor Atriz e entrando para a história do Oscar como a atriz negra mais indicada de todos os tempos, com quatro indicações. É com isso que comemoramos, enquanto Meryl Streep, atriz do mesmo patamar,  já conta com vinte e uma indicações!

Andra Day também vem concorrendo como Melhor Atriz por “Estados Unidos VS Billie Holyday”. E foi ela quem levou o prêmio de Melhor Atriz em Drama no Globo de Ouro. Ao ser indicada com Viola Davis, temos a segunda vez na história do Oscar em que duas mulheres negras são indicadas no mesmo ano nesta categoria principal. A última vez em que aconteceu foi em 1973, quando Cicely Tyson foi indicada por “Sounder”, lançado no Brasil como “Lágrima de Esperança” e Diana Ross por “Lady Sings the Blues”, aqui intitulado “O Ocaso de Uma Estrela”.

Outra estreia digna de nota é o fato de Mia Neal e Jamika Wilson serem indicadas por “A Voz Suprema do Blues” como as primeiras mulheres negras na categoria Maquiagem e Penteado.

Já nas categorias de coadjuvante, Leslie Odom Jr concorre por “Uma Noite em Miami”. Ele, também cantor fenomenal, é o intérprete de “Speak Now”, do mesmo filme, que concorre como Melhor Canção Original.

Por “Judas e o Messias Negro”, temos ainda Lakeith Stanfield, conhecido por seu papel na série “Atlanta” e que, surpreendentemente, concorre com seu colega de filme, Daniel Kaluuya — que deveria estar concorrendo como Melhor Ator. Kaluuya, que já levou  o prêmio do SAG Awards, Globo de Ouro, Critics Choice Awards e Bafta, tem, neste papel, a melhor performance da sua carreira, como Fred Hampton, o líder da unidade de Illinois dos Panteras Negras. Temos um favorito?

“Judas e o Messias Negro” conta a história real de Bill O’Neal, papel de Lakeith Stanfield, militante negro infiltrado pelo FBI para espionar e sabotar o movimento dos Panteras Negras.

A obra, que concorre a Melhor Filme, tornou-se o primeiro indicado nesta categoria a ter uma equipe totalmente negra de produtores: Shaka King, que também o dirige, além de Ryan Coogler, diretor de “Pantera Negra” e Charles D. King.

O filme recebeu um total de seis indicações, incluindo também Melhor Roteiro Original, Melhor Fotografia e Melhor Canção Original, a música “I Will Fight For You”, interpretada por H.E.R.

Outro filme que poderia estar no páreo,  “Uma noite em Miami”, sensível estreia de Regina King na direção, não está entre os indicados a Melhor Filme. Concorre por Melhor Roteiro Adaptado, focando na história dos quatro ícones negros norte-americanos, o pugilista Muhammad Ali, o jogador de futebol americano Jim Brown, o cantor Sam Cooke e o ativista Malcolm X, que se reúnem para uma noite de conversas sobre como as suas condições de figuras de destaque poderiam ajudar a população de negros do país.

O filme foi descrito por sua diretora como “uma carta de amor aos homens negros e as suas experiências” e traz um olhar delicado e generoso sobre estes líderes negros também repletos de insegurança e hesitação.

Indicado nas categorias Melhor Animação, Melhor Trilha Sonora Original e Melhor Som, vem “Soul”, da Disney Pixar, primeira animação desta produtora com um protagonista negro. Um filme sobre morte, jazz, saudade, propósito de vida e limitação. Com abordagens tão profundas que trouxe alguns questionamentos válidos sobre sua adequação infantil.

Concorrendo com “Soul” em Melhor Trilha Sonora Original, temos “Destacamento Blood”, do Spike Lee, sobre quatro ex-veteranos da Guerra do Vietnã que voltam à nação asiática pra recuperar um tesouro escondido e rever os restos mortais do líder de seu esquadrão, Norman Holloway, interpretado por Chadwick Boseman, em um dos seus últimos papéis. E esta é a única indicação deste filme, uma análise profunda de como a Guerra do Vietnã foi uma empreitada do governo dos EUA cujo resultado foi uma tragédia com muitos mortos, feridos e traumas que precisarão de gerações para serem superados.

Domingo estaremos na torcida por todos estes filmes. E numa torcida ainda maior para que a quantidade de indicados negros, um dia, seja tamanha que fiquemos divididos entre quais filmes negros são nossos favoritos.

Alê Garcia – Escritor e criador do podcast “Negro da Semana”. Garcia figura na lista do 20 Creators Negros Mais Inovadores do País pela Forbes.


Monica de Bolle: Sociedades que se movem

O novo na condenação de Derek Chauvin pelo homicídio de George Floyd se apresenta pela imaginação, pelo desejo e, sobretudo, pela forma de realização da justiça

Há sociedades que se movem em direção ao novo, há sociedades que parecem não sair do lugar, e há aquelas que se movem em direção ao passado. Sim, imaginação. A abertura para o novo e para as mudanças que ele pode trazer exigem imaginação. Um dia se imaginou que o homem chegaria à lua. Ao longo da pandemia, o esforço de combatê-la e de pensar no que sobreviria exigiu imaginação. Aqui nos Estados Unidos o trabalho da imaginação esteve presente ao longo da campanha de Joe Biden, em sua vitória, durante o turbulento período de transição, e continua presente quatro meses depois do início de seu governo.

Imaginou-se que o país seria capaz de imunizar rapidamente a população em alguns meses utilizando as vacinas mais sofisticadas do mundo. Estamos a um par de meses de conseguir fazê-lo. Imaginou-se que o debate sobre clima e meio ambiente se tornaria central na reorganização das políticas públicas. O Plano Biden está aí para mostrar que também isso foi possível, a despeito do que venha a ocorrer durante as discussões no Congresso. Imaginou-se que a retomada econômica viria com a criação de empregos e com o apoio aos mais vulneráveis. Novamente, o pacote aprovado no início de 2021 tem como princípio norteador a ajuda aos mais pobres. Imaginou-se que seria possível começar a enfrentar o racismo e a violência policial contra os negros. No dia 20 de abril, o policial que ajoelhou sobre o pescoço de George Floyd a ponto de esmagá-lo e asfixiá-lo foi condenado por seus crimes. Não é mais do que um início, como muitos têm enfatizado. Mas, para quem vive aqui nos Estados Unidos e é testemunha do que se passa a toda hora com a comunidade negra, a esperança é palpável. Para quem viveu os anos Trump, mais ainda.

O novo na condenação de Derek Chauvin pelo homicídio de George Floyd se apresenta pela imaginação, pelo desejo e, sobretudo, pela forma de realização da justiça. Nesse caso em especial, a justiça se realizou como fruto das interações de instituições e sociedade, em particular, da ação social como forma de atualizar o caráter republicano das instituições. Sabemos que o tempo das instituições é demorado e que a questão do racismo nos Estados Unidos é, como no Brasil, estrutural, portanto de longa duração. Mas essa arquitetura estruturante das relações que é o racismo foi desafiada, no caso do homicídio de George Floyd, pelo tempo célere das novas tecnologias comunicacionais, as quais parecem naturalmente incorporadas à vida dos mais jovens. O assassinato foi gravado por uma menina que empunhava um telefone celular e que, durante os nove minutos de agonia, captou cada instante da vida que escapava de Floyd por força do joelho do policial. O policial, em determinado momento, parece sorrir para a câmara enquanto praticava o mortífero ato.

O vídeo de nove minutos que registrou o homicídio rodou o mundo e despertou reações de solidariedade. Essa circulação ampla tornou George Floyd um ícone global da violência policial contra os negros em particular, mas também contra outras raças. A solidariedade que sobreveio de ser testemunha da agonia da vítima, de seu sofrimento intenso, de sua declaração “não consigo respirar” durante uma pandemia em que tantos se viram asfixiados, dos momentos finais em que chamou sua mãe, transcendeu as fronteiras dos Estados Unidos. Testemunhamos ações de protesto em todo o mundo e elas também perduraram nos Estados Unidos. Tudo isso torna possível dar passos além da imaginação rumo ao aperfeiçoamento do caráter republicano das instituições. O júri que condenou Derek Chauvin era composto de seis pessoas brancas. Seis pessoas brancas que não titubearam em declará-lo culpado pelos três crimes que lhe foram imputados.

O novo que vem pela realização da justiça e pela atualização das instituições a partir da ação social movida pela imaginação e pelo sentimento é particularmente interessante.

Ele suscita muitas reflexões sobre como os caminhos para o novo podem ser percorridos no Brasil. O que não falta em nosso país são injustiças e mobilizações para demandar a implementação de direitos. O que parece nos faltar é a imaginação e a crença de que a ação social é, sim, capaz de moldar instituições, ainda que elas se mostrem engessadas e cada vez menos preocupadas com o bem-estar da população.

A movimentação por um país que enxerga na justiça o caminho para o que é novo começa agora. Que entregue bons frutos em 2022.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


El País: Heróis negros esquecidos pela História do Brasil

Enciclopédia reúne biografias de 550 intelectuais, ativistas, líderes religiosos, músicos, esportistas, políticos, cientistas, amas de leite... que foram escravos ou descendentes

Naiara Galarrafa Gortázar, El País

A cor da pele é provavelmente a única coisa que a vereadora de esquerda Marielle Franco, assassinada há três anos no Rio de Janeiro, e Chico Rei, um membro da família real do Congo que foi sequestrado com a família e alguns súditos para serem escravizados nas minas de ouro brasileiras no século XVIII, têm em comum. Graças à sua perícia no ofício, conseguiu comprar sua liberdade, a de outros e voltar a ser reconhecido como alguém importante. Ambos estão entre os 550 protagonistas da Enciclopédia Negra (Companhia das Letras), recentemente publicada no Brasil, que resgata histórias de mulheres e homens negros e mestiços esquecidos no relato sobre a construção nacional.

Mais da metade dos 210 milhões de brasileiros é composta atualmente por negros ou mestiços. Graças às cotas, no ano passado superaram os brancos nas universidades. Sempre viveram pior do que seus compatriotas brancos, apesar de a igualdade estar consagrada na lei e ao fato de que não houve segregação legal em tempos recentes como nos Estados Unidos. E agora o coronavírus vitima especialmente os afro-brasileiros. Sem o trabalho forçado de seus antepassados, as imensas riquezas geradas pelo açúcar, o ouro e o café nunca teriam existido.PUBLICIDADE  

A historiadora Lilia Schwarcz, uma das coautoras, explica por telefone: “Queremos dar alma e rosto a esses heróis cotidianos que foram silenciados e apagados pela história”. A obra “é parte do ativismo negro para recontar de maneira mais plural a chamada história universal, que é muito colonial, muito branca e muito masculina”, acrescenta Schwarcz, considerada uma referência no Brasil.

A enciclopédia começa com Abdias do Nascimento (1914-2011) e termina com Zumbi (1655-1695) em um percurso que vai do século XVI ao XXI. Ou seja, de um intelectual, artista e deputado que criou o Teatro Experimental do Negro e deu aulas nas Universidades de Yale e Ifé (Nigéria) até um ex-escravizado do Brasil colonial que liderou uma república de libertos que foi convertido séculos depois no grande símbolo da resistência negra aos portugueses e holandeses. Todo dia 20 de novembro, data da execução de Zumbi, o Brasil comemora o Dia da Consciência Negra.

Junto com personalidades conhecidas que entraram nos livros escolares nos últimos anos, os autores incluíram um rico mosaico de pessoas desconhecidas representando os milhões de pessoas escravizadas e seus descendentes. A ideia dos autores é contar “a potência de tudo o que fizeram, que foi muito mais do que sobreviver”. Alertam que em alguns casos os fatos se confundem com a lenda.

Os protagonistas, apresentados em ordem alfabética, são intelectuais, ativistas, líderes religiosos, músicos, esportistas, políticos, cientistas, amas de leite... As conquistas, façanhas e vitórias descritas compõem uma avassaladora diversidade de trajetórias e origens, coisa pouco frequente neste país continental muitas vezes ensimesmando no eixo São Paulo-Rio de Janeiro.

Afra Joaquina Vieira Muniz, que está na capa do grosso volume, ilustra como era complexa a rede da escravidão no último dos países das Américas a aboli-la, em 1888. Nascida em Salvador, era uma pessoa escravizada cuja liberdade lhe foi dada por um antigo senhor ao casar-se com ela. Quando este morreu, por volta de 1870, legou-lhe todos os bens e duas mulheres que ficavam livres com a condição de cuidar da viúva até sua morte. As duas denunciaram Afra Joaquina à Justiça por maus-tratos, mas perderam a ação e tiveram de ficar com ela.

Pretextato dos Passos abriu em 1885 a primeira escola para crianças negras, que não eram aceitas nas escolas de brancos; Benjamim de Oliveira foi o primeiro palhaço negro; a professora Antonieta Barros, deputada pioneira em 1935 na muito branca Santa Catarina. Luiz Gama, que o próprio pai vendeu como pessoa escravizada, foi revendido, conseguiu fugir para se tornar funcionário público e depois advogado. Obteve nos tribunais a liberdade de outras pessoas antes de morrer em 1882 aos 52 anos.

Claudia Silva Ferreira, uma faxineira que tinha quatro filhos, se tornou uma das milhares de vítimas de balas perdidas em tiroteios durante operações policiais em 2014. Ferida, foi colocada por alguns policiais no porta-malas do carro patrulha dizendo que a levariam ao hospital. Mas a tampa se abriu e ela caiu. Foi arrastada por 400 metros até que os policiais perceberam. Morreu antes de chegar ao hospital e estava prestes a se tornar mais um número de uma volumosa estatística. Mas, como aconteceu agora com George Floyd, alguém filmou a cena macabra e essa morte adquiriu importância social.

Alguns dos resenhados são personalidades destacadas que durante décadas foram brancas aos olhos de seus compatriotas. O caso mais marcante é o de Joaquim Machado de Assis (1839-1908), o grande romancista, fundador e presidente da Academia Brasileira de Letras, que em sua imagem mais conhecida foi imortalizado como um branco. Enorme foi a surpresa de muitos quando descobriram a verdade graças à campanha de uma universidade.

A historiadora destaca que queriam publicar a Enciclopédia Negra exatamente agora porque 2022 é um ano importante. O Congresso tem previsto avaliar as cotas universitárias, que nos últimos anos engendraram uma geração de graduados negros e pobres, o que representa uma profunda mudança nesta sociedade racista e classista. Também se comemora o bicentenário da independência do Brasil. E o centenário da Semana de Arte Moderna, que deu personalidade própria à arte moderna brasileira, mas excluiu o escritor Afonso Lima Barreto pela cor da pele.

As biografias são resultado da pesquisa de Schwarcz e de seus coautores —o historiador Flávio dos Santos Gomes e o artista plástico Jaime Lauriano— e, sobretudo, de centenas de teses de doutorado inéditas. O livro foi publicado por uma das principais editoras do Brasil, a Companhia das Letras, cofundada pela historiadora.

As mulheres são maioria e todas as 550 têm nome, mas em alguns casos foi impossível saber seus sobrenomes. E como não havia imagem alguma de muitos, encarregaram a 36 “artistas, negras, negros e negres”, nas palavras dos autores, que lhes dessem um rosto. Esses retratos de protagonistas que abrangem profissões, origens, gêneros e orientações sexuais diversas serão apresentados em uma exposição na Pinacoteca de São Paulo assim que a pandemia permitir.