O voto negro pode e deve salvar o Brasil

Diante da evidente ameaça democrática, impõe-se uma decisão consciente
O advogado e sociólogo José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares - Mathilde Missioneiro - 18.out.22/Folhapress
O advogado e sociólogo José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares - Mathilde Missioneiro - 18.out.22/Folhapress

José Vicente* | Folha UOL

Forjados na resistência ancestral da luta e do combate à escravidão, ao racismo e à exclusão, os negros subverteram a lógica política de raça inferior imposta pelo racismo branco e a ideologia da branquitude e colocaram por terra o destino manifesto da ciência eugenista brasileira, que apontava o dia e a hora para sua eliminação e apagamento do imaginário da nação. Diferentemente do vaticínio, transformaram e converteram a falsa sina arquitetada em renascimento, superação e potência para a construção dos meios para a erradicação da desigualdade de direitos, oportunidades e participação social. E, para tanto, o caminho da política foi e é inevitável.

Todavia, se a luta e a resiliência negra serão sempre o combustível para a realização dessa infinita jornada de transformação, foi e é a democracia restabelecida —formalizada a partir da Constituição Cidadã de 1988 e de suas premissas de garantia e prevalência dos direitos humanos, combate ao racismo, garantia da igualdade racial, promoção das ações afirmativas e defesa da dignidade da pessoa humana— que constituiu e consolidou os pilares fundamentais para a ressignificação e valorização da sua trajetória histórica e social, do fortalecimento da autoestima, do pertencimento, da inclusão e da esperança.

As eleições de 2022 evidenciaram tudo isso, além do novo peso e protagonismo do negro na cena política brasileira. Representando 54% dos brasileiros, a maioria dos evangélicos, dos católicos e das mulheres, os negros se transformaram numa força votante poderosa e poderão reger e definir os destinos das forças políticas do país. Neste pleito, pela primeira vez na história a maioria dos candidatos (49,49%) se autodeclarou negra, ante 48,93% de brancos. Houve ainda dois candidatos negros à Presidência da República: Léo Péricles (UP) e Vera Lúcia (PSTU).

Os negros agora passam a responder por 25% dos senadores, 26,5% dos deputados federais e 40% dos 15 governadores eleitos no primeiro turno. Entre os parlamentares, 23% estão no espectro da esquerda, e 52% no da direita.

Alguns dos deputados federais negros eleitos em 2022

Deputada federal Silvia Cristina (PL-RO)

Deputada federal Silvia Cristina (PL-RO) Gabriela Biló – 18.mai.22/Folhapress

A democracia, a luta e a resistência, mas também a contribuição das forças progressistas e de esquerda, até aqui recepcionaram e ajudaram a efetivar as mais importantes reivindicações sociais, políticas e comunitárias desses brasileiros —elementos consolidadores de uma construção evolutiva. Foi com Leonel BrizolaFernando Henrique CardosoLuiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff que a história milenar dos negros chegou às escolas e aos livros escolares e seus personagens tornaram-se heróis nacionais, ganharam feriados estaduais e municipais. Tornaram-se nomes de prédios, viadutos, praças e ruas. Foi com Lula e Dilma que os negros chegaram aos cargos de ministros de Estado e da Suprema Corte. Com eles e com as cotas raciais nas universidades e serviços públicos, negros se formaram médicos, advogados, juízes, promotores de Justiça, diplomatas, empresários e oficiais das Forças Armadas.

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Tornaram-se protagonistas nos filmes e novelas e estamparam as primeiras páginas de revistas e jornais.
Pode ser pouco, mas já foi algo revolucionário. Perder essas conquistas significará retornar à estaca zero, sem qualquer possibilidade de começar de novo. Todos esses avanços, sua consolidação e ampliação somente são e serão possíveis e indestrutíveis num ambiente de profundo respeito aos fundamentos democráticos. Onde a democracia seja inegociável e defendida. Onde a prevalência do respeito às instituições e à dignidade da pessoa humana sejam valores prioritários, inexpugnáveis e inconcessíveis.

Cotistas reafirmam importância de cotas para acessar universidade

O advogado Nelson Moralle, 60, foi cotista da primeira turma de direito da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) que aceitou cotas, em 2013
O advogado Nelson Moralle, 60, foi cotista da primeira turma de direito da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) que aceitou cotas,  Eduardo Anizelli/Eduardo Anizelli/Folhapress

Numa disputa eleitoral em que um dos lados se apresenta como perigo e afronta à ordem pública e às instituições e se manifesta abertamente como possibilidade de ruptura e destruição da democracia e de seus valores, mais do que obrigação, é uma exigência que o eleitor negro consciente coloque-se de pé e faça do seu voto instrumento de garantia das suas conquistas e de segurança e defesa da democracia e do país. O voto negro pode e deve salvar o Brasil.

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

*José Vicente é advogado, sociólogo e doutor em educação, é fundador e reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, apresentador do programa “Negros em Foco” (TV Cultura), líder do movimento “Cotas sim” e membro do Conselho Editorial da Folha

Coluna publicada originalmente na Folha UOL

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