Moro

Ricardo Noblat: O tamanho do desafio da Justiça

E o destino de Lula

A Justiça brasileira está diante do seu maior desafio desde os anos de chumbo da ditadura militar de 64. Em breve, quando se esgotar o estoque de munições do site The Intercept contra o ex-juiz Sérgio Moro e os procuradores da Lava Jato, ela terá que decidir se tudo que ao final restará conhecido constitui crime ou não.

Porque é isso que estará posto. Moro e os procuradores agiram como uma organização criminosa na condução do processo que resultou na condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva? Teriam procedido da mesma forma em outros processos da Lava Jato ou só nesse? Se a resposta for sim, o que fazer?

Se reconhecesse a existência de um conluio entre Moro e os procuradores no processo do tríplex, a condenação de Lula seria naturalmente anulada e ele solto. Mas se tal acontecesse, o que se dirá da legitimidade da eleição presidencial do ano passado? Por condenado e preso, Lula não pôde ser candidato.

Liderou as pesquisas de intenção de voto até que seu nome sumisse delas. E se tivesse conseguido ser candidato? E se mesmo preso, mas não impedido a tempo de candidatar-se, seu nome tivesse constado da cédula eleitoral como ele e seus advogados imaginaram até o último instante que assim poderia ser?

A chapa Dilma-Temer, acusada de abuso de poder político e econômico nas eleições de 2014, acabou absolvida pela Justiça não por falta de provas, mas por excesso delas. Era preciso manter a estabilidade política do país, como disse um dos juízes ao dar seu voto. Novas eleições àquela altura? Seria impensável.

À época, o clima de radicalização política não era tão assombroso como se tornaria depois e como permanece. O ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo, chegou a dizer que o fogo se alastraria pelo país se Lula fosse preso. Não se alastrou. Mas seria capaz de se alastrar se a eleição do capitão perdesse a validade.

A saída talvez esteja no meio. Manda-se Lula para casa, seja porque sua condenação foi viciada, seja porque terá cumprido parte da pena como prevê a lei. Na primeira hipótese, abre-se um processo contra Moro e sua turma. Na segunda, que Moro e sua turma rolem na lama e se expliquem pelo resto da vida.

Quando a vítima pede desculpas

Atos falhos
O ex-juiz Sérgio Moro teima em dizer que não reconhece o que disse em conversas com procuradores da Laja Lavo, conforme vem sendo publicado pelo site The Intercept Brasil, agora em dobradinha com o jornal Folha de São Paulo e a Rádio Band.

Mas em sua defesa ele já cometeu dois atos falhos. O primeiro, ao depor no Senado, quando admitiu renunciar ao cargo de ministro da Justiça se ficasse provado que disse o que nega, não reconhece, não e lembra, ou o que pode ter sido adulterado.

O segundo ato falho: uma vez que a Folha revelou que ele chamara de “tontos” integrantes do Movimento Brasil Livre, Moro apressou-se a gravar um vídeo onde pede desculpas pelo que lhe atribuem. Oi! Como desculpar-se pelo que não disse ou não reconhece?

Sob pressão, mesmo que não confesse seus pecados, Moro se arrisca a cumprir penitência.


Elio Gaspari: Uma viagem com Moro e Petra Costa

O ministro da Justiça não cabe no papel do juiz exibido em documentário

No mesmo dia (19/6) em que o ministro Sergio Moro atravessava sua maratona de nove horas no Senado, estreava na Netflix o filme “Democracia em Vertigem”, de Petra Costa.

A cineasta de 35 anos acompanhou as multidões que foram para a rua a partir de 2013, o impedimento de Dilma Rousseff em 2016, a prisão de Lula em abril de 2018 e a eleição de Jair Bolsonaro em outubro.

Filmou o ex-presidente arrumando a mala a caminho da carceragem de Curitiba e a cena em que mediram sua pressão arterial (146x90).

Ao longo de todo o filme, o juiz Sergio Moro e a Operação Lava Jatoaparecem como o que foram, um instrumento eficaz de combate à corrupção. No dia de sua estreia, outro Moro, ministro de Bolsonaro, respondia aos senadores que o acusavam de ajeitar a bola com a mão em conversas impróprias com o Ministério Público.

Entre o que aconteceu e o que está acontecendo, fechou-se um círculo. Ou quase, porque Petra Costa expõe momentos de corrupção explícita que foram varridos para baixo do tapete da política nacional depois do impedimento de Dilma. Além disso, não se sabe onde está o Queiroz.

Há no filme, narrado por Petra, um tom de lamento da vertigem em que entrou o processo político nacional. A proximidade da câmera com o comissariado petista mostra sua onipotência, a autossuficiência doutoral de Dilma Rousseff e o messianismo de Lula.

Numa cena do comício que antecedeu sua ida para a prisão, do alto de um caminhão, ele disse: “Os poderosos podem matar uma, duas, ou cem rosas, mas jamais conseguirão deter a chegada da primavera”. Talvez ele acreditasse que elegeria um novo poste.

Da eleição, com 57,8 milhões de votos, resultou Jair Bolsonaro, o capitão primaveril daqueles que aplaudiam a condenação de Lula.

Tinha razão Nelson Cavaquinho: “Tira o seu sorriso do caminho (...)/ Eu na sua vida já fui uma flor/ Hoje sou espinho em seu amor”.

Depondo no Senado, Sergio Moro evitou discutir o conteúdo de suas conversas com o procurador Deltan Dallagnol, fortificando-se na denúncia da forma ilegal como elas foram coletadas pelo site The Intercept Brasil. Esse novo personagem não cabe no roteiro da vertigem mostrada por Petra Costa. Faz parte de outra história, na qual flores e espinhos crescem juntos.

Petra Costa é cineasta, e Moro era juiz. O documentário tem um explícito viés simpático a Lula, mas não se deve cobrar imparcialidade a uma cineasta. Imparcial seria o juiz Moro. Era?

Glenn Greenwald abusa do conta-gotas
Num ponto o ministro Sergio Moro tem alguma razão: o site The Intercept Brasil deveria divulgar todo o acervo de grampos que amealhou. A divulgação parcial e seletiva, acompanhada por insinuações ameaçadoras do repórter Glenn Greenwald, é um feitiço que pode se virar contra o feiticeiro.

Antes da internet era comum que revelações jornalísticas fossem expostas em séries, mas Greenwald vem fazendo bem outra coisa. Promete isso ou aquilo, às vezes em tom de vaga ameaça. A divulgação de denúncias num regime de conta-gotas foi uma das piores táticas dos procuradores da Lava Jato.

Em 1971, quando o New York Times e o Washington Post publicaram os documentos do Pentágono, submeteram seus critérios editoriais ao juízo do público. Conhecido todo o papelório, viu-se que trabalharam direito.

Mesmo assim, William Buckley Jr., um brilhante jornalista conservador, fez uma das suas. Enquanto o país vivia o choque dos documentos do Times, ele publicou 14 páginas com telegramas e memorandos, chamando-os de “os documentos secretos que eles não publicam”. Num, o chefe do Estado-maior conjunto propunha “o lançamento de uma bomba atômica para efeito de demonstração” contra o Vietnã do Norte.

Tanto o Times como o Post noticiaram as revelações de Buckley. Dean Rusk, o secretário de Estado à época da sugestão, informou: “Não posso dizer que não escrevi isso. É possível que tenha escrito”. Três outros signatários de papéis foram pelo mesmo caminho.

Era tudo invenção de Buckley. Ele usou o truque para mostrar que “documentos forjados serão aceitos como genuínos desde que seu conteúdo seja plausível”.

Hoje se sabe que os hierarcas não desmentiram porque os papéis de Buckley podiam ser falsos, mas a ideia de jogar uma bomba atômica no Vietnã do Norte era verdadeira. Ela passou pela cabeça do governo americano em 1954, para ajudar os franceses, e em 1968, para responder a uma ofensiva dos comunistas.

Moro & Moro
Em 2015, quando era juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba e gostava de holofotes para alavancar a Lava Jato, Sergio Moro foi ao congresso da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo.

Na semana passada, o ministro Sergio Moro cancelou sua presença no próximo congresso da Abraji depois que a entidade solidarizou-se com o site Intercept, que ele acusa de “sensacionalismo” a partir da ação de um “grupo criminoso”.Quando podia trabalhar em silêncio, expôs-se. Como ministro, decidiu ausentar-se.

Prêmio Cid Gomes
O senador Cid Gomes (PDT) prometeu “um doce” para quem soubesse o nome do juiz que ocupa a cadeira de Sergio Moro na 13ª Vara Federal.

É Luiz Bonat —e até agora não falou fora dos autos.

Laura Tessler
Em setembro do ano passado, a procuradora Laura Tessler indignou-se quando o ministro Ricardo Lewandowski autorizou uma entrevista de Lula à Folha: “Que piada!!! Revoltante!!! Lá vai o cara fazer palanque na cadeia. Um verdadeiro circo. E depois de Mônica Bergamo, pela isonomia, devem vir tantos outros jornalistas… e a gente aqui fica só fazendo papel de palhaço com um Supremo desse…”.

Mal sabia a doutora que, em março de 2017, na coxia do circo, o juiz Sergio Moro reclamou da qualidade de suas inquirições.

Ela não foi escalada para o interrogatório de Lula.

Registro
Na fritura de Joaquim Levy, o presidente Bolsonaro apimentou o prato, humilhando-o, mas quem colocou o presidente do BNDES no óleo quente foi o ministro da Economia, doutor Paulo Guedes.
De seu entorno partiram as flechadas desnecessárias que acertaram Levy quando ele já estava no chão.

A usina de besteiras
A saída do general Floriano Peixoto do Planalto era pedra cantada. Antes dele saíram do Planalto o advogado Gustavo Bebianno e o general Santos Cruz. Já o chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, vive com atribuições que variam como a previsão do tempo.

Como diria Lula, nunca na história deste país a vida no palácio foi tão difícil. É lá que funciona a turbina da usina de crises e encena-se o “show de besteiras” percebido por Santos Cruz.

Sobrou para FHC
O general Augusto Heleno disse que o Brasil foi “governado por mais de 20 anos por uma verdadeira quadrilha”.

Admitindo-se que a nova vida começou neste ano, a tal “quadrilha” estava no governo em 1999, quando Fernando Henrique Cardoso entrou no seu segundo mandato.

*Elio Gaspari, jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".


El País: ‘The Intercept’ e ‘Folha’ publicam novos diálogos de Moro e elevam voltagem da crise e pressão sobre STF

Associação de site e jornal debilita estratégia da defesa de ministro de atacar divulgação de mensagens. Mais uma vez, material mostra ex-juiz como conselheiro e espécie de coordenador da Lava Jato

A crise provocada pelo vazamento de mensagens entre o então juiz Sergio Moro e os procuradores da força-tarefa da Operação Lava Jato parece longe do fim. Neste domingo, Folha de S. Paulo publicou, em parceria com o The Intercept, mais uma reportagem com base em diálogo travado entre Moro e o procurador Deltan Dallagnol, parte do acervo que o site diz ter recebido de uma fonte anônima. Como nas reportagens anteriores, o agora ministro do Governo Bolsonaro aparece repreendendo e aconselhando Dadllagnol a respeito de passos da investigação, conduta que se choca com a previsão de juiz distanciado das partes no direito brasileiro. Os diálogos, segundo as publicações, acontecem durante um capítulo emblemático da Lava Jato, dias depois do movimento mais controverso e de mais impacto de Moro até então: a divulgação de interceptações telefônicas entre Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff que incendiaram as ruas do país e acelerariam a marcha do impeachment.

Moro e os procuradores têm atacado a publicação dos diálogos, que se deram via aplicativo Telegram, e têm dito que não podem garantir que as mensagens, que segundo eles foram obtidas por hackers, não foram adulteradas. Seja como for, a associação entre The Intercept e Folha, que o jornal anuncia que seguirá nos próximos dias, dá mais voltagem política ao material e debilita a estratégia do ministro de atacar a divulgação e a própria reputação do site progressista.

The Intercept diz que procurou parceiros para análise dado o volume do material e rechaça ainda todas as acusações de que suas reportagens buscam proteger o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Já a Folha, o maior jornal brasileiro, afirma não ter encontrado indícios de que o acervo fornecido pelo site tenha sido adulterado e já havia advertido na semana passada que publicaria o material, mesmo que se provasse que o pacote de mensagens é fruto da invasão dos celulares —há uma investigação da Polícia Federal a respeito. O jornal considera que a divulgação é de interesse público.

Na reportagem deste domingo, as publicações exploram mensagens trocadas entre Moro e Dallagnol a partir de 23 de março de 2016. O então juiz parece preocupado com a repercussão negativa com a divulgação das gravação de Lula e Dilma e todo um pacote de interceptações envolvendo a família do ex-presidente, algumas sem qualquer ligação com as investigações. Havia críticas pelo açodamento de Moro em divulgar os áudios minutos depois de recebê-lo, especialmente por causa do trecho envolvendo Dilma, que como presidenta tinha foro privilegiado, ou seja, fora da alçada de Moro. Outra crítica era o fato de que a captação se dera fora do período legal autorizado. Moro havia sido advertido pelo ministro Teori Zavascki, então relator da Lava Jato do Supremo, e também temia punições no âmbito do Conselho Nacional de Justiça, o que não aconteceu.

Foi neste contexto que ele avaliou que a Lava Jato cometera "uma lambança". A Polícia Federal havia permitido a divulgação de uma lista apreendida em escritórios da Odebrecht que supostamente implicava parlamentares e outros políticos com foro privilegiado em doações ilegais, o que levava o caso para a alçada do Supremo Tribunal Federal. "Não pode cometer esse tipo de erro agora", disse Moro a Dallagnol. O procurador da Lava Jato busca animar Moro e promete apoio: "Faremos tudo o que for necessário para defender você de injustas acusações", escreveu. Em outro momento, Moro critica os "tontos" do MBL (Movimento Brasil Livre), um dos principais movimentos de defesa da Lava Jato e do impeachment de Dilma, por protestarem no condomínio do ministro Zavaski. "Isso não ajuda evidentemente".

Todos os holofotes no STF

A guerra política em torno do caso nos próximos dias deve se dar em duas frentes principais: a política e a jurídica. Na primeira, a oposição tentará manter viva a pressão sobre Moro para coletar assinaturas para uma eventual investigação parlamentar sobre o caso, algo que soa pouco provável à luz das revelações até agora. A segunda e mais importante é o Supremo Tribunal Federal. Uma das duas turmas da corte prevê analisar na próxima terça-feira um pedido da defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, condenado por corrupção no âmbito da Lava Jato. Lula reclama que não teve julgamento justo dada a parcialidade que atribui a Moro. A equipe legal do petista já pediu que as revelações do The Intercept sejam incorporadas ao pedido.

Ainda não é certo que haverá julgamento —os ministros do STF, como já fizeram em outras oportunidades, sempre podem lançar mão de instrumentos legais para adiar a análise, apesar do desgaste que o movimento provocaria em parte da opinião pública a essa altura. Na sexta-feira, a procuradora-geral, Raquel Dodge, já se antecipou tentando bloquear a investida da defesa de Lula. Ela destacou que "o material publicado pelo site The Intercept Brasil ainda não havia sido apresentado às autoridades públicas para que sua integridade seja aferida" e disse que ainda está sendo investigado se o vazamento foi criminoso. Em linha com Moro, Dodge diz ainda que não se sabe se as mensagens "foram corrompidas, adulteradas ou se procedem em sua inteireza, dos citados interlocutores".

Adere a

Alon Feuerwerker: A ferida Moro pode ser útil para incomodar um presidente que resiste a dividir poder

É arriscado estabelecer linhas de defesa que possam ser facilmente penetradas pelo oponente. Mas de vez em quando é o que dá para fazer.

Pressionados pelas revelações do Intercept, a Lava-Jato e o ministro da Justiça, Sérgio Moro, montaram com certa rapidez a defesa em quatro pilares:

1) Foi invasão ilegal de privacidade
2) O material não necessariamente é autêntico
3) O material pode ter sido adulterado
4) Em resumo, trata-se de crime e de criminosos

Invadir e capturar mensagens privadas é crime, mas há jurisprudência pela legalidade de o jornalista divulgar material obtido fora da lei por terceiros, e a avaliação de interesse público é exclusiva do jornalista.

Há anos a Lava-Jato e Moro ajudam a consolidar esse entendimento.

A defesa do morismo tem sido criminalizar a coisa toda para, no limite, estancar a divulgação e, quem sabe?, responsabilizar criminalmente os jornalistas. Na linha do que está acontecendo com Julian Assange.

Difícil, mas não impossível num Brasil de jurisprudências flutuantes ao sabor das conveniências políticas.

A isso o Intercept reagiu com uma manobra tática: dividiu as informações com um veículo institucionalmente prestigiado. Não mais só um “site”, mas agora também um importante jornal. Foi manobra de alto risco, pois a Folha de S.Paulo poderia ter analisado o material e recusado jogar seu nome na empreitada.

O jornal procurou as mensagens trocadas pelos seus repórteres com a Lava-Jato, e elas estavam ali. E se não estivessem? Que garantia tinha o Intercept de ter recebido todo o material em poder da fonte? Ou que o material não fora mexido antes de ser repassado ao Intercept?

O risco se pagou, pois a esta altura não bastará mais neutralizar o Intercept, o que já era tarefa complexa. O governo, a Lava-Jato e Moro estão diante de um novo teatro de operações.

Uma guerra prolongada, com baixa probabilidade de transformar rapidamente a defensiva em ofensiva.

Moro e a Lava-Jato conhecem bem a efetividade de divulgar em capítulos, de dar corda para os envolvidos se enrolarem nas próprias explicações.

A esta altura, aquela primeira linha de defesa foi furada em dois dos quatro pontos e um terceiro balança. Sobrou só a certeza de invasão ilegal de privacidade.

Mas este é um problema de quem invadiu: se for pego vai sofrer as consequências. A esperança das autoridades na berlinda talvez fosse associar o Intercept à invasão e aí matar dois coelhos de uma vez.

Mas agora, mesmo nesse cenário a Folha muito provavelmente continuaria a empreitada por si.

O que levará a Lava-Jato e Moro a uma situação complicada, conforme for se consolidando a certeza de a coisa ter andado fora da cartilha.

Com um detalhe: mesmo se o STF decidir por um bom tempo não decidir nada, o governo não tem base própria no Congresso. E este pode ter encontrado um caminho para causar problemas maiores ao governo.

Antes do Intercept, o Legislativo estava algo emparedado. Sua principal retaliação à concentração de poder no Executivo parecia ser... aprovar a pauta econômica do Executivo!

Uma vingança muito relativa, convenhamos.

Agora, em algum momento, deputados e senadores podem concluir que cutucar a ferida Moro pode ser útil para incomodar um presidente resistente a dividir poder.

Há um risco, claro, pois Moro é popular. Mas viver é correr riscos, e no ambiente parlamentar quem está disposto a lutar cresce.

E tem o STF. E desta vez vale muito a tese de que de cabeça de juiz ninguém tem ideia do que vai sair.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Bruno Boghossian: Moro não dá respostas sobre diálogos, mas ganha o jogo no drible

Ministro deixa dúvidas no ar e adota o diversionismo como estratégia no Senado

Na sétima hora de depoimento sobre sua troca de mensagens com procuradores, Sergio Moro se disse perplexo por “ter de falar tanto sobre esse tema”. O ministro insistiu em questionar a veracidade dos diálogos e se desviou das suspeitas de que sua atuação na Lava Jato foi parcial. Ganhou o jogo no drible.

O ex-juiz não saiu do Senado com uma sentença absolutória, mas também não caiu diante das perguntas dos parlamentares. Moro aceitou deixar no ar questionamentos sobre as conversas publicadas pelo site The Intercept e se refugiou atrás de dúvidas lançadas por ele mesmo.

O ministro ficou na retranca. Acusou a publicação de sensacionalismo 52 vezes e repetiu que não reconhecia a veracidade dos diálogos. No entanto, não ofereceu qualquer indício de que as conversas reproduzidas sejam falsas ou deturpadas.

Embora o assunto em debate fosse sua atuação como julgador, Moroabriu mão de apresentar argumentos para defender que sua parceria com os procuradores era legal e ética. Ele disse mais de 30 vezes que aquilo era algo normal, “absolutamente normal”, “absurdamente normal”. Não era, e o ex-juiz não explicou por que discutia táticas de acusação com o Ministério Público.

Moro buscou abrigo nas provas e em resultados incontestáveis obtidos pela Lava Jato. A certa altura, precisou lembrar aos parlamentares que “agentes políticos inescrupulosos haviam capturado a Petrobras”. Era verdade, mas também diversionismo. Ninguém estava ali para fazer um balanço da operação.

A sessão evidenciou que há uma base política favorável ao ex-juiz no Senado. Ele recebeu elogios, embora tenha estranhado algumas críticas. Quando Fabiano Contarato (Rede) enalteceu a Lava Jato, mas censurou seu comportamento, Moro reclamou que aquela defesa era “um tanto quanto peculiar”.

O ministro não sepultou o caso, mas repisou o discurso de que o combate à corrupção justifica sua conduta. Moro reforça sua proteção enquanto aguarda novas revelações.


Leandro Colon: A confiança presidencial

Bolsonaro disse não confiar 100% em Moro. Pelo histórico recente, Moro é quem não deveria confiar 100% no patrão

Em quase seis meses de governo, está evidente que o presidente Jair Bolsonaro realmente nada entende de economia, pouco faz para melhorar a articulação política e tem gastado tempo com temas secundários (ou bobagens mesmo).

Mas isso não surpreende quem acompanhava o Bolsonaro deputado. O que talvez quase ninguém conhecia era essa faceta dele: ao fabricar crises desnecessárias, não encara as origens de cada uma e os assessores envolvidos. A opção mais fácil é fritá-los publicamente.

Bolsonaro cobra fidelidade de seu time, mas dá gestos de deslealdade quando a coisa aperta. Joaquim Levy não tinha outra saída que não fosse largar o BNDES ao ouvir pela imprensa a ameaça destemperada e desrespeitosa do chefe da República.

Bolsonaro anunciou em um café da manhã com jornalistas que demitiria, três dias depois, Ricardo Vélez da Educação. O mesmo fez na última sexta-feira (14), quando informou, em um encontro com repórteres que cobrem o Planalto, que decidira exonerar o presidente dos Correios, o general Juarez Cunha.

Bolsonaro já havia dado sinais de descompromisso com a liturgia nas relações com sua equipe no episódio que levou à queda de Gustavo Bebianno da Secretaria da Presidência.

Não bastasse a maneira escapista para lidar com as crises, saltam aos olhos os argumentos usados pelo presidente para demitir dirigentes.

No caso da queda de Levy, a birra deu-se por causa da nomeação de um diretor que havia atuado no BNDES nos tempos de governo petista.

O comando dos Correios será trocado porque na cabeça de Bolsonaro o general Juarez Cunha atua como um “sindicalista”. Qual o pecado dele? Ter tirado foto com parlamentares de esquerda e afirmado que não haverá privatização na empresa.

No sábado (15), Bolsonaro voltou a defender Sergio Moro (Justiça), ferido pelo vazamento dos graves diálogos com a Lava Jato, mas disse não confiar 100% no seu ministro. Pelo histórico recente, Moro é quem não deveria acreditar 100% no patrão.


Elio Gaspari: O autoengano de Moro e Deltan

Ministro acredita (ou faz que acredita) que a forma apaga o conteúdo

Uma semana depois da divulgação das conversas do juiz Sergio Moro com o procurador Deltan Dallagnol pelo site The Intercept Brasil, consolidou-se a linha de defesa do governo segundo a qual o que houve ali foi um crime.

Trata-se de uma magnífico exercício de autoengano. Foi praticado um crime na forma, mas a essência do episódio está no seu conteúdo. A divulgação dos Pentagon Papers, em 1971, decorria de um indiscutível crime contra a segurança nacional dos Estados Unidos, pois os documentos que contavam a ação americana no Vietnã eram secretos e foram roubados. A Suprema Corte dos Estados Unidos derrubou a tentativa do governo de proibir a sua divulgação.

Governantes inventam (e fingem que acreditam) coisas incríveis. O governo petista e seu comissariado desqualificavam o conteúdo das colaborações de alguns de seus companheiros e cúmplices com a Lava Jato de Sergio Moro denunciando a forma como os procuradores obtinham as confissões (encarcerando os suspeitos). Em junho de 2015 a presidente Dilma Rousseff disse: “Não respeito delator”.

O autoengano petista custou o mandato a Dilma e a liberdade a Lula, bem como aos ex-ministros José Dirceu e Antonio Palocci.

Um ano depois da fala de Dilma, Sergio Moro lembrou a Deltan Dallagnol que a Lava Jato estava há “muito tempo sem operação”.

(Dias depois foi para a rua a Operação Arquivo X.) Na mesma conversa, o juiz ofereceu ao procurador o nome de uma “fonte séria” que “estaria disposta a prestar a informação”. (Não devia ser séria porque oferecia informações que não se materializaram sobre o filho de Lula. Além disso, não topou falar.) À época não se sabia que o juiz Moro e o procurador Dallagnol tinham tamanha fraternidade. Sabe-se agora, graças ao The Intercept Brasil.

Em 2015 autoenganavam-se empreiteiros e petistas. Hoje, quem acredita (ou faz que acredita) que a forma apaga o conteúdo é o ministro Moro.

Em novembro de 1971 a filósofa Hannah Arendt publicou um artigo intitulado “Mentindo na Política: Reflexões sobre os Papéis do Pentágono” e nele cuidou do mecanismo do autoengano. Ela disse o seguinte:

“O autoengano pressupõe que a distinção entre a verdade e a falsidade, entre a realidade e a fantasia, desaparece numa cabeça que se desligou dos fatos. No campo político, onde o segredo e a dissimulação sempre desempenharam um importante papel, o autoengano é o perigo por excelência: o enganador autoenganado perde todos os contatos, não só com seu público, mas com o mundo real”.

HARVARD ESTUDA O ANDAR DE BAIXO
Na hora em que o Brasil notabiliza-se abrindo hospitais de luxo para abonados no Rio e em São Paulo, a professora Márcia Castro tornou-se a primeira mulher brasileira a ocupar uma cátedra na Universidade Harvard. A notícia é de dezembro, mas as coisas boas tendem a passar despercebidas. Castro é demógrafa, formada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), com mestrado na Federal de Minas Gerais e doutorado em Princeton.

Ela conquistou sua cadeira na Escola de Saúde Pública, no andar de cima da academia, estudando coisas do andar de baixo da saúde, como a Amazônia, malária, dengue e zika.

Ironia da História. A Escola de Saúde Pública de Harvard já teve outro professor formado no Brasil. Chamava-se Dieter Koch-Weser e era filho de um ministro alemão da República de Weimar que veio para Pindorama com um grupo de amigos que criou uma comunidade em Rolândia, nas matas do Paraná. Mais tarde ele foi para os Estados Unidos, sempre pesquisando a saúde do andar de baixo. Morreu em 2015, aos 99 anos. Seu irmão, Caio, veio a ser presidente de Deutsche Bank.

Os deuses da saúde estão mandando sinais para o Brasil: quem estuda a saúde do andar de baixo acaba sendo reconhecido em Harvard, a universidade mais rica do mundo. Por cá, a Capes corta bolsas enquanto os números do sarampo, tuberculose e meningite acendem sinais de alerta.

BALCÃO DA LANCHONETE
Frase colhida num balcão de lanchonete:
“Quando ele gravava, podia. Agora que grampearam ele, é crime”.

AUSTERIDADE
O filho de um alto morubixaba de Brasília resolveu viajar para o Rio. Seu pai, avarento e austero, disse-lhe que fosse de ônibus.

Ele foi, seguido pelo carro dos seguranças.

PALPITE
O general Santos Cruz tinha na bandeja o caminho diplomático de sair do governo pedindo demissão.

Seria um gesto teatral. Ele teria preferido que Bolsonaro o demitisse.

PESADELO
Um velho advogado viu o ministro Sergio Moro numa cerimônia militar dando continência para a tropa e, no dia seguinte, vestindo uma camisa do Flamengo na tribuna de honra de um estádio.

Lembrou-se que Moro está na cadeira onde sentaram-se Tancredo Neves, Francisco Campos, Rui Barbosa, o Marquês de Paraná e Bernardo Pereira de Vasconcelos.

Achou que teve um pesadelo.

ORDEM NO PALÁCIO
Alguém precisa avisar ao presidente Bolsonaro que não deve receber quadros do segundo escalão do governo sem o conhecimento dos ministros a quem eles são subordinados.

Às vezes isso é feito em nome de velhas amizades, mas o amigo pensa que está com a bola cheia e acaba segurando fio desencapado.

BOLO SEM CEREJA
A saída do regime de capitalização do projeto de reforma da Previdência tirou a cereja do bolo que a banca ajudou a assar.
Ela continuará apoiando a reforma, mas chorará em segredo. Até mesmo porque é duvidoso que a mutilação tenha sido uma boa ideia.

RECORDAR É VIVER
Nos 30 anos da repressão aos estudantes que estavam na praça da Paz Celestial, os organizadores das manifestações de Hong Kong deverão calibrar a radicalização de suas palavras de ordem.

Hoje sabe-se que Deng Xiaoping decidiu acabar com o acampamento e reorientar o governo em abril. Os estudantes acharam que tinham pista livre e radicalizaram. Em maio Deng chamou a tropa e deu sinais de que derrubaria. Em junho baixou o chanfalho.

Na política chinesa, três meses equivalem a uma fração de segundos em outras terras.

CONTA DA PETROBRAS
Vem aí uma conta pesada para a Petrobras. Assim como fizeram, com sucesso, os investidores americanos, alguns fundos brasileiros prejudicados pelas malfeitorias ocorridas na Petrobras, querem ser indenizados.

Por enquanto, a conta (parcial) está em R$ 58 bilhões.

A burocracia da empresa e a União empurram o caso com a barriga e hoje há uma disputa para se saber se o processo deve ser submetido à Câmara de Arbitragem ou mandado para a Justiça. O caso está no Superior Tribunal de Justiça (STJ), onde a relatora Nancy Andrighi já se decidiu pela arbitragem. Se essa tese prosperar a sentença pode sair ainda neste ano.

RIU POR ÚLTIMO
Durante cinco anos o ministro Gilmar Mendes apanhou que nem boi ladrão porque criticava os procedimentos jurídicos da Lava Jato.

Agora ele começou a rir e a falar. Não para de rir nem de falar.


El País: Acuado, Moro decepciona um país com a Lava Jato sob escrutínio

Revelação de conversas entre o antigo juiz e o promotor da Lava Jato lança graves dúvidas sobre sua imparcialidade

Acuado, Moro decepciona um país com a Lava Jato sob escrutínio Conversas entre Moro e Dallagnol poderiam anular processos, incluindo o da prisão de Lula, segundo juristas
O antigo juiz Sergio Moro, 47 anos, está acostumado a escutar milhares de gargantas gritarem seu nome como um herói em manifestações nas quais passeiam enormes bonecos com seu rosto fantasiados de Super-Homem. Foi uma cena frequente nos grandes protestos de rua para retirar a presidente esquerdista Dilma Rousseff do poder. E se repetiu no final de maio em uma concentração de bolsonaristas em frente ao Congresso, em Brasília. Moro, o juiz que entrou na cruzada para acabar com cinco séculos de impunidade aos poderosos do Brasil, entendeu logo que para realizar semelhante tarefa era essencial ter a opinião pública do seu lado. E a teve durante anos. Mas nessa semana sua carreira sofreu um duro golpe que não o derrubou (por enquanto), mas prejudicou muito sua credibilidade. Agora as dúvidas afloraram também entre os que continuaram defendendo sua imparcialidade quando aceitou ser ministro da Justiça após condenar o ex-presidente Lula a nove anos de cadeia por corrupção e acabando assim com suas pretensões eleitorais.

A origem do escândalo são conversas privadas do à época juiz Moro com o promotor-chefe do caso Lava Jato, Deltan Dallagnol, que o site The Intercept Brasil começou a divulgar na noite de domingo. Desde o primeiro minuto, monopolizou o debate político e o foco informativo. Tomou o lugar até do escândalo que tinha envolvido o Brasil durante os dias anteriores, a denúncia de estupro contra Neymar.

Mensagens no Telegram
As mensagens trocadas no Telegram – uma rede social que se orgulha de ser imune aos piratas informáticos – mostraram ao público a fluida relação entre o juiz e o promotor, as sugestões do primeiro ao segundo sobre estratégias, prazos e pistas e as dúvidas do representante do Ministério Público sobre a solidez de seu caso contra Lula. Outras mensagens mostram os promotores falando sobre como impedir que Lula fosse entrevistado na prisão pela Folha de S. Paulo e o EL PAÍS antes do primeiro turno das eleições, quando era favorito nas pesquisas, porque achavam que isso favoreceria o Partido dos Trabalhadores.

As dúvidas sobre sua imparcialidade são tantas que até o jornal que ele escolheu para dar sua primeira entrevista após o escândalo, o conservador Estadão, pediu em um duro editorial que Moro abandone temporariamente o cargo enquanto sua conduta é investigada. A manchete de capa da Veja é Desmoronando. A revista, que nesses cinco anos cobriu com cuidado as investigações da Lava Jato, acusa Moro de “transpassar inequivocamente a linda da decência e da legalidade”.

O ministro, que coloca em dúvida a veracidade das mensagens e frisa que foram obtidas ilegalmente, se declara tranquilo, afirma que o revelado até agora “não compromete as provas, as acusações e o papel separado do juiz, do promotor, do advogado”, e frisa que trocas de mensagem como as reveladas agora são frequentes no Brasil: “Sei que outros países têm práticas mais restritivas, mas a tradição jurídica brasileira não impede esse contato pessoal”.

São muitos os que discordam dessa opinião, incluindo vários juízes do Supremo Tribunal e importantes acadêmicos. Moro terá que ir ao Senado dar explicações no próximo dia 19.

O político mais popular
O presidente, o ultradireitista Bolsonaro, frisou na sexta-feira que “existem zero possibilidades” de que afaste Moro do cargo após os dois terem sido vistos juntos no Maracanã após o estouro do escândalo como um primeiro gesto de apoio público. Em um Governo com três ministros demitidos em seis meses, marcado pelas discrepâncias internas e prejudicado por inúmeras polêmicas, Moro tem sido até agora um dos ativos indiscutíveis. É o político mais popular do Brasil, ainda que as revelações do The Intercept tenham derrubado sua imagem. Seu apoio caiu 10 pontos até chegar em 50% em um mês de acordo com o Atlas Político. Mas a população ainda tem depositadas enormes esperanças nele para que as leis contra o crime que pretende levar adiante sejam aprovadas e consigam reduzir a violência, que é junto com a economia a prioridade dos brasileiros.

Mas existe a possibilidade real de que isso prejudique suas opções de subir ao próximo posto, o Supremo Tribunal, onde deseja ocupar o cargo que ficará vago em pouco tempo.

Mãos Limpas como modelo
Desde jovem dava indícios do que seria. Amigos e colegas de apartamento de seus anos universitários contaram que à época já tinha um arraigado senso de justiça. Frequentemente menciona os juízes italianos da operação Mãos Limpas como seu modelo. “É inegável que constituiu uma das mais exitosas cruzadas judiciárias contra a corrupção política e administrativa que transformou a Itália em uma democracia vendida”, escreveu em 2004 em um longo artigo acadêmico o juiz e professor de Direito penal. Essa cruzada projetou Silvio Berlusconi, o primeiro líder fruto da antipolítica populista que tantas vitórias eleitorais conquistou nos dias de hoje.

Descendente de imigrantes italianos, Moro nasceu em Maringá, no Paraná, em 1972, é casado com uma advogada que na campanha mostrou no Facebook sua preferência por Bolsonaro. Seu marido foi a grande aquisição do antigo militar que baseou sua campanha em atacar o PT. Lembrado por seus colegas por ser muito estudioso, entrou na magistratura aos 24 anos após se especializar em crimes financeiros e corrupção. Nos anos seguintes participou de um curso da faculdade de Direito de Harvard e em uma viagem pelos Estados Unidos dedicada à lavagem de dinheiro organizada pelo Departamento de Estado para jovens líderes estrangeiros. Fala um bom inglês.

Moro é um personagem crucial no terremoto que abalou a política brasileira durante os últimos cinco anos pela investigação da Lava Jato. Participou do primeiro grande caso em que os brasileiros viram como seus juízes prendiam seus políticos corruptos por mais poderosos que fossem. O atual ministro foi ajudante de uma das juízas do Mensalão sobre o sistema de compra de votos organizado pelo PT que explodiu em 2005. Isso quebrou um tabu, mas ninguém poderia imaginar à época que os pagamentos de propinas milionárias da Petrobras em troca de obras significariam condenações de 160 políticos e empresários brasileiros que somam mais de 2.000 anos, atingiriam praticamente todos os ex-presidentes vivos e estenderiam seus efeitos por toda a América do Sul.

O caso Lava Jato caiu no tribunal de um jovem e discreto magistrado de Curitiba, que de maneira metódica, seguindo o exemplo dos juízes da Mãos Limpas, se outorgou a missão de erradicar a corrupção das classes política e empresarial. Quando recebeu o caso tinha uma sólida formação e empreendeu sentença a sentença a mudança do sistema, da legislação e da prática jurídica para conquistar seu objetivo. Os promotores da Lava Jato receberam muitos elogios, além de críticas, basicamente por utilizar a prisão preventiva como maneira de pressionar os investigados para que colaborassem com a Justiça.

E as suspeitas de que são movidos por interesses políticos têm sido frequentes, principalmente vindas do entorno de Lula, a peça mais preciosa das muitas que a investigação conseguiu. O ex-presidente, seus advogados e seu partido sentem-se contemplados com as últimas revelações e pretendem tentar a anulação do processo judicial. De qualquer forma, o ex-presidente tem uma segunda condenação e é investigado em outros seis casos. Para eles a Lava Jato sempre foi uma perseguição política. O ex-mandatário deixou isso claro em uma entrevista recente ao EL PAÍS e à Folha em Curitiba, onde cumpre sua primeira condenação. “Estou obcecado em desmascarar Sergio Moro e seus amigos”.

A conexão brasileira de Greenwald
A publicação das mensagens dos promotores do caso Lava Jato é exclusividade do The Intercept Brasil, escrita pelo norte-americano Glenn Greenwald e dois jornalistas brasileiros. Afirmam que o revelado até agora é uma parte mínima do material que chegou a eles através de uma fonte anônima. Para o mundo, Greenwald é a pessoa a quem o analista Edward Snowden entregou um dos vazamentos mais poderosos dos últimos anos: os documentos que provavam a espionagem maciça feita pela NSA (a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos).

Mas no Brasil, além de um reputado jornalista, é o marido de David Miranda, deputado do PSOL. E um inimigo dos ultraconservadores revigorados pela vitória de Bolsonaro. Mora no Rio de Janeiro desde 2005. Diante de uma reunião de assinaturas nessa semana para que seja deportado do Brasil, lembrou que investiu sua vida pessoal aqui. Há 14 anos, está casado com David Miranda , que entrou no Congresso Federal após a renúncia de outro parlamentar gay, Jean Wyllys, que abandonou o Brasil por ameaças. Greenwald e Miranda há anos são pais adotivos de dois irmãos. O The Intercept Brasil faz parte do veículo de comunicação homônimo criado pelo fundador do eBay, o filantropo Pierre Omaydar.


Demétrio Magnoli: Não é sobre Lula ou Moro

A corrupção do sistema de Justiça não reprime a corrupção política

Os fins justificam os meios? A pergunta não tem sentido, pois cinde duas instâncias inseparáveis. Nem todas as estradas conduzem a Roma. Os meios escolhidos definem os fins que eles podem alcançar. O vigilantismo miliciano não reduz a criminalidade, ainda que modifique sua morfologia. A corrupção do sistema de Justiça não reprime a corrupção política, ainda que substitua um grupo de corruptos no poder por outro. O conluio de Sergio Moro com os procuradores coloca em risco o combate à corrupção —e, ainda pior, paira como nuvem de chumbo sobre nossa democracia.

“Querem macular a imagem de Sergio Moro, cujas integridade e devoção à pátria estão acima de qualquer suspeita”, rosnou Augusto Heleno, invocando “o julgamento popular” para “os que dominaram o cenário econômico e político do Brasil nas últimas décadas”. Não faltou nem o “Brasil acima de tudo!”. Trocando o manto de chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional) pelo uniforme de agitador de redes sociais, o general usa a linguagem dos seguidores de Nicolás Maduro para embrulhar o ato criminoso na sacrossanta bandeira nacional. Mas, apesar dele e da manada que replica mensagens emitidas por robôs virtuais, os diálogos estão aí, como montanhas imóveis na planície sem fim.

Um hacker pago pelo PT? Um agente bolsonarista engajado em sabotar a campanha presidencial de Moro? Um procurador de facção rival, na guerra crônica que esgarça um Ministério Público submerso na lagoa da política partidária? A identidade do autor do vazamento é mistério secundário, de interesse meramente policial. A notícia relevante, não desmentida, é que Moro operou, simultaneamente, como juiz e promotor, violando a lei e fraudando o sistema judicial. Os heróis dos cartéis do tráfico combatem a injustiça social. O herói da justiça corrompida combate os políticos corruptos. Quando cansaremos de fabricar heróis que afrontam a lei legítima?

A pátria e o inimigo da pátria circulam tanto no discurso de Heleno quanto no de Lula. “Deltan Dallagnol, que me persegue, é um fantoche do Departamento de Justiça dos EUA”, acusou Lula, em entrevista à revista Der Spiegel (7/6). A CIA nada tem a ver com isso. A politização do Ministério Público é um fenômeno nacional. Moro, Dallagnol et caterva são saliências visíveis no impulso que conduz uma fração de altos funcionários de Estado a abraçarem a missão jacobina de sanear a política, convertendo-se em agentes políticos.

À sombra de Lula, a Petrobras foi saqueada. A Lava Jato prestou serviços valiosos à nação, expondo máfias políticas e empresariais dedicadas à pilhagem sistemática de recursos públicos. Mas, agora sabemos, desviou-se pelos atalhos do arbítrio. Não há inimigo mais letal do combate à corrupção do que juízes e procuradores dispostos a flexibilizar a lei em nome da causa.

Os vazamentos publicados pelo The Intercept Brasil confirmam, com razoável certeza, que Moro sequestrou a toga para chefiar o Partido dos Procuradores. As águas da política infiltraram-se da laje trincada do Ministério Público aos aposentos do Judiciário. Mas, nessa história, já vivemos um novo capítulo: Moro, chefe do Partido dos Procuradores, trocou a camuflagem de juiz pelo cargo de ministro da Justiça. Na hora de sua nomeação, avisou que prosseguiria em Brasília o trabalho iniciado em Curitiba. Assim, um sistema de Justiça politizado conecta-se ao poder governamental.

Na Rússia, na Turquia, na Venezuela, as democracias morrem quando se desfaz a fronteira que circunda o sistema judicial, protegendo-o das demandas do Executivo. A semente da perseguição judicial de adversários políticos deve ser erradicada antes que germine. Um governo decente afastaria Moro sem demora, mas não temos nada parecido com isso. As iniciativas precisam partir do Congresso, do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público. Não é sobre Lula nem sobre Moro. É sobre o país no qual queremos viver.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Veja: Moro direcionou a Lava Jato a atacar Lula na imprensa, diz site

Conversa privada mostra que Moro procurou o Ministério Público para sugerir texto à mídia que mostrasse 'contradições' do petista

O ex-juiz Sergio Moro pediu aos procuradores da Operação Lava Jato uma nota à imprensa para responder o que classificou como “showzinho” da defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva após o depoimento do petista no caso do triplex do Guarujá, em São Paulo. A revelação está em outra conversa do atual ministro da Justiça e Segurança Pública vazada, esta privada com o então procurador da República Carlos Fernando dos Santos Lima. O conteúdo foi exibido na noite desta sexta-feira, 14, pelo site The Intercept.

Segundo o site, os procuradores acataram a sugestão de Moro no dia 10 de maio de 2017, quando o então juiz já presidia um processo criminal contra o ex-presidente no caso do triplex do Guarujá, no litoral de São Paulo. Moro perguntou “o que achou?” ao procurador do Ministério Público Federal em Curitiba. Santos Lima respondeu: “Achei que ficou muito bom. Ele começou polarizando conosco, o que me deixou tranquilo. Ele cometeu muitas pequenas contradições e deixou de responder muita coisam, o que não é bem compreendido pela população. Você ter começado com o triplex desmontou um pouco ele”.

Moro rebateu na sequência dizendo “a comunicação é complicada, pois a imprensa não é muito atenta a detalhes. E alguns esperam algo conclusivo”. E concluiu: “Talvez vcs devessem amanhã editar uma nota esclarecendo as contradições do depoimento com o resto das provas ou com o depoimento anterior dele. Por que a defesa já fez o showzinho dela”. Santos Lima respondeu: “Podemos fazer. Vou conversar com o pessoal. Não estarei aqui amanhã. Mas o mais importante foi frustrar a ideia de que ele conseguiria transformar tudo em uma perseguição sua”.

Na ocasião, Lula havia feito um pronunciamento de 11 minutos na Praça Santos Andrade, em Curitiba, no qual atacou a Lava Jato, a imprensa e Sergio Moro, afirmou que estava sendo “massacrado” e que estava “se preparando para voltar a ser candidato a presidente”.

Dez minutos depois de conversar com Moro, Carlos Fernando dos Santos Lima abriu o grupo análise de clipping, onde estavam também assessores de imprensa do MPF do Paraná. Ele estava em Recife para um congresso jurídico no dia seguinte. Ali, ele fez o pedido: “Será que não dá para arranjar uma entrevista com alguém da Globo em Recife amanhã sobre a audiência de hoje?”

Um assessor respondeu: “Possível é, só não sei se vale a pena. E todos os jornalistas que estão aqui e já pediram entrevista?”. Outro assessor perguntou: “Mas dr., qual o motivo? Qual a necessidade, na realidade…”. Santos Lima explicou: “Uma demanda apenas. Como setá a repercussão da coletiva dos advogados?”. “Rito normal do processo… Vcs nunca deram entrevista sobre audiência… vai servir para defesa bater… mais uma vez…”, respondeu um dos assessores.

Logo depois, Santos Lima copiou a conversa que teve em seu chat privado com Moro e colou em outro chat privado, com o coordenador da Lava Jato do MPF, Deltan Dallagnol, que mandou uma série de mensagens no grupo Filhos de Januário 1, com procuradores da força-tarefa: “Então temos que avaliar os seguintes pontos: 1) trazer conforto para o juízo (Moro) e assumir o protagonismo para deixá-lo mais protegido e tirar dele um pouco de foco; 2) contrabalancear o show da defesa. Esses seriam porquês para avaliarmos, pq ng tem certeza. O ‘o quê’ seria: apontar as contradições do depoimento. E o formato, concordo, teria que ser uma nota, para proteger e diminuir riscos. O JN (Jornal Nacional) vai explorar isso amanhã ainda. Se for para fazer, teríamos que trabalhar intensamente nisso durante o dia para soltar até lá por 16h.

Depois, Dallagnol mandou mensagem ao grupo Análise de clippong, dos assessores de imprensa: “Caros, mantenham avaliando a repercussão de hora em hora, sempre que possível, em especial verificando se está sendo positiva ou negativa e se a mídia está explorando as contradições e evasivas. As razões para eventual manifestação são: a) contrabalancear as manifestações da defesa. Vejo com normalidade fazer isso. Nos outros casos não houve isso. b) tirar um pouco o foco do juiz que foi capa das revistas de modo inadequado”. Um dos assessores respondeu alertando que a medida poderia ser um ‘tiro no pé’ e que a mudança de postura poderia gerar outros questionamentos.

Deltan também escreveu a Moro, o elogiando pela condução da audiência: “Caro, parabéns por ter mantido controle da audiência de modo sereno e respeitoso. Estamos avaliando eventual manifestação. A GloboNews acabou de mostrar uma série de contradições e evasivas. Vamos acompanhar”. Moro respondeu: “Blz. Tb tenho minhas dúvidas da pertinência de manifestação, mas é de se pensar pelas sutilezas envolvidas.”

Então os procuradores acataram a sugestão e distribuíram uma nota à imprensa, na qual expôs três contradições do depoimento de Lula, além de refutar uma alegação da defesa. Naquela noite, Dallagnol mandou nova mensagem a Moro para explicar os motivos de não ter explorado tanto as contradições do ex-presidente: “Informo ainda que avaliamos desde ontem, ao longo de todo o dia, e entendemos, de modo unânime e com a ascom, que a imprensa estava cobrindo bem contradições e que nos manifestarmos sobre elas poderia ser pior. Passamos algumas relevantes para jornalistas. Decidimos fazer nota só sobre informação falsa, informando que nos manifestaremos sobre outras contradições nas alegações finais.”

Ainda de acordo com o The Intercept, a assessoria do ministro Sergio Moro foi procurada, mas disse que ele “não iria comentar as supostas mensagens de autoridades públicas colhidas por meio de invasão criminosa de hackers e que podem ter sido adulteradas e editadas”.


O Estado de S. Paulo: ‘Se quiserem publicar tudo, publiquem. Não tem problema’, desafia Moro

Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, afirma ao 'Estado' que não vai se afastar do cargo

Fausto Macedo e Ricardo Brandt / ENVIADOS ESPECIAIS / BRASÍLIA

O ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, afirmou ao Estado que não vai se afastar do cargo. Alvo de ataque cibernético e de vazamento de diálogos atribuídos a ele com procuradores da Lava Jato, no Telegram, Moro disse que o País está diante de “um crime em andamento”, promovido, conforme sua avaliação, por uma organização criminosa profissional. Moro afirmou que não há riscos de anulação do processo do triplex do Guarujá, que levou à prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

O ex-juiz da Operação Lava Jato vê viés político-partidário na divulgação das mensagens tiradas de aplicativo do coordenador da força-tarefa em Curitiba, Deltan Dallagnol. Ele falou em “sensacionalismo” e disse que réus e investigados da Lava Jato teriam interesse no caso. O ministro não reconhece a autenticidade das mensagens e, na primeira entrevista após ter virado alvo dos hackers, desafiou a divulgação completa do material.

Ele afirmou ainda não ver ilicitude nos diálogos e disse que conversava “normalmente” também com advogados e delegados, inclusive por aplicativos. Em quase uma hora de conversa em seu gabinete em Brasília, Moro descartou impactos do caso para o governo Jair Bolsonaro e para o pacote anticrime, que defende no Congresso. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Estadão: O sr. está preocupado, está dormindo em paz?

Sérgio Moro: Fui vítima de um ataque criminoso de hackers. Clonaram meu telefone, tentaram obter dados do meu aparelho celular, de aplicativos. Até onde tenho conhecimento, não foram obtidos dados. Mas os procuradores foram vítimas de hackers e agora está havendo essa divulgação indevida. Estou absolutamente tranquilo em relação à natureza Das minhas comunicações. No fundo, esse processo da Lava Jato é um processo muito complicado. É uma dinâmica dentro da 13.ª Vara Federal (em Curitiba), o dia inteiro proferindo decisão urgente. E a gente recebia procurador, advogado, a gente falava com advogado, falava com todo mundo. E, eventualmente, utilizava aplicativos de mensagem para tratar isso de maneira dinâmica maior. Mas, quanto à natureza das minhas comunicações, estou absolutamente tranquilo.

Estadão: O sr. era o juiz exclusivo dos processo penais da Lava Jato, era o corregedor da Lava Jato?

Moro: Exatamente, às vezes as pessoas tinham como referência a 13.ª Vara e o juiz, no meu caso, e levavam todo tipo de informação, de demanda. Então, as pessoas ouviam histórias verdadeiras, plausíveis e, às vezes, histórias fantasiosas. E, muitas vezes, em vez de levar ao Ministério Público, levavam a mim. O que a gente fazia? A gente mandava para o Ministério Público. Mandava normalmente pelos meios formais, mas, às vezes, existia uma situação da dinâmica ali do dia, naquela correria, e enviava por mensagem.

Estadão: Recebia demandas de advogados?

Moro: Sim, recebia. Procuradores, advogados, o tempo todo. É normal trocar informação, claro, dentro da licitude. Mas, assim, o que tem que se entender é que esses aplicativos de mensagens, eles apenas aceleram a comunicação. Isso do juiz receber procuradores, delegados, conversar com delegado, juiz receber advogados, receber demanda de advogados, acontece o tempo todo. Às vezes chegava lá o Ministério Público: “Ah, vou pedir a prisão preventiva do fulano X”. Às vezes, o juiz tem uma análise lá e fala: “Ó, precisa de prova robusta para pedir a prisão preventiva”. Assim como o advogado chega lá e diz: “Vou pedir a revogação da prisão preventiva do meu cliente”. Às vezes o juiz fala: “Olha, o seu cliente está em uma situação difícil, seria interessante demonstrar a correção do comportamento do cliente, afastar essa suspeita”. Essa interlocução é muito comum. Sei que tem outros países que têm práticas mais restritas, mas a tradição jurídica brasileira não impede o contato pessoal e essas conversas entre juízes, advogados, delegados e procuradores.

Estadão: Os próprios advogados usam a expressão embargos auriculares quando vão conversar com o magistrado.

Moro: Tem essa expressão. Mas é muito comum. Na dimensão da Lava Jato, com todas as diligências que eram ordenadas, às vezes surgiam incidentes no meio dessas buscas, às vezes surgia a necessidade de coisas muita urgentes, era comum você ser contatado, seja verbalmente, seja por aplicativos, mas com demandas lícitas. A questão do aplicativo é apenas um meio.

Estadão: Não contamina a Operação Lava Jato?

Moro: Não, de forma nenhuma. Depois de todas as decisões, tudo era formalizado, colocado nos autos. Agora, existia às vezes situações de urgência, eventualmente você está ali e faz um comentário de alguma coisa que não tem nada a ver com o processo. Isso não tem nenhum comprometimento das provas, das acusações, do papel separado entre o juiz, o procurador e o advogado. Não existe também nenhuma espécie, vamos dizer assim… Até ouvi uma expressão lá de que eu era “chefe da Lava Jato”, isso é uma falsidade.

Estadão: Não houve conluio?

Moro: Não tem nada, nunca houve esse tipo de conluio. Tanto assim, que muitas diligências requeridas pelo Ministério Público foram indeferidas, várias prisões preventivas. O pessoal tem aquela impressão de que o juiz Moro era muito rigoroso, mas muitas prisões preventivas foram indeferidas, várias absolvições foram proferidas. Não existe conluio. Agora, a dinâmica de um caso dessa dimensão leva a esse debate mais dinâmico, que às vezes pode envolver essa troca de conversas pessoais ou por aplicativos. Mas é só uma forma de acelerar o que vai ser decidido no processo.

Estadão: O processo triplex está sob risco?

Moro: Olha, se tiver uma análise cautelosa, se nós tirarmos o sensacionalismo que algumas pessoas interessadas estão fazendo, não existe nenhum problema ali. Foi um caso decidido com absoluta imparcialidade com base nas provas, sem qualquer espécie de direcionamento, aconselhamento ou coisa que o valha. Um dos episódios que falam seria a mensagem minha mais delicada que apareceu. Eu fico numa situação delicada porque eu não posso reconhecer a autenticidade dessas mensagens, porque é assim, em vez de eles apresentarem tudo, e que a gente possa verificar a integridade desse material, eles estão com essa ideia de apresentar paulatinamente. E eu não excluo a possibilidade de serem inseridos trechos modificados, porque eles não se dignaram nem sequer a apresentar o material a autoridades independentes para verificação. A mensagem que diz que é mais delicada em relação a mim, o que é? É uma notícia-crime. Alguém informa que tem informações relevantes sobre crimes e eu repasso para o Ministério Público. Isso está previsto expressamente no Código de Processo Penal, artigo 40, e também no artigo 7 da Lei de Ação Civil Pública diz que “quando o juiz tiver conhecimento de fatos que podem constituir crime ou improbidade administrativa ele comunica o Ministério Público”. Basicamente é isso, eu recebi e repassei. Porque eu não posso fazer essa investigação.

Estadão: Em algum momento chegou informação de interesse da defesa ao sr. e que foi encaminhada à defesa?

Moro: Chegavam muitas informações, aquilo lá tinha virado uma caixa de ressonância pela publicidade das informações. Tudo que chegava que era relevante, ou a gente encaminhava para a polícia ou Ministério Público, seja lá se a informação eventualmente beneficiava defesa ou acusação. O que importa é o descobrimento da verdade.

Estadão: O que chegou o sr. passou para frente? Houve seletividade?

Moro: Não, não. Sendo muito franco, essas notícias-crime chegavam toda hora. O que tem que fazer o juiz? Ele tem que transmitir isso para a frente.

Estadão: O que foi divulgado até agora o sr. reconhece como fala sua? A frase ‘In Fux we trust’, por exemplo?

Moro: Tem duas dificuldades, essas invasões criminosas dos dispositivos dos procuradores e a tentativa de invasão do meu, eles, até onde sei, não conseguiram pegar o conteúdo do meu Telegram. Poderiam ter pego, não tem problema nenhum quanto a isso. Mas não conseguiram, porque não estou no Telegram. Não tenho essas mensagens. Veja, são fatos que aconteceram dois três anos atrás. Não tenho memória de tudo. Vejo algumas coisas que podem ter sido coisas que eu tenha dito. Agora podem ter inserções maliciosas. Então fica muito complicado. Até porque, como eu disse, se os fatos são tão graves como eles dizem que são, até agora não vislumbrei essa gravidade, o que eles deveria fazer: pegar o material que receberam na forma original, não sei se é papel ou se é meio eletrônico, e apresentar para uma autoridade independente. Se não querem apresentar à Polícia Federal, apresenta no Supremo Tribunal Federal. Aí vai se poder verificar a integridade daquele material, exatamente o que eles têm, para que se possa debater esse conteúdo. Agora, do contrário, eu fico impossibilitado de fazer afirmações porque eu não tenho o material e, por outro lado, eu reconheço a autenticidade de uma coisa e amanhã aparece outra adulterada. Alguns diálogos, algumas mensagens lá me causam bastante estranheza. Não sei, por exemplo, como é que atribuíram aquelas mensagens a Moro, de onde que veio isso, esse Moro, da onde que veio o Deltan. Eu vejo nas mensagens lá que às vezes está Deltan e às vezes está Dallagnol. Então, como é que foi isso? Aquele material não é o material original? Será que não teve outra coisa que foi editada ali dentro?

Estadão: A investigação chegará aos hackers?

Moro: Espero que sim. Existem várias possibilidades, de ter sido um hacker isolado. Eu, particularmente, acho que isso não foi tarefa de um adolescente com espinhas na frente do computador, mas de um grupo criminoso organizado, e a polícia está empenhada em verificar esses fatos. Não é só a questão minha, ou dos procuradores, muita gente sofreu a mesma tentativa de invasão criminosa, inclusive jornalistas, já temos notícias de possíveis parlamentares terem sido vitimas dessa prática. Não é só uma invasão pretérita que um veículo de internet resolveu publicar o conteúdo. Nós estamos falando aqui de um crime em andamento. De pessoas que não pararam de invadir aparelhos de autoridades ou mesmo de pessoas comuns e agora têm uma forma de colocar isso a público, podem enviar o que interessa e o que não interessa. E também esse veículo (The Intercept Brasil) não tem nenhuma transparência com relação a esse conteúdo. Então vai continuar trabalhando com esses hackers?

Estadão: O alvo é a Lava Jato ou o governo Bolsonaro e as reformas?

Moro: Acho que o alvo são as instituições. Se vamos tolerar esse tipo de comportamento, hackers criminosos que conseguem abrigo em veículos não sei se da imprensa, se a gente pode falar dessa forma, para divulgar isso. Então quer dizer se amanhã invadirem os telefones de jornais, de empresas, dos ministros do Supremo, de presidente do Senado, de presidente da Câmara, vão aceitar que isso seja divulgado por esse mesmo veículo? Me parece, veja bem, essa Operação Lava Jato foi muito difícil, hercúleo, pode ter nisso as críticas pontuais, mas houve uma mudança de padrão do tratamento do Brasil da impunidade da grande corrupção. Então pessoas que eram normalmente impunes, mesmo tendo cometido crimes de corrupção graves, passaram e ser punidos. Isso gerou muitos inimigos. Tem muita gente que quer fazer tudo para acabar com a operação. E conseguiram, aparentemente, gerar um sensacionalismo com base em ataques criminosos de hackers. Mas eu acho que, olhando mais a fundo, os alvos são as instituições.

Estadão: Mais do que a Lava Jato?

Moro: Mais do que a Lava Jato. A gente não sabe onde isso vai parar. Ontem (anteontem), me parece que houve uma tentativa de intimidação do Supremo Tribunal Federal com a divulgação daquelas mensagens envolvendo um ministro (Luiz Fux).

Estadão: O objetivo serve a algum investigado da Lava Jato? Vê riscos de anulação dos processos?

Moro: Acho que há muito sensacionalismo e falta uma análise mais cautelosa. Se formos analisar o que saiu não vi nada demais. Embora, como disse, não tenha condições de reconhecer a autenticidade daquilo. E não se sabe que tipo de adulteração pode vir aí em relação a isso. Esse sensacionalismo, mais do que o próprio conteúdo (das mensagens), é o que pode afetar a credibilidade das operações. Mas aquilo foi um trabalho sério, difícil, não foi feito sem um custo pessoal, e não digo só meu, mas de todos aqueles que estiveram envolvidos. E não foi feito também sem o custo da própria sociedade. A sociedade foi às ruas, apoiou a pauta anticorrupção, como continua apoiando.

Estadão: Pensou em se afastar do cargo?

Moro: Não, eu me afastaria se houvesse uma situação que levasse à conclusão de que tenha havido um comportamento impróprio da minha parte. Acho que é o contrário. Agora estou em uma outra situação, estou como ministro da Justiça, não mais como juiz, mas tudo o que eu fiz naquele período foi resultado de um trabalho difícil. E nós sempre agimos ali estritamente conforme a lei. Qualquer situação, despido o sensacionalismo, está dentro da legalidade. Conversar com procuradores, conversar com advogados, isso é absolutamente normal.

Estadão: O presidente Bolsonaro o apoiou?

Moro: Sim, desde o início o presidente me apoiou. Agora, esse foi um trabalho realizado enquanto eu não era ministro. Então não é responsabilidade do atual governo. O presidente reconhece e já deu demonstrações públicas nesse sentido de que não se vislumbra uma anormalidade que se coloque em xeque a minha honestidade.

Estadão: O sr. se sentiu isolado?

Moro: Não, nós temos recebido muita manifestações de apoio, de populares, de autoridades. Agora, existe um sensacionalismo que tenta manipular a opinião pública. Pessoas que se servem de meios criminosos para obter essas informações e nos atacar e a outras pessoas e que não veem um problema ético em utilizar esse tipo de informação e fazer sensacionalismo. Por que não apresenta desde logo tudo? Se tem irregularidade mesmo, tão graves, apresenta tudo para uma autoridade independente que vai verificar a integridade do material. Aí, sim, se a ideia é contribuir para fazer Justiça, então vamos agir dessa forma. E não com esses mecanismos espúrios.

Estadão: Em um diálogo que lhe é atribuído, o sr. fala em limpar o Congresso. O sr. reconhece essa fala como sua?

Moro: Não, não reconheço a autenticidade desse tipo de afirmação. Vamos dizer assim, em uma conversa coloquial, pode ser até algo que se diga “olha, tem um problema”. Vamos dizer que estamos falando de um Congresso que na época tinha o Eduardo Cunha como presidente (da Câmara), uma pessoa que comprovadamente cometeu crimes, tinha contas milionárias na Suíça, então era uma situação bastante diferente. Mas eu não tenho como recordar se há dois, três anos atrás eu tenha efetuado uma afirmação dessa espécie.

Estadão: O que o sr. vai dizer no Senado na próxima semana?

Moro: Eu me coloquei à disposição para esclarecer, eu não tenho nenhum receio do conteúdo de mensagens que eu tenha eventualmente enviado ou recebido durante minha carreira profissional. Sempre me pautei pela legalidade e estou me colocando à disposição para esclarecer no que eu posso.

Estadão: O sr. vê cunho sensacionalista, mas as reações são diretas em questionar a legalidade de uma suposta interferência nas investigações. É normal?

Moro: A tradição jurídica brasileira permite essas conversas entre juízes e advogados e procuradores, inclusive policiais. A questão das operações, uma vez deferida uma diligência, 50 buscas e apreensões e 50 prisões de pessoas, existem questões de logística que vão ser discutidas com a polícia e com o Ministério Público. Precisamos saber exatamente quando vai acontecer, em que momento vai acontecer e tem que ter um planejamento.

Estadão: Pretende incluir no pacote anticrime um capítulo sobre hackers?

Moro: Não vou colocar agora, não quero misturar essas coisas. Mas há uma necessidade de rever a legislação brasileira, que é muito branda.

Estadão: Há indício de que a base dos ataques seja fora do País, uma participação internacional de hackers?

Moro: Quem especulava de que tudo era uma armação da CIA era o Partido dos Trabalhadores em relação à Operação Lava Jato. Todas as opções estão na mesa, a investigação é da Polícia Federal e eu acompanho apenas à distância.

Estadão: O sr. fazia dupla verificação o seu Telegram?

Moro: Eu não estava no Telegram.

Estadão: Mas quando usava?

Moro: Não.

Estadão: Mandava áudios pelo Telegram?

Moro: Não, não, de forma alguma. Veja, isso são coisas de dois, três anos atrás. Ao que me consta, não tem nenhum áudio meu, porque não tenho esse costume. Eu até brinco que eu acho um costume um pouco irritante, áudio por aplicativo de mensagem. Quer falar? Então liga.

Estadão: Esse caso pode derrubar a prisão em segunda instância no STF e fazer voltar a discussão sobre a Lei de Abuso de Autoridade no Congresso?

Moro: São questões independentes. Não acredito que o Supremo vai fazer qualquer alteração em relação à prisão em segunda instância decorrente desse fato. Quanto ao Congresso, também me parece que não.

Estadão: O diálogo sobre o grampo que pegou Lula e Dilma à véspera da nomeação do ex-presidente como ministro o sr. não reconhece como seu?

Moro: Veja, isso foi dito na época dos fatos, lá em 2016. Houve uma posição da polícia requerendo o levantamento do sigilo, houve uma posição do Ministério Público requerendo o levantamento do sigilo. E houve uma decisão que eu tomei de levantar o sigilo. Se isso foi tratado em mensagens, ali, teria sido tratado dessa forma. Mas não teve nenhum comprometimento ali de imparcialidade no processo. A posição é a que está no processo. É exatamente o que foi feito. Não vejo ali o motivo da celeuma.

Estadão: O sr. não estava orientando o procurador?

Moro: O que eu posso em algum momento ter falado, ao transmitir uma mensagem ao procurador ou a qualquer outra pessoa, é: “Olha, levantei o sigilo, acho que fiz o certo. Agora, realmente causou um certo impacto que eu não imaginava, achei que era uma decisão absolutamente acertada e comum.

Estadão: O PT acusa o sr. de ter feito parte de uma trama para tirar Lula do cenário político e de ter influenciado no resultado da eleição em 2018.

Moro: Me parece muito claro que existe um viés político-partidário na divulgação dessas mensagens, e não utilização dela. Uma passa pela soltura de um condenado por corrupção e lavagem de dinheiro, que é o ex-presidente Lula, é uma pena. Ele foi condenado em mais de uma instância e por mais de um juiz de primeira instância. Sempre disse com muita clareza que para mim é muito triste ter proferido essa decisão. Isso me trouxe um grande peso, pessoal. Constantemente sou atacado por ter apenas cumprido o meu dever. Era o que a lei determinava e era o que as provas ali revelavam (no caso triplex).

Estadão: O sr. não teme novas publicações?

Moro: Não, pode ser que tenham novas publicações. Mas assim, eu sempre pautei o meu trabalho pela legalidade. Os meus diálogos e as minhas conversas com os procuradores, com advogados, com policiais, sempre caminharam no âmbito da licitude. Não tem nada ali, fora sensacionalismo barato.

Estadão: O caso pode prejudicar uma futura indicação do sr. ao Supremo?

Moro: Nem penso nisso. Não tem vaga no momento. Não faz sentido. Nunca vi no passado se discutir vagas no Supremo sem estarem abertas. É algo que não está no meu radar.


Vera Magalhães: Moro sem capa

Ministro sangrou pela primeira vez de forma consistente depois de quatro anos praticamente sem contestações

Juízes usam capa em tribunais de júri e cortes superiores. Heróis usam capa nos quadrinhos. Sérgio Moro não é mais juiz, ainda não chegou ao Supremo Tribunal Federal, seu sonho declarado, e perdeu nos últimos dias, ao menos por ora, a capa de herói com que foi retratado em atos no dia 26. Moro está momentaneamente sem capa, pela primeira vez desde que se notabilizou pela Lava Jato.

Isso significa que o ministro da Justiça perdeu o respaldo das ruas e das redes? Não. Os atos em apoio ao governo foram mais um aval à agenda de Moro que à de Jair Bolsonaro. Mas as hashtags de apoio ao ex-juiz depois da revelação de trechos de conversas obtidas de forma, ao que tudo indica, ilegal e divulgadas pelo site The Intercept Brasil rivalizaram com as de críticas à Lava Jato, e medições feitas nas interações no Twitter mostram o campo de centro dividido entre o apoio à operação e a decepção com a revelação de interações não institucionais entre acusação e juiz.

Em política, o ambiente em que Moro escolheu transitar quando deixou a magistratura, os agentes costumam sentir cheiro de sangue na água. E o ex-todo-poderoso sangrou pela primeira vez de forma consistente depois de quatro anos praticamente sem contestações. Deputados, senadores, ministros do Supremo, derrotados nas últimas eleições, advogados. A fila dos que veem no episódio a chance de ir à forra contra Moro e os procuradores é imensa. E leva a consequências imediatas.

O projeto anticrime, que estava em banho-maria, subiu no telhado. A indicação ao STF, antes dada como certa pelo próprio presidente, hoje é vista com ceticismo entre colegas de ministério e integrantes da Corte. O acordo para que o ministro deponha diante do Senado atende em parte a essa sede de sangue indisfarçada.

“Ao mal tudo se permite; da virtude tudo se exige”, lamentou para mim um ministro de Bolsonaro, solidário ao colega. Pode parecer injusto, mas o juiz Moro vestiu como uma capa de herói esse figurino da virtude intransigente. Justamente por isso, e por ter visto de perto casos como Banestado e Castelo de Areia, sabia melhor que ninguém que vícios de forma podem, sim, macular uma virtuosa operação de combate à corrupção – cujo acervo de provas de escândalos revelados, diga-se, segue intacto.

CASO LULA:
Combinação de ‘truque’ para testemunha é ponto delicado

Um dos pontos mais delicados para o ex-juiz federal Sérgio Moro e o procurador da República Deltan Dallagnol dos trechos de conversas entre eles que vazaram até aqui é, no entender de advogados e ministros do Supremo Tribunal Federal, um de 7 de dezembro de 2015 em que Moro indica uma testemunha que estaria disposta a falar sobre a transferência de imóveis para os filhos do ex-presidente Lula, dezenas deles. Diante de uma resposta de Deltan Dallagnol de que a testemunha não estaria disposta a depor, e da ideia do colaborador de que poderia fazer uma intimação baseada em denúncia apócrifa – que não houve, já que a “dica” veio do próprio juiz –, Sérgio Moro avaliza o truque. “Melhor formalizar, então.” Esta é a única situação em que fica evidente, no material até aqui conhecido, um conluio para tentar produzir um testemunho no caso que levou à condenação do petista, e, por isso, deve ser fulcral na discussão do pedido de suspeição do juiz, que a Segunda Turma do Supremo apreciará no próximo dia 25.

MINISTÉRIO PÚBLICO:
Caso envolvendo procuradores fortalece recondução de Dodge

A divulgação de conversas de procuradores da Lava Jato, a denúncia contra eles no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e a expectativa de que o conteúdo a ser ainda divulgado pelo site The Intercept Brasil pode atingir também o grupo do ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot ajudaram a fortalecer no círculo próximo a Bolsonaro a defesa da recondução de Raquel Dodge ao comando do Ministério Público. Se ela já contava com a simpatia de ministros do STF, como Dias Toffoli e Gilmar Mendes, e dos presidentes da Câmara e do Senado, agora se beneficia da percepção de que a ideia de promover alguém de um escalão inferior da carreira, com viés político ou ideológico ou muito identificado com a Lava Jato significaria expor a instituição ao risco de desgaste iminente. Mesmo entre os procuradores a resistência a Raquel Dodge, que é alta, arrefeceu um pouco diante da crise aberta com as mensagens.