Míriam Leitão

Míriam Leitão: Bolsonaro quer demitir presidente da Petrobras, mas só o Conselho pode

O presidente Jair Bolsonaro quer demitir o presidente da Petrobras, Roberto Castello Branco, mas o problema é que ele só pode fazer isso com a concordância do conselho de administração. Por isso fez a declaração na quinta-feira na transmissão em rede social, criticando o dirigente da empresa, para provocar um pedido de demissão do próprio Castello Branco. O problema é que o atual dirigente da estatal não tem essa intenção. 

A informação que apurei é que há risco de o conselho de administração  renunciar. E mais: se a pressão continuar e o presidente da Petrobras for demitido, a diretoria também sairá. O impasse se torna aí mais forte.  A Companhia deve anunciar no próximo dia 24 um excelente resultado. A tensão é crescente entre a empresa e o governo.Para Bolsonaro, a saída pode não ser fácil e suas declarações de quinta à noite criticando diretamente o presidente da Petrobras e deixando no ar essa frase enigmática de que “alguma coisa vai acontecer” vai provocar muita volatilidade no mercado nas ações da empresa.

Bolsonaro quer com isso agradar aos caminhoneiros que voltam a falar de greve como informado aqui no blog. O presidente tem tido uma crise de raiva a cada aumento que a Petrobras anuncia, o problema é que o que ele quer controlar os preços da empresa e voltar ao tempo do congelamento como houve no governo Dilma e que levou a um prejuízo bilionário. A administração de Roberto Castello Branco tem reduzido o maior problema que é o alto endividamento da empresa. E a intenção na empresa é continuar seguindo a paridade internacional dos preços.

O corte nos impostos vai significar R$ 3 bilhões ou mais só a zeragem por dois meses dos impostos federais, e pode chegar a R$ 5 bi somando com a suspensão até o fim do ano dos tributos sobre gás de cozinha, como foi dito aqui. O governo terá que dizer de onde vai tirar, de acordo com o ordenamento fiscal do país e isso tem que ser dito hoje pela equipe econômica. Aliás a equipe está tentando cortar R$ 10 bi em orçamento que sequer foi aprovado e ele ja está criando mais despesas. 

O presidente se irritou até com a forma como o presidente da Petrobras chegou para a última reunião. De máscara e com óculos de EPI, para a proteção contra o coronavírus. No palácio, o uso da máscara e da rigidez das medidas protetivas é vista como uma atitude política contrária ao governo. O máximo que se faz é por a máscara, aparecer em público e depois tirar na hora de falar.

O Instituto Brasileiro do Petróleo soltou uma nota em que defende o mercado aberto. De acordo com o comunicado, o IBP afirma que somente com um mercado aberto, competitivo, dinâmico, ético, com segurança jurídica e previsibilidade regulatória, "o segmento será capaz de atrair novos atores e investimentos, de médio e longo prazo, em infraestrutura logística, produção de combustíveis e derivados, além da garantia do abastecimento nacional". 

Ainda de acordo com a nota, a "dinâmica de preços livres deve ser preservada, com alinhamento à paridade internacional, equilibrando a oferta e a demanda". 


Míriam Leitão: STF mira defensor radical do governo

A força dos eventos em torno da prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) vai muito além do personagem. O Supremo consagrou duas teses. Primeiro, que a imunidade parlamentar não cobre ataques e ameaças à democracia. Segundo, que a internet alarga o conceito de prisão em flagrante porque nela se pratica crime continuado. O que era no começo do dia uma decisão do ministro Alexandre de Moraes virou de todo o STF após a aprovação por unanimidade. A cúpula da Câmara tentava encontrar formas de amenizar a punição.

Daniel Silveira é reincidente. É investigado no inquérito das fake news e das manifestações antidemocráticas. É um defensor da violência como arma política. Em um dos seus vídeos mais conhecidos, ele ameaça de morte manifestantes antifascistas. Mais importante, ele é um bolsonarista raiz, da ala radical. Ao atacar o Supremo ele estava tentando escalar a crise iniciada pela declaração do general Villas Bôas de que o Alto Comando do Exército participou da redação da postagem que fez em 2018 ameaçando o STF. Três dos integrantes do Alto Comando da época são ministros de Bolsonaro, e o então ministro da Defesa é diretor-geral de Itaipu. Era nessa crise que Daniel Silveira tentava surfar.

Ex-policial militar, defensor da disseminação das armas, propagandista da ditadura e do AI-5, o deputado é fruto também do perigoso fenômeno da politização das polícias militares, uma das bases do atual presidente. O ex-ministro da Segurança Raul Jungmann explica melhor.

— A hiperpolitização das polícias militares acontece pela permissão de que eles saiam, se candidatem e, se perderem a eleição, possam voltar e retomar o serviço ativo. Ganhando ou perdendo pode-se voltar. A possibilidade de ir e vir da política para a PM tem sido um estímulo a que indivíduos liderem rebeliões e motins para depois se candidatarem. A greve é proibida, mas eles entram em greve e depois são anistiados — diz Raul.

E pior, não há um período de desincompatibilização. Ele pode sair da corporação direto para a campanha. E se não for eleito, volta direto. Nada a perder, portanto. Um estudo feito pela newsletter Fonte Segura , do Fórum Brasileiro da Segurança Pública e da Analítica Comunicação, mostra que isso não acontece em outros países. Bolsonaro estimulou ao máximo essa politização e continua cultivando as PMs como uma de suas bases. Em 2018, foram eleitos 77 militares ou policiais militares, 43 deles pelo PSL, partido ao qual o presidente era filiado.

Silveira, ao discutir no IML, para não usar máscara, disse que é um policial. Não é mais. Ficou apenas cinco anos, nove meses e dezessete dias. Não pode voltar, portanto, porque não completou 10 anos. No vídeo em que ameaçou manifestantes, ele também falou como se ainda fosse policial e lembrou que eles andavam armados e “em algum momento um de vocês vai achar o de vocês e tomar um no meio da testa e no meio do peito”. No vídeo que o levou à prisão o deputado fez ameaças físicas aos ministros do STF.

A decisão do STF, independentemente da reação da Câmara, esclarece princípios que o governo de Jair Bolsonaro tentou confundir. A liberdade de expressão não serve para encobrir crimes contra a democracia. Nem mesmo de um parlamentar. Bolsonaro quando era deputado fez apologia da ditadura e da tortura, falou em matar adversários políticos e nunca foi punido. Vejam o preço que o país paga pela leniência das instituições.

O presidente Jair Bolsonaro nos decretos de liberação de armas eleva o perigo extremo que a democracia brasileira corre no seu governo. Jungmann acha que a liberação de armas e a redução do controle do Estado sobre elas levarão a um aumento do crime e a um fortalecimento do crime organizado.

É claro que Bolsonaro está também tentando formar milícias políticas. Em várias ocasiões mostrou que seu objetivo é político. Ele afirmou na famosa reunião ministerial que queria “escancarar” o acesso às armas, alegando que assim resistiriam a ditadores. Disse que pessoas armadas poderiam enfrentar governadores e prefeitos. Por fim afirmou que aqui aconteceria pior do que houve nos Estados Unidos, no ataque ao Capitólio.

Esta crise extrapola em muito a figura medíocre e repulsiva do deputado que a provocou. Se a Câmara proteger o truculento Daniel Silveira, o país afunda mais um pouco no abismo institucional em que entrou desde a eleição de Bolsonaro, um inimigo declarado da democracia.


Míriam Leitão: Três generais e uma desonra

A ida do general Eduardo Pazuello para o Ministério da Saúde sempre incomodou o Exército. O sentimento foi explicado por um oficial numa frase: “Qualquer que fosse o desempenho dele iria morrer gente e essas mortes poderiam cair sobre as Forças”. O general tem tido o pior desempenho possível, está sendo investigado e pode ter que responder a uma CPI. O general Eduardo Villas Bôas entregou ao pesquisador Celso de Castro da FGV uma informação explosiva: em 2018 ele não estava sozinho quando ameaçou o Supremo. Tudo foi feito junto com o Alto Comando do Exército. Ao aderirem à campanha e depois ao governo Bolsonaro, as Forças Armadas entraram num labirinto. Ainda não sabem a saída.

Villas Bôas revelou que o texto, no qual tentou intimidar o STF, foi escrito junto com o Estado Maior do Exército e depois enviado “para os comandantes de áreas”. Não foi um improviso inconveniente. Foi uma conspiração. Ninguém mostrou ao ministro da Defesa da época Raul Jungmann. O episódio ilustra que o poder civil, quando dirigiu o Ministério da Defesa, jamais se impôs.

Os fatos se passaram na terça-feira, 3 de abril de 2018, quando o então comandante do Exército postou dois tuítes. Era véspera do julgamento de um habeas corpus do ex-presidente Lula. Não creio que o STF tenha decidido por causa desse pronunciamento, mas o relevante é que o objetivo do Exército foi mesmo ameaçar o Supremo. O general disse, na rede social, que restava perguntar às instituições “quem estava pensando no bem do país” e quem “estava preocupado com os interesses pessoais”. Era um ato de apoio à candidatura de Bolsonaro. Um segundo tuíte dizia que o Exército compartilhava o anseio dos cidadãos de bem “de repúdio à impunidade, de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia” e terminava alertando que estavam atentos às suas missões institucionais. Soou como uma ameaça. Era. Villas Bôas luta contra terrível doença terminal e se afastou de tudo. Preserva, contudo, extremo prestígio dentro das Forças Armadas. Seus atos e palavras sempre ecoaram.

O general Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo, disse em entrevista ao “Estado de S. Paulo” que não se envergonha do que fez. Deveria. Ele estabeleceu um balcão de negócios no seu gabinete para comprar votos em favor dos candidatos governistas no Congresso. Ele foi para o governo ainda na ativa. Depois de algum tempo foi para a reserva, mas acha até hoje que se sacrificou por ter passado para a reserva antes da hora.

O governo, defendido pelos generais, protegeu os interesses familiares do presidente, estimulou o conflito social, feriu a Constituição, ampliou a impunidade dos investigados por corrupção. Fez o avesso dos valores defendidos na postagem de Villas Bôas. Mas isso o general não define como “facada nas costas”. A expressão ele guarda para falar da Comissão da Verdade. A comissão não puniu um único militar, apenas recolheu as lembranças das vítimas do regime violento. Como disse a ministra Cármen Lúcia em memorável voto, dias atrás, contra o suposto direito ao esquecimento, “minha geração lutou pelo direito de lembrar”.

O terceiro Eduardo dessa trinca, o ministro Pazuello está sendo investigado pela lista enorme de irregularidades e atos de má gestão no comando da Saúde. As mortes no Brasil foram em número muito maior do que seriam se houvesse uma gestão responsável. Basta lembrar Manaus, cidade onde ele estava na escalada da crise. A cidade sufocava e o ministro prescrevia cloroquina.

As Forças Armadas continuam vivendo uma dualidade. Há os militares profissionais que não gostam da mistura com o governo e acham que o presidente é que faz questão de usar as Forças como se fossem instituições que o apoiam politicamente. E há os que foram para o governo ocupar cargos e para “ter protagonismo”, como me disse um deles.

Por coincidência, os três militares citados aqui se chamam “Eduardo”, os três chegaram ao generalato, e um deles permanece na ativa. Ajudaram, com vários outros, a construir uma desonra para a instituição, apoiam o governo que tira dos militares a exclusividade em armas pesadas, que podem estar sendo usadas na formação de milícias de extrema-direita como as dos Estados Unidos. Mostraram ao país que topam tudo pelo poder.


Míriam Leitão: A saúde no centro da economia

O Brasil precisa garantir 400 milhões de doses de vacina, o Butantan e a Fiocruz têm de ser financiados, o Ministério da Saúde deve contratar todas as doses possíveis do Butantan, para dar previsibilidade ao instituto e ter fluxo de produto para o programa. O governo está fazendo tudo errado e tardiamente. Além de ter sido um negociador débil com grandes produtores internacionais. Essa é a visão de André Medici, especializado em economia da saúde, e que foi por muitos anos do Banco Mundial.

Medici acompanha tudo o que se passa no setor, sempre o fez, muito mais agora que o mundo vive a pior pandemia em um século. Recentemente, lançou um livro virtual sobre o desafio da cobertura universal nos Estados Unidos, de Barack Obama a Joe Biden. O interessante é a força da ampliação da cobertura de saúde, com seguros em parte subsidiados. Por mais que o ex-presidente Donald Trump tenha feito, ele não destruiu a proposta do Partido Democrata. O ex-presidente Obama conseguiu ampliar em 50 milhões de pessoas a cobertura dos seguros de saúde. Com Trump, saíram cinco milhões.

A economia da saúde com todas as suas ramificações está no centro do debate atual aqui e no mundo. No Brasil, nos últimos dias, o que se viu foi um novo absurdo do Ministério da Saúde. O governo Bolsonaro decidiu fazer mais uma guerra contra o governador João Dória usando como bucha de canhão a saúde dos brasileiros. O Butantan precisa de recursos e previsibilidade e por isso quis que o Ministério da Saúde antecipasse decisões de compra. O governo disse que só em maio responderia. Seria mais um crime de Bolsonaro e Pazuello contra a saúde dos brasileiros. A posição ficou insustentável com a pressão da opinião pública e na sexta-feira à noite eles anunciaram a compra de mais 54 milhões de doses. Mas o fato mostra como esse governo decide. Pensa apenas na briga política.

No mundo, o mercado está intenso e nervoso. A União Europeia em disputa com a AstraZeneca aumenta a preocupação no Brasil, porque essa é a mesma vacina da qual dependemos na Fiocruz. O governo Joe Biden aumentou muito o volume de compras esta semana.

— Biden já fez encomendas que podem chegar a 700 milhões de vacinas. Eu não sei por que tão grande — diz Medici.

A boa notícia, ressalta o economista, é que tanto no Reino Unido quanto nos Estados Unidos começam a cair as taxas de novos contágios, ainda que não de mortes.

— Há uma hipótese entre especialistas que seja consequência já do começo da quebra da cadeia de transmissão pela vacinação. Os Estados Unidos vacinaram até a semana passada em torno de 25 milhões de pessoas, 7% da população. Mas Biden está acelerando. Ele começou falando em um milhão por dia, aumentou para um milhão e meio e os especialistas acham que ele tem que chegar a três milhões — diz o economista.

No mundo inteiro, a pandemia movimenta o mercado de vacinas. Além das 10 em uso, sendo duas já aprovadas e oito com autorização emergencial, há 67 em fases distintas de testes clínicos em humanos e quatro foram abandonadas após os primeiros resultados de laboratórios, segundo o “New York Times”. Um ponto importante para o Brasil refletir neste momento: é que viramos apenas licenciadores por não investirmos em biotecnologia. Coreia do Sul, Tailândia, Canadá, França, Rússia, China, Turquia, Israel e, claro, Estados Unidos e Reino Unido desenvolveram vacinas ou estão em estágios dois ou três de testes clínicos. O Brasil, tendo excelentes institutos, ficou atrasado na produção. E pior, se atrasou até nas compras.

— Quando as vacinas estavam na fase dois de testes clínicos, lá para agosto, os países fizeram suas encomendas. O Brasil, que já perdeu esse momento, tem que garantir a maior quantidade possível de doses da Coronavac e da AstraZeneca. Tem que ser rápido e decisivo — diz André Medici.

Países de renda média que não se apressaram ficarão perdidos. Os ricos estão garantindo suas vacinas. Os países pobres podem ser atendidos pela iniciativa de Bill Gates com o Consórcio ACT.

— A iniciativa de Gates está destinando muito dinheiro para vacinas, US$ 16 bilhões, de um total de US$ 38 bilhões. E o principal objetivo é atender aos países mais pobres. Existem alguns países de renda média que se posicionaram bem. O grande problema é o Brasil e por culpa do governo — diz Medici.

A pandemia mostrou claramente que a saúde está no centro da economia.


Míriam Leitão: O petróleo como alvo

A indústria de petróleo e gás está sendo um dos primeiros alvos do governo Biden. O novo presidente americano anunciou ontem um pacote de medidas para combater as emissões de gases de efeito estufa. Uma delas foi a suspensão de qualquer nova concessão em áreas federais. Ele já havia interrompido o oleoduto Keystone XL, que traria óleo cru do Canadá para as refinarias na costa americana do Golfo. Por uma série de ordens executivas Biden está desmontando a política de Donald Trump favorável ao petróleo. Em 2020, foram US$ 40 bilhões em subsídio. Isso terá profundos reflexos no mercado.

No Brasil a discussão é outra. O presidente Bolsonaro deu aval para a redução do imposto sobre óleo diesel para acalmar caminhoneiros que ameaçam greve. Isso depois de a Petrobras segurar os reajustes do produto, o que incentiva o uso de combustível fóssil. Para os caminhoneiros, a situação permanece sem alteração desde a última greve. As medidas de Biden colocam pressão sobre os preços do petróleo, porque a tendência será de redução da oferta.

Os movimentos de Biden afetam um setor sensível para a economia, mas são coerentes com a visão que ele tem defendido de que há quatro guerras a enfrentar: a pandemia, a crise econômica, a mudança climática e o racismo. No primeiro momento no Salão Oval, no dia mesmo da posse, voltou ao Acordo de Paris, o que significa perseguir metas de redução de emissões.

Uma de suas decisões é suspender as licenças leiloadas por Trump, dias antes do fim do governo, para exploração de petróleo na Reserva Nacional da Vida Selvagem do Alasca. A expectativa é que ele irá adiante ampliando as terras e águas protegidas. Por tudo o que fez nesses primeiros dias, pela escolha de John Kerry como enviado para as negociações sobre o tema, com a volta de Gina McCarthy, ex-chefe da Agência de Proteção Ambiental do governo Obama, está claro que a questão climática foi para o topo da agenda americana.

Líderes da indústria de petróleo já protestam. Dizem que a estratégia é arriscada. Segundo empresários do setor ouvidos pelo “Wall Street Journal”, a suspensão do oleoduto vai provocar o desemprego imediato de mil trabalhadores e dezenas de milhares podem ser demitidos. E dizem que suspender perfurações pode elevar as emissões porque se usaria carvão em vez de gás.

A nova secretária do Tesouro, Janet Yellen, disse no Senado que o pacote de quase US$ 2 trilhões de estímulo à economia vai, em parte, financiar a transição energética americana para maior uso de energia eólica, solar fotovoltaica, carros elétricos e desenvolvimento de baterias. Biden disse ontem que tudo isso criará milhões de empregos.

Nos EUA, a maior fonte de emissão é o uso de combustíveis fósseis, no Brasil, é o desmatamento. Mas aqui há também incentivos para o uso de fósseis. O carvão tem subsídio entre R$ 700 milhões e R$ 1 bi todo ano. Apuração de Alvaro Gribel, publicada no blog, mostra que a defasagem nos preços dos combustíveis está acima de 10%.

Há o problema imediato da pressão dos caminhoneiros aos quais o presidente Bolsonaro sempre cede. Mas há uma questão de médio prazo. O mundo fará esforços para a redução das emissões, e o Brasil, no atual governo, está totalmente alheio a essa agenda. Está fora do mundo.

Dilma distorceu o que eu escrevi

A ex-presidente Dilma Rousseff divulgou uma nota criticando minha coluna de domingo neste espaço. Ela pode discordar, claro, não pode é distorcer o que eu escrevi. E distorceu. O alvo da coluna era o presidente Bolsonaro e o ponto central é que ele deve responder a um processo de impeachment pelos crimes que já cometeu. Um dos meus argumentos é que, se ele não pagar por tudo o que fez, os outros processos de afastamento vão parecer injustos, tanto o dela quanto o do Collor.

Dilma interpretou como se eu estivesse querendo apagar o que escrevi quando ela enfrentou o processo no Congresso. Reafirmo tudo o que escrevi sobre ela e sobre aqueles fatos. Na própria coluna de domingo eu repeti que Dilma cometeu crime de responsabilidade fiscal e provocou o desmoronamento da economia. Por suas decisões o país enfrentou recessão, inflação, desemprego, elevação do déficit e da dívida. Não foi golpe o que aconteceu em 2016. Nunca achei que fosse, nem na época, nem agora.

Tanto na minha coluna quanto na nota da ex-presidente está escrito que os crimes de Jair Bolsonaro no governo têm provocado a morte de brasileiros. A ex-presidente e eu discordamos radicalmente sobre o passado, mas concordamos sobre o presente.


Míriam Leitão: Erro econômico na crise sanitária

O Ministério da Economia ficou ausente de questões decisivas para a economia no combate à pandemia. Na vacinação, os economistas poderiam ter induzido a estratégia de comprar mais vacinas e não menos, exatamente para não concentrar o risco. Em tempos de incerteza e de escassez, o certo a fazer é diversificar riscos e ampliar potenciais fornecedores. Em relação ao auxílio emergencial, era fundamental ter um plano para este momento em que as transferências vão secar.

Em conversa esta semana com o economista José Alexandre Scheinkman, ele me chamou a atenção para esse ponto:

— O Ministério da Economia deveria ter alertado o governo que precisava formar um portfólio diversificado. Nós economistas entendemos esse problema de risco e diversificação. O pessoal da saúde pode não pensar nessa estratégia de portfólio. O Canadá encomendou quatro vacinas para cada cidadão, de tipos diferentes. No programa americano também há várias vacinas encomendadas.Esta semana o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta explicou, numa entrevista na Globonews, como o governo errou nas negociações da Organização Pan-Americana de Saúde. Em vez de usar o fato de ser um país grande para aumentar sua capacidade de negociação, o Brasil se apequenou. Primeiro, disse que não entraria no consórcio, depois, que só compraria 10% da sua necessidade. Neste momento está havendo um choque na capacidade de oferta. Mas a equipe econômica se deixou convencer pela ideia de Bolsonaro, de que, por sermos grandes, somos um mercado desejado. Em momento de escassez de oferta e muita demanda, é o oposto.
O Ministério da Economia errou por se manter distante desta crise. E, desde o início, este é também um problema econômico. O equívoco veio de avaliações erradas. As primeiras análises feitas até o começo de março eram que a pandemia não se espalharia no país porque o Brasil seria “um país fechado”. Depois subestimaram a extensão do contágio, os estragos e o custo. Veio daí a já famosa frase do ministro Paulo Guedes de que com R$ 5 bilhões ele venceria o vírus. O custo ultrapassou R$ 600 bilhões. O governo gastou muito e mal.

No fim do ano o cenário com o qual o Ministério da Economia trabalhava era o de que a pandemia estava reduzindo sua intensidade e por isso não seriam necessárias novas medidas de socorro à economia. O indicador que os orientava era o de isolamento social. Como ele caía, concluíam que a economia iria recuperar o nível de atividade, principalmente o setor de serviços. A queda do distanciamento levou a um aumento da infecção. Sucessivas vezes durante esta pandemia a realidade contrariou o cenário no qual apostou o Ministério da Economia. Ele ficou, como se diz no jargão do mercado, todo o tempo behind the curve, ou seja, correndo atrás dos fatos.

Se avaliasse a evolução provável dos eventos com as ferramentas que os economistas têm, o Ministério teria concluído que o governo estava tomando riscos excessivos ao sustentar aquela visão de Bolsonaro de que o STF o impedia de tomar decisões federais de coordenação do combate à pandemia. Esse erro elevou os danos colaterais da crise sanitária.

Nos Estados Unidos, o presidente Biden tomou decisões que mostram como é largo o espaço para a coordenação da União, mesmo numa federação que sempre reconheceu a grande autonomia dos estados e das cidades. Biden convocou a Fema, a agência federal de administração de emergências, para fortalecer a vacinação. A Fema vai montar centros de imunização. Biden determinou que sejam feitas campanhas nacionais, algumas dedicadas exclusivamente às comunidades céticas. Vai fazer campanha pelo uso de máscaras, além de ter obrigado o uso nos prédios federais. O governo federal se ofereceu aos estados e cidades para “desenvolver, equipar, prover gerenciamento de informação, oferecer pessoal e locais” para vacinação. Enfim, a cada ato sensato de Biden, é inevitável ver a inação de Bolsonaro no Brasil e o espantoso custo disso em vidas humanas e perdas econômicas.

A falta de gestão da crise a aprofunda e prolonga. Isso eleva a necessidade de socorro financeiro às famílias e pequenas empresas. As quedas na saúde estão totalmente ligadas às quedas na economia. Por não preparar em tempo um substituto ao auxílio emergencial, o Ministério da Economia está se deixando empurrar para alguma solução que será de novo improvisada.


Míriam Leitão: A democracia prevaleceu

O governo Joe Biden começou ontem, através do ritual da posse e do tom do discurso, a restauração dos fundamentos da democracia americana. A fala dele pedindo união poderia ser apenas protocolar, não fosse o fato de que a divisão foi levada ao absurdo pelo seu antecessor, que governou aprofundando o fosso social e político. Por isso, os ritos em Washington foram mais valiosos.

“Aprendemos de novo que a democracia é preciosa, que a democracia é frágil e, nesta hora, a democracia prevaleceu”. Poderia ser apenas uma frase bonita de um discurso de posse, exceto pela realidade de que ali mesmo onde Biden falava, duas semanas antes, uma horda de radicais insuflados pelo então chefe do governo havia tentado simplesmente impedir o ato do Congresso de reconhecer a eleição.

Biden começou ontem mesmo a desfazer a herança recebida. Todos rigorosamente de máscara durante todo o evento era um recado. Mas eles foram muitos em cada momento. Os gestos recíprocos entre o governo democrata que começa e republicanos como o ex-vice-presidente Mike Pence e o senador Mitch McConnell e, principalmente, o ex-presidente George Bush, deram sentido à frase: “a política não precisa ser um jogo violento destruindo tudo em seu caminho.”

Um presidente na sua posse defender a “verdade” seria visto como algo completamente banal, não fosse o fato de que a mentira é hoje um problema real da política. Um mentiroso compulsivo ocupou a presidência por quatro anos e falou mais de 30 mil mentiras, contabilizou o “Washington Post”. Na pior delas, feriu a base da democracia. O ataque ao Capitólio, disse o senador republicano Mitch McConnell, foi “alimentado por mentiras” e provocado por Trump.

Exaltar a diversidade da América também é previsível. Mas ganhou um sentido concreto, num governo que quebra um enorme precedente. A primeira mulher vice-presidente da história do país. Kamala Harris chega carregada de simbolismo pela sua origem. A mãe dela veio jovem da Índia para estudar e fazer carreira nos Estados Unidos. Sempre foi subestimada por seu sotaque forte. Casou-se com um jamaicano negro e teve duas filhas. Uma delas hoje está sentada na segunda cadeira mais poderosa do país e ontem à tarde deu posse aos novos senadores.

O discurso, portanto, era sincero. A posse de ontem refletia essas escolhas e valores. As primeiras ordens executivas confirmavam o que Biden havia dito. A volta ao acordo de Paris também não é um mero gesto. Significa o fim do isolacionismo que vigorou nos últimos anos, mas, além disso, é um compromisso que pode ter um impacto concreto. Os Estados Unidos são o segundo maior emissor de gases de efeito estufa.

Na sua sabatina no Senado na terça-feira, a nova secretária do Tesouro, Janet Yellen, falou que a retomada da economia terá que privilegiar projetos de infraestrutura, e fontes de energia que emitam menos. E que todo o sistema de subsídios terá que ter em mente a preocupação ambiental. Chegou a especificamente defender estímulo ao carro elétrico. A retomada da economia terá esse eixo, reduzir os riscos climáticos e por isso a terceira ordem executiva que Biden assinou foi a volta ao acordo global do clima. A primeira foi o uso de máscaras nos locais onde ele pode legislar. Lá como aqui, governadores e prefeitos podem decidir, mas isso não significa, como Bolsonaro sempre repete, que o governo federal nada possa fazer. Biden está determinado a fazer, e muito, pelo combate à pandemia, que ele definiu como inimiga do país. E outra decisão foi a volta à Organização Mundial de Saúde.

Os Estados Unidos estão de volta. De volta aos seus sonhos de um país de democracia forte, de rituais centenários de transição de poder, de busca de inclusão, e de relação com o mundo. O multilateralismo sentiu muita falta dos Estados Unidos. A Europa é que o diga.

Biden falou que a democracia foi testada e mostrou resiliência. É inevitável pensar no Brasil. Em dias em que, de novo, o presidente brasileiro rosna ameaças, como a de que as Forças Armadas é que decidem se há ou não democracia, e em que o seu procurador-geral insinua “estado de defesa”, é bom lembrar a razão da fragilidade da democracia. Por ser um sistema aberto, ela abriga seu próprio inimigo. E ele pode chegar à Presidência. Nos Estados Unidos, no fim, a democracia prevaleceu.


Míriam Leitão: Sobram farrapos da fantasia liberal

Eu conto ou vocês contam ao ministro Paulo Guedes que o projeto dele acabou? Nunca teve viabilidade com o atual presidente, na verdade. Guedes embarcou numa canoa na qual não havia espaço para as ideias liberais. Ele sofre vetos diários às suas propostas e tem engolido em seco. Não privatizou, não reduziu barreiras ao comércio, exceto de armas, não diminuiu o tamanho do Estado.

Seus assessores, ou gestores nomeados por ele, de vez em quando ficam no dilema entre a demissão ou ser humilhado pelo presidente Bolsonaro. Tudo o que conseguir agora será prêmio de consolação. Não interessa mais se o presidente do Banco do Brasil fica ou não. André Brandão já foi informado que não tem qualquer autonomia de gestão, apesar de presidir um banco que tem acionistas privados e que atua num mercado que passa por imensas mudanças e aumento da competição.

A Caixa Econômica Federal, que é inteiramente estatal, virou um braço da propaganda política bolsonarista. Pedro Guimarães, com seus 11 revólveres e seus litros de cloroquina, faz qualquer papel que agrade ao chefe. Virou ajudante de lives e animador de auditório. A última agência que abriu foi por ordem do presidente, e não por ser bom ou não para a Caixa. A intervenção na CEF já ocorreu em outros governos, mas agora virou o quintal da presidência. O presidente do Banco Central tentava ontem à tarde convencer o governo de que era preciso segurar Brandão no cargo. Se ficar, terá perdido qualquer liberdade de ação.

Paulo Guedes dá aos interlocutores sempre a mesma resposta quando é perguntado sobre suas derrotas. “O presidente é que foi eleito, ele é que tem os votos.” O ministro, porém, garantiu que este seria um governo liberal na economia. Para acreditar era preciso ignorar tudo o que Bolsonaro havia dito antes. Bolsonaro disse que o presidente Fernando Henrique merecia ser fuzilado por ter privatizado, só para citar um eloquente sinal. O mercado financeiro comprou a tese de que o ministro dobraria o presidente. Ocorreu o oposto.

A lista da intervenção de Bolsonaro nos assuntos do Ministério da Economia é enorme. Nesses dois anos, Bolsonaro vetou propaganda do Banco do Brasil, revogou um aumento da gasolina, avisou que nem a Ceagesp será privatizada, criou e capitalizou estatais militares, sepultou o projeto de fusão dos programas sociais, demitiu o presidente do BNDES, o secretário da Receita Federal. O secretário da Fazenda teve que sumir para não perder o cargo. A reforma administrativa dormiu na gaveta do presidente até ficar bem aguada, irreconhecível.

Na semana passada, o presidente disse que o Brasil havia quebrado e não podia fazer mais nada. Só isso já deveria ser o suficiente para o ministro, que chegou acusando de incompetentes todos os antecessores, pegar o seu boné. Mas ele, que estava de férias, preferiu sair do seu descanso e, mais uma vez, justificar a declaração do presidente.

O Tesouro terá que rolar mais de R$ 600 bilhões de dívida nos primeiros quatro meses. Se o presidente diz que o país está quebrado, o que os financiadores da dívida podem pensar? O ministro, quando tenta justificar tudo o que o presidente diz, erra. Nesse caso ele disse que Bolsonaro só se referia ao setor público. Piorou a declaração.

No Chile de Pinochet, os Chicago Boys impuseram reformas liberais num projeto ditatorial que deixou milhares de mortos. Liberalismo deveria ser o oposto de autoritarismo, mas muitos que se definem como “liberais” não são necessariamente democratas. O grupo que foi ao poder com Bolsonaro nunca se incomodou com a defesa que ele faz da ditadura e da tortura. Nunca se incomodou que ele disse, quando deputado, que a ditadura deveria ter matado 30 mil. Para eles, o importante é que iriam reduzir o tamanho do Estado, abrir a economia, privatizar, vender imóveis públicos, acabar com os subsídios. No 25º mês da administração, tudo o que têm para mostrar é uma reforma da Previdência que foi feita pelo Congresso e na qual o presidente só entrou para defender vantagens corporativas para a sua clientela.

Paulo Guedes já sabe que não deu. Mas tentará terceirizar a culpa para o Congresso, a oposição, Rodrigo Maia, a imprensa, a social-democracia. Vai fazer vistas grossas para todo o autoritarismo do governo. Inclusive na economia.


Míriam Leitão: Butantan e Fiocruz na luta real do país

Vamos entender o que aconteceu nesta pandemia. As duas grandes e centenárias instituições de saúde pública, com as quais o Brasil sempre contou, fizeram de novo o seu papel. Foram atrás de vacinas, estabeleceram parcerias, negociaram contratos para trazer os imunizantes e, depois, produzir localmente dois produtos que nos ajudarão a salvar vidas. O país soube em momento extremo, uma vez mais, que pode contar com a Fundação Oswaldo Cruz e com o Instituto Butantan. Com o presidente da República, o Brasil não pode contar.

Nos últimos dias o governo de São Paulo errou na comunicação. Principalmente na semana passada, quando sobrou discurso político e faltou objetividade científica. Especialistas ouvidos pela coluna acham que eles acertaram na comunicação de terça-feira, quando informaram a taxa de eficácia global de 50,38%. Bolsonaro ironizou ontem o percentual, perguntando aos do cercado, na porta do Palácio: “Essa de 50% é uma boa?” Todos os cientistas e médicos ouvidos dizem que é sim uma boa. Se o percentual de eficácia fosse maior, seria melhor.

Uma fonte do governo, mas que não vê o momento atual com olhos de torcida política, me disse o seguinte: “Os infectologistas avaliam que será uma vacina importante para prevenir formas graves da doença e impedir as mortes, o que já justifica. Seu papel na redução da transmissão da doença será menor, mas a vacina cumpriria um dos papéis esperados: reduzir muito as formas graves.”

A epidemiologista e professora da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de SP, Maria Amélia Mascena Veras, disse que a CoronaVac e as outras vacinas desta pandemia não foram desenhadas para evitar a transmissão. Elas pretendem diminuir a carga da doença na população e reduzir os casos graves. E, se isso acontecer, já terão um efeito importante, inclusive de abrir espaço nos hospitais para tratar outras doenças que não tenham a ver com a pandemia.

— A vantagem da CoronaVac é que é tecnologia conhecida, muito segura. Pode ser produzida no Brasil com custo baixo e imunizar muita gente. A segurança é importante, não ter efeitos colaterais graves. Toda a logística de implementação de uma vacina como essa facilita muito a vida. A vacina de Oxford tem os mesmos requisitos de vacinação. As duas atendem muito o contexto brasileiro. Que venha logo também a da AstraZeneca — disse.

O Butantan nos trouxe a CoronaVac. A Fiocruz, a Oxford-AstraZeneca. Os cientistas e servidores dos dois institutos passaram por terreno minado para trazer imunizantes. A Fiocruz nem importadora é, mesmo assim, fez o acordo com o Instituto Serum, indiano, para comprar o primeiro lote de dois milhões de doses. O Butantan já colocou no país seis milhões de doses e está preparando outras quatro milhões. É o que se esperava dos institutos de pesquisa e é o que eles têm feito.

O governo de São Paulo usou um tom político na divulgação. Deveria abandonar isso. O momento é de sobriedade. O governo federal tem errado muito mais, porque o tom é dado pelo próprio presidente, que faz blague no meio da tragédia e alimenta a campanha antivacina. Bolsonaro torce contra a vacina.

Cientistas e médicos brasileiros criaram o Observatório Covid-19 BR. Uma iniciativa independente para ajudar o país a compreender esse emaranhado de informação. Dele faz parte a médica Maria Amélia Veras. Dele faz parte José Cássio de Moraes, que é doutor em saúde pública pela USP e também é professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Perguntei a ele se a CoronaVac é boa:

— O desfecho que se quer para uma vacina, qualquer uma, é evitar casos graves e mortes. Nenhuma está neste momento tentando evitar a transmissão. O objetivo da vacina do sarampo é eliminar o sarampo, o objetivo da vacina da pólio é erradicar a pólio, o objetivo imediato de todos os desenvolvedores de vacina nesta pandemia foi reduzir a gravidade, diminuir o número de casos graves e dar uma folga à rede de saúde. A queda dos casos graves tem um efeito indireto nas transmissões, porque são os que têm mais carga viral. A CoronaVac não é tudo o que a gente desejaria, mas para o objetivo a que se propôs é boa.

Enquanto Bolsonaro brinca com assunto de extrema gravidade, os médicos trabalham, os cientistas pesquisam, nossos dois institutos de saúde pública buscam proteção para a vida dos brasileiros. É isso que está acontecendo no Brasil.


Míriam Leitão: O caso Ford e os vários erros

Muitos erros da política econômica ficam evidentes nesse episódio da Ford. Falhas da empresa e equívocos do governo. A indústria automobilística está mudando no mundo, migrando para motores elétricos, de menor impacto no meio ambiente. Algumas empresas estão sendo mais ágeis. No Brasil, as montadoras sempre foram dependentes de subsídios fiscais, empréstimos baratos e barreiras contra o produto importado. Inclusive no governo Bolsonaro, que só em 2019 deu R$ 6,6 bilhões de subsídios ao setor. No caso da Ford, a história dos erros é antiga.

Quando a Ford veio ao Brasil, na década de 20, foi perseguida a ideia de Henry Ford de implantar uma cidade no meio da floresta, removendo, claro, a floresta. A Fordlândia deu errado mas ela se assentou sobre um milhão de hectares doados à empresa pelo governo no Pará. Produziria borracha para os pneus. Depois foi transplantada para 100 quilômetros adiante, em Belterra, também no Pará. A história mostra a arrogância do capitalista e o erro dos governos brasileiros em relação a Amazônia.

A indústria automobilística só cresceu no Brasil à base de muito subsídio, empréstimos com juros baixos, doação de terrenos, estímulo à guerra fiscal entre os estados. Exploraram até o nacionalismo, era o “produto nacional” contra a concorrência externa. Só o governo Collor reduziu as tarifas de importação, mas são ainda muito altas.

A Ford errou no mix de produtos. Ela já foi uma das maiores no país e hoje está em sexto lugar em vendas com 7,3% de market share, perdendo para a GM, Fiat, VW, Hyundai, Renault. No ano passado, por causa da pandemia, houve uma queda de 28% no licenciamento de carros. Na Ford, a queda foi de 39%. Todos entraram em crise mas ela caiu mais pela falta de produtos atraentes.

A Ford suspendeu também a produção na América do Norte, com a exceção do Mustang, “em favor de picapes e utilitários mais rentáveis”, conta o “Financial Times”. Na Europa e nos Estados Unidos, a empresa cortou 12 mil empregos e há duas semanas parou os planos de uma joint venture na Índia com a Mahindra, diz o jornal inglês.

Existe uma crise que é da Ford e uma crise da indústria automobilística. Há ainda a transição para um novo modelo sustentável que não se baseie nos atuais motores à combustão. O presidente Bolsonaro disse ontem que a Ford está indo embora porque ele não quer dar subsídios como outros governos. Não é verdade. Ele herdou o programa de subsídio, o Rota 2030, aprovado no governo Temer, mas não fez nada para que fosse reduzido. Pelo contrário, o valor total do subsídio ao setor saiu de R$ 5,3 bilhões em 2018 para R$ 6,6 bilhões em 2019.

O modelo de subsídio floresce no Brasil por causa do lobby, mas também pela estrutura complexa e cara de impostos, um dos itens mais fortes do custo Brasil. E o que a equipe econômica liderada por Paulo Guedes fez a propósito disso? Nada. A proposta de reforma tributária avançou no Congresso porque foi pensada pelo economista Bernard Appy, encaminhada pelo deputado Baleia Rossi (MDB-SP), e o pouco que andou foi graças ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). O governo ignorou o projeto e depois apresentou uma proposta de fundir apenas dois impostos federais, PIS e Cofins, aumentando a taxação sobre itens como livros, mas mantendo subsídio aos carros.

A reforma tributária é a mudança mais importante para melhorar o ambiente de negócios não apenas para a Ford ou a indústria automobilística, mas para todas as empresas no Brasil, para favorecer a nova economia.

No mesmo dia em que a Ford anunciou a suspensão da sua atividade industrial no país, que vai levar a 5.000 demissões, o Banco do Brasil também avisou que vai demitir 5.000 funcionários, só que o fará incentivando a saída, ou seja, dando indenizações e bônus extras para os desligados. Numa mesma tarde de segunda-feira, duas empresas, uma estatal e uma multinacional, anunciaram o fechamento de 10 mil postos de trabalho.

A ampliação do emprego só será possível com uma reforma do ambiente de negócios no Brasil profunda e atualizada com as novas tendências do mundo. Bolsonaro achava que com a vitória da esquerda na Argentina as empresas fechariam lá para ficar abertas aqui. Na Ford, ocorreu o contrário. Ela continuará produzindo lá. Com a saída da montadora, pode-se fazer um estudo de caso dos erros da política industrial no país.


Míriam Leitão: A nossa dor multiplicada

O Brasil chegou ontem ao número impensável e inaceitável. Duzentos mil brasileiros perderam a vida na pandemia do Covid-19. O coronavírus mata no mundo inteiro, mata mais nos países cujos governantes desprezam a vida humana, a prudência e a ciência. É o caso aqui. Ontem, o presidente Bolsonaro, em defesa do assunto que ele acha importante, o voto impresso, referiu-se “a tal da pandemia”. A “tal”, que ele ainda subestima, enlutou lares, levou aflição a milhões de brasileiros, lotou os hospitais, os cemitérios e nos colocou no segundo lugar em mortes do mundo.

Ontem foi dia de uma boa notícia, pelo menos. Isso não é pouco no tempo de tanto luto. O Instituto Butantan anunciou que a vacina que desenvolve junto com a Sinovac chinesa completou a fase 3 dos testes clínicos. Segundo o governo de São Paulo, evita 100% dos casos graves e 78% dos casos leves. Ficaram faltando dados, na interpretação de alguns analistas. O mais importante deles é sobre o percentual dos que tomaram a vacina que não contraíram a doença. Não ficou claro para quem acompanhou a coletiva do governo paulista qual é, afinal, a taxa de eficácia na imunização, que é afinal o objetivo de qualquer vacina. Os testes no Brasil foram feitos com o grupo que está mais exposto: o pessoal da saúde. Isso foi realmente um teste bem mais robusto do que o feito na população em geral. O pedido de registro emergencial vai ser feito à Anvisa nesta sexta-feira e já estão no solo brasileiro mais de 10 milhões de doses. Foi o momento de alívio, num dia tenso e triste.

No Ministério da Saúde, o general Pazuello apareceu na entrevista, coisa que não tem feito faz tempo. Chegou agradecendo o trabalho dos jornalistas. Era falso. Ao longo de 62 minutos ele deu um espetáculo de autoritarismo castrense. No tom que os militares de alta patente costumam falar aos recrutas, o ministro repreendeu e deu ordens aos repórteres. “A gente repete, repete, repete e a notícia sai distorcida”, disse. Em seguida, proibiu a imprensa de analisar os fatos. “Me mostrem quando foi que um brasileiro ou a população brasileira delegou aos redatores ou a qualquer um dos senhores a interpretação dos fatos. Nós não queremos a interpretação dos fatos dos senhores.”

Eu interpreto que Pazuello nada sabe de comunicação e entrou em contradição com os fatos várias vezes. Para citar uma. Ele disse que o governo federal comprará 100 milhões de doses da Coronavac, do Butantan, e essa é de fato uma excelente notícia. Mas em seguida afirmou que isso havia sido dito várias vezes, que inclusive foi assinado um memorando de entendimento em outubro.

O ministro deve ter esquecido do episódio constrangedor que envolveu esse memorando. Pazuello assinou no dia 21 de outubro, o protocolo para a compra de 46 milhões de doses. No mesmo dia o presidente Bolsonaro afirmou que não compraria a vacina. “Já mandei cancelar”, disse Bolsonaro sobre o texto assinado pelo ministro. E, como se não fosse humilhação suficiente, o ministro dias depois teve que gravar um vídeo ao lado do presidente dizendo “ele manda, eu obedeço, simples assim”.

O Brasil não chegou à terrível marca de ontem por acaso. Foi construção diária do governo de Jair Bolsonaro. É fruto do negacionismo, da insensibilidade, da incapacidade de gestão. É resultado dos incentivos diários do presidente para que a população não use qualquer medida protetiva e que faça o oposto do que os médicos orientam. Bolsonaro demitiu dois ministros da Saúde. Henrique Mandetta trabalhou para defender a saúde dos brasileiros, fez todos os alertas ao governo, montou uma articulação com estados e municípios e insistiu nas medidas de proteção. Nelson Teich ficou poucos dias no cargo e saiu defendendo o presidente que não o deixou trabalhar. Aí veio Pazuello, que confunde país com batalhão, convencimento com ordem unida, logística com requisições autoritárias. E pensa que pode, numa democracia, determinar como os jornalistas devem exercer seu ofício. Deveria saber que nem na ditadura seus antigos superiores conseguiram calar a imprensa brasileira.

A pandemia é uma tragédia que se abateu sobre a humanidade. Enfrentá-la com um governo inepto multiplicou nossa dor. Como curar feridas de 200 mil mortes? Essa é a pergunta que ronda o Brasil.


Míriam Leitão: Golpe de Trump alerta o Brasil

Como um Nero dos nossos tempos, o presidente Trump criou um tumulto social, incendiou o país com mentiras e ficou no Salão Oval vendo o fogo cercar as instituições americanas. O Brasil pode apenas observar ou pode se proteger. Esse é exatamente o plano do presidente Bolsonaro e por isso ele alimenta desde 2018 a teoria conspiratória em torno da urna eletrônica, das leis eleitorais do país, do STF. Ele planta para colher o que vimos ontem acontecer em Washington.

A democracia americana tem regras complexas de apuração da vontade popular, mas tem instituições fortes dispostas a manter que a Constituição seja respeitada. Por isso, o sistema derrotou a tentativa de golpe disparada pelo presidente da República. Trump usou todos os poderes da presidência para atacar a Constituição.

As cenas vistas ontem na capital americana foram chocantes. Trump decidiu levar o país à beira do colapso institucional. Esse é o modelo do presidente brasileiro. Bolsonaro sempre desprezou a democracia, arma seus seguidores e os estimula a se levantar contra os governadores. Bolsonaro se prepara e ensaia diante de nossos olhos. E ontem vimos a dimensão do precipício.

Os acontecimentos de Washington mudaram a natureza da eleição na Câmara brasileira. Devemos imaginar o improvável, porque ele acontece. Imagina o que Bolsonaro poderá fazer se tiver as presidências das duas Casas na mão? O Congresso deve refletir sobre essas cenas. Elas foram fruto da negligência diante das seguidas ameaças feitas por Trump. Um líder deletério e sem apreço pelas instituições tentou encurralar a consolidada e sólida democracia americana. É melhor que as autoridades brasileiras aprendam com o que houve. A polícia foi extremamente negligente, o Departamento de Defesa negou o pedido da prefeita de acionar a guarda nacional para proteger o capitólio. Aqui, Bolsonaro distribui mimos para militares e cultiva a fidelidade da Polícia Militar. Ignorar os riscos é o maior risco.

Quem plantou todo o conflito e conspirou contra a democracia americana foi Donald Trump. Insistentemente, através dos seus tweets e discursos, ele estimulou extremistas, como fez com os racistas radicais, Proud Boys, mandando-os ficar de prontidão. Eles ficaram. Nos últimos dias Trump várias vezes convocou seus seguidores para a “batalha do dia seis”. Ontem, Trump disse que eles deveriam marchar para o Capitólio. Eles entraram no Congresso para vandalizá-lo. E mesmo quando finalmente pediu que os manifestantes voltassem para casa Trump mentiu sobre a eleição.

Há muito que o Brasil deve aprender com os terríveis eventos de ontem em Washington. Bolsonaro alega que houve fraude na eleição que ele ganhou. O que fará se perder em 2022? O sistema político terá força suficiente para enfrentar um ataque de um homem que vem conspirando contra a democracia desde o primeiro dia no Planalto? Ele participou dos atos antidemocráticos em que manifestantes pediam o fechamento do Congresso e do STF.

Os autocratas agem assim. Repetem mentiras sejam quais forem as evidências em contrário. Solapam a confiança nas instituições democráticas. Ignoram as leis. Respeitam apenas as eleições que eles ganham. E uma vez no poder usam toda a estrutura para permanecer.

Trump ontem na Casa Branca, cercado da família e dos áulicos, viu o incêndio que ele havia ateado no país. Era dia de o vice-presidente presidir a sessão protocolar para confirmar a decisão do Colégio Eleitoral, que, após o voto popular, elegeu Joe Biden e Kamala Harris como presidente e vice-presidente do próximo mandato. Houve momentos de reafirmação da democracia, como o discurso do senador Mitch McConnell alertando que anular a decisão dos eleitores imporia um dano permanente à democracia americana. Os eleitores também falaram de novo, na Geórgia, e deram a Biden as duas cadeiras que faltavam para o controle do Senado. Uma delas será de Raphael Warnock, primeiro negro a ser senador pelo estado.

O Brasil deve olhar com seriedade tudo o que houve ontem. Um presidente que mente durante anos e sabota as bases da República um dia usará seus poderes contra o país. Precisamos fortalecer as defesas da democracia brasileira.