Míriam Leitão: A democracia prevaleceu

O governo Joe Biden começou ontem, através do ritual da posse e do tom do discurso, a restauração dos fundamentos da democracia americana.
Foto: REUTERS/Kevin Lamarque
Foto: REUTERS/Kevin Lamarque

O governo Joe Biden começou ontem, através do ritual da posse e do tom do discurso, a restauração dos fundamentos da democracia americana. A fala dele pedindo união poderia ser apenas protocolar, não fosse o fato de que a divisão foi levada ao absurdo pelo seu antecessor, que governou aprofundando o fosso social e político. Por isso, os ritos em Washington foram mais valiosos.

“Aprendemos de novo que a democracia é preciosa, que a democracia é frágil e, nesta hora, a democracia prevaleceu”. Poderia ser apenas uma frase bonita de um discurso de posse, exceto pela realidade de que ali mesmo onde Biden falava, duas semanas antes, uma horda de radicais insuflados pelo então chefe do governo havia tentado simplesmente impedir o ato do Congresso de reconhecer a eleição.

Biden começou ontem mesmo a desfazer a herança recebida. Todos rigorosamente de máscara durante todo o evento era um recado. Mas eles foram muitos em cada momento. Os gestos recíprocos entre o governo democrata que começa e republicanos como o ex-vice-presidente Mike Pence e o senador Mitch McConnell e, principalmente, o ex-presidente George Bush, deram sentido à frase: “a política não precisa ser um jogo violento destruindo tudo em seu caminho.”

Um presidente na sua posse defender a “verdade” seria visto como algo completamente banal, não fosse o fato de que a mentira é hoje um problema real da política. Um mentiroso compulsivo ocupou a presidência por quatro anos e falou mais de 30 mil mentiras, contabilizou o “Washington Post”. Na pior delas, feriu a base da democracia. O ataque ao Capitólio, disse o senador republicano Mitch McConnell, foi “alimentado por mentiras” e provocado por Trump.

Exaltar a diversidade da América também é previsível. Mas ganhou um sentido concreto, num governo que quebra um enorme precedente. A primeira mulher vice-presidente da história do país. Kamala Harris chega carregada de simbolismo pela sua origem. A mãe dela veio jovem da Índia para estudar e fazer carreira nos Estados Unidos. Sempre foi subestimada por seu sotaque forte. Casou-se com um jamaicano negro e teve duas filhas. Uma delas hoje está sentada na segunda cadeira mais poderosa do país e ontem à tarde deu posse aos novos senadores.

O discurso, portanto, era sincero. A posse de ontem refletia essas escolhas e valores. As primeiras ordens executivas confirmavam o que Biden havia dito. A volta ao acordo de Paris também não é um mero gesto. Significa o fim do isolacionismo que vigorou nos últimos anos, mas, além disso, é um compromisso que pode ter um impacto concreto. Os Estados Unidos são o segundo maior emissor de gases de efeito estufa.

Na sua sabatina no Senado na terça-feira, a nova secretária do Tesouro, Janet Yellen, falou que a retomada da economia terá que privilegiar projetos de infraestrutura, e fontes de energia que emitam menos. E que todo o sistema de subsídios terá que ter em mente a preocupação ambiental. Chegou a especificamente defender estímulo ao carro elétrico. A retomada da economia terá esse eixo, reduzir os riscos climáticos e por isso a terceira ordem executiva que Biden assinou foi a volta ao acordo global do clima. A primeira foi o uso de máscaras nos locais onde ele pode legislar. Lá como aqui, governadores e prefeitos podem decidir, mas isso não significa, como Bolsonaro sempre repete, que o governo federal nada possa fazer. Biden está determinado a fazer, e muito, pelo combate à pandemia, que ele definiu como inimiga do país. E outra decisão foi a volta à Organização Mundial de Saúde.

Os Estados Unidos estão de volta. De volta aos seus sonhos de um país de democracia forte, de rituais centenários de transição de poder, de busca de inclusão, e de relação com o mundo. O multilateralismo sentiu muita falta dos Estados Unidos. A Europa é que o diga.

Biden falou que a democracia foi testada e mostrou resiliência. É inevitável pensar no Brasil. Em dias em que, de novo, o presidente brasileiro rosna ameaças, como a de que as Forças Armadas é que decidem se há ou não democracia, e em que o seu procurador-geral insinua “estado de defesa”, é bom lembrar a razão da fragilidade da democracia. Por ser um sistema aberto, ela abriga seu próprio inimigo. E ele pode chegar à Presidência. Nos Estados Unidos, no fim, a democracia prevaleceu.

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