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Míriam Leitão: Fingir não ver o que propõe

A surpresa do presidente Bolsonaro com as propostas da política econômica é falsa ou ele nunca entendeu coisa alguma do que sua equipe vem prometendo desde a campanha. Quando o ministro Paulo Guedes fala em desindexar as despesas do orçamento, o que é? É não corrigir pela inflação os gastos, entre eles, as pensões e aposentadorias. Em outras palavras, congelar. Este governo fez várias propostas polêmicas. Sugeriu adiar o BPC, reduzir acesso ao abono, cobrar imposto de desempregado e até o emprego sem salário. Onde estava Bolsonaro em seu próprio governo que nada viu?

Ele sempre soube o que estava sendo proposto, tanto que ontem autorizou o senador Márcio Bittar a continuar os estudos para um programa social amplo. Bittar está tentando encaixar no orçamento ou na PEC do Pacto Federativo. Entre as medidas que estuda está o congelamento do salário mínimo para financiar o Renda Brasil, conforme o próprio senador revelou ao repórter Marcello Corrêa de O GLOBO. Ou seja, tirar do pobre para o paupérrimo.

Todas as ideias que o governo tem apresentado têm essa característica que o presidente demagogicamente atribuiu à “gente que não tem coração”. Tudo em seu governo possui essa marca. Na proposta original da reforma da Previdência estava a ideia de que o beneficiário do BPC — idoso muito pobre ou deficiente — ao chegar aos 65 anos recebesse apenas R$ 400 em vez de salário mínimo. E só aos 70 anos tivesse direito ao valor integral. O Congresso derrubou. Propôs também reduzir de dois para um salário mínimo a renda dos que recebem abono salarial. O Congresso derrubou.

Depois o projeto enviado era o de criar um programa chamado de “emprego verde e amarelo” que seria financiado por um imposto cobrado de quem ficasse desempregado e recebesse o seguro-desemprego. Essa forma esdrúxula de financiar o programa acabou caindo também. Não foi a única ideia ruim. Em geral elas são abatidas pela reação da opinião pública, dos políticos ou da Justiça. Em março, o governo baixou uma MP que permitia a suspensão do salário por quatro meses. Depois das críticas, revogou a própria MP.

O Ministério da Economia quer “quebrar o piso” dos gastos públicos. Há muito tempo o país precisa sim flexibilizar o Orçamento, mas antes é preciso perguntar de onde tirar. Se acontecer o que o governo propõe, naquele projeto dos três Ds, desindexar, desvincular e desobrigar, todos os percentuais fixos para áreas como saúde e educação poderão cair. O problema é onde serão realocadas as despesas. Nesse governo é certo que serão mais afetados os gastos mais necessários. Enquanto se fala em desvincular as outras despesas, o Ministério da Defesa tenta vincular a sua. Quer 2% do PIB anual.

Esse governo chegou a propor que no ano de 2021 não houvesse o Fundeb, o que provocaria uma tragédia na educação brasileira. Pensou em adiar o Censo para transferir os recursos para o Ministério da Defesa. Antes da pandemia havia sido reduzido em mais de um milhão o número de beneficiários do Bolsa Família, 60% deles moradores dos estados do Nordeste. Os governadores da região tiveram que ir ao Supremo contra isso.

Sensibilidade social não há no atual governo. Mesmo quando eles têm razão em parte, o método é errado. A tese sobre o abono salarial é que jovens da classe média acabam recebendo quando estão no início da carreira. Por que então não introduzir um recorte de renda familiar como exigência para receber o benefício? No caso do BPC, o que se diz é que há gente recebendo que não teria direito, porque tem renda acima do que a lei estabelece. Isso se resolve com fiscalização e cruzamento de dados. Aliás, esse acompanhamento tem que ser constante nas políticas públicas.

No ajuste fiscal quais são as despesas que se deve atacar? É fundamental saber escolher, ter um projeto e comunicá-lo de forma clara e transparente. Na democracia todas as despesas têm defensores, mesmo as mais injustas, como acaba de se ver na ambiguidade presidencial em relação aos gastos tributários com as igrejas.

Bolsonaro manipula os fatos com o objetivo de enganar. Quer que os outros fiquem com os ônus de qualquer medida impopular do governo, para que ele fique apenas com o bônus. Finge não ver inclusive o que ele mesmo assinou e propôs.


Míriam Leitão: Antes do próximo cartão vermelho

O ministro Paulo Guedes atacou a imprensa, ou seres incorpóreos, pela confusão que ele mesmo criou. Como sempre, deu uma interpretação do comportamento do presidente que o absolve de tudo e culpa outros. Falou de fatos que ninguém está discutindo. “Você, com 51 milhões de desempregados, quer dar aumento de 20%, 30% do salário mínimo?” perguntou Guedes sem ninguém entender a que ele se referia. Disse que o cartão vermelho não é para ele. Aí quem ficou com a cabeça pendurada foi o secretário Waldery Rodrigues. Esse é o método Paulo Guedes de fugir da frigideira: terceiriza a culpa, apresenta uma interpretação própria dos eventos, faz uma declaração sem sentido, apresenta um número absurdo.

Os fatos: desde que a equipe econômica decidiu criar o Renda Brasil, os economistas do governo saíram à procura de receita para a proposta. Anunciaram o programa antes de formatá-lo. Depois saíram enfileirando ideias. Algumas, muito ruins. O que não está na mesa do Ministério já foi despachado para o Congresso para ver se cola nos relatórios que o senador Márcio Bittar (MDB-AC) está preparando. O grande problema é que tudo é falado como se o plano estivesse consolidado, e a discussão, amadurecida internamente. Várias vezes pessoas da equipe disseram que uma das propostas era usar o dinheiro do abono salarial. Depois que Bolsonaro fulminou a tese, dizendo que não se pode “tirar dos pobres para dar para os paupérrimos”, não apareceu o pai da ideia.

Ontem os jornais trouxeram dois estudos que estavam, sim, sendo discutidos: congelar as aposentadorias e pensões e reduzir o gasto com o Benefício de Prestação Continuada (BPC). O presidente atacou os dois, disse que de nada sabia, e que daria cartão vermelho a quem dissesse. O que fez Paulo Guedes? Culpou a imprensa. Disse que os jornalistas estavam fazendo ilações, ligando pontos desconexos. “Como a primeira página de todos os jornais diziam que ia tirar dinheiro dos idosos, dos frágeis e vulneráveis, ele repetiu o que disse antes”. E mais adiante: “Não é possível que você abra os jornais e todas as manchetes são de que querem tirar o dinheiro dos pobres, querem assaltar os pobres para dar aos mais pobres ainda”. Primeiro, as manchetes não foram essas e sim as medidas que de fato estavam sendo estudadas. Segundo, essa é a frase do presidente.

Era uma vez um superministro. Paulo Guedes perde diariamente uma batalha porque serve não a um projeto econômico, mas sim a um projeto político que tem três elementos: a reeleição, o populismo e o autoritarismo. Por isso, a área econômica vem se enfraquecendo. Ontem foi apenas mais um dia em que o presidente em vez de demonstrar sua discordância em discussões internas levou-as a público queimando seus auxiliares e se fazendo de bonzinho. “É gente que não tem um mínimo de coração ou entendimento de como vivem os aposentados no Brasil”, disse Bolsonaro, presidente de um governo que fez a reforma da previdência preservando privilégios das categorias que ele protege.

A área de Guedes vem sendo comida pelas bordas. Foi o que se viu na briga do arroz na semana passada. O intervencionismo do ministro da Justiça, André Mendonça, teve o apoio do presidente, que disse ter autorizado a notificação aos supermercados. A reação do Ministério da Economia foi entregue a um dos secretários.

Semanas atrás, ministros, como Rogério Marinho e Tarcísio de Freitas, defenderam diretamente junto ao presidente o aumento de gastos para obras, como se esse assunto pudesse ser decidido sem aprovação do Ministério da Economia. Ministros militares também vão diretamente ao presidente ou ao Congresso. Agora passarão a ser maioria na Junta Orçamentária, e eles têm várias demandas e projetos que significam aumento de despesas. Quando o presidente é constrangido a seguir o ministro da Economia, como no veto ao perdão às igrejas, para evitar “um quase certo processo de impeachment”, Bolsonaro em seguida pede que derrubem o veto e diz que vai mandar um projeto para ampliar a isenção tributária delas.

Paulo Guedes está pensando em ideias que também vão dar confusão, como não corrigir os gastos com educação e saúde. “Indexação não protege ninguém”, disse ele. Só que é prudente que ele explique melhor o efeito prático de “desindexar, desvincular e desobrigar”, antes do próximo cartão vermelho.


Míriam Leitão: Política externa contra o Brasil

A subserviência aos Estados Unidos, marca maior da política externa do governo Bolsonaro, produz prejuízos concretos. Os americanos reduziram as cotas na exportação brasileira de aço. O Brasil não apenas aceitou, mas premiou o país, mantendo as cotas de importação de etanol americano sem tarifa. Cedeu também quando retirou o nome brasileiro e aderiu ao candidato americano, que foi eleito neste fim de semana para presidir o Banco Interamericano de Desenvolvimento. Um americano no BID é fato inédito na história da instituição. No caso do etanol, o governo quis beneficiar a campanha de Donald Trump à reeleição, só que em detrimento dos interesses dos produtores do Brasil.

Quando se fala que uma política externa independente é a que pensa nos interesses do Brasil em primeiro lugar, isso não é apenas retórica. Há efeitos concretos. A subserviência tem um preço. Quando um governo se deixa dominar por uma visão ideológica, o país como um todo perde. Nesses três casos o Brasil teve prejuízos, e os Estados Unidos, vantagens. O governo apresenta tudo como se fosse a expectativa de um ganho futuro que nunca vem, diz, por exemplo, que cedeu no álcool porque no futuro vai ganhar no açúcar.

O Brasil ficou contra o Brasil no BID. Foi exatamente isso que aconteceu. O governo já havia apresentado a proposta de um candidato brasileiro, mas a submissão foi tanta que assim que o governo americano apresentou o nome dele o Itamaraty e o Ministério da Economia aderiram imediatamente. Detalhe: desde a sua fundação, o banco é dirigido por um latino-americano. Faz parte das normas não escritas nas instituições multilaterais que o BID sempre é dirigido por um país da região.

Essa quebra de regras imposta por Trump foi tão acintosa que revoltou líderes europeus. O representante da União Europeia para a política externa Josep Borrell enviou a todos os países que têm capital na instituição uma proposta de adiamento da escolha para depois das eleições americanas. Vinte e dois ex-governantes da América Latina assinaram uma carta defendendo esse adiamento. Mas os Estados Unidos impuseram seu candidato e seu calendário. O governo brasileiro foi atrás, como um cachorrinho, com o rabinho entre as pernas.

Maurício Claver-Carone, o candidato de Trump, foi eleito no dia 12 de setembro, com os votos do Brasil e da Colômbia, mas sem os votos de Argentina, México e Chile, e sem o apoio dos países europeus, que votam porque têm capital no banco. Trump impôs à América Latina a quebra de uma tradição de seis décadas, e com a ajuda brasileira. Além de aceitar passivamente ser atropelado e aderir ao atropelador, o governo brasileiro ficou mal com países da região.

No caso do etanol, o governo decidiu manter por mais três meses a cota de importação de 187,5 milhões de litros sem tarifa. O tempo foi escolhido para favorecer Trump junto a produtores de milho, a matéria-prima do etanol deles. Ouvido pelo “Estadão”, o presidente da Unica, Evandro Gussi, disse que os estoques aqui neste momento estão 43% acima do mesmo nível do ano passado. Se fosse dentro de uma política de abertura comercial seria louvável. Mas é por um período específico, para ajudar o presidente americano em sua campanha, justamente ele que tem tomado decisões protecionistas em relação ao Brasil. O Itamaraty costuma ceder e soltar uma nota se elogiando. Trata concessão como se fosse conquista.

Nas questões conceituais, a política externa erra na área ambiental, política e de direitos humanos. O Brasil se aliou a países fundamentalistas islâmicos contra os direitos da mulher. Em artigo recente na “Folha”, Jacqueline Pitanguy alertou que no Conselho de Direitos Humanos da ONU o Brasil ficou junto de Arábia Saudita, Qatar, Afeganistão, Bahrein, Egito numa resolução que condenava a discriminação da mulher e estabelecia o “acesso às informações e métodos contraceptivos”. Ela lembra que nesses países árabes a mulher é cidadã de segunda classe.

A Constituição brasileira condena qualquer discriminação de gênero, portanto, a política externa brasileira é inconstitucional na área de direitos da mulher. Na economia, trai os interesses econômicos do próprio país. A diplomacia do governo Bolsonaro se divorciou do Brasil.


Míriam Leitão: A igualdade perante a lei

A decisão de Celso de Mello tem um lado. O da República. República é o sonho da sociedade de pessoas iguais. Até que ponto as prerrogativas da Presidência podem ir sem infringir o dogma da igualdade? O que o ministro Celso de Mello respondeu ontem em sua decisão, longa e sólida, foi que se o governante é investigado não pode mandar por escrito o seu depoimento para a autoridade policial. Precisa se submeter, como qualquer um, às perguntas, ao contraditório, às “reperguntas”.

“Afinal, nunca é demasiado reafirmá-lo, a ideia da República traduz um valor essencial, exprime um dogma fundamental: o do primado da igualdade de todos perante as leis do Estado. Ninguém, absolutamente ninguém, tem legitimidade para transgredir e vilipendiar as leis e a Constituição de nosso país. Ninguém, absolutamente ninguém, está acima da autoridade do ordenamento jurídico do Estado”, escreveu o ministro.

Ele deixou avisos prévios. Em decisões anteriores, foi deixando claro que a prerrogativa para um chefe de Poder entregar depoimento escrito só existe quando a autoridade está no processo como testemunha. Se for investigado ou réu, não tem esse direito. Foi o que escrevi aqui na coluna “O presidente terá que falar”, de 7 de maio. Certamente a AGU sabia disso, mas o entorno do presidente está preferindo a interpretação de que a decisão do decano é pessoal. É o oposto. É impessoal.

Ele continuou em sua decisão: “Não custa insistir, neste ponto, por isso mesmo, na asserção de que o postulado republicano repele privilégios e não tolera discriminações”, diz ele, em razão de “condição social, de nascimento, de parentesco, de gênero, de amizade, de origem étnica, de orientação sexual ou posição estamental”, e isto porque “nada pode autorizar o desequilíbrio entre os cidadãos da República” sob pena de se transgredir “a ideia da República”.

Segundo Celso de Mello, apesar da “posição hegemônica que detém na estrutura político institucional”, o presidente da República é também “súdito das leis” e portanto não tem esse direito de depor por escrito quando for “pessoa sob investigação criminal”. O pedido para que o presidente deponha por escrito foi feito pelo procurador-geral da República. Augusto Aras sempre mostra sua vocação para defensor do presidente.

A República é sonho que vem sendo sonhado desde a colônia, como conta a historiadora Heloisa Starling no “Ser republicano no Brasil Colônia”. Esteve em cada levante, em cada manifesto de sublevados, esteve com os conjurados de Minas, Rio e Bahia. Foi sendo expropriada do seu sentido mais profundo até ser proclamada com o povo excluído da festa, como conta o historiador José Murilo de Carvalho no clássico “Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi”.

Para não sermos eternamente a “República que não foi”, o país precisar se mover sempre. O passo de ontem foi esse, dado pelo ministro que em breve deixará a cadeira do Supremo Tribunal Federal. Como sempre, ele buscou vozes antigas. Citou João Barbalho, membro da primeira Assembleia Constituinte (1890-1891). “Não há, perante a lei republicana, grandes nem pequenos, senhores nem vassalos, patrícios nem plebeus, ricos nem pobres, fortes nem fracos, porque a todos irmana e nivela o direito.” Não seguir esse princípio seria aceitar privilégios “próprios de uma sociedade aristocrática”.

Pela decisão de Celso de Mello o depoimento do presidente será presencial, e os advogados de quem o acusou, o ex-juiz Sergio Moro, poderão estar presentes e fazer perguntas. O ex-presidente Temer recebeu dos ministros Luis Roberto Barroso e Edson Fachin o direito de depor por escrito. Celso de Mello os elogia, mas discorda. E relaciona votos dele e de outros ministros negando essa prerrogativa. E ademais, ensina, o interrogatório é um “ato de defesa”, é direito do acusado no devido processo legal.

O parágrafo primeiro do artigo 221 do Código de Processo Penal dá a prerrogativa aos chefes dos Poderes de “optar pela prestação do depoimento por escrito” quando forem testemunhas ou vítimas. Quisesse o legislador que isso fosse estendido ao investigado, teria dito. O Planalto vai esperar o ministro se aposentar. Acredita que quem herdar o caso dará a Bolsonaro o direito de ser mais igual que os outros cidadãos da nossa República inacabada.


Míriam Leitão: Governo pega a estrada velha

O Brasil já conhece os passos dessa estrada, sabe que não vai dar em nada. Sabe de cor os desvios, desvãos, delírios que podem levar à ideia de que algum ente governamental possa intervir em formação de preços de supermercados. Não dá para acreditar que o ministro Paulo Guedes não tenha tido força para explicar o básico ao governo Bolsonaro. A notícia de que o Ministério da Justiça notificou os supermercados pela alta dos alimentos seria cômica se não fosse séria. A inflação está baixa, não há uma elevação generalizada do índice. E, mesmo que houvesse, o Brasil sabe há 30 anos que não é por aí.

Na economia nada há de mais obsoleto do que isso que nos assombrou na segunda metade dos anos 1980, a tentativa de controle de preços e a acusação a supermercados. Depois de várias tentativas que sempre deram errado, o Plano Real escolheu um outro caminho, novo e elegante, que enfim derrotou a hiperinflação no Brasil. Houve derrapagens no meio do caminho, como o congelamento da gasolina no governo Dilma e a intervenção na energia. Deu errado. Na sucessão de retrocessos que nos atinge no governo Bolsonaro, só faltava mesmo essa, o Ministério da Justiça dar prazo para supermercado explicar o preço do arroz porque o presidente da República reclamou. Eu até lembraria que o ministro da Economia é liberal, mas isso nem importa a esta altura. Não se trata de incoerência em relação a uma escola econômica. É uma questão de bom senso e saber — palidamente que seja — a história do Brasil.

Então vamos lá voltar à quadra um, porque o terraplanismo atacou agora a economia. Três fatores elevaram os preços dos alimentos: entressafra, auxílio emergencial e exportações puxadas pelo dólar alto e pela demanda chinesa. A execução do benefício teve muitos defeitos, mas quando chegou aos mais pobres fez uma enorme diferença. Imagine uma mulher chefe de família que recebia R$ 190 de Bolsa Família e que de repente recebeu do governo R$ 600 ou até R$ 1.200. O efeito multiplicador foi forte, como expliquei ontem aqui, fenômeno que ouvi bem explicado dentro do próprio governo. Isso é bom, porque atenuou a recessão, mas por outro lado pressionou a demanda de alguns produtos. Alimentos e material de construção.

Esse fenômeno é temporário porque nos últimos quatro meses do ano o valor do benefício vai cair. Mesmo assim, a inflação de alimentos em domicílio, que subiu 11,39% em 12 meses, deve continuar pressionada. E alimentos têm mesmo oscilações fortes. A cebola, que subiu 81% nos primeiros sete meses do ano, no oitavo mês caiu 17,81%. Contudo, o índice geral do IPCA continua baixo, chegou a 0,70% o ano. Menos de 1%.

Nesse índice de agosto, a educação foi a âncora, explica o professor Luiz Roberto Cunha, da PUC-Rio. Houve a concessão de descontos pelas escolas, e o item caiu 3,47%. Se tivesse sido zero, calcula Cunha, a inflação do mês seria de 0,45%, em vez de 0,24%. Os preços continuarão oscilando naturalmente. Não há uma conspiração entre donos de supermercados e arrozeiros. Reduzir a tarifa é uma boa ideia, até porque as barreiras são tão altas que deveriam ter sido reduzidas há mais tempo.

No segundo semestre a sazonalidade da carne é de alta, e além disso está acontecendo com esse e outros produtos uma demanda externa maior, com preço competitivo por causa do dólar alto. Isso torna mais caro o importado. Houve uma queda de 42% na importação de trigo, os preços da farinha até subiram 12%, mas macarrão está com alta zero de preço. Deve ser isso que fez o presidente da associação de supermercados, ao sair da reunião com o presidente Bolsonaro, parafrasear Maria Antonieta. Em vez de “dê-lhes brioches” sugeriu que as pessoas trocassem o arroz por macarrão.

Meses atrás houve quem dissesse que o presidente do Banco Central teria que escrever uma carta para explicar por que não atingiu a meta de inflação. Não por ficar acima, mas porque o risco era de ficar abaixo do piso da meta. Agora o que está acontecendo é uma alta localizada de preços, fácil de entender, e difícil de reverter artificialmente. Qualquer intervenção distorce, como os ruídos dos últimos dias: declarações, reuniões, ameaças e notificações. Quando Jair Bolsonaro dizia nada entender de economia, estava falando sério. Quando disse que entregaria tudo a Paulo Guedes, não estava falando sério.


Míriam Leitão: Os preços ao sabor do tempo

O problema não é apenas o arroz. Ele subiu 15,69% e deve ter sido isso que preocupou a repórter mirim que foi à reunião ministerial. Nos primeiros sete meses do ano, pelo índice oficial, o feijão preto subiu ainda mais: 29,51%. A batata inglesa, 25%. A cebola está de chorar: 81%. Isso de janeiro a julho no IPCA. Hoje sairá o dado de agosto. E o índice geral deve ficar em torno de 0,3%. O acumulado do ano até julho é de apenas 0,46%. O caminho do presidente de pedir “patriotismo” aos supermercados não funciona, mas sim a lei da oferta e da procura. Espera-se que, a esta altura, o ministro Paulo Guedes já tenha explicado ao presidente a ideia básica.

A demanda subiu em parte em consequência do sucesso do programa de transferência de renda para pessoa física. O auxílio emergencial chegou aos mais pobres, houve demanda grande de alimentos e de material de construção. Alguns dos itens de construção estão com atraso de três meses para entrega. Além disso, as exportações do agronegócio, favorecidas pelo dólar alto e pela demanda chinesa, bateram recorde, pressionando ainda mais alguns preços.

No meio de uma recessão deste tamanho, pode parecer estranho. Mas isso tem explicação. Uma parte do programa do governo contra os efeitos da pandemia na economia foi o auxílio emergencial. E ele, noves fora as fraudes e as filas da Caixa, foi bem-sucedido. Pelos dados que o próprio governo tem, na faixa mais pobre da população, com rendimentos de até R$ 500, o auxílio elevou a renda em 250%. Entre quem ganha de R$ 500 a R$ 1.000, houve 150% de recomposição. E nos que recebem até R$ 1.500 chegou a 75%. Isso teve um efeito multiplicador grande na economia. Quem recebeu comprou alimentos, material de construção e alguns itens da linha branca.

O auxílio criou um padrão de consumo que é temporário. No primeiro momento ajudou a atenuar a queda da economia, mas num segundo momento pode haver um “vento contra”, como ouvi no próprio governo. Na hora em que o auxílio acabar, pode haver uma queda forte no consumo. Isso é que faz com que o ministro da Economia fale tanto no Renda Brasil que, contudo, ele não sabe como viabilizar.

O governo foi ineficiente na transferência de recursos para as empresas. As linhas para a pessoa jurídica foram confusas e demoradas. As grandes conseguiram acesso, mas as pequenas empresas, não. O processo decisório foi muito lento, com idas e vindas, e o dinheiro só agora está chegando à ponta. Exceto um ou outro programa que deu certo, como o Pronampe, no resto, o governo enrolou-se em suas próprias burocracias e indecisões.

O fato é que agora há pelo menos 25 milhões de pessoas que dependem basicamente do dinheiro do governo para viver, e as empresas estão fragilizadas, muitas quebraram e essa era a hora de haver maior oferta empregos. Por isso, a preocupação em manter o programa de desoneração dos 17 setores mais empregadores. E é isso que está sendo debatido no Congresso. O ministro Paulo Guedes quer oferecer em troca uma desoneração para todos os setores, desde que limitado aos empregos de até um salário mínimo e dependendo da aprovação do tal imposto sobre pagamentos. Muito provavelmente o veto será derrubado e esses setores poderão recolher à previdência um percentual sobre a receita bruta, em vez de 20% sobre a folha.

Em relação à inflação, há um enorme desencontro de números. Produtos que subiram muito de preço, em geral alimentos, e outros que ficaram bem baixos. Por isso, o IPCA está em torno de 2% em 12 meses. Já o IGP-DI, da Fundação Getúlio Vargas, acumula alta de 15,2%. O dólar alto bateu forte nos preços do atacado, as commodities dispararam, como o minério de ferro. O IGP-DI de agosto, divulgado ontem, deu 3,87%, maior do que a inflação de um ano medida pelo IBGE. Os dois institutos medem coisas diferentes. A profunda recessão da economia manterá os preços no atacado bem diferentes dos preços ao consumidor, exceto por alguns setores, como alimentos.

O pior ingrediente que pode ser adicionado à economia, neste momento, é um ataque de populismo do presidente da República, fazendo apelos a supermercados ou insinuando artificialismos. Em um país que tem sofrido, nesta administração, sérios retrocessos em tantas áreas, só faltava ter que lidar com interferência governamental na formação de preços.


Míriam Leitão: O ministro que não viu o visível

Jair Bolsonaro, no dia 28 de maio, amanheceu querendo dar ordens ao Supremo Tribunal Federal. Foi quando ele berrou na porta do Alvorada aquele ultrajante “acabou, porra”. O que o irritara era a decisão do ministro Alexandre de Moraes de expedir mandados de busca em endereços de empresários e blogueiros amigos do governo, investigados pela suspeita de ameaçar ministros do STF, disseminar fake news e financiar crimes digitais. “As coisas têm um limite. Não dá para admitir mais atitudes de certas pessoas”, disse o presidente. Era uma ameaça ao Judiciário e, portanto, à democracia. Mas Dias Toffoli não viu.

“De todo o relacionamento que tive com o presidente Jair Bolsonaro e com seus ministros de Estado, nunca vi da parte dele nenhuma atitude contra a democracia”, disse Dias Toffoli. O ataque descrito acima fora contra o inquérito que o próprio Toffoli abrira. Um dos seus filhos, o deputado Eduardo Bolsonaro, postou que era preciso uma “atitude enérgica” do presidente, acrescentando que não era uma questão de “se” mas “quando” ocorreria uma ruptura. O presidente continuou: “Repito, não teremos outro dia igual a ontem. Chega. Chegamos ao limite. Estou com as armas da democracia nas mãos”. Era uma ameaça, mais uma, mas Dias Toffoli não viu.

Bolsonaro atacou a imprensa de todas as formas, como naquele 23 de agosto em que diante da pergunta de um repórter deste jornal disse que queria “encher sua boca de porrada”. Era o valentão, cercado de seguranças e de imunidades presidenciais, fazendo ameaças físicas a um profissional no exercício da profissão. Não foi o primeiro ataque. Ele escolheu alguns jornalistas para ofender, injuriar e caluniar. Ameaçou também órgãos de imprensa que não o bajulam. Editou uma MP dizendo que o objetivo dela era prejudicar o jornal “Valor”. De variadas formas ele ameaçou a liberdade de expressão, um dos pilares da democracia. Isso também Toffoli não viu.

O presidente participou de passeatas antidemocráticas. Muitas. Foram domingos consecutivos em que, aproveitando-se do distanciamento social que mantinha em casa tantos brasileiros, convocou seus apoiadores. Eles foram com faixas pedindo o fechamento do Congresso, do Supremo e uma intervenção militar “com Bolsonaro e AI-5”. Numa delas foi para a frente da sede do Exército em Brasília e discursou aos brados para a multidão:

“Acabou a patifaria. Não queremos negociar nada, agora é o povo no poder”. Disse que as Forças Armadas estavam com eles. Em outro domingo, sobrevoou a multidão num helicóptero da Força Aérea com o ministro da Defesa a bordo. Usar as Forças Armadas para intimidar é subversão da ordem democrática. Todas aquelas manifestações foram um ataque explícito à democracia. Nem isso, contudo, o ministro Dias Toffoli viu.

O presidente fez ameaças em postagens e em declarações ao ministro Celso de Mello, disse que não respeitaria ordem judicial e publicou numa de suas redes que a decisão do ministro de divulgar o vídeo da reunião ministerial poderia ser enquadrada como abuso de autoridade passível de prisão. O ministro fez bem ao divulgar o vídeo porque nessa reunião claramente se conspirou contra as instituições. Integrantes do governo pediram prisão de ministros do Supremo, o presidente disse que era preciso armar a população para resistir às ordens dos governadores, e citou o artigo 142 da Constituição que, segundo interpretação canhestra que endossava, permitiria a intervenção militar. O presidente postou um vídeo repulsivo em que ele é um leão atacado por hienas e uma delas era o STF. O decano Celso de Mello reagiu. Soltou uma nota dizendo que “o atrevimento presidencial parece não encontrar limites” e lembrou que o presidente desconhecia o princípio da separação dos poderes. Ainda bem que tivemos os olhos de Celso de Mello, porque Dias Toffoli nada viu.

Houve nestes um ano e oito meses homenagens a ditadores, como Stroessner e Pinochet, que nos constrangeram no exterior, exaltação da ditadura, endosso a textos apócrifos claramente golpistas, disseminação de fake news. Bolsonaro colocou em dúvida o processo eleitoral brasileiro, dizendo que houve fraude na última eleição sem apresentar qualquer prova. Nada disso o presidente do STF viu. E tudo era tão visível.


Míriam Leitão: Caminho certo no chão da Amazônia

A terra e o ouro subiram de preço. Isso é um poderoso incentivo econômico à grilagem e ao garimpo na Amazônia. O Brasil tem vantagens competitivas no agronegócio, setor que está ligado, como nenhum outro, às cadeias internacionais, mas o desmatamento leva os grandes fundos de investimento e os consumidores externos a fazerem exigência ao país. Querem ter certeza de que o nosso produto está livre do crime de destruir a maior floresta tropical do planeta. No chão da Amazônia vicejam produtos preciosos, açaí, cacau, castanha, mas não há cadeias produtivas que sustentem a geração de riqueza para quem mora lá.

Esse é o quadro no qual três bancos privados, competidores —mas não adversários, como se definem —decidem se unir. Se vão contribuir para mudar essa realidade, o tempo dirá. O que eles querem? Estimular as cadeias locais de produtos da floresta com a ambição de que haja escala, ter incentivos econômicos à preservação, buscar informação sobre as grandes cadeias produtivas para quebrar a ligação entre o legal e o ilegal. Saber para quem estão emprestando.

Na sexta-feira, durante uma hora e meia, entrevistei os presidentes do Bradesco, Octávio de Lazari, do Itaú-Unibanco, Cândido Bracher, do Santander, Sergio Rial. A ideia era saber como passarão dos bons propósitos que anunciaram recentemente para a prática. Eles fizeram afirmações interessantes, que o jornal de ontem trouxe no texto de Glauce Cavalcanti e Carolina Nalin. O que me impressionou positivamente é que admitem, logo de início, que estão num processo de aprendizagem. Amazônia é um assunto denso como a floresta, que se abre em muitas vertentes como os igapós, e diante de sua dimensão o risco maior é se perder. A Amazônia pede de nós humildade.

O que de fato os bancos vão fazer? Um grande problema é o da produção de carne. Tempos atrás, a moratória da soja uniu produtores, ONGs, órgãos de controle, grandes consumidores. O pacto que fizeram obrigou as tradings a só comprarem de quem comprovasse que não desmatou. A ideia é repetir isso numa mesa da pecuária.

— Estamos no epicentro de todas as cadeias, da fazenda ao garfo. E a agroindústria está ligada globalmente. É essencial sabermos se continuaremos nessa cadeia de produção. A Amazônia está no centro da capacidade competitiva do Brasil a longo prazo — explicou Sergio Rial.

Octávio de Lazari disse que há uma mudança de comportamento no consumidor que definirá que empresas vão prosperar no século XXI.

— O consumidor brasileiro das novas gerações está se tornando cada vez mais atento. Aquela empresa que não for responsável, ecológica e inclusiva, ou não respeitar a diversidade, vai ficar pelo caminho. Esse é o ponto fundamental da mudança de postura brasileira e mundial — diz Lazari.

Na visão dos banqueiros, é preciso inverter a equação que hoje devasta a floresta.

— O caminho da redução de carbono é inexorável. Temos que aumentar o prêmio para o cumprimento da lei, estimulando o mercado de crédito de carbono, o mercado de serviços ambientais, e o desenvolvimento de cadeias produtivas. A repressão ao ilegal tem que ser um elemento, mas não o mais importante. Tem que haver o estímulo econômico às boas práticas dentro das regras de mercado —diz Cândido Bracher.

Há muita coisa que é difícil saber como lidar. Os três admitem que mineração é um grande desafio e que, ao contrário do que acontece na agricultura, o pequeno produtor, ou seja, o garimpo, não pode ser sustentável. E que a grande mineração não pode sair deixando as cicatrizes na floresta. Perguntei sobre os indígenas porque o tema está ausente nos dez princípios que eles estabeleceram para orientar sua atuação na Amazônia. Eles admitiram que, de todos os assuntos, “esse é o que mais se aplica a necessidade de aprender e ser humilde”, como definiu Bracher.

O governo anda em direção contrária a toda essa agenda, mas eles consideram que o vice-presidente Hamilton Mourão abriu um canal de diálogo. Querem pensar a Amazônia como uma questão de Estado e não de governo, mas não fugiram da pergunta sobre a última declaração do presidente Bolsonaro, que comparou as ONGs a câncer. Eles discordam. As ONGs são parceiras, estão nos conselhos e têm conhecimento do assunto, disseram.


Míriam Leitão: Sinais do Rio e da capital federal

O afastamento do governador Wilson Witzel, confirmado ontem pela Corte Especial do STJ, terá fortes consequências no cenário nacional. É bom que tenha havido uma decisão colegiada para acabar com o desconforto tão bem expresso no voto minoritário do ministro Napoleão Nunes Filho, diante do fato de que uma decisão monocrática, tomada antes do recebimento da denúncia, tirou o chefe do poder executivo estadual. Não há dúvida de que tudo precisa ser investigado em mais essa tortuosa história do Rio. Os indícios contra Witzel são fortes, mas é preciso entender os efeitos para além das fronteiras estaduais.

Na véspera do dia em que Wilson Witzel foi afastado do governo do Rio, o presidente Jair Bolsonaro entrou no plenário do Superior Tribunal de Justiça ao lado do ministro João Otávio Noronha, que até aquele momento era presidente do tribunal. É o protocolo, já que o presidente estava fisicamente na corte, mas antes de entrar no recinto Bolsonaro teve tempo de uma conversa presencial com o ministro, por quem já declarou ter sentido “amor à primeira vista”. Quem conhece bem a cultura e os códigos de Brasília acredita que Bolsonaro foi dormir naquele dia sabendo o que aconteceria na manhã seguinte no Rio, estado estratégico para neutralizar as muitas investigações de corrupção contra a sua família.

O ministro Benedito Gonçalves já havia assinado sua ordem, apenas não a tornara pública. Naquele dia, a presidência ainda era de Noronha. Revelar o fato ao presidente da República poderia ser apresentado como mais um favor. “Em Brasília, funciona assim: quem faz um favor desses está querendo dizer que pode fazer muitos outros”, diz uma autoridade que viu no movimento mais um ato da campanha de Noronha para o Supremo.

O governador em exercício Cláudio Castro já recebeu o telefonema do senador Flávio Bolsonaro prometendo ajuda na renovação do Regime de Recuperação Fiscal. O problema é que essa renovação deveria seguir critérios técnicos do Ministério da Economia.

A saída de Witzel eleva exponencialmente o controle da família Bolsonaro sobre os poderes do estado onde será decidido o destino de vários integrantes do clã. Como o próprio Bolsonaro disse ao então ministro Sergio Moro: “Você tem 27 superintendências, eu só quero uma.” Ter o controle da PF no Rio é bom, mas melhor ainda é dominar também o Ministério Público estadual e a Polícia Civil. O procurador Marcelo Rocha Monteiro, um dos cotados para comandar o MP, como O GLOBO mostrou, é fã do presidente e da família.

O estado é parte de uma quebra-cabeças nacional e integra o mesmo movimento de enfraquecimento interno das instituições de que falam os autores que mostram a forma atual de matar democracias. Elas morrem de hemorragia interna. E em múltiplos órgãos.

A manobra do presidente em relação à Procuradoria-Geral da República deu supercerto. O procurador Augusto Aras tem sido prestimoso em qualquer tema de interesse do governo. Todos os candidatos ao posto de ministro do STF estão prestando favores a Jair Bolsonaro, dono da caneta que nomeará a pessoa para ocupar a cadeira de Celso de Mello.

O decano ficará de licença médica até o dia 11. Só voltará após a posse de Luiz Fux. Tem feito falta na Segunda Turma onde, sem seu voto, os empates provocam estrago em questões decisivas. Quando Celso de Mello voltar, será muito prestigiado por Fux, que tem por ele sincera admiração, mas serão apenas por uns 50 dias. Celso faz aniversário no dia primeiro de novembro e precisa deixar o cargo dias antes. Se com Fux o STF tem chance de ter uma presidência que não emita tantos sinais ambíguos, sem Celso de Mello, e com um indicado por Bolsonaro, o STF enfrenta mais risco de errar.

Há um efeito a mais da pandemia piorando o ambiente em Brasília. As autoridades dos outros poderes que são simpáticas a Bolsonaro fazem reuniões presenciais. Os que guardam distância, por respeitar o distanciamento social, estão se conectando apenas por canais eletrônicos. Já a conversa olho no olho, a palavra no pé do ouvido só está ocorrendo de um lado, aquele que conspira contra o bom funcionamento das instituições brasileiras. No Brasil de hoje, quem não está preocupado com a democracia está mal informado ou não está lendo bem os sinais.


Míriam Leitão: Escolhas trágicas na economia

O tumulto da sexta-feira com o afastamento do governador Wilson Witzel ajudou a afastar a atenção da área econômica, que vivia o constrangimento de um ultimato dado pelo presidente para ter em mãos o novo Renda Brasil. Foi mais uma semana ruim para o ministro Paulo Guedes. No mercado, a dúvida sobre a sua permanência; no Ministério, a corrida atrás do dinheiro para cumprir outra ordem do presidente: ter recursos para as obras dos ministros Tarcísio Freitas e Rogério Marinho. Por isso a verba do combate ao desmatamento e aos incêndios quase foi usada para outros fins.

A pasta do Meio Ambiente, como se sabe, é ocupada por um inimigo do meio ambiente. É do seu feitio sabotar as ações dos órgãos de fiscalização, ou não dar os meios para que as missões se realizem. O Ministério da Economia conseguiu fazer Ricardo Salles parecer um ambientalista. Na sexta-feira, o MMA comunicou que estava suspendendo 100% das ações porque o dinheiro do Ministério fora congelado. Com o susto, o orçamento foi descongelado, e restou ao vice-presidente dizer que Salles havia se precipitado.

Os dias têm sido pesados na área ambiental. Estudos mostram o avanço do desmatamento, e o efeito da queimada na saúde humana. O movimento das empresas e bancos contra essa deterioração tem crescido. No exterior, as notícias confirmam os temores dos investidores. O vice-presidente Hamilton Mourão vinha ouvindo com atenção os empresários, executivos, banqueiros e administradores de fundos. Mas mostrou na quinta-feira que, se ouviu, não entendeu. Segundo ele, os 24 mil focos de incêndio em um mês na Amazônia são “agulha no palheiro”. A notícia de que o Brasil tiraria a verba do combate ao desmatamento e incêndio seria arrasadora.

Há outro complicador. O dinheiro do Fundo Amazônia não está sendo utilizado, mesmo quando há disponibilidade e projeto, por causa do teto de gastos. Lá estão parados hoje R$ 200 milhões, de acordo com o site oficial. O Fundo não consegue executar os projetos contratados e com recursos porque a despesa bate no teto. O dinheiro do MMA quase foi tirado para atender às ordens do presidente que nunca se importou com o futuro da floresta. Ao mesmo tempo, os recursos de um fundo formado por doações de outros países, mesmo quando há projetos aprovados, não podem ser usados. As autoridades já foram avisadas pelo BNDES e pelos doadores, mas não tomaram qualquer providência.

Não faz sentido que o dinheiro de fora do orçamento tenha que enfrentar esse impedimento. “O ente executor, seja o Ibama ou o Ministério da Justiça, em operações de comando e controle, fica no dilema: usar os recursos do Fundo e bater no teto, ou usar recursos próprios e não conseguir utilizar o dinheiro do fundo”, me contou um funcionário que acompanha a kafkiana situação em que a área ambiental está, e da qual estão a par todas as autoridades, inclusive o vice-presidente Hamilton Mourão.

Na Economia, esta foi a semana de anunciar um outro enorme rombo nas contas públicas, de R$ 87 bilhões em julho. Nos sete meses, o buraco é de R$ 505,2 bilhões. O ministro Paulo Guedes tem que administrar esse mar vermelho e ainda engolir os ataques do presidente Jair Bolsonaro. A crítica ao seu projeto foi feita pelo presidente no religamento de um alto-forno da Usiminas, em ato público e demagógico, quando poderia ter sido dita diretamente ao próprio ministro e à sua equipe. Todo mundo entendeu como um ato de fritura que de fato foi. Mas numa reunião do Instituto Aço Brasil, Paulo Guedes mostrou que do presidente tudo suporta.

– Eu falei para o presidente: carrinho fora da área não dá. Se fosse na área era pênalti.

Em rápida passagem pelos microfones da imprensa, Guedes repetiu as palavras do presidente, de que “R$ 200 é pouco”. Mas foi esse o número que a equipe econômica havia apresentado, tanto na primeira versão do auxílio emergencial quanto no valor que cabia no orçamento para o Renda Brasil.

Segundo Guedes, “é perfeitamente legítimo” o presidente querer outro valor. Querer pode. O problema é que há limites fiscais, e cabe ao ministro apresentá-los ao governo. Em vez de conter o ímpeto gastador dos colegas que ele alcunhou de “fura-teto”, o ministro Paulo Guedes mandou a equipe sair procurando dinheiro em outras áreas. Os recursos da proteção da Amazônia quase foram vítimas das escolhas trágicas do Ministério da Economia.


Cartão bolsa família | Foto: Agência Brasil

Míriam Leitão: O grande risco dos improvisos

Por que acabar com o Bolsa Família? Um programa bom, reconhecido no mundo inteiro, com um foco claro, aperfeiçoado ao longo do tempo por especialistas que entenderam a sua lógica e metodologia. Falta à equipe econômica humildade e conhecimento da engenharia social. Além disso, faz falta um verdadeiro ministério da área social. Esse governo já demonstrou o quanto pode errar com seus improvisos e oportunismo.

O governo Lula derrapou no início com o Fome Zero. Como marca era bom, mas na prática a ideia era uma distribuição de vouchers como o food stamps, política americana dos anos 1950. Não ficou de pé. Houve um debate intenso, com duas vantagens: cientistas sociais que entendiam do assunto no governo participaram dele e o país tinha a experiência da Bolsa Escola que levou muita informação para a mesa de discussão. A política pública nasceu em Brasília, em 1995, na gestão de Cristovam Buarque. Depois foi implantada em Campinas e em Belo Horizonte. Por fim foi adotada, com valor pequeno, no governo federal. Havia sido feito um cadastro que depois foi ampliado. A pergunta era: quantos são e onde estão os invisíveis? O Estado foi buscá-los.

O foco da política é a mulher pobre, para “ajudá-la no grande desafio de criar uma família enfrentando dificuldades econômicas e muitas vezes as flutuações da vida pessoal”, como conta um dos primeiros economistas a me explicar a importância da focalização das políticas sociais. O alerta é que não se pode acabar com o Bolsa Família sem uma discussão ampla, objetiva, com especialistas e baseando-se em dados. Só assim se saberá como e por que mudar. Descaracterizar o programa pode trazer muitas consequências negativas, além de criar uma escada para um populista com claro projeto autoritário.

— O Bolsa Família é como o Pelé: reconhecido como exemplo de excelência mundo afora, apesar de não ser totalmente aceito pelos brasileiros. Mas talvez porque é um programa para mulheres e pobres, e com crianças, ele agora é motivo de experimentos sociais desabridos. Planejam engoli-lo em um programa não para crianças, mas para corrigir imperfeições do mercado de trabalho — avalia este economista.

Esse é um dos erros. Um programa para criar empregos é uma coisa, a rede de proteção social é outra. Qual é o foco desse Renda Brasil, que se quer vincular a um “emprego verde e amarelo”? Aliás, é a reapresentação da ideia de criação de um subemprego formal, um trabalhador com menos direitos e uma empresa que não contribua para a Previdência. Assim, aprofunda-se o problema da descapitalização do sistema previdenciário.

Uma coisa é certa: este governo sabe cometer erros como nenhum outro. O Ministério da Economia quer acabar com o abono salarial porque jovens da classe média estão recebendo o benefício no começo da carreira profissional. Ora, basta estabelecer a renda familiar como uma pré-condição. Quer acabar com o seguro-defeso porque tem fraude. Ora, que tal combater a fraude? O governo pode aproveitar e aprender a combater as extravagantes fraudes no auxílio emergencial. Estimular a entrada de jovens no mercado de trabalho é fundamental, mas é outro programa.

A engenharia social do Bolsa Família deu mais certo porque se baseou em experiências exitosas. A condicionalidade na época era a presença da criança na escola, mas acabou sendo a porta de entrada de outras políticas públicas. Ruth Cardoso, com uma equipe interdisciplinar de excelentes especialistas, desenvolveu o Bolsa Escola Federal. Sob essa base, o PT construiu a mais bem-sucedida e mais bem focalizada política de transferência de renda do Brasil. Foi uma construção coletiva. Todos viram isso. Bolsonaro, na quarta-feira em Ipatinga, disse o seguinte: “passamos por tantos problemas no passado e nenhum outro presidente lembrou do povo para dar uma aspirina sequer”. O que é isso? Uma mentira dita pelo presidente da República.

Não se improvisa em política social. O país tem imensa desigualdade e está agora diante da necessidade de dar amparo a quem está momentaneamente sem capacidade de gerar sua renda. O governo Bolsonaro vai improvisar. Por arrogância, por oportunismo eleitoreiro, por desconhecer a complexidade de se montar um eficiente programa social. O risco de errar é enorme.


Míriam Leitão: Nova aposta no setor de gás

Três pequenos gasodutos mudariam totalmente a oferta de gás no país, se fossem construídos. Na conta dos grandes consumidores dessa energia, a nova lei permitirá essas obras e o estímulo à importação de gás natural liquefeito (GNL). Com isso, a oferta no país cresceria até 60%, derrubando os preços. As distribuidoras têm uma visão mais cautelosa. Alegam que a lei tem avanços, mas o cenário mudou com a pandemia. O relator da proposta na Câmara, deputado Laércio Oliveira (PP-SE), defende seu texto, que seria, em sua opinião, resultado de meses de debates, e admite que novos aprimoramentos podem ser feitos depois da aprovação do projeto de lei (PL).

Olhar todos os lados em qualquer tema ligado à energia demanda paciência. O ministro Paulo Guedes havia dito há mais de um ano que tudo seria fácil, mas as complicações sempre aparecem. Agora, contudo, há muita gente animada. Neste novo marco do gás, que vai substituir o de 2009, as apostas são mais favoráveis. O PL, por exemplo, recebeu o apoio de mais de 60 associações ligadas ao setor industrial, que é o grande consumidor desse tipo de energia.

— No curto prazo, a nova lei facilita a importação de gás liquefeito (GNL), que está com preços baixos internacionalmente, e três pequenos gasodutos podem aumentar bastante a oferta. Isso deve ajudar a diminuir os preços. Mas a grande diferença acontecerá quando o pré-sal aumentar a produção, daqui a quatro ou cinco anos, e esse PL prepara o país para esse momento — explica Adrianno Lorenzon, gerente de gás natural da Associação Brasileira dos Grandes Consumidores de Energia (Abrace).

Um dos principais pontos do PL é a mudança do regime de concessão para o de autorização. No modelo atual, a agência reguladora elabora o projeto, faz uma licitação e abre para consulta pública. Os especialistas afirmam que nos últimos 13 anos nenhum gasoduto foi construído, por causa do excesso de burocracia. Agora, partirá da empresa privada provocar a agência reguladora, que irá fazer a análise para autorizar ou não as obras. Outra mudança apontada como importante é a obrigação de as companhias — entenda-se Petrobras — compartilharem toda a sua infraestrutura com outras empresas, em caso de subutilização. A ideia, explica o relator do projeto, Laércio Oliveira, é que haja competição em todos os elos da cadeia.

— A agência reguladora terá mais poderes para atuar na sua área de competência. Hoje, a Petrobras vende o gás por um preço fechado. Esse valor compreende parcelas como o custo do gás natural na cabeça do poço, o custo de fazer o escoamento até a costa e o custo de tratamento. O objetivo é que cada etapa desse processo tenha seu preço aberto e haja competição entre os agentes de cada elo da cadeia — disse.

O Brasil hoje consome 80 milhões de m3 de gás por dia, e pelas contas da Abrace mais 50 milhões podem entrar no sistema por aqueles três pequenos trechos: a construção da Rota 3, que vai interligar o pré-sal e a Bacia de Campos ao Comperj, um gasoduto no Porto do Açu, no Rio, e outro no Terminal de Sergipe. Isso poderia ser feito até o final do ano que vem.

— Em Sergipe, o gás chega de navio e fica armazenado em um terminal de gás liquefeito. Apenas um terço desse gás é consumido pela termelétrica de Porto de Sergipe. A ideia é construir um pequeno gasoduto que conecte esse terminal à malha, e com isso o gás excedente possa chegar rapidamente às regiões Sul e Sudeste do país — explica Adrianno Lorenzon.

Há visões divergentes. Na opinião da Abegás e do consultor Adriano Pires, do CBIE, o projeto de lei avança pouco e foi elaborado antes da pandemia, quando o setor de óleo e gás vivia outro momento. Pires argumenta que os investimentos só vão deslanchar se houver garantia de aumento da demanda. Por isso, defende que o PL estabeleça que as termelétricas a gás entrem na base do sistema elétrico, ou seja, que garantam um consumo fixo do produto. O deputado Laércio discorda. Acha que isso é papel da agência reguladora e não deve ser objeto desse projeto de lei.

Há um ano, o setor comemorava um Termo de Compromisso de Cessação (TCC) estabelecido entre o Cade e a Petrobras. Na época, se dizia que era o início do fim do monopólio da empresa. De lá para cá, pouca coisa andou, e a petrolífera foi notificada no final de julho por um possível descumprimento de regras. Agora, as esperanças se voltam a este novo PL do gás.