miriam leitão

Míriam Leitão: Com a palavra, os embaixadores

Os embaixadores da Noruega e da Alemanha em Brasília alertam que o Brasil deve tomar muito cuidado nos próximos três meses na Amazônia. São os de maior risco de desmatamento no ano florestal que termina em julho. Nils Gunneng, da Noruega, e Heiko Thoms, da Alemanha, afirmam que há meio bilhão de reais sendo usados do Fundo Amazônia e lembram que os recursos, quase R$ 3 bilhões, que estão congelados precisam apenas que o Brasil restaure o conselho do Fundo. “O Brasil não está sozinho no combate ao desmatamento”, diz o alemão Thoms. “Tem um mercado enorme para um país que tem florestas e queira mantê-las em pé”, completa o norueguês Gunneng.

Noruega e Alemanha são os financiadores do Fundo Amazônia, um bem-sucedido mecanismo em que os dois países doaram recursos para apoiar programas de proteção ambiental. Ele funcionava perfeitamente. Em junho de 2019, o ministro Ricardo Salles dissolveu o conselho que reunia representantes do governo federal, dos estados amazônicos, da sociedade e dos empresários. Sem essa estrutura, o Fundo Amazônia não pode liberar novos recursos. “Não há base legal para as decisões”, explica o embaixador da Noruega.

Eu entrevistei os dois diplomatas durante uma hora na sexta-feira, por uma chamada de vídeo. Eles demonstram conhecimento sobre o Brasil, admitem as culpas de seus próprios países nas emissões de gases de efeito estufa, comemoram a cúpula do clima, pela volta dos Estados Unidos aos esforços globais de combate às mudanças climáticas. Ambos disseram ter gostado da carta do presidente Bolsonaro ao presidente Biden e do discurso do brasileiro na reunião do clima. Mas alertam que é preciso ir além. “Queremos ver em breve os resultados dessas palavras nas taxas de desmatamento”, disse Nils Gunneng. “Estamos ansiosos para ver a tradução desse compromisso no plano concreto”, diz Heiko Thoms.

Os dois têm tido conversas com vários setores da sociedade brasileira, e, nos dias anteriores ao encontro convocado por Joe Biden, eles e outros embaixadores fizeram reuniões com políticos de diversos partidos, com empresários e ONGs. Perguntei o que eles têm ouvido. Segundo o embaixador alemão, todas as partes entendem que problemas ambientais têm um efeito negativo na reputação do país. “Os povos indígenas compreendem isso, os bancos compreendem isso”, diz Thoms.

O representante da Alemanha afirma que seu país é parceiro tradicional do Brasil na luta ambiental desde 1992, que a cooperação bilateral tem 70 anos e há um portfólio de investimento de US$ 9 bilhões. O representante norueguês conta que o Fundo Soberano tem investimentos de US$ 8 bilhões em ativos brasileiros. O grande nó das relações entre os dois e o Brasil atualmente é o Fundo Amazônia. Perguntei a Gunneng o que ele tinha a dizer sobre a afirmação de Salles de que o Fundo parou por decisão da Noruega. “É importante dizer que o Fundo foi congelado porque o governo brasileiro dissolveu a estrutura de governança unilateralmente sem o acordo da Noruega ou da Alemanha”, respondeu.

O embaixador da Alemanha acha que o “Brasil está bem posicionado” para se beneficiar da transição para a economia de baixo carbono. “Tem a tecnologia necessária, tem uma legislação sólida e produtores sérios.” Gunneng concorda e diz que o Brasil já mostrou ser capaz de produzir sem aumentar o desmatamento. “Nós queremos ver mais países pagarem por isso”. O embaixador alemão disse que “no mundo inteiro os consumidores querem saber de onde vem o bife que está no seu prato e como o seu smartphone foi produzido. Os investidores procuram opções verdes de investimento. Quem produz de forma sustentável tem vantagem competitiva”.

Perguntei a Gunneng o que a Noruega fará com sua economia tão dependente do petróleo, e a Thoms, sobre as emissões históricas da Alemanha. “Nós somos parte do problema”, admitiu o norueguês. “A Alemanha tem grandes desafios como o do carvão”, admitiu o alemão. Os dois, contudo, dizem que seus países estão determinados a fazer a necessária transição para uma economia de baixo carbono. Perguntei se era fácil explicar para os contribuintes os gastos com o Fundo Amazônia. “Sim e não. É fácil quando o desmatamento cai, é difícil quando ele sobe”, diz Nils Gunneng, da Noruega. No momento, então, está difícil explicar.


Míriam Leitão: O Brasil pode ser o verde da Terra

Não há palavras que desatem os atos de Bolsonaro e de Ricardo Salles na área ambiental. O Brasil vai se sentar na reunião de hoje como vilão, quando poderia ser respeitado por ser o país que é: uma potência ambiental, dono da maior parte da maior floresta tropical, o G1 da biodiversidade. O presidente brasileiro prometerá aumentar a fiscalização mas, na verdade, ela está sendo desmontada. A carta dos servidores do Ibama mostra que eles estão sofrendo assédio. O ministro os impede de trabalhar. É também por cumprir seu dever que Alexandre Saraiva foi exonerado da Superintendência da Polícia Federal no Amazonas.

Ibama, ICMBio, Funai estão sob ataque do presidente e do ministro do Meio Ambiente. O INPE foi ameaçado. O projeto de Bolsonaro de interferir na Polícia Federal deu certo e a exoneração de Saraiva é prova cabal. Com esse histórico, Bolsonaro não poderá falar que vai aumentar as ações de comando e controle na região. Não será crível.

Uma alta autoridade do governo brasileiro foi a uma reunião com um grupo de embaixadores dos Estados Unidos e países europeus. Várias autoridades foram chamadas no último mês. O relato do que foi dito lá mostra que não adianta ter conversa para inglês ver.

– Para minha surpresa o tom dos embaixadores foi duríssimo. A gente tem que agir rápido, a narrativa de que eles destruíram as florestas deles, e nós, não, é muito ruim. Se a conversa for pedir dinheiro, não vai pra frente. É preciso pôr em duas páginas quais são os compromissos para os próximos dois anos. Tem que levar algo concreto. Essa é a única forma de apaziguar e virar essa página — afirmou a autoridade.

O governo brasileiro foi avisado. Pelos embaixadores, pelos gestores dos grandes fundos globais, pelos bancos privados brasileiros, pelas grandes empresas, pelo agronegócio exportador. Bolsonaro insiste em seu projeto e tem ajuda. Salles é a motosserra. Ele diariamente derruba uma pedaço do edifício regulatório brasileiro com portarias e instruções normativas. Usa o espaço infralegal para conspirar contra as leis ambientais do país. Exatamente como avisou que faria naquela famosa reunião ministerial. A instrução normativa que obriga o fiscal a submeter a multa que aplicou a um superior hierárquico foi apenas uma de inúmeras normas. O vice-presidente Hamilton Mourão tem sido usado como um biombo. Ele conversa, ouve, impressiona bem, mas é deixado de lado. E, quando cobrado por algum interlocutor, diz que não tem poderes.

Salles usa também o truque de se apropriar de termos para impressionar. Quando ele fala de “bioeconomia”, não está se referindo ao conceito desenvolvido por alguns especialistas, como o climatologista Carlos Nobre, para defender uma nova economia a partir da nossa rica biodiversidade. A “bioeconomia” que Salles quer é a dos madeireiros e garimpeiros ilegais.

Quando Bolsonaro falar de regularização fundiária, os governantes estrangeiros devem saber que ele está se referindo aos projetos de legalizar a grilagem, como os que já apresentou ao Congresso. Quando falar em apoio às populações indígenas, ele está se referindo ao projeto já enviado ao Congresso que permite mineração, exploração de petróleo e pecuária em terras indígenas.

Apesar de tudo, a sociedade brasileira tem encontrado seu caminho para falar com o mundo. A Carta dos Governadores é resultado de lenta costura entre os chefes de executivo estaduais, iniciada pelo governador Renato Casagrande, do Espírito Santo. Na carta, eles fazem valer o princípio federativo. Lembram que representam mais de 90% do território nacional, propõem aumentar a “ousadia das NDCs”, (as metas nacionais), e dizem que os estados possuem fundos e mecanismos criados para “responder à emergência climática”. 

Sugerem uma parceria para deter o desmatamento e para restaurar. Lembram que será preciso “reflorestar uma área do tamanho do território dos Estados Unidos” e, completam, “O Brasil pode ampliar o verde da Terra não apenas na Amazônia, mas também em biomas de grande capacidade de captura de carbono, inestimável biodiversidade e relevância socioeconômica como o Cerrado, Mata Atlântica, Caatinga, Pampa e o Pantanal”. Os governadores entenderam. A mudança climática é também a oportunidade da nova economia. É o “green new deal”, um tempo aberto pra nós.


Míriam Leitão: Do chão da floresta à cúpula do clima

Um avião do Comando de Aviação Operacional da Polícia Federal foi a Manaus em novembro buscar policiais para ajudar nas eleições no sul do Estado. O superintendente da PF, Alexandre Saraiva, perguntou ao piloto: “Na volta, tem como sobrevoar os rios Madeira e Mamuru para ver se tem balsa da madeira?” Um agente foi junto para fotografar e trouxe farto material. Assim começou a maior apreensão de madeira feita pela Polícia Federal. A ação foi comemorada em nota pela Secom do Planalto. Saraiva esteve no Conselho da Amazônia para explicar a operação e discutir o destino da madeira. A reviravolta ocorreu quando o ministro Ricardo Salles foi ao Amazonas e passou a defender os madeireiros.

Na reunião de cúpula esta semana sobre clima, convocada pelo presidente Joe Biden, o presidente do Brasil vai mentir. Já há muita falsidade na carta enviada por Bolsonaro a Biden. A meta de zerar o desmatamento ilegal em 2030 é antiga, foi apresentada pelo Brasil em 2009, em Copenhague, e confirmada em Paris. No mesmo dia em que prometeu reduzir o desmatamento, o governo fez o oposto. A boiada de Salles é coisa que passa todo dia. Ele baixou, na quinta-feira, uma instrução normativa que constrange mais ainda a fiscalização ambiental.

— A instrução normativa condiciona a validação das multas ambientais à concordância de uma autoridade ‘hierarquicamente superior’. Já havia antes criado um conselho de conciliação para validar as multas — explica André Lima, coordenador do Instituto Democracia e Sustentabilidade.

Tudo é complexo quando o assunto é Amazônia. Mas os fatos se juntam. Tanto a exoneração do superintendente Saraiva, quanto as recorrentes normas com as quais o governo Bolsonaro mina o edifício legal construído em governos anteriores, que havia feito do Brasil um exemplo de combate ao desmatamento.

O delegado Saraiva, na sexta-feira, reapresentou a notícia-crime contra o ministro Ricardo Salles no STF por “obstar ou dificultar a ação fiscalizadora do Poder Público no trato das questões ambientais”. A relatora será a ministra Cármen Lúcia. Ele havia tido dificuldade de incluir no sistema eletrônico, mas, mesmo após o anúncio de que seria exonerado, insistiu. Está convencido de que o que ele viu é crime. E dos grandes. O governo achava o mesmo. A nota da Secom, no dia 24 de dezembro, trazia a bandeira do Brasil ao lado da inscrição “O gigante verde” ilustrando a foto dos caminhões enfileirados da “Operação Handroanthus GLO”. A carga, dizia a Secom, “representa mais de 6,2 mil caminhões lotados”. E isso quando se achava que eram 131 mil m3 de madeira. Na verdade, foram mais de 200 mil m3. Salles diz agora que era tudo legal.

— A madeira que estava nas balsas não correspondia à madeira descrita no Guia Florestal. Nem nos caminhões. Os documentos que os empresários apresentaram têm fortes indícios de fraude, apesar disso o ministro os defendeu — disse Saraiva.

Esse é um fato. Há milhares de fatos estranhos na rede que sustenta o abate da floresta. Contra isso o Brasil aprovou leis e assumiu compromissos internacionais. Na gestão Marina Silva no Ministério do Meio Ambiente foi feito o PPCDAm, o mais bem estruturado plano de combate ao desmatamento. Era maio de 2005. Por causa dele o Brasil derrubou em 80% o desmatamento nos anos seguintes. Em 2009, para a COP-15, quando o ministro era Carlos Minc, foi anunciada a Lei Nacional de Mudanças do Clima. Assim nasceram as metas do Brasil. Elas não foram inventadas agora pela dupla queima-floresta Bolsonaro&Salles.

— A carta de Bolsonaro a Biden é mais que triste, é dramática. Ele fala em proteger indígenas, e o governo é autor do projeto que legaliza mineração, exploração de madeira, agropecuária, gás, petróleo e usina elétrica em terra indígena. Ele enterrou o PPCDAm mas pede dinheiro alegando que o Brasil reduziu o desmatamento. Caiu por causa do plano que ele desmontou — diz André Lima.

O MapBiomas tem feito perguntas pela Lei de Acesso à Informação ao vice-presidente, general Hamilton Mourão, sobre os crimes ambientais. Fez 66. A resposta é sempre a mesma. A de que o Conselho da Amazônia é só o coordenador. “Sugere-se que seja realizado o pedido ao órgão competente”. Mas o Ibama nem faz parte do Conselho.

Esse ataque múltiplo contra a floresta é a verdade do Brasil. Verdade que não estará na fala de Bolsonaro aos líderes mundiais.


Míriam Leitão: Bancos e corretoras pioram projeções para o Brasil

O mercado financeiro continua fazendo contas e piorando as principais projeções para a economia brasileira. Há uma mudança de humor recente do ambiente externo, com o aumento dos juros futuros dos títulos americanos, e uma crescente desconfiança com o intervencionismo do governo Bolsonaro em empresas estatais.

O banco Itaú subiu de 4% para 5% a projeção para a taxa Selic, e piorou de -2,1% para -2,5% a estimativa para o resultado primário, por causa do pagamento do auxílio emergencial. Mesmo que a PEC Emergencial seja aprovada, as medidas de contenção de despesas só começariam a ter algum efeito a partir de 2023, segundo o banco. Ainda assim, o Itaú manteve estimativa de alta de 4% no PIB deste ano.

O Bradesco subiu a projeção de inflação de 3,5% para 3,9% e para o dólar, de R$ 5,00 para R$ 5,30 no final do ano. Segundo o banco, as sondagens setoriais apontam para retração no PIB do primeiro trimestre, com o agravamento da pandemia e o aumento das medidas de restrição à circulação de pessoas. Para o PIB do ano, o banco manteve expectativa de crescimento de 3,6%.

Já a Ativa Corretora está mais pessimista. A projeção para o PIB de 2021 caiu de 3,1% para 2,9%, e para o ano que vem, de 2,5% para 2,4%. Também houve aumento nas estimativas para inflação e para a taxa Selic em 2021.

Na semana que vem, o IBGE vai divulgar o PIB do quatro trimestre, que deve ficar em torno de 2,5%, na comparação com o terceiro, segundo o Bradesco. Será um olhar pelo retrovisor, porque já houve desaceleração da atividade neste início de 2021.

Saída de Brandão era previsível, ficarão apenas os submissos

O Banco do Brasil negou agora à noite a renúncia de André Brandão do Banco do Brasil. Mas, na verdade, o que se pode dizer da saída dele é que são favas contadas porque ficarão apenas os integrantes da equipe econômica que sejam submissos ao comando do presidente Jair Bolsonaro. Se não estava claro antes para alguns, ficou absolutamente explícito pela maneira como foi defenestrado o presidente da Petrobras, Roberto Castello Branco.

André Beltrão foi indicado após a saída de Rubem Novaes e para dar um sinal de que o banco seria independente. Não durou muito. Na primeira proposta que fez de fechamento de agências e demissão voluntária, Bolsonaro teve mais um dos seus ataques. Ameaçou de público. O ministro Paulo Guedes tentou segurar. A maneira como Bolsonaro investiu contra Castello Branco, inclusive criticando o economista, diante do silêncio de Paulo Guedes, ficou claro para a equipe que o ministro da Economia não defende ninguém.

O primeiro de uma longa lista de demitidos foi Joaquim Levy. Numa manhã de sábado, Bolsonaro disparou contra ele numa fala rápida para os seus apoiadores. Disse que ele não abria a caixa preta do banco. Na verdade, ele queria colocar no colar o jovem economista, amigo dos filhos, Gustavo Montezano. Que também não achou a tal caixa preta, mas não se falou mais nisso.

O presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães, não precisa sair. Ele aceitou o papel de seguir fiel de Bolsonaro. Frequenta todas as lives, mesmo as que não aparece em cena. Viaja com o presidente e inventa qualquer linha de crédito e abre qualquer agência que o presidente manda. O que se diz em Brasília é que ele aguarda na fila para assumir a cadeira de Paulo Guedes. Se é que algum dia o Posto Ipiranga vai se cansar das humilhações diárias.

Caixa é diferente de Banco do Brasil e Petrobras. A Caixa não tem capital aberto. Então a manipulação lá não gera oscilação em mercado porque não há ações. Tem apenas um detalhe, usar politicamente a Caixa para gastos orçamentários já deu impeachment. No BB e na Petrobras o intervencionismo do presidente pode provocar outros problemas, como por exemplo ações de minoritários na Justiça.


Míriam Leitão: Bolsonaro escancara populismo econômico

A interferência na Petrobras é mais grave do que o mercado refletiu ontem no banho de sangue dos pregões. Ao fim, a Petrobras tinha perdido R$ 98 bilhões em dois dias. Outras estatais também caíram. O que Bolsonaro quer? Ele busca ganhos políticos. Faz demagogia com os caminhoneiros para usá-los politicamente, faz populismo com todos os que sentem no bolso o preço da gasolina ou do diesel, cria um inimigo e ainda manipula o imaginário brasileiro com a frase “o petróleo é nosso”. São estratégias conhecidas.

A ditadura chilena dos anos 1970 usou os caminhoneiros como arma política. A ditadura da Venezuela usou a gasolina barata, o inimigo externo e o nacionalismo para se eternizar. O jogo é conhecido dos candidatos a ditador.

Enquanto isso, para acalmar os investidores locais e internacionais, a equipe econômica tenta usar uma arma de destruição em massa de princípios da Constituição. A proposta é aprovar uma PEC como condição para dar o auxílio emergencial. Pela versão divulgada ontem ela elimina todas as vinculações constitucionais para saúde e educação. Veja-se este ponto que parece incompreensível. “Revogar o caput e os §§ 1º e 2º do art. 212 da Constituição.” Isso mata o Fundeb. Simples assim. E está lá como se fosse inofensivo no item quarto do artigo quarto da PEC. Todo o esforço brasileiro de criar um fundo de valorização do ensino básico, que foi debatido intensamente no ano passado, seria apagado com uma penada. Ora, senhores da equipe econômica, na democracia uma mudança dessa profundidade não pode ser feita na chantagem da necessidade de um auxílio emergencial, nem no afogadilho de uma votação marcada para daqui a dois dias.

Mas há outras encrencas nas últimas decisões de Bolsonaro que vão bater no bolso do contribuinte. Pela Lei de Responsabilidade Fiscal (artigo 14) qualquer aumento de subsídio tem que ser compensado com elevação de imposto. Não basta cortar uma despesa. Está na lei que a compensação tem que ser: “aumento de receita proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributos.” Então aqueles R$ 4 bilhões a R$ 5 bilhões a mais de gasto pela redução dos tributos do diesel e do gás de cozinha terão que ser compensados com novo imposto. E mais. Pela Lei das Estatais, se qualquer estatal tiver prejuízo por uma medida tomada pelo governo, o Tesouro terá que compensar a empresa. Se a Petrobras tiver perdas de caixa com uma nova política de preços o Tesouro terá que compensá-la. No fim, quem pagará a conta do populismo econômico de Bolsonaro é o contribuinte.

Trocar presidente de estatal é natural. Passar por cima de leis, normas e estatutos e ainda acusar o que sai de “jogar contra o país” não é natural. A ironia é que Roberto Castello Branco fez parte do trio inicial do programa econômico do candidato Jair Bolsonaro. Era Paulo Guedes, ele e Rubem Novaes, ex-Banco do Brasil. Castello Branco entregou exatamente o que foi pedido a ele. Isso é que deixou economistas do mercado perplexos:

— Se Bolsonaro fizer metade do que ele falou nos últimos dias, o risco fiscal vai aumentar e o BC será forçado a subir juros em março pela confusão causada pelo presidente da República — avaliou um economista que influencia muita gente no mercado.

O consumidor está bravo porque o combustível subiu muito este ano. Gasolina 34%, e diesel, 27%. Mas no passado, com a pandemia, houve queda de 13% no diesel e redução de 4% na gasolina. Em parte, os preços estão subindo agora por causa do câmbio. O real é uma das moedas que mais perdem valor diante do dólar e isso é resultado direto das crises criadas pelo próprio presidente. O dólar sobe e bate em diversos preços que batem no bolso dos consumidores. Veja-se o caso da energia de Itaipu até agora presidida pelo general Joaquim Silva e Luna, que vai para a Petrobras. A energia de Itaipu subiu entre 35% e 40%. Ela é corrigida pelo dólar. O assunto não gerou polêmica porque Itaipu reajusta os preços automaticamente, a distribuidora repassa para o consumidor, que culpa a concessionária. A Itaipu do general Luna subiu seus preços pela mesma lógica que Castello Branco.

Bolsonaro desde o início sabotou o projeto liberal que vendeu na eleição. Agora foi além no estelionato. Ele escancarou seu populismo econômico, um caminho que sempre termina em crise.


Míriam Leitão: Aos que não brincaram o carnaval

Hoje é terça de carnaval e não haverá blocos com aquela alegria resistente querendo esticar o que já estaria acabando. Não houve desfile no sambódromo, as baterias não tomaram os corações ao passar com seu ritmo e cadência, nem as baianas rodaram sua dança envolvente. As costureiras não bordaram o brilho da avenida. Os foliões que saíram não encontraram respaldo. Não é engraçado vestir-se de alguma paródia, se a morte à espreita na esquina não é uma fantasia.

Houve aglomeração e escutei no domingo a interminável festa de um vizinho, mas mais interessante é o silêncio de quem não foi para a rua, mesmo sendo apaixonado pela folia. Por isso dedico essa coluna aos que não brincaram o carnaval de 2021. É admirável a festa do avesso, da ausência, dos que demonstram respeito ao outro. Cada folião que não saiu, que dispensou a fantasia, que se enfeitou para si mesmo, estava celebrando a vida.

O Rio é do folguedo momesco. Eu admiro essa alegria como parte essencial da natureza do país apesar de me sentir estrangeira às vezes. No Rio, o carnaval de rua renasceu há vários anos em blocos de nomes tradicionais, divertidos e poéticos. Os trios elétricos da Bahia. Os ranchos de Belém. O Largo da Batata, em São Paulo. Metódico, São Paulo tem se esmerado para que o seu sambódromo brilhe mais do que a Sapucaí. Vai vai que consegue. No Recife, o frevo com suas muitas pernas trançantes e suas sombrinhas coloridas avisou ao galo que não cante de madrugada. Em Brasília, o pacotão ficou embrulhado. Em Salvador, o Pelô fez silêncio. Manaus. Manaus é o centro da nossa dor.

Ninguém melhor que Maria Bethânia refletiu o momento ao pedir “vacina, respeito, verdade e misericórdia”, na live em que mostrou a força inteira da sua voz de rainha. Ela reclamou da saudade do público distante, mas esteve tão próxima. Fez o que sempre soube fazer no canto, na poesia, na mensagem direta. Bethânia é opinião. Miguel em queda lembrava o passado que não corrigimos. Cálice parecia ter sido composta na véspera. As raízes do Brasil estavam todas no canto da filha de Dona Canô.

O folião desgarrado que volta pra casa, lúcido e triste, como diria Manuel Bandeira, com sua fantasia um pouco estragada pelos excessos, sempre me pareceu a melhor poesia do carnaval. A alegria se esbaldou, o canto aquietou, os pés já não pulam, o grupo se desfez e essa volta lenta, ainda marcado da festa, é a imagem que sempre prendeu meus olhos quando andei pela cidade, nos carnavais. Hoje, se houver algum folião voltando com restos de festa, não será uma imagem poética. Eu veria, se eu o visse, a pessoa que decidiu que o risco coletivo não é importante.

Eu nasci numa cidade que tem hoje 92 mil habitantes. Com quantas caratingas se conta a dor de hoje do Brasil? Que métrica mediria o que temos vivido? As mortes somadas não informam tudo sobre o sofrimento desse tempo. Houve também as esperas longas e angustiadas por um parente, um amigo, uma pessoa amada, houve a aflição de contar os dias, isolado num quarto, temendo que o ar fugisse dos pulmões e, ainda, a espera ansiosa pelo resultado dos testes. Houve a solidão e a saudade.

Na história dos carnavais haverá a cicatriz de 2021. Esse lapso, intermédio, ausência, parêntesis será o que de melhor teremos a contar nos anos vindouros. A folia recolhida foi o maior presente dado ao outro. Ó abre alas que vamos passar sem o carnaval. Momo foi levado a uma república. Destronou-se. Reinará no futuro, em outros carnavais.

O pior é a festa dos incautos, insensatos e insensíveis, dos que desprezam o risco, não por coragem, mas pela covardia de expor outros ao perigo, dos que por estupidez duvidam da ciência, fruta madura da inteligência humana.

Há muito sobre o que escrever no Brasil, numa coluna de jornal. Temas nunca me faltaram, nos quase 30 anos que aqui pontuo. Hoje a melhor notícia é a festa que não houve, a fantasia não vestida, os foliões que não foram vistos por aí. Aos que se recolheram, mesmo tendo alma carnavalesca, todo o meu respeito nessa terça magra do carnaval de 2021.

Bethânia mistura palavra falada e cantada. Declama e canta. Estilo dela. Opinião. Buscou Cecília Meireles para avisar que “a primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la”.


Míriam Leitão: Crise de produção e preços em alta

Os preços estão subindo fortemente dentro da indústria e há uma crise de suprimento. Altas da ordem de 60% no aço e de 63% nas resinas para plásticos. Embalagens continuam em falta. E os chips. Resultado de uma forte desorganização produtiva. O IPA industrial subiu 30% em 12 meses, e só em janeiro chegou a 4,48%. Para os consumidores também as contas estão chegando, os planos de saúde, combustíveis e material de limpeza sobem. Os preços dos alimentos vão cair porque a safra foi boa, mas menos do que se esperava. O IPCA mensal vai ficar em níveis baixos, mas o índice anual vai subir.

Dentro da indústria, o que está acontecendo é definido pelo economista José Roberto Mendonça de Barros, da MB Associados, como “pancada de custos e falha no suprimento”.

— Quando a economia parou, aqui e no mundo, todas as grandes aciarias desligaram fornos. Foram cinco desligados. Para religar, leva 60 a 90 dias, porque se perde os refratários internos. Isso gerou um atraso que não se tirou até hoje. Quando a demanda voltou em junho não tinha como entregar. Na metalurgia, muitas plantas anteciparam a manutenção preventiva. Nas embalagens, falta caixa de papelão, assim como latas de cervejas, porque no Brasil 70% do papelão é produzido por matéria-prima dos recicladores, as carrocinhas das grandes cidades — diz José Roberto Mendonça de Barros.

Os produtores de vidro durante a crise tiveram um alto custo. Para não parar os fornos eles produziam, quebravam os vidros e retomavam a produção. Agora tem demanda, mas a barrilha é importada, o dólar subiu, e o gás teve alta de preços, explicou uma fonte do setor.

— Falta frasco de vidro, garrafas, vidro para conservas. Garrafas para cerveja, se houver aumento de demanda, não têm para entregar —diz Mendonça de Barros.

Quanto disso vai ser repassado para o consumidor? A demanda vai cair neste primeiro semestre e deve segurar parte desse repasse. O IPCA de janeiro vai ser divulgado hoje e não será alto. Deve ficar entre 0,30% e 0,35%, mas ao longo do primeiro semestre o índice baterá em 6,5% em 12 meses, explica o professor Luiz Roberto Cunha. É que no ano passado os índices foram baixos ou negativos.

— A alimentação está desacelerando gradualmente, mas tem pressão de diesel, o vestuário está em alta. Em fevereiro, deve pesar a educação e tem uma certa confusão na energia elétrica que agora está sem a bandeira vermelha, mas que durante o ano vai subir — diz Luiz Roberto Cunha, da PUC-Rio.

Em 2020, o consumo de energia caiu. Por mais estranho que pareça, consumidor vai pagar mais por isso. A distribuidora teve prejuízo com a queda da demanda, e agora a conta vai para o consumidor. As empresas explicam que, para dar garantia de fornecimento, elas compram antecipadamente a energia. Se a demanda cai, ela continua pagando por essa energia. Em resumo: o consumidor sempre paga a conta.

A economia está vivendo um período bem confuso. Recessão com choque de custos, falta de produto e dificuldade de importar.

— Quando a demanda voltou, o dólar estava em R$ 5,50 e faltava navio. No mundo inteiro, houve aumento de pedidos e faltou navio. O preço do frete subiu. O preço de transportar por contêiner multiplicou-se por quatro — diz Mendonça de Barros.

Para o consumidor, o começo do ano sempre tem vários gastos extras, mas desta vez a pressão vem em momento de queda de renda e de elevação da incerteza. Além da energia, que pode ter reajustes de dois dígitos durante o ano, os planos de saúde estão cobrando a conta e a compensação por terem reajustado menos no ano passado.

Tanto para o consumidor quanto para o produtor industrial a situação está complicada. A desorganização produtiva fez com que em muitos casos o produto esteja pronto, esperando apenas uma peça. É por isso que há 250 mil carros vendidos e não entregues e 150 mil motos. E há coisas surpreendentes.

— Falta chip no mundo inteiro. Aqui e em outros países. Todo mundo trabalhando em casa houve uma demanda extra por equipamentos de informática. E como os chips para informática são mais sofisticados do que os que vão nos carros, os fabricantes mudaram a produção e agora falta produto — diz José Roberto.

Mendonça de Barros diz que “está sempre acontecendo coisa nova ruim no Brasil”. Desta vez, contudo, há um grau exagerado de confusão.


Míriam Leitão: O diplomata que virou pária

No Itamaraty, a expectativa é a de que Ernesto Araújo deixe de ser ministro em março. Seria um alívio para várias gerações de diplomatas, porque ele feriu normas essenciais da boa diplomacia. Um dos problemas para tirá-lo é saber para onde ele pode ser removido. Ele gostaria de ir para Paris, mas o risco é o governo de Emmanuel Macron não dar o agrément, que é o consentimento do país que recebe. Outro risco é o de constrangimento em sessão do Senado, que recentemente rejeitou o nome do embaixador indicado para Genebra, num recado para Araújo. Por isso, uma das possibilidades aventadas é a OCDE, posto que não exige sabatina, já que é uma espécie de embaixador alterno.

Há uma maioria sólida de adversários de Araújo dentro da carreira, mas os últimos acontecimentos aumentaram a indignação. Os olhos dos diplomatas brasileiros acompanharam com estupefação a atitude de Ernesto Araújo na cena em que Jair Bolsonaro berrou palavras sórdidas contra jornalistas numa churrascaria. O ministro aplaudiu, deu gargalhadas, gritou “mito”. Isso provocou repulsa generalizada. Não é nem mais uma questão de gostar ou não do governo, disse uma fonte diplomática, aquilo aviltou a própria Casa, até porque houve matérias no exterior descrevendo a baixeza da cena.

Ernesto Araújo tem também adversários fora do Itamaraty. O vice-presidente Hamilton Mourão recentemente falou que ele sairia, mas com isso lhe deu uma sobrevida. Na entrevista ao “Valor”, publicada na edição de sexta-feira, o senador Ciro Nogueira, presidente nacional do PP, define o centrão como “estabilizador do governo” e diz que “a condução do Itamaraty hoje prejudica o Brasil” e por isso “tem que mudar”.

Os críticos de Ernesto podem ter motivos diversos, mas existem fatos concretos contra ele. Na área científica do governo, a convicção é que o Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA), que acaba de chegar da China para a Fiocruz, demorou semanas a mais pelos atritos criados pelo ministro com os chineses. No caso da Índia, a trapalhada de anunciar a ida do avião antes de conversar com as autoridades indianas causou o maior ruído no país fornecedor. A diplomacia existe para aplainar terrenos, desatar nós, dissolver conflitos. O pior problema não são os delírios persecutórios de Ernesto Araújo, mas o prejuízo que ele dá aos cofres públicos, anulando o empenho de servidores qualificados para o trabalho diplomático.

— A grande maioria dos nossos colegas acha que ele não tem o direito de destruir o Itamaraty como tem feito. O problema não é ideológico. O caso dele é clínico. Já há claros sinais precursores de que o tempo dele está terminando. O problema é achar um posto que o aceite. Ele queria que o Brasil fosse um pária, ele se tornou um pária — resumiu uma fonte diplomática.

Naquela série de tuítes sobre o assalto ao Capitólio, Ernesto Araújo fez um raciocínio tortuoso, quase justificando a violência com a hipótese, nunca confirmada, de “infiltrados”. Definiu os invasores do Congresso como “cidadãos de bem” e ainda disse, num comentário descabido, que “grande parte do povo americano se sente agredida e traída pela classe política”. Queria, claro, transpor para o Brasil. Esse episódio, o reiterado embate com a China, as trapalhadas frequentes com vários parceiros obrigam muita gente a consertar seus estragos. Suas ações têm um amadorismo que envergonha uma diplomacia outrora orgulhosa do seu profissionalismo.

Quem poderia ir para o lugar de Ernesto Araújo? Há quem fale na ministra da Agricultura, Tereza Cristina, se a escolha for de fora da carreira. Ela impressiona os diplomatas pela sua habilidade em negociação, apesar da incapacidade de entender o cerne do problema ambiental, que será mais importante durante o governo Biden. Se for da carreira, há pelo menos um que faz campanha com bajulações explícitas, e há os que têm chances de reequilibrar o Itamaraty. Existem muitos que preferem distância do atual governo.

Ernesto Araújo tem levado doutrinadores extremistas para falar para os diplomatas jovens e estudantes do Instituto Rio Branco. Não tem tido sucesso nessa tentativa de lavagem cerebral, como se viu pela última turma, que escolheu o poeta João Cabral de Melo Neto como patrono. Ernesto Araújo, ao violentar tanto as normas da boa diplomacia, tem produzido sua antítese. Está aumentando no Itamaraty a defesa da diplomacia como carreira de Estado.


Míriam Leitão: Festa, mentiras e videotapes

Quem tem 35 prioridades no meio de uma crise desta dimensão não tem nenhuma. Mas foi essa a lista que o presidente Jair Bolsonaro entregou ontem ao Congresso. Quem acha que o importante é o homescholling não tem ideia da tragédia que está acontecendo na educação brasileira, com 47 milhões de estudantes longe das escolas. Quem acha que o importante é liberar armas num país em que há um milhão de civis armados, como este jornal informou, quer alimentar a formação de milícias no Brasil.

Na abertura do ano legislativo, a oposição recebeu o presidente com gritos de “genocida” e “fascista”, e os governistas responderam com “mito, mito”. O presidente Bolsonaro, diante disso, afirmou que foi deputado por 28 anos e nunca desrespeitou as autoridades. Ele disse que fuzilaria Fernando Henrique e exaltou torturadores de Dilma Rousseff. Só para citar duas agressões das muitas com as quais ele cimentou sua notoriedade. No seu discurso, ele falou uma coleção de mentiras. O espaço é curto para listá-las. Falarei de uma. Bolsonaro disse que concedeu mais títulos de terra do que os distribuídos nos 14 anos anteriores. Mentira. A média anterior era três mil títulos distribuídos por ano. A pesquisadora Brenda Brito, do Imazon, conta que em 2019 houve “um apagão fundiário”. Foram apenas seis títulos. No blog, publiquei nota com gráficos. Os dados foram obtidos pela ONG graças à Lei de Acesso à Informação.

Os novos presidentes da Câmara e do Senado, o deputado Arthur Lira (PP-AL) e o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), foram ao Palácio do Planalto ontem cedo e fizeram declaração pelo combate à pandemia e seus efeitos econômicos. A cena pública estava correta, as palavras eram boas, mas era impossível não compará-las com o que fora feito pelo deputado Arthur Lira e outros parlamentares e ministros.

A festa espalha vírus promovida pelos vitoriosos da Câmara dos Deputados, com a presença de dois ministros, foi um ultraje. Organizar esta festa é crer na impunidade. Participar dela, sem máscara, dançando e se aglomerando entre 300 pessoas é uma demonstração de que para esses ministros e parlamentares a vida dos brasileiros não tem valor. A festa em plena pandemia, como escrevi no blog, é um tapa na cara do país.

A primeira urgência na pauta do Congresso é ter um orçamento, porque sem isso alguns serviços essenciais podem entrar em colapso. O Ministério da Economia quer o orçamento aprovado até março. Na lista do Ministério há também a PEC Fiscal e a aprovação de marcos legais. Entre eles, o do petróleo, que permitirá que se possa ter concessão em áreas onde há o modelo de partilha. Os outros marcos são de ferrovias, cabotagem e do setor elétrico.

Nenhum desses é simples. Para se ter ideia, o senador Rodrigo Pacheco prometeu colocar hoje para votar a MP do setor elétrico, antes que ela caduque na semana que vem. Ela reduz os incentivos às novas fontes renováveis, solar, eólica, biomassa, e cria um encargo na conta de luz para financiar a interminável e caríssima Angra 3.

A atenção de Jair Bolsonaro está em outros pontos da sua lista de prioridades. Quer aumento de armas nas mãos dos extremistas que o apoiam e a retenção de crianças e adolescentes em casa, sob o argumento medieval de que só os pais sabem o que deve ser ensinado.

Há momentos no Brasil em que a dúvida é quanto mais podemos piorar. Certamente um passo na decisão da piora aguda é pensar no nome da deputada Bia Kicis (PSL-DF) para a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Ela é protagonista de uma série infindável de agressões ao direito, à ciência e à democracia. Propagadora de mentiras. Em plenário, defendeu a intervenção militar em caso de divergência entre poderes, dizendo que este é o sentido do artigo 142. Está sendo investigada por envolvimento em atos que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo. Que uma pessoa que proponha rasgar a Constituição seja cogitada para a Comissão que deve zelar pelos princípios constitucionais é uma anomalia que ilustra os tempos atuais.

O senador Rodrigo Pacheco, lembrando JK, falou muito em pacificação. Soa bonito. Juscelino fez alianças com adversários pela frente ampla, mas sabia com quem não deveria buscar a pacificação. Com a ditadura militar, que o cassou e que inspira Bolsonaro.


Míriam Leitão: Duas Casas de costas para o país

O Congresso virou de costas para a sociedade nesta eleição. Enquanto o país está sendo devastado pela pandemia, atingido pela desastrosa gestão da crise, açoitado pelas ofensas do presidente Bolsonaro, a Câmara e o Senado, como se estivessem em outro planeta, negociavam com olhos em outras questões. Houve ecos, alguns poucos, do que realmente aflige o Brasil, mas o que pavimentou o caminho dos candidatos governistas foram verbas e cargos. Os eventos da sucessão no Congresso terão reflexos na política e na economia.

Na política, houve uma mudança de curso importante, diz o cientista político Jairo Nicolau. O governo Bolsonaro aderiu nesta eleição à construção de uma maioria com base em partidos. Isso significa uma reversão daquela ideia inicial, fracassada por inviável, de ignorar os partidos e fazer acordos com as bancadas. É um equívoco avaliar que houve agora a adesão de Jair Bolsonaro ao centrão, ao fisiologismo e à velha política. Ninguém adere ao que sempre foi. Esse é o seu grupo. Bolsonaro é o que ele definia como “velha política”. Pensou que poderia costurar alianças diretamente com as bancadas temáticas. Não deu certo, porque não daria mesmo.

Bolsonaro fez explícita intervenção no Congresso para, desta forma, afastar o fantasma do impeachment. No Senado, conseguiu um feito impressionante. O senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) foi eleito com convincente maioria, juntando votos dos seguidores de Bolsonaro e dos partidos de esquerda. Pacheco conseguiu também tirar do maior partido, o MDB, a presidência da Casa. E o fez com apoios do próprio MDB, que abandonou sua candidata Simone Tebet. Pacheco falou em pacificação, sendo o candidato de um presidente que fez do mote da campanha o gesto de armas apontadas. E elas têm atirado.

A equipe econômica via o dia de ontem como uma vitória que permitirá que ela siga com a sua pauta de reformas. O problema é que são reformas de Itararé. As propostas feitas são fracas e não terão impacto fiscal importante. E a tendência é agora de aumento de gastos, por vários motivos.

Uma das fontes de despesa serão os compromissos assumidos com os deputados e senadores que frequentaram a sala do ministro Luiz Eduardo Ramos, onde foi instalado um balcão de negócios que custarão bilhões de reais. Havia outros balcões em outros ministérios. Em alguns deles se ofereceu recursos não rastreáveis porque extraorçamentários. Essa farra deu ao governo a vitória e uma conta para pagar.

O Congresso vai também aprovar uma nova etapa do auxílio emergencial. Os quatro candidatos que disputaram ontem falaram isso nos seus discursos. Como a pandemia não acabou, e até piorou, ao contrário do que a equipe econômica acreditava que estaria acontecendo neste momento, será necessário mesmo. Já deveria ter sido proposto pela própria equipe.

Não haverá contrapartidas suficientemente fortes para esse novo gasto. A PEC emergencial tem vários gatilhos para serem disparados em momento em que for preciso conter gastos. Mas o governo desidratou a proposta que havia sido incialmente formulada pelo deputado Pedro Paulo, como lembrou ontem em conversa com o blog o economista Sérgio Vale. Um dos pontos é o não aumento dos benefícios vinculados ao salário mínimo, porém isso só poderá ser acionado no ano que vem, porque neste já foram corrigidos.

Das outras reformas, de que o mercado financeiro e a equipe econômica tanto falam, a administrativa foi esvaziada pelo presidente antes de ir para o Congresso, a tributária foi ignorada pela própria equipe que mandou apenas a fusão de PIS e Cofins. A privatização da Eletrobras, o novo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, diz que é contra.

É da natureza do centrão ser governista. Foi nos governos Fernando Henrique, Lula, Dilma e Temer. Mas seu apoio é negociado a cada projeto e seu preço costuma ser alto. Curta e baixa é a sua lealdade. No racha do DEM, uma parte voltou à sua natureza de centro fisiológico, abandonando a ideia de ser centro programático entre polos. O PSDB, com raras exceções, ficou no muro onde sempre esteve.

É da natureza do centrão ampliar gastos. Portanto, a vitória de ontem de Bolsonaro foi mais uma derrota para a equipe econômica. O pior, contudo, foi essa dissonância entre o sofrimento do país e os acordos opacos feitos pelo Congresso.


Míriam Leitão: Ação deliberada de espalhar vírus

Crime de epidemia. Essa é a acusação feita a Jair Bolsonaro na representação encaminhada à Procuradoria-Geral da República para que ele ofereça denúncia contra o presidente. “Da mesma forma que alguém que agrave uma lesão existente responde por lesão corporal, presidente que intensifica a epidemia existente responde por esse crime. Jair Bolsonaro sempre soube das consequências de suas condutas, mas resolveu correr o risco.”

Esse crime é previsto no artigo 267 do Código Penal. “Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos” e a punição é prisão de 10 a 15 anos, podendo agravar-se a pena se houver morte. Torna-se então crime hediondo.

Houve outras ações às quais essa representação se refere e que apontaram vários artigos do Código Penal que ele teria infringido, como o 132, que é pôr em perigo a vida ou a saúde de outrem.

O grupo de procuradores aposentados — alguns exerceram até recentemente postos elevados no Ministério Público — e um desembargador que entrou com a ação apoiou-se em pesquisa. Recentemente publicado, o estudo faz uma linha do tempo dos atos e palavras do presidente da República nesta pandemia, para assim mostrar que houve uma ação deliberada do presidente de contaminar o máximo de pessoas, na suposição de que assim se atingiria a tal “imunidade de rebanho”.

A representação foi apresentada ao Procurador-Geral da República pela, até recentemente, procuradora federal dos Direitos do Cidadão Deborah Duprat, pelo ex-PGR Claudio Fonteles, por dois ex-procuradores federais dos Direitos do Cidadão, Álvaro Augusto Ribeiro Costa e Wagner Gonçalves, o subprocurador-geral aposentado Paulo de Tarso Braz Lucas e o desembargador aposentado do TRF da 4ª Região Manoel Lauro Volkmer de Castilho.

O começo da cronologia que apresentam é o dia 7 de março. Havia seis infectados no Brasil. O presidente foi a Miami, área de risco para a pandemia. “No dia 15 daquele mês, já de volta ao Brasil, convoca e participa de manifestações políticas com grande aglomeração, sempre sem máscara, tendo contato físico com manifestantes, desrespeitando a recomendação da quarentena após retorno. E, mais grave, pelo menos desde a véspera do evento, ou seja, em 14 de março, já era pública a informação de que parte da comitiva presidencial tinha sido infectada pelo novo coronavírus. Portanto, Bolsonaro foi para a manifestação ciente de que poderia ser um vetor de propagação de um vírus até então de baixa presença no território nacional.” A longa fila de eventos em que o presidente estimulou a contaminação, à qual a representação se refere, está na pesquisa CEPEDISA/FSP/USP e Conectas Direitos Humanos.

O mundo inteiro está sendo atingido pela mesma tragédia sanitária. Mas o ponto sustentado pelos autores da ação é que aqui houve mais. “No caso do Brasil, ao evento natural somou-se a ação criminosa de um presidente da República, que expôs, desde o início da pandemia até os dias atuais, a população a um risco efetivo de contaminação”, diz o texto da representação.

O procurador-geral Augusto Aras pode simplesmente ignorar o documento em sua mesa? Não pode. Ele pode arquivar, mas ele tem obrigação de tomar providências. Ignorar uma representação como essa é uma impossibilidade institucional, me explica um especialista.

Conversei com outro procurador que permanece no serviço público e perguntei que chances tem essa ação de avançar. Aras, como já disse explicitamente, acha que essa não é a sua função, apesar de ser. O problema é que o próprio Aras pode ser acusado de prevaricação, por deixar de cumprir seu dever. E pode ser acusado pelos seus colegas.

— O artigo 51 da lei complementar 75/1993, lei orgânica do MPU, diz que “a ação penal pública contra o procurador-geral da República, quando no exercício do cargo, caberá ao subprocurador-geral da República que for designado pelo Conselho Superior do Ministério Público” — explicou um procurador.

Aras não tem maioria no CSMP. A ação seria diretamente levada ao Supremo Tribunal Federal. Aras tem esperança de ser indicado para uma vaga no STF. Concorre com outros dois fortes candidatos, o ministro da Justiça, André Mendonça, e o ministro do STJ Humberto Martins.

Bolsonaro se blindou, mas tem tido, como diz a representação, inúmeras “condutas criminosas” durante esta pandemia. E nessa ação foi acusado de crime grave.


Míriam Leitão: Mundo paralelo da equipe econômica

No ano passado o mercado de trabalho encolheu, fortemente. É até óbvio. Aqui e no mundo a pandemia foi devastadora para o emprego. A equipe econômica de Jair Bolsonaro quer fazer crer que houve criação de emprego e que ao fim do ano o país tinha 142.690 de vagas a mais com carteira assinada do que em 2019. No mesmo dia, no mesmo governo, a informação do IBGE é que no trimestre terminado em novembro havia 3,5 milhões de trabalhadores a menos com carteira assinada em relação a 2019. No mercado como um todo, a queda é de 8,8 milhões de pessoas ocupadas.

O Caged, divulgado pelo Ministério da Economia, registra as demissões e contratações do mercado formal. O IBGE faz a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). Eles medem coisas diferentes, mas quando o IBGE diz que são empregados com carteira está, teoricamente, medindo a mesma parcela do mercado de trabalho que o Caged. Em algum momento, deveriam convergir, mas estão discrepantes.

O ministro Paulo Guedes anunciou o número do Caged, que registrava perda de emprego, 67 mil em dezembro, mas que terminava o ano com o saldo positivo. E o fez repetindo discurso político com comparações com o pior período petista. 

Uma perda de tempo, porque ele poderia até contar uma boa história comparando esse ano singular que foi 2020 com o que poderia ter sido. As medidas do governo de fato atenuaram as demissões e a recessão. O PIB deve ter uma queda em torno de 4,5%. As previsões iniciais eram bem piores. Mas não há como negar que foi um ano terrível para o mercado de trabalho.

O economista Daniel Duque, do Ibre/FGV, que foi um dos primeiros a alertar para a diferença que estava acontecendo entre o Caged e o IBGE, tinha no começo duas hipóteses para a discrepância: subnotificação e metodologia.

— A subnotificacão aconteceu mais no meio da pandemia, lá para abril a junho — explicou.

O Caged é feito a partir da informação das empresas. Muitas fecharam as portas e nada informaram. Houve dificuldade de registro também por causa de mudança na metodologia que houve em janeiro do ano passado. Emprego intermitente antes não era obrigado a informar. Agora no novo Caged é. Há outras alterações que parecem confusas até para os especialistas.

— A questão toda é que quando a gente tem uma série é preciso ter referência sobre como ela se comporta. O Caged sempre teve correspondência boa com o PIB e nível de atividade. Quando acelera, tem emprego e vice-versa. O novo Caged a gente não sabe mais a referência. Num ano de queda do PIB, há geração líquida de 142 mil vagas — diz Daniel Duque.

E o IBGE, o que disse ontem? A Pnad mostra dados trimestrais. De setembro a novembro o Brasil chegou a uma taxa de 14,1% de desocupação, ligeiramente menor do que no trimestre anterior terminado em agosto. Mas representando 14 milhões de pessoas desempregadas, ou seja, procuraram emprego e não encontraram. Com a pandemia, a necessidade de distanciamento social, as medidas restritivas mais severas, muita gente nem procura emprego. Então não entra na estatística. Os desalentados, que nem pensam em procurar, são 5,7 milhões. Há uma grande tragédia no mercado de trabalho. Não adianta agarrar-se a um dado que deu positivo para elogiar-se e atacar o adversário político. Ademais, Ministério da Economia deveria ser técnico, e não ficar todo o dia atravessando a rua para brigar do outro lado.

Daniel Duque ajuda a entender essa complexidade que está sendo medir o que acontece no mercado de trabalho no meio da pandemia:

— Pnad e Caged contam histórias muito diferentes. Desde o início da pandemia, o Caged mostrava uma queda muito menor do emprego, e depois passou a mostrar uma recuperação mais forte do que o dado da Pnad para o emprego formal. O IBGE, quando mostra a recuperação do emprego, é principalmente do informal. Eu tendo a acreditar mais na Pnad Contínua por vários motivos. Um deles é que tem maior correspondência com a atividade econômica.

Equipe econômica que se agarra a um número parcial positivo e não vê o todo não ajuda muito a enfrentar a crise. Até porque nós estamos em novo agravamento do número de mortes e contágios, e há muita incerteza na economia. O país tem um outro ano duro pela frente em que a capacidade de formulação de políticas para atenuar os problemas será novamente exigida.