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Míriam Leitão: Os oásis em um ano áspero

Pareceu, em certos dias, que o deserto não acabaria. Mas houve pontos de refresco na caminhada. Quero falar deles nos derradeiros instantes de 2020. Na crise, as empresas fizeram doações em volumes nunca vistos. Diante da escalada da ameaça ao meio ambiente, empresas e bancos formaram coalizões com organizações sociais e anunciaram compromissos em defesa dos biomas brasileiros. Fundos internacionais avisaram que ou o Brasil protege a floresta, ou ficará fora da rota do capital.

A sociedade fez movimentos na direção certa, num ano torto. Médicos e enfermeiros foram à exaustão, mas fizeram a diferença entre vida e morte. A ciência venceu a sua luta mais difícil, enfrentando o vírus e o negacionismo. Saiu vitoriosa. Nunca tantos cientistas nos ilustraram tanto. Em tempo recorde, a ciência está entregando ao mundo as vacinas que abrem a janela para a esperança.

Emicida é parte das boas notícias do ano. É o futuro. Ver tantos negros no Theatro Municipal de São Paulo deu uma sensação de alívio a quem não se conforma com a partição da sociedade brasileira. Ver o jovem Leandro, como a mãe ainda o chama, levar todos a um passeio pela História para constatar que os negros estiveram presentes — o tempo todo presentes — nas grandes conquistas do país foi muito bom. Esse “reescrever” da História para corrigi-la é um deslumbramento. “AmarElo” foi um ponto de virada. A ideia de que se pode matar o mal de ontem com a pedra lançada hoje é tranquilizadora. Então nós podemos ainda corrigir o mal feito antes? Sim. Podemos começar de novo.

As empresas iniciaram o combate à desigualdade racial em seus quadros de funcionários, que ainda mantêm os negros nas funções com menor remuneração e nenhum poder, e os brancos no comando. Essa paisagem corporativa começou a mudar. O recrutamento ativo passou a ser levado a sério. Não por benemerência, mas por necessidade algumas empresas corrigem sua forma de pensar e de recrutar pessoas. Foi um avanço num ano distópico. Eu sei que muitos podem pensar: foi um avanço mas pessoas morreram por isso. George Floyd e João Alberto Freitas. É verdade. Mas no passado houve mortes que foram esquecidas sem mover a roda emperrada da História.

Donald Trump perdeu a eleição e isso foi muito bom. Sua escalada de desmonte da democracia americana, sua negação da mudança climática, seu estímulo aos supremacistas e governantes autoritários estão acabando. Joe Biden está compondo um governo com diversidade. A vice Kamala Harris reforça essa esperança. Na área ambiental e climática, Biden fez uma equipe que convenceu, segundo editorial do New York Times. O veterano John Kerry vai organizar a volta ao Acordo de Paris. A primeira indígena no governo, Deb Haaland, será a secretária do Interior. Terá poder sobre parques e florestas nacionais que antes estavam entregues a um lobista do petróleo. O setor de energia ficará com Jennifer Granholm. Como governadora de Michigan ela liderou a implantação de energia renovável. A lista dos acertos é longa.

Foi o ano em que as famílias, as empresas, os eventos, o jornalismo testaram o fim da distância. Não era mais preciso estar presente, para estar presente. Houve um salto digital enorme. Era possível antes, mas não era tentado nessa escala. Seminários, encontros, reuniões, entrevistas, festivais tudo feito pelas plataformas que nos agregam em pontos diferentes do país, e do mundo. Esse salto tecnológico deixará um legado. O mundo ficou mais estreito, entre quatro paredes e, ao mesmo tempo, ampliou-se.

O ano foi farto de eventos ruins, mas quero falar dos bons e me lembro dos aniversariantes. Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto teriam feito 100 anos. O centenário do nascimento desses dois gênios nos ajudou em 2020. As leituras ou releituras apontaram caminhos. Clarice ensinou em “Paixão segundo G.H.” que “a atualidade não tem esperança, a atualidade não tem futuro”, e isso nos dá esperança de que essa atualidade não se perpetue. E escreveu, como se intuísse a grande aflição que vivemos este ano. “Se eu gritasse uma só vez que fosse, talvez nunca parasse de gritar. (…) nós que guardamos o grito em segredo inviolável”. João Cabral foi ofendido no ano de seu centenário, no Itamaraty, local de seu trabalho como diplomata. Quem o ofendeu não será lembrado na história, mas o poeta sim, esse ficará. Estará nos rios que ele seguiu, nas pedras que ele amou, nos brasileiros desvalidos que ele homenageou com seus versos. “E ainda se me permite mais uma vez indagar: é boa essa profissão na qual a comadre ora está?” Se a mim fosse dirigida a pergunta, e não à rezadeira, diria que sim, o jornalismo viveu um grande ano, dando boas informações, num tempo confuso.

Cada pessoa sabe o que viveu, e houve perdas irreparáveis. Foi difícil sim, mas os oásis nos ajudaram na travessia. O calendário marca o recomeço daqui a algumas horas. Feliz Ano Novo.


Míriam Leitão: Mensageiro da morte

O presidente da República gosta da tortura. Ele a defende, tem prazer em falar dela e fustigar as vítimas. Foi o que Jair Bolsonaro fez ontem, mais uma vez, com a ex-presidente Dilma Rousseff. Ela foi brutalmente torturada aos 22 anos, sobreviveu e construiu sua vida. E agora, aos 73 anos, ouve do chefe de governo do país palavras de deboche e ironia sobre o seu sofrimento. É desumano e, além disso, é crime.

Bolsonaro comete crimes reiterados na cara do país e das instituições. Tortura é crime hediondo e ele tem prazer em falar disso, sempre tentando pôr em dúvida a palavra da vítima. Ele exalta torturadores e os tem por heróis. Bolsonaro defende a ditadura e já foi para a rua, como presidente da República, defender o fechamento do Congresso e do Supremo.

O que faz o país? Nada. Ele permanece presidente e continua usufruindo da sua extensa impunidade. Ele não foi cassado, em 2016, quando no plenário da Câmara elogiou o torturador a quem chamou de o “terror de Dilma Rousseff”. Deveria ter sido. Foi o que eu escrevi na época.

É crime. Mas também é sadismo. O prazer de sentir a dor do outro, de lembrar ao outro o seu sofrimento em meio a gargalhadas. Dilma o chamou de sociopata. E ele é. Somos governados por um sociopata. Dilma o chamou de fascista. E ele é. Dilma o chamou de “cúmplice da tortura e da morte”. E é o que ele tem sido ao longo de sua vida e de sua presidência.

O Brasil quer olhar o futuro. Um país com tantos desafios e dores precisa olhar o futuro. Bolsonaro está preso a um passado cujo pior lado ele se compraz em lembrar. Ele não elogia a ditadura militar por um eventual acerto econômico ou obra de engenharia. Ele gosta é da brutalidade com que eram tratados os que se opunham a ela. É isso que Bolsonaro faz questão de lembrar.

Essa sociopatia é a mesma que ele tem demonstrado ao longo de toda essa pandemia. Ele brinca com a tortura dos anos 1970, da mesma forma como nunca demonstrou solidariedade a quem estava perdendo entes queridos para o coronavírus. Expôs ao país durante o ano inteiro as palavras da sua perversidade. O “e daí?”, o “eu não sou coveiro”, o “todos vão morrer um dia”. Foram inúmeras as demonstrações de desprezo pela vida humana.

São quase 200 mil mortos ao fim de nove meses. Doloroso tempo. Tempo de temer a morte, de se preocupar com parentes adoecidos, de se proteger do vírus, de tentar respirar. Tempo de médicos e enfermeiros lutarem sem trégua num esforço épico pela vida humana. Tempo de cientistas mergulharem em laboratório para conseguir em período recorde vacinas contra o mal.

O presidente do Brasil continuou no seu achincalhe. Sabotou todas as orientações médicas, ofendeu quem se protegia, promoveu a disseminação do vírus, espalhou mentiras, estimulou invasão de hospitais, tentou manipular estatísticas, aparelhou o Ministério da Saúde e a Anvisa. Agora, depois de longo padecimento, os brasileiros veem cidadãos de inúmeros países, inclusive vizinhos nossos, serem vacinados. Enquanto isso o presidente diz que “não dá bola” para vacina.

O Brasil está chegando ao final de um ano em que o mundo inteiro viveu uma assombração. Nós vivemos duas. Como todos os outros países, tivemos que lutar contra um inimigo invisível que tentava tirar de suas presas o ar dos pulmões. Mas tivemos também um presidente que tripudiou sobre a dor do país como um verdadeiro mensageiro da morte.

Dilma, a jovem que foi torturada e presa por mais de dois anos, chegou ao governo em 2011 e virou comandante em chefe das Forças Armadas. Nunca usou o cargo para perseguir os militares. A Comissão da Verdade foi uma exigência do país, e o que ela buscou foi a informação sonegada por tantas décadas. Outros países fizeram antes essa procura e foram mais duros com os torturadores. Dilma entregou aos brasileiros a Lei de Acesso à Informação, uma importante arma da cidadania. Todos os que leem esta coluna sabem o quanto divergi de muitas decisões do governo dela. Concordar ou discordar das administrações é o cotidiano do jornalista. O fundamental na vida, contudo, são os valores. O sentimento de empatia, de solidariedade, de compaixão, Bolsonaro não tem. E isso ele prova quando fala sobre o passado da ditadura ou sobre o presente da pandemia.


Míriam Leitão: Uma disputa nada trivial no Congresso

Há muito mais em jogo na disputa do comando das duas casas do Congresso do que parece. As diferenças ideológicas entre partidos de centro, ou entre pessoas de um mesmo partido, podem parecer imperceptíveis. Mas, dependendo da escolha feita pelos parlamentares, o país elevará os riscos institucionais que correm na atual administração, ou terá a chance de reduzi-los.

A autonomia do Legislativo é parte fundamental da barreira contra as tendências autoritárias do presidente e de luta contra a sua agenda retrógrada. Não se espera um Congresso que faça oposição ao presidente, mas que ponha limites ao Executivo dentro do necessário e saudável processo de freios e contrapesos.

Bolsonaro, em 2020, no início da pandemia, participou de manifestações que pediam o fechamento do Congresso. Isso deveria ser o suficiente para convencer os partidos de oposição, ou os parlamentares que têm apreço pela democracia, de qualquer partido ou tendência, a ficarem longe de um deputado ou senador que tenha a marca de candidato desse presidente.

Não foi exagero, portanto, que a frente articulada pelo deputado Rodrigo Maia em torno do deputado Baleia Rossi tenha se apresentado com a bandeira da democracia. É disso que se trata. E quem deixou isso claro foi o próprio presidente, com a sua reiterada apologia da ditadura militar que vitimou o Brasil por duas décadas. Hoje o governismo representa também apoio às medidas de desmonte do aparato de proteção institucional das comunidades indígenas, do meio ambiente, da educação e da saúde.

A agenda do presidente Bolsonaro é estranha às necessidades urgentes do país. O Brasil precisa neste momento fortalecer Saúde, Educação e proteção ambiental. O presidente quer excludente de ilicitude para os policiais, a chamada escola sem partido, mineração em terra indígena e armamentismo. Nada mais estrangeiro às necessidades do país. A educação se transformou em uma tarefa mais urgente com a pandemia. A Câmara teve que lutar inúmeras vezes para derrotar as tentativas de tirar dinheiro do Fundeb. Ora eram ideias ruins do Ministério da Economia, ora eram truques do governo para levar dinheiro para instituições privadas.

Alguém pode considerar que, na economia, o candidato do governo teria mais aderência à agenda de reformas. Pode ser o oposto. A reforma econômica mais importante no Congresso é a tributária, e quem levou o projeto que tramitou na Câmara, mesmo diante de todo o desinteresse do governo, foi o deputado Baleia Rossi. Também no projeto econômico o candidato da frente não governista pode ser mais interessante. Diante da queda da sua aprovação, o presidente-candidato pode reagir com o ideário no qual ele acredita: o populismo fiscal.

O argumento do deputado Arthur Lira de que sua eleição daria ao governo um aliado para enfrentar a crise só ficaria de pé se o governo tivesse enfrentado a crise. Ele a agravou quando criou conflitos federativos, fez campanha eleitoral antecipada, provocou aglomerações, submeteu o Ministério da Saúde ao seu obscurantismo e mandonismo, sabotou medidas sanitárias de proteção, espalhou dúvidas sobre a vacina. Bolsonaro demonstrou durante toda a crise de 2020 que ele é impermeável ao conhecimento. Simplesmente não entendeu a natureza da crise, nem quis entender. Sua ação foi deletéria. Dar mais poder a este governo eleva exponencialmente o risco que o país corre em todas as áreas.

No Senado, abre-se uma possibilidade com a candidatura da senadora Simone Tebet. Ela é mulher num país de poder excessivamente masculino. É qualificada. A candidatura dela representaria sem dúvida um avanço, porque a senadora é também uma profunda conhecedora da Constituição, que tem sido tão afrontada nos últimos anos. Entre ela e os senadores homens pré-candidatos, dois deles líderes do governo no Congresso e no Senado, há uma enorme diferença.

Nas duas Casas agora se negocia. É natural que os cargos das mesas e das comissões estejam em disputa, porque isso dará à minoria maior ou menor possibilidade de atuação. O grande cenário, contudo, mostra que há algo muito mais valioso em jogo do que os cargos que o governo tem oferecido em troca de apoio aos candidatos dóceis ao Executivo.


Míriam Leitão: Uma ajuda à mão invisível

Por Alvaro Gribel (Míriam Leitão está de férias)

O economista Ricardo Paes de Barros enxerga uma desorganização tão grande na economia que o mercado sozinho não será capaz de ajustar. Por isso, defende que o Estado dê “uma mãozinha” à mão invisível. Em outras palavras, entende que é preciso não só gerar crescimento do PIB, mas criar programas de reinserção de mão de obra, para acelerar a volta ao trabalho da enorme massa de desempregados, subempregados e desalentados que cresceu durante a pandemia. Na educação, o setor também precisará de ajuda. O risco de evasão em todos os níveis de ensino será muito alto no ano que vem, especialmente no ensino médio, com impacto grande sobre a produtividade do país nas próximas décadas.

Paes de Barros acha que o auxílio emergencial teve pouco foco. Gastou em 10 meses o que seria gasto em 10 anos de Bolsa Família, mas sem fazer nenhum tipo de avaliação sobre a qualidade dessa despesa. Ele está preocupado com o fim do benefício a partir de janeiro, ainda mais com o aumento de casos da pandemia nesta virada de ano, que terá impacto sobre os serviços. Mas avalia que o governo precisaria concentrar esforços e despesas para fazer uma intermediação do trabalho, cruzando informações entre empregadores e empregados que possam gerar novas vagas.

— Precisaríamos chegar em janeiro com ajuda para 25 milhões, que são os desempregados, subempregados e desalentados. Não os 70 milhões do auxílio emergencial. Mas, mais importante do que isso, a gente precisaria criar apoio para que essas pessoas tenham emprego. A forma de fazer isso é com um programa nacional de reinserção do mercado de trabalho. Com uma intermediação eficaz, coordenada pelo governo federal, mas com participação do setor privado e capilaridade pelo país todo — afirma.

O economista defende a agenda de reformas, acha que o governo tem avançado em legislações infralegais, e diz que é crucial o programa de vacinação para superar a pandemia e voltar a ter um mínimo de normalidade na economia. Ainda assim, avalia que será preciso mais do que isso para lidar com o tamanho desta crise.

— É fundamental continuar com as reformas, parte fiscal, tributária, trabalhista, e resolver a crise sanitária. Mas isso só resolve se você acredita na mão invisível. A meu ver esta crise é tão grande que vamos precisar dar uma mãozinha. O teto de gastos é importante, mas o desafio aqui não é de dinheiro, é de organização e coordenação para um programa desse tipo.

Prioridade na educação

Paes de Barros não vê sentido no fechamento de escolas, ao mesmo tempo em que shoppings, bares e restaurantes estão abertos. A educação deveria ter sido a prioridade desde o início durante a pandemia. “Deveríamos estar trabalhando para retomar com a maior segurança possível a educação. Deixar o cérebro dessas crianças com as sinapses não se formando é um prejuízo maior do que o prejuízo econômico. Se for parar tudo, para tudo. Se não for parar, deveria ser a educação aberta. Obviamente com a devida proteção aos professores.”

Bolsas contra evasão

Um dos maiores desafios do setor de educação no ano que vem vai ser combater a evasão, especialmente no ensino médio. Ele defende a criação de bolsas de ensino e diz que será preciso também acolher os alunos, para que eles sejam reavaliados das perdas que tiveram em 2020, mas sem que isso gere um trauma que leve ao abandono escolar. “O esforço gigante é incentivar o aluno a voltar para a sala de aula, mas também será preciso trabalhar o acolhimento desse jovem. Saber receber, para que ele tenha uma sensação de pertencimento.”

Economia mais digital

O comércio chega a este Natal tendo atravessado barreiras que antes pareciam intransponíveis. Várias empresas conseguiram montar em tempo recorde um comércio eletrônico eficiente. As que haviam se preparado para isso, investindo em plataformas digitais eficientes, nadaram de braçada. Boutiques inventaram um modelo híbrido, de levar malas com produtos para seus clientes em isolamento. Houve muita perda, mas também muita criatividade. A economia depois da pandemia será muito mais digital.Essas mudanças, na visão de Paes de Barros, são também uma oportunidade e por isso ele defende a criação de programas para acelerar esse processo.


Míriam Leitão: Onze pessoas e um destino

Onze integrantes da equipe econômica se reuniram com o presidente da República e tiraram uma foto. Dias atrás. Todos eles sem máscara no meio de uma pandemia. É o retrato de uma equipe que se rendeu ao presidente. Aos seus erros. Economistas sabem ler as curvas de tendências e elas mostram aumento dos casos e das mortes. Economistas também sabem o que é hedge, seguro contra o risco. Os equipamentos de proteção individual têm esse papel. Equipe econômica que acerta é aquela que defende suas convicções contra as conveniências políticas ou os equívocos do chefe do governo.

Os gestos de pessoas públicas induzem comportamentos. O não uso de máscara estimula uma atitude perigosa que tem feito vítimas. Render-se a essa imposição do presidente pode parecer apenas um detalhe, mas representa muito mais. Resume o principal erro desta equipe econômica, que é a rendição incondicional ao presidente. Mesmo quando ele está completamente errado.

Até agora, a equipe não entregou o programa que prometeu e não o fez exatamente pelo mesmo motivo que a leva a não usar a máscara para agradar o presidente. O ministro Paulo Guedes não tem sido capaz de convencer Bolsonaro das etapas indispensáveis do seu programa. Não há nada de liberal no atual governo. Guedes não fez a abertura do comércio, mas aceitou estimular a importação de armas. Não livros, não computadores, nenhum outro bem ficou dispensado de impostos. O comércio livre de tributos ficou apenas para revólveres e pistolas.

Um momento importante que salvou o projeto de consolidação do Plano Real foi quando todos os integrantes da equipe econômica, em 1995, foram ao Palácio do Alvorada à noite avisar que pediriam demissão coletiva caso o presidente Fernando Henrique cedesse no meio da crise bancária. Havia pressão política contra a intervenção no Banco Econômico, vinda de um aliado do presidente, o poderoso Antônio Carlos Magalhães. A bancada da Bahia era grande e havia propostas econômicas importantes dependendo de aprovação. A reunião terminou de madrugada, mas a equipe garantiu a autonomia para fechar o banco e continuar enfrentando a crise.

Bolsonaro já demitiu secretário da Receita, presidente do BNDES, mandou arquivar ideias, desidratou reformas. O país está há nove meses em uma pandemia e a equipe não formulou uma proposta sustentável de ampliação da rede de proteção social, nem uma proposta crível para o futuro das contas públicas. As ideias são bombardeadas pelo presidente, e o ministro as recolhe.

A PEC emergencial atropelou uma proposta maior e melhor feita no legislativo, a do deputado Pedro Paulo. Teve uma tramitação confusa e foi perdendo consistência. Foi misturada a outras duas medidas e o que economizaria bilhões vai na verdade poupar alguns milhões. Se for aprovada. A reforma administrativa foi engavetada por um tempo e depois esvaziada por Bolsonaro. Quando chegou no Congresso era uma sombra da que havia sido concebida.

O ministro Paulo Guedes com uma frequência monótona defende ideias abstratas, em vez de formular propostas concretas. Desiste de projetos, diante da primeira cara feia do presidente. E vive no mesmo estado de negação de Bolsonaro. Primeiro achava que o Brasil não seria atingido pela pandemia, um equívoco de avaliação que atrasou a adoção de medidas. Agora diz que não haverá a segunda onda, quando as curvas de mortes e contaminações já estão subindo. Os bons gestores trabalham com o princípio da precaução. Economistas fazem cenário e se preparam para as contingências.

Essa foto do ministro e seus assessores ao lado de Jair Bolsonaro sem máscaras é um detalhe eloquente. Eles sorriem num país que vive uma tragédia sanitária, que está de novo se agravando, e que não tem um plano de vacinação. É fundamental que o Ministério da Economia se prepare para esse novo agravamento da Covid-19 e que faça tudo o que for da sua alçada para garantir o melhor cenário na economia, que só acontecerá com a vacinação em massa da população brasileira.


Míriam Leitão: Este governo é um risco de vida

Existem governos bons, existem governos ruins e existe o governo Bolsonaro. Ele é um risco de vida. A declaração do ministro Eduardo Pazuello de que as aglomerações da campanha eleitoral não causaram aumento da pandemia no Brasil é um atentado à saúde dos brasileiros. Mostra que o general da ativa nada entendeu dos assustadores números que estão diante de nós. Os casos aumentaram muito, os hospitais estão chegando ao limite, os médicos e enfermeiros estão esgotados e tendo que buscar forças para a nova e perigosa batalha pela vida humana.

O governo Bolsonaro atravessou todas as fronteiras do que pode ser considerado um mau governo. Ele é pior. Está além dessa classificação. O ministro da Saúde nos mandou morrer, pelo visto. Olha a frase: “Se esse vírus se propaga por aglomeração, por contato pessoal, por aerossóis, e tivemos a maior campanha que podia ter nesse país, que é a municipal, nos últimos dois meses, se isso não trouxe nenhum tipo de incremento ou aumento da contaminação, não podemos falar mais em lockdown nem nada”.

O que é essa declaração? O ministro da Saúde de um país que já perdeu mais de 175 mil pessoas para o coronavírus continua não entendendo a sua responsabilidade? Nessa frase ele ignora que essa foi uma campanha muito mais contida. Quem promoveu aglomerações foi principalmente o presidente. Os candidatos usaram muito mais os meios digitais e os encontros com proteção. Mas o mais importante que Pazuello demonstra desconhecer nessa declaração no Congresso é que os números de contaminação, mortes, ocupação de leitos de UTI têm aumentado muito. E isso em função de um relaxamento dos cuidados e do distanciamento.

O ministro da Saúde está estimulando ainda mais relaxamento, está dizendo que não tem importância haver aglomerações e isso no momento de nova escalada da doença. O ministro da Saúde demonstra continuar negacionista “se ele se propaga por aglomeração, por contato pessoal, por aerossóis”. Se? O general ainda duvida do que já está pacificado pela ciência.

Pífia. Pazuello usou essa palavra para definir a oferta dos laboratórios para o Brasil. Essa é uma boa palavra mas para definir a gestão dele. É Pífia. Uma administração que começou apresentada pelo presidente como sendo a de um especialista em logística, e que não a usou para distribuir e oferecer os testes que estão empilhados em Guarulhos. O Brasil chega atrasado nas filas da vacina por falha de logística também. Tudo deveria ter sido pensado antes.

A fala do ministro da Saúde no Congresso foi atrasada, incompleta, vaga num momento em que o país precisa que ele dê respostas exatas e ágeis. Com que laboratórios ele falou? Quando os contatou? Que respostas tem diante da pouca oferta de vacinas para os brasileiros? Será que as quantidades ofertadas são pífias por culpa dos laboratórios ou porque o governo chegou tarde?

O Brasil tem dois grandes e confiáveis fabricantes de vacinas, Fiocruz e Butantan. Por que o ministro continua se negando a falar da vacina que tem a parceria do Instituto Butantan com o laboratório Sinovac? Pazuello ficou marcado por aquele lamentável episódio em que teve que se humilhar em público e desfazer documento assinado, porque o presidente reprovou a cooperação entre o governo federal e o maior estado da Federação. Nele agora está a obediência acima do seu dever como homem público. Ele pode arruinar a própria biografia, ele pode arrastar com ele a reputação das Forças Armadas, o que ele não pode é colocar a vida de brasileiros em risco.

Essa é uma doença terrível, mortal, ainda sem remédio e contra a qual nossos médicos, cientistas, enfermeiros, lutam corajosamente. O distanciamento social, o uso de máscara, todos os cuidados de proteção são o que existe para evitar a propagação do vírus. As vacinas, todas as que forem confiáveis, efetivas, têm que ser usadas nesta guerra.

Entre as suas obrigações, pelo cargo que ocupa, está a de dar explicações à opinião pública. O país precisa catar retalhos de informações, declarações tortas e fora do tom para tentar adivinhar o que o Ministro da Saúde está planejando para a nossa saúde. Há governos ruins. Há governos péssimos. Este ultrapassou essas definições. Ele é ainda pior. Temos um governo calamitoso no meio de uma calamidade.


Míriam Leitão: Biden e vacina elevam mercado

Você não gosta de mim, mas seu mercado gosta. Os versos de Chico Buarque poderiam ser adaptados pelo presidente eleito Joe Biden, se ele estivesse preocupado com esse longo silêncio do presidente brasileiro Jair Bolsonaro. Desde que ficou claro que Biden era o vencedor das eleições americanas, houve um reviravolta nos ativos que favoreceu o Brasil, o real e até os investidores no país.

O dólar, por exemplo, caiu 11,11% aqui dentro, indo de R$ 5,76 em 29 de outubro para R$ 5,12 , ontem. A queda do dólar começou antes das eleições porque todas as projeções davam o que acabou acontecendo, uma vitória por larga margem no voto popular e no colégio eleitoral para Joe Biden.

Novembro foi o melhor mês da bolsa brasileira em muito tempo, recuperando uma parte das perdas que haviam sido provocadas pela pandemia, pela falta de entrega do programa econômico, e pelas incertezas do próprio governo. Isso trouxe de volta o investidor estrangeiro que havia ido embora. Em novembro entraram R$ 33 bilhões. No ano eles haviam sacado quase R$ 90 bi.

O mercado funciona de maneira diferente do que reagem as pessoas quando fazem as suas conexões neurais. O que liga uma coisa a outra pertence à lógica própria. A vitória de Biden é entendida pelos analistas como sinal de que haverá um pacote de ajuda mais robusto para a economia americana, o que levará à desvalorização do dólar. Isso aumenta os fluxos para os países em desenvolvimento e eleva o apetite para o risco. O resultado é essa volta do capital arisco, apesar de todos os sinais ruins dados pelo governo brasileiro.

Em resumo, não voltam porque passaram a confiar em Bolsonaro e no seu desgoverno, mas porque os fluxos globais estão nessa direção. Tanto que não foi só conosco. O dólar australiano, o dólar canadense, o won coreano e até o euro estão nos maiores valores frente ao dólar em dois anos.

O S&P 500 bateu novamente seu recorde histórico, chegando ontem a 3.699 pontos. Houve um tempo em que se dizia que o mercado gostava apenas dos republicanos. Não se confirmou nesta eleição, em que Biden recebeu mais doações do que seu opositor. A instabilidade provocada por Donald Trump e as ameaças institucionais passaram a ser disfuncionais. Um economista brasileiro que vive nos Estados Unidos disse que nunca viu tanta gente do mercado votando em democrata quanto nessa eleição.

Houve também o efeito vacina. Mas, de novo, a música pode ser a mesma, desta vez, da vacina para Bolsonaro: você não gosta de mim, mas a sua economia gosta. Tanto que todos os cenários positivos futuros estão dependendo dessa variável, aqui e no mundo. Se houver vacinação em massa, haverá economia retomando alguma normalidade. Do contrário, voltará a instabilidade negativa.

A dupla Biden e vacina, para o presidente brasileiro prisioneiro do seu negacionismo trumpista, pode ser tudo o que ele rejeita. Felizmente, para a economia do país, a chegada dos dois está elevando o humor, e reduzindo as perdas que todos os investidores, pequenos, médios e grandes, tiveram nesses longos meses de pandemia com Bolsonaro estimulando o contato e o contágio.

Claro que, da mesma forma que entrou, esse dinheiro pode sair em qualquer vento contrário. Se o governo brasileiro não conseguir organizar uma vacinação ágil e eficiente, o país será colocado para trás. Em um momento de mau humor com os emergentes, os capitais lembrarão que o Brasil tem uma dívida muito alta, o governo não tem programa crível de equilíbrio fiscal e Bolsonaro segue a política de isolamento diplomático. Acredita — até hoje — na vitória de Trump, hostiliza a China, levou um ano para fazer uma reunião com o presidente da vizinha Argentina, ameaçou “denunciar” Alemanha e França e agrediu a Noruega, que havia doado dinheiro para a proteção da Amazônia.

Mesmo com uma política ambiental desastrosa, uma condução perigosa da pandemia, e uma política econômica sem rumo, o Brasil conseguiu vender bônus no mercado internacional esta semana. O Tesouro emitiu títulos em dólar no mercado externo e atraiu três vezes mais demanda do que estava sendo oferecido. Há muitos riscos na dívida brasileira e ninguém desconhece isso. Mas neste momento tudo é festa. Começará um governo novo e mais racional nos Estados Unidos e a vacina está chegando.


Míriam Leitão: O PIB sobe e fica devendo

O dado de crescimento de 7,7% no terceiro trimestre é bom, mas veio abaixo do esperado por bancos, consultorias e até pelo governo. Houve um aumento forte da poupança e isso pode ajudar a recuperação nos próximos meses. O problema da economia é que neste quarto trimestre aumentou a intensidade da pandemia, foi reduzido o valor do auxílio emergencial e ele vai desaparecer no fim do ano. Outro problema é que não voltamos ao ponto de antes da queda. O PIB ainda ficou devendo.

Apesar de o dado ter vindo abaixo do esperado, quase nada mudou na visão dos economistas. Como houve a revisão para melhor na série pelo IBGE, o entendimento é que tudo veio de acordo com as projeções. Até no governo eu ouvi isso. “Como o IBGE melhorou os dados do segundo trimestre, de queda de 11,4% para queda de 10,9%, então no combinado nada muda e continuamos prevendo recessão de 4,5% em 2020”. O Itaú Unibanco espera que o quarto trimestre ainda tenha um crescimento de 2,9% sobre o trimestre anterior. Com isso, o carregamento estatístico para 2021 ficaria em 3,4%. Ou seja, mesmo que a economia fique parada ao longo de todo o ano que vem, estatisticamente, haveria essa alta forte sobre 2020. Já o Ibre FGV tem uma leitura mais conservadora, e acha que esse efeito será de 2%, porque o quarto trimestre será pior do que se previa , com o aumento das medidas de isolamento social.

Uma das apostas da equipe econômica é que a alta da poupança durante a pandemia sirva agora como um estímulo ao consumo. No terceiro trimestre, a taxa de poupança subiu a 17,3% do PIB, o maior percentual desde o terceiro trimestre de 2013. Esses recursos agora podem ser usados para a compra de bens e serviços, mantendo a atividade econômica aquecida. O governo acha que parte disso é poupança dos pobres que economizaram alguma coisa do auxilio emergencial, por outro lado, na classe média o medo do futuro, o risco do desemprego elevaram a propensão a poupar. Esse dinheiro poupado pode sustentar a demanda por bens e serviços e manter parte do crescimento futuro.

Mas não se pode subestimar a dimensão da crise econômica. O país acumula queda de 5%, a alta do terceiro tri atenua a queda da economia, mas os fatos recentes aumentam as dúvidas sobre o futuro.

O setor agropecuário é o único que fechará o ano positivo, mas teve uma queda no terceiro trimestre comparado ao segundo. “A expectativa é de um crescimento da agropecuária de 2,3%, muito abaixo dos 14,2% de 2017”, lembra a MB Associados. Mas, explica a consultoria, “o resultado efetivo do setor em 2020 é muito melhor do que o de 2017, com crescimento de mais de 20% na renda da agropecuária”.

Houve uma queda na construção civil, mas o setor está num bom momento, com produção de tijolos e cimento apresentando resultados positivos. Todos os segmentos do setor de serviço cresceram, mas, em parte, porque haviam caído demais. Destaque para o comércio, que cresceu 15,9%, um setor que no distanciamento social teve que inventar o caminho digital até o consumidor, apressando uma transição que pensou que teria tempo para fazer.

Os números parecem todos desencontrados, como a de uma economia que foi chacoalhada. A disparidade entre os setores é muito grande nesta recuperação, o que já havia sido alertado por vários economistas. Se a indústria cresceu 14,8% no terceiro trimestre, os serviços subiram bem menos, 6,3%, enquanto a agricultura surpreendeu negativamente, com uma queda de 0,5%. Até mesmo dentro de um mesmo setor, as velocidades foram muito diferentes. A indústria de transformação cresceu 23,7%, já a extrativa teve alta menor, de 2,5%. O comércio cresceu 15,9%, mas depois de três trimestres de queda. Os serviços financeiros subiram 1,1%, mas não tiveram recuo durante a pandemia.

Na equipe econômica trabalha-se com o cenário de que o distanciamento social está no fim e que isso permitirá a retomada da economia. Por isso, na visão da equipe, o auxílio não seria mais necessário. Mas o cenário que parece mais provável é o de que o novo crescimento dos casos de Covid-19 manterá a economia travada, e a oferta de emprego, muito abaixo do necessário. A taxa de desemprego deve subir até mais fortemente no começo do próximo ano.

O erro inicial do governo na economia foi não se preparar para o pior cenário. E o pior aconteceu. A resposta foi improvisada, com erros e atrasos. É fundamental que a área econômica saia desta segunda onda de negação. O Brasil está num momento de agravamento da doença e essa variável precisa entrar na equação do Ministério da Economia.


Míriam Leitão: Como deter o desmatamento

É possível ter um plano contra o desmatamento que seja efetivo e nos leve de volta ao caminho certo. O governo poderia executá-lo se tivesse noção do risco que estamos correndo, econômico, diplomático, ambiental, climático. O Brasil tem os servidores, boas leis e instrumentos de comando e controle. Mas o presidente e seu ministro preferem estimular por atos, palavras e omissões a derrubada da floresta. As Forças Armadas na segunda operação de garantia da lei e da ordem já entenderam o principal: é preciso fortalecer os órgãos ambientais e atuar em rede.

O número de 11.088 km2 de floresta derrubada em 2020 na Amazônia deveria ser suficiente para provocar um plano emergencial. Deveria ser tratado como é: um escândalo. O Brasil recuou 12 anos no seu esforço de redução do número anual e chegou a 184% acima da meta que o próprio Brasil estabeleceu na Política Nacional sobre Mudança no Clima. É uma derrota do país. Esse é o primeiro número de desmate totalmente do governo Bolsonaro, já que o do ano passado teve cinco meses da administração anterior, porque o ano é registrado de agosto a julho.

Um plano para ser efetivo teria que ter Ibama e ICMBio com mais gente e mais recursos, a Polícia Federal, com um comando claro nessa direção. A Funai teria que ter chefes que não impedissem seus servidores de cumprirem sua missão institucional de proteger os índios e suas terras. Seria necessário criar mais unidades de conservação, já que grande parte do desmatamento ocorreu em terras públicas não destinadas. O plano pode ser feito, mas para ser executado teria que ser outro o governo e outro o presidente.

As Forças Armadas reconhecem que o país precisa muito do fortalecimento do Ibama e ICMBio. Na entrevista em que anunciou o desmatamento, o vice-presidente Hamilton Mourão disse isso. Fica curioso ele dizer o oposto do que o governo fez desde o início. Ricardo Salles vem desmontando esses órgãos governamentais desde o primeiro dia no cargo.

Há outras situações contraditórias. Quando servidores dos órgãos ambientais queimaram e destruíram maquinário de grileiros e garimpeiros, o presidente os constrangeu em público, e o ministro os puniu. Só que na Operação Verde Brasil 2 os militares também destroem. E por quê? Pelo simples motivo de que é a única forma de agir. Em outubro, os militares encontraram na reserva biológica de Maicuru, em terreno de absoluta dificuldade de acesso, 15 motores estacionários de garimpo. O que deveriam fazer com aquelas enormes máquinas? Sair levando de avião floresta afora? “A gente precisa dar prejuízo aos malfeitores”, me disse um oficial. Pois é.

O ministro Ricardo Salles não estava na reunião em que o governo anunciou o número do desmatamento. Estava no Jardim Botânico no Rio. Desde que esses dados começaram a ser divulgados no governo Fernando Henrique, e se tornaram ainda mais transparentes no governo Lula, o ministro do Meio Ambiente é quem anuncia. Ao lado, claro, do ministro da Ciência e Tecnologia, a quem se reporta o Inpe. A ideia de ir passear no Jardim Botânico no dia do anúncio nunca ocorreria a nenhum antecessor no cargo.

O governo Bolsonaro criou uma situação esdrúxula. Mantém um ministro que tem uma agenda de destruição ambiental, e vai repassando as responsabilidades do Ministério do Meio Ambiente para o vice-presidente que, contudo, não tem poder. Hamilton Mourão acerta às vezes, erra às vezes. Acertou agora quando não tentou desacreditar o Inpe ou quando não tentou vender como bom um número que realmente é muito ruim. Mas errou quando propôs criar uma agência, aos moldes de uma mal afamada agência americana, para concentrar nas Forças Armadas as funções que hoje são executadas pelos cientistas do Inpe.

O risco maior é ambiental e climático. Para nós e para o mundo. A Amazônia é tão grande e tão fundamental que o que nos fere, fere o mundo. Mas esse é também um problema econômico, perderemos parceiros e mercados para os nossos produtos. É um problema de política externa. O Brasil está se transformando no sonho do Ernesto. Um enorme pária. Continuar desmatando a floresta, continuar nessa marcha insensata nos afastará cada vez mais do mundo. Essa é a escolha de Jair Bolsonaro, mas certamente não é a vontade do Brasil.


Míriam Leitão: Recomeço ou nova direção

Os prefeitos eleitos terão que começar a trabalhar imediatamente, mesmo antes da posse. Há desafios enormes. A boa notícia é que a situação das contas públicas das cidades está melhor do que se imagina. Houve muita transferências do governo federal neste ano, as cidades são menos endividadas do que os estados e há prefeitura com dinheiro em caixa. O erro será usar isso para aumentar gastos que não sejam os destinados às muitas urgências do momento. Na educação, serão dois anos em um, na saúde há a pressão da pandemia, na arrecadação, o imposto sobre serviços não vai se recuperar facilmente.

Eleição sempre renova as esperanças de que os problemas sejam resolvidos mais facilmente pelo gestor reeleito por causa de uma administração bem avaliada ou pela eleição de um novo gestor que resgate a cidade de erros passados. Aqui na coluna conversamos com alguns economistas que falam sobre a situação municipal. Giovanna Victer é presidente do Fórum Nacional de Secretários Municipais de Fazenda, e ela mesma é secretária de Niterói, onde o prefeito Rodrigo Neves, do PDT, elegeu seu sucessor Axel Grael no primeiro turno.

— Houve um aumento significativo do volume de transferências da União para os municípios. O critério foi o Fundo de Participação dos Municípios (FPM) e sem relação com a pandemia. Então houve cidade que teve mais receita do que gasto com saúde e o contrário também aconteceu — diz.

Normalmente, cidades menores ou de regiões mais pobres têm um repasse relativamente maior pelo critério de distribuição. Houve também outra forma de socorro aos estados e municípios, que em alguns casos cobriu a queda de arrecadação.O ex-secretário do Tesouro Mansueto Almeida também diz que essas transferências feitas via FPM, ou o socorro para a pandemia, fizeram com que em muitas cidades o ano esteja fechando bem, e com dinheiro em caixa para investir em 2021. Além disso, houve as remessas em 2019 e começo de 2020, por causa da cessão onerosa.
No ano passado, os 4.958 municípios acompanhados pelo Tesouro fecharam com superávit de R$ 32 bilhões. Mas em algumas cidades os gastos precisam ser ajustados. O Rio de Janeiro tem uma despesa bruta alta de 79% da Receita Corrente Líquida. E é também o município com o maior serviço da dívida, que chega quase a 9% da Receita Corrente Líquida. As despesas com pessoal saíram de 48% do gasto total em 2016 para 60% em 2019. Há situações bem diferentes entre as cidades.

— Haverá município pequeno em que o novo prefeito vai encontrar dinheiro em caixa. Minha preocupação é que esses prefeitos avancem sobre esses recursos e contratem despesas permanentes — diz Giovanna.

O problema é que esse caixa é “fictício”, como ela diz, porque vem dessas transferências especiais. Mansueto também alerta que os recursos da cessão onerosa não vão se repetir.

O dinheiro que sustenta as grandes cidades é altamente dependente da atividade econômica, como por exemplo o que vem do Imposto sobre Serviços. O setor tem segmentos que não voltaram à normalidade. E dificilmente conseguirão no curto prazo. E há muito a fazer no curto prazo:

— Precisamos retomar as políticas habitacionais, porque isso cria emprego e são muitos anos sem ter política de habitação. Tem impacto social importante. Vamos ter urgências sociais, como a de trazer as crianças de volta às escolas, há muitas abandonando as aulas, principalmente no Fundamental II. Precisamos de logística para a vacinação. E temos o desafio da retomada econômica que depende das políticas nacionais — explica Giovanna Victer.

Ela acha que a prefeitura do Rio não está quebrada, ainda que tenha despesa corrente maior do que a receita. Giovanna acredita que o Rio poderá aumentar a arrecadação se suspender subsídios e se reorganizar a prefeitura com um freio de arrumação.

No resto do país, Mansueto lembra que 684 municípios têm nota A de crédito e 809 têm nota B. Podem pegar empréstimo com o aval do Tesouro. Mesmo assim, prefeitos preferem procurar linhas da Caixa que são muito mais caras, mas mais rápidas. O Rio, por exemplo, pegou cinco empréstimos em 2017 e 2018, quatro na Caixa e um no Santander. Todos sem garantia da União. Mas em geral os municípios estão em situação melhor do que os estados e têm espaço para recomeçar com boa gestão.


Míriam Leitão: Visão de Mansueto sobre o risco fiscal

Muitos riscos rondam a economia do Brasil, segundo o ex-secretário do Tesouro Mansueto Almeida. Ele acha desejável haver ideias diferentes para resolver o problema das contas públicas, mas defende que haja clareza no diagnóstico. Alerta que não temos margem para errar. O déficit fiscal este ano vai ser de 17% do PIB, incluindo os juros. Quase 70% da dívida está atrelada a juros de curto prazo. Por enquanto, “respiramos”, diz ele, porque a Selic está baixa. Mas a inflação está subindo e os juros futuros refletem a falta de confiança. “Se a gente não der os sinais certos, quando os juros subirem teremos um baita problema”. Ele defende um grande debate nacional sobre as renúncias tributárias, mas é contra novos impostos:

— Já temos carga tributária elevada, o espaço não é o mesmo dos anos 90. O governo federal perdeu dois pontos do PIB de arrecadação em relação ao que era entre 2011 e 2013. É a perda das crises. Não se sabe quanto disso pode ser recuperado. Em um país com carga tão alta, vamos ter que rever renúncias tributárias. Mas para isso tem que começar o debate hoje, como foi na Previdência. Um dos grandes benefícios da Previdência foi que passamos três anos discutindo e isso permitiu a sua aprovação.

Ele avisa que não é fácil eliminar subsídios, por isso será preciso se preparar para esse debate. Cada subsídio, cada renúncia fiscal, tem seus defensores. Subestimar as dificuldades nesse tema é o caminho do fracasso.Mansueto defende o teto de gastos, como sempre, mas faz uma avaliação preocupante. O orçamento de 2021 está no Congresso e no vermelho. Depois de cinco anos de teto de gastos, o Brasil estará no ano que vem com um rombo maior do que estava antes e o plano original era zerar o desequilíbrio em cinco anos, chegando em 2026, quando o teto fará 10 anos, com superávit de 2,5% do PIB.— Para ter o que foi programado, nós teríamos que fazer em cinco anos um ajuste que estava previsto para 10 anos. Se a gente “apenas” cumprir o teto, que já é difícil, vamos chegar em 2026 ainda com déficit. Mais seis anos com déficit é uma situação de muito risco — diz ele.

Que risco? O da quebra da confiança de que o governo pode pagar a dívida pública. Em 2002, com a turbulência prévia da eleição de Lula, a dívida líquida chegou a 60% do PIB. Depois da posse, o dólar caiu, o governo cumpriu superávits e em 2013 ela era de 30% do PIB. Esse ajuste se perdeu. A dívida líquida bateu em 55% no ano passado. Pelas projeções do Ministério da Economia este ano vai para 65% e em 2028 estará em 87%. A bruta vai para 98%.— O Brasil até 2013 tinha resolvido seu problema fiscal. Implodiu isso em poucos anos. Teve dois anos de recessão e agora a pandemia. Se a gente não mudar esse cenário, mesmo cumprindo o teto de gastos, esse país não vai ter espaço fiscal para nenhuma contingência, recessão ou crise. Em 2015 o ministro Joaquim Levy propôs o debate sobre a revisão dos benefícios tributários. Cinco anos depois, o debate não andou. No governo Temer o gasto com o Simples foi até ampliado, quando se elevou o faturamento das empresas que podiam se enquadrar.Esse debate é árido. Há benefícios que claramente precisam acabar. Até eles ficam. Veja o caso do fim da isenção fiscal para fundos exclusivos, aqueles formados por pessoas muito ricas. Em vez de serem cotistas, eles foram fundos só para si. Por incrível que pareça esse investidor não paga imposto. Temer propôs acabar com essa isenção, o que geraria R$ 6 bilhões de receita, mas foi derrotado no Congresso.

Para piorar o ambiente de déficit e dívida crescentes, a inflação subiu.

— Há seis meses, a expectativa de inflação para este ano era de 2%. Hoje está em 3,8%. A do ano que vem também subiu. Isso pode levar a um aumento dos juros que vai impactar a dívida toda concentrada no curto prazo. A curva dos juros (futuros) expõe o tamanho da incerteza sobre como o Brasil vai resolver o problema. E não é daqui a quatro, cinco anos. As pessoas querem clareza para os próximos seis meses.

Mansueto lembra que na democracia as soluções são encontradas no debate. Diz que é natural, e desejável, que cada corrente de pensamento defenda a sua ideia sobre como resolver esse nó fiscal. Mas faz um alerta.

— É legal ter propostas diferentes, mas não pode haver disparidade sobre o diagnóstico. Não temos margem para erro daqui pra frente.


Míriam Leitão: Retrato amplo do desemprego

O desemprego cresceu, o mercado de trabalho ficou muito menor, a desigualdade se aprofundou. Tudo nessa soma de distopias que vivemos vem em camadas. É preciso levantá-las para entender as várias dimensões do nosso mal. Houve criação de vagas e o governo até comemorou, mas isso é uma parte pequena de uma história muito mais ampla. O IBGE divulgou ontem que a taxa de desocupação entre julho e setembro ficou em 14,6%, a maior da série. E que há menos 11,3 milhões de pessoas trabalhando do que há um ano.

Há muitas desigualdades, como sempre. Só que pioraram. Na Bahia, o desemprego é de 20%, em Santa Catarina é de 6,6%. Se você é homem, sua taxa é de 12,8%, se for mulher, é 16,8%. Se é branco, seu índice de desemprego é de 11,8%, pardo, 16,5%, e se for uma pessoa preta é de 19%. As nossas desigualdades são regionais, de gênero e raciais. Sempre existiram, mas quando a conta de alguma crise chega ela bate mais em quem tem menos e aumenta as distâncias sociais.

O problema adicional do desemprego nesta pandemia é que ele é mal medido. Não por erro do IBGE, mas por dificuldade mesmo de ver o que se passa. As lentes não captam a realidade. A estatística registra quem procurou emprego e quem não procurou. Se não procurou, você está desempregado, mas não aparece na foto. Muita gente tem adiado essa procura porque acha que o momento não é favorável, com o vírus solto por aí. Se melhorar, se a pandemia ceder, se houver segurança, a pessoa vai procurar. E aí entrará na estatística.

De cara, 5,9 milhões de pessoas não procuram, nem pensam em procurar mais porque acham que não encontrarão. São os que estão em desalento. Em um ano, 1,2 milhão de pessoas entraram no universo dos desalentados. Mas quem for de Alagoas convive com o fato de que 21,6% da população em idade de trabalhar está desalentada. No Maranhão, 20%. Em Brasília, apenas 1,3%.

O que o governo comemorou esta semana foi o Caged, que é um pedaço dessa história toda. A criação de empregos formais em outubro teve um saldo positivo de 394.989 vagas. É bastante para contexto tão difícil, mas não a prova de recuperação em V como exultou o Ministério da Economia. Ademais, a metodologia dessa conta mudou. O governo passou a obrigar os empresários a reportarem também as contratações temporárias. A série foi quebrada, não dá para comparar com o passado.

O futuro no mercado de trabalho é absolutamente incerto, porque pouco se sabe do cenário econômico. Se esse aumento dos casos de infecção e morte por Covid-19 continuar, a recuperação não se manterá. Está sendo difícil garantir neste quarto trimestre o ritmo do terceiro. Sem certeza do que vai acontecer nos próximos meses, os empresários não contratam.

Uma segunda onda nos pegará tão desprevenido quanto a primeira, porque o Ministério da Economia está negando o problema pela segunda vez. Em março, o ministro Paulo Guedes achava que com R$ 5 bilhões ele acabava com o vírus. Era negação. Agora de novo tem dito que não acontecerá o que pode já estar acontecendo.

Economistas trabalham com cenários e formuladores de políticas públicas preparam-se exatamente para as mudanças de conjuntura. O improviso custou caro da primeira vez. Gastou-se mais do que o necessário com o auxílio emergencial e com muito menos foco do que era preciso.

Esta é a aflição imediata. Há uma devastação no mercado de trabalho, o Ministério da Economia comemora dados parciais como se eles fossem o fim da crise. Ela pode se agravar. O negacionismo vai fazer novas vítimas. Na saúde e na economia. Há, além disso, uma desorganização mais ampla e profunda no mercado de trabalho para o qual será preciso mais inteligência, e menos ideologia, para encontrar a saída.

A taxa de desemprego entre jovens de 18 a 24 anos é mais que o dobro da taxa geral: é 31,4%. Excluindo tanta gente jovem, a economia não se renova.
A crise no mercado de trabalho não nasceu ontem, mas se agravou na pandemia. O coronavírus chegou com sua força destruidora num mercado com dificuldade crônica de abrir oportunidades para jovens, incluir pobres e negros, tratar homens e mulheres da mesma forma, reter os talentos maduros e reduzir as injustiças regionais. Não há soluções fáceis, mas certamente elas ficaram mais difíceis no encurralado ano de 2020.