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Míriam Leitão: A incômoda visita da alta dos preços

Há uma distância entre o número da inflação oficial e como ela é sentida pelos brasileiros. No meio de uma recessão, com impacto maior sobre os alimentos, com queda da renda e alta do desemprego, ela pesa muito mais do que os 4,22% dos últimos 12 meses do IPCA-15. Hoje, sairá o IGP-M de novembro e pode superar 3%, como no último mês. Os IGPs estão nas alturas, em torno de 25%, por causa dos preços por atacado. A inflação tem natureza e peso diferentes desta vez. Não existe hora boa para a chegada da inflação, mas agora ela é uma visita ainda mais incômoda.

Em ambiente recessivo, os preços não deveriam subir. Mas já aconteceu recentemente. Em 2015 e 2016, quando houve o descongelamento de tarifas de energia, o índice passou de 10%. Agora, de novo, há vários motivos específicos. Uma forte desvalorização do dólar, o aumento das exportações de alimentos, um descompasso dentro da cadeia produtiva e até uma pressão de demanda em plena recessão. O auxílio emergencial produziu um aumento de renda temporário, mas a maior alta de preços bateu exatamente nos alimentos, que são os itens que mais pesam no orçamento das famílias.

O Brasil viveu no começo deste ano uma maxidesvalorização. Em 31 de dezembro a moeda americana estava cotada em R$ 4,03. No dia 14 de maio, o pior momento, havia saltado para R$ 5,93. Alta de 47% em cinco meses. De lá para cá, caiu para R$ 5,32, mas ainda acumula uma valorização de 32% este ano. O real mais fraco tem o efeito econômico positivo de estimular as exportações, mas também representa aumento de custos para diversos setores. A indústria utiliza insumos, peças e máquinas importadas, e até alguns segmentos dos serviços sentem o efeito. Nos transportes, por exemplo, os combustíveis estão atrelados a preços internacionais. Há setores que reajustam preços sem dó nem piedade, independentemente da baixa demanda. Passagens aéreas dispararam 39% em outubro e mais 3,5% em novembro.

Outra razão da inflação deste ano é o forte salto nos preços por atacado. Em grande parte, reflexo da desvalorização cambial. Hoje, o IGP-M de novembro será divulgado e a projeção é de uma nova alta forte, de 3,3%, segundo a LCA Consultores, acima dos 3,23% de outubro. Os preços agropecuários no atacado devem disparar mais 8,63%, com aumentos no milho, trigo e na soja, que são matérias-primas para outros elos da cadeia de produção de alimentos. Os preços industriais também estão subindo, e a estimativa é de alta de 2,48%.

O Banco Central alegou que era um impacto temporário, concentrado nos alimentos, e que vários países do mundo estavam enfrentando o mesmo problema. Mas as histórias são diferentes de país para país, como mostrou o próprio presidente Roberto Campos Neto em apresentação na última semana. Nos EUA, os alimentos subiram mais de 5% na taxa anual, no pior momento da pandemia. Mas no Reino Unido o aumento não chegou a 2%. Entre oito países emergentes comparados pelo BC, o Brasil neste momento é o mais foi afetado pela inflação de alimentos, com elevação acima de 15%. Na China, subiu muito, mas está desacelerando. No Peru, não passou de 3%. A principal explicação é, de novo, a forte desvalorização do real.

As projeções de mercado apontam inflação na meta para este ano e o próximo, mas os números têm sido revistos para cima, semana após semana. Essa mudança de cenário tem sido encarada pelos economistas como um “vento contrário não esperado”. Se as estimativas aumentarem muito, o Banco Central terá que elevar a Selic, e o mercado de juros já tem mostrado um descolamento entre as taxas mais curtas e as mais longas.

Alguns economistas começam a olhar preocupados para essa inflação que nos visita em hora totalmente imprópria. A renda caiu, mas os preços que mais sobem são de produtos que não se pode deixar de comprar, os alimentos. Como várias indústrias fecharam as portas durante a pandemia, está havendo em plena recessão uma falta de insumos dentro da cadeia produtiva. Na reabertura, as empresas estão produzindo menos porque não querem acumular estoques num cenário de incerteza. E isso faz com que qualquer retomada econômica possa alimentar a inflação.

Essa é uma inflação bem diferente dos outros eventos do passado recente. Acontece num contexto difícil para as famílias e para o governo, que está muito mais endividado. Uma visita realmente incômoda.


Míriam Leitão: A conta será do agronegócio

Sim, a China pode nos atingir com as consequências negativas desse tipo de agressão grosseira, gratuita e infantil como a do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). O agronegócio precisa se mexer, porque é o alvo. Basta que a China queira fazer um gesto de boa vontade em relação ao governo Biden e passe a redirecionar sua compra de soja para lá. Ou que invista em países que substituam pelo menos em parte as exportações brasileiras de alimentos. Uma pequena redução já nos afetará.

Essa é a visão de um diplomata experiente que vê com perplexidade os movimentos sem eira nem beira da nossa política externa. A palavra dura também cabe na diplomacia, mas só deve ser usada com algum propósito bem definido. Nada da política externa do governo Bolsonaro tem rumo. Uma política biruta.

Um analista bem próximo ao governo Bolsonaro que, contudo, discorda da tendência que tem tomado a política externa, explica a raiz do problema. O verdadeiro chanceler é o assessor internacional Filipe Martins, um jovem sem qualquer qualificação para a ascendência que tem sobre assunto tão relevante. “O Ernesto é um maria vai com as outras”, explicou esse analista.

De fato, o atual ministro só mostrou seu fervor de extrema-direita durante a campanha presidencial, criando um blog para se alavancar para o cargo. Uma vez lá, passou a aceitar todo tipo de interferência e se coloca subserviente aos ditames tanto de Eduardo Bolsonaro quanto de Filipe Martins, um fanático olavista, sem qualquer experiência no ramo.

A mensagem postada pelo filho do presidente era tão absurda que foi apagada depois. Eduardo Bolsonaro estava fazendo mais um ato explícito de vassalagem ao governo de Donald Trump, que está nos seus dias finais. Como foram muitas outras agressões dele, de Araújo, do próprio presidente, a embaixada chinesa reagiu falando que o deputado está solapando as relações entre os dois países. E disse que ele deveria “evitar ir longe demais” para não “arcar com as consequências negativas”.

A China é o nosso maior parceiro comercial, um dos maiores investidores. Mesmo que não fosse, não há razão alguma para que se dê ao filho do presidente o direito de ofender qualquer país na hora que decide postar algo nas redes sociais.

A relação Estados Unidos e China vai passar por um outro momento agora com a posse de Joe Biden. Pode vir a ser até mais tensa do que antes. Com Trump, havia escaramuças intempestivas, ataques via Twitter, idas e vindas. Com Biden, haverá mais estratégia na disputa que continuará existindo entre as duas potências. Mas, uma carta no baralho chinês, em qualquer contexto, será sempre a de aumentar as compras de soja e de outras commodities agrícolas no mercado americano. Nesse caso, o agronegócio exportador brasileiro pagará a conta. Se os empresários não se insurgirem, se acharem que basta resmungar, estarão mais vulneráveis.

Em artigo publicado ontem no “New York Times”, o analista David Leonhardt disse que o governo Trump foi um presente para a China. “Ele antagonizou aliados que estavam também preocupados com o crescimento da China, em vez de construir uma coalizão com Japão, Europa, Austrália e outros.” Foi, segundo ele, citando um professor chinês da London School, um “presente estratégico para a China”. De fato, nesta hora poente de Trump no poder, a China fechou um acordo, no último dia 15, com um grupo de 15 países asiáticos, inclusive o Japão, considerado o maior acordo de livre comércio do mundo. Trump havia retirado os Estados Unidos da Parceria Transpacífica, costurada por Barack Obama, para estabelecer com vizinhos da China um acordo de comércio. A China aproveitou o erro de Trump e fez seu próprio tratado. Esse episódio mostra como a diplomacia é um jogo para profissionais. Amadores acabam atirando sempre no próprio pé.

Biden, em artigo publicado na revista “Foreign Affairs”, disse que os Estados Unidos precisavam ser “duros” com a China. Com Biden, os Estados Unidos voltam ao multilateralismo, mas a rivalidade com os chineses continuará. Só que, ao mesmo tempo, na área comercial e econômica, há uma simbiose entre os dois países, ao contrário do que havia na bipolaridade da Guerra Fria. Diante de relação tão complexa, cabe ao Brasil não tomar partido, porque a missão da política externa brasileira é defender os interesses brasileiros.


Míriam Leitão: O que a turma do Planalto não faz

Na frente de quatro chefes de Estado, o presidente do Brasil disse algo do qual recuou 24 horas depois. O fato mostra que não houve assessor, ministro, qualquer pessoa no gabinete ou na estrutura do Palácio que o alertasse de que ele não deveria ameaçar revelar uma lista de países supostamente cúmplices do desmatamento, porque não teria capacidade de sustentar o que dizia. O episódio mostra que o país não tem apenas um presidente irresponsável, tem uma presidência irresponsável.

Em qualquer governo há uma estrutura em torno do chefe de Estado que o alerta, informa e assessora. O Brasil de Bolsonaro não tem isso. Ou é falta de qualificação de quem está em torno dele ou é falta de coragem de enfrentar um presidente temperamental. Não se sabe se aquela estultice estava escrita no texto que ele lia ou se foi um improviso inconsequente. Mas o fato é que dois anos depois de assumir a presidência ele continua desrespeitando o papel de representante do país nos seus encontros internacionais.

Ele falou para os governantes da China, Índia, Rússia e África do Sul que em breve revelaria os nomes dos países que compram madeira ilegal do Brasil, mostrando entre eles “alguns que muito nos criticam”. No dia seguinte, em rede social, disse o oposto. “A gente não vai acusar país A, B ou C.” Ou seja, o presidente do Brasil mentiu. De novo. E diante daquelas testemunhas, quatro chefes de Estado.

Bolsonaro foi um deputado irresponsável, que se especializou em acusar sem provas ou dizer coisas que chamavam atenção pelo absurdo, como ameaçar fuzilar o ex-presidente Fernando Henrique, dizer que a ditadura deveria ter matado 30 mil, e que não estupraria a deputada Maria do Rosário porque ela não merecia.
Os três fatos narrados acima são crimes. Foram vários outros. A Câmara optou, em seguidos mandatos, por deixar ele cometer esses crimes e jamais o puniu. A deputada Maria do Rosário o processou, mas a Justiça foi tardia e falha. Foi assim que Bolsonaro chegou à presidência, ficando impune de crimes de ameaça de morte, defesa da tortura, atentado à democracia, homofobia, ataques às mulheres e racismo. Ele levou esse estilo para a presidência. Mente e faz bravatas diante de seus apoiadores no cercadinho do Alvorada, mente e faz bravatas diante de chefes de Estado.

Não há qualquer anteparo. Nada que proteja o Brasil dos absurdos do presidente da República. Esse caso deixa nua a própria presidência, dado que ninguém o impediu de falar o que falou. O que disse mostra que ele é um desinformado, como já escrevi aqui. Mais de 80% do que o Brasil extrai de madeira da Amazônia é vendido para o próprio mercado brasileiro, segundo estudo do Imazon. Os empresários do setor também confirmaram isso e disseram que atualmente não chega a 15% o que é exportado. Países não importam, empresas, sim. E se sabemos quem compra então sabemos quem vende, como lembrou uma servidora do Ibama num telefonema para a CBN. Empresas que exportam legalmente, que cumprem as leis do país serão punidas agora com o fechamento do mercado para o Brasil. É gravíssimo insinuar que existe em poder da presidência brasileira uma lista de países receptadores de crimes ambientais.

Há erros seriais na declaração de Bolsonaro no Brics. E isso para ficar só num pequeno trecho do discurso cheio de equívocos que leu. A política ambiental é um atentado à economia. Diariamente o presidente dá razões para que se fechem mercados, que não se confirmem acordos, que o Brasil seja isolado comercial e economicamente. As empresas, os bancos, os fundos, o agronegócio exportador, todos estão alertando sobre isso. Mas o ministro da Economia quando fala sobre a questão ambiental repete a visão calamitosa do presidente da República.

Bolsonaro comete essas barbaridades e a estrutura da presidência não o impede, o ministro das Relações exteriores o estimula, o ministro da Economia confirma, o ministro da Justiça senta-se ao lado dele, com a Polícia Federal, para tentar, depois do fato, consertar o que não tem conserto. Foi um caso exemplar de desgoverno. Esta administração dá provas diárias de que é um perigo para o país em todos os sentidos, na gestão interna e nas relações internacionais. Uma presidência totalmente irresponsável.


Míriam Leitão: O futuro chega muito devagar

O sangue de João Alberto ficou no chão do supermercado e ele sem vida já não gritava. Essa foi a cena final. Aos 40 anos, Beto foi morto por asfixia, depois de espancamento. Como na escravidão. Foi em Porto Alegre, horas antes do dia da Consciência Negra. O racismo é o nosso pior defeito. Quando a gente pensa que o país está evoluindo, vem um soco no estômago. O Carrefour repudiou o ato, mas os funcionários da empresa terceirizada se sentiram autorizados a espancar uma pessoa até a morte, em cena pública.

Há fatos a comemorar nos últimos tempos. Mulheres negras foram eleitas para diversas câmaras de vereadores. Empresários e executivos negros, novas formas de contratação, começam a mudar o mundo corporativo. A propaganda, a moda passaram a ter vergonha de ter apenas modelos brancos. Há duas histórias para contar no Brasil, a dos crimes do racismo estrutural, a da resistência antirracista. Dias atrás, nas ruas de Curitiba, uma jovem candidata a vereadora era saudada com gritos:

— Carol, vamos fazer história!

Carol Dartora (PT) começou sua campanha para a Câmara Municipal com o lema: “Curitiba nunca teve uma vereadora negra, não reproduza essa história.” Por isso alguns curitibanos que cruzavam com a candidata nos dias finais da campanha davam esse grito de esperança. Ela foi eleita. Conversei na última quinta-feira com uma radiante Carol e pedi que ela me contasse sua história. No relato, há as agressões, a consciência, a militância. A vereadora assumirá com a pauta extensa de mudanças com as quais sonha, que vão da passagem dos ônibus aos crimes contra os negros:

— Temos que discutir a passagem de ônibus, muito cara para a comunidade negra que foi empurrada para a periferia e que tem que pagar duas a três passagens. Temos que olhar para o extermínio da juventude negra. Trago comigo o feminismo e o feminismo negro. Como historiadora, quero discutir o passado. Como professora, a educação pública de qualidade.

Assim, cheia de sonhos, Carol se prepara para assumir. Horas depois, em Porto Alegre, João Alberto seria agredido até a morte. O racismo usa todas as formas, até o assassinato, para dizer ao negro que ele não pertence ao lugar onde merece estar. Seja num supermercado, seja numa escola.

Carol estudou em boas escolas públicas. O pai era servidor do Tribunal de Justiça, a mãe, professora:

— Eu sou preta, preta retinta. E pobre. Mas o Brasil é tão desigual que o pouco que tínhamos acabou me levando a estar sempre onde havia poucos negros. Estudei em boas escolas públicas, mesmo sendo públicas, havia principalmente brancos.

Estudiosa, ela tirava notas boas. Certa vez, uma professora mostrou o quanto isso a incomodava.

— Ela me disse: ‘você tirou nove?’ E me separou de minhas amigas, mandando eu sentar na última carteira.

Um dia, o pai comprou para ela uma bicicleta nova e ela foi para a escola com a sua bicicleta:

— Fui hostilizada a tarde inteira, pelos meninos e meninas. Era como se eu, preta, não pudesse ter uma bicicleta novinha. Quando eu estava saindo para voltar para casa, umas crianças me perseguiram, me xingando e chutando a bicicleta. Eu cheguei em casa transtornada, chorando muito. Minha mãe foi à escola, um professor disse que viu. Viu e nada fez.

Ela se formou em História disposta a entender o passado, foi dar aula numa escola pública central e renomada. Reviu, numa aluna negra, a mesma história de injúria racial que viveu. Resolveu pesquisar o cotidiano dos alunos. Seu mestrado foi sobre as adolescentes negras da escola pública em Curitiba:

—Tudo foi se juntando. Curitiba é uma cidade que se proclama como europeia, que dá aos negros a sensação de não pertencimento. A vivência das mulheres e das mulheres negras, a luta pela educação de qualidade. Eu fui consolidando o entendimento. O muro é muito alto — nunca houve uma vereadora negra em Curitiba — mas decidi escalar. Era sonho e dava medo.

Ela realizou. Há outras vitoriosas. Ana Lúcia Martins (PT) foi eleita a primeira vereadora negra de Joinville. Foi ameaçada de morte. O Brasil muda devagar. Antes de terminar, Carol quis dar um último recado:

— As pessoas me perguntam se eu acho possível superar o racismo. Eu digo que obviamente sim, porque se ele foi criado, foi inventado, foi construído, pode ser desconstruído.

Que o sonho de Carol chegue logo. Já nos atrasamos muito.


Míriam Leitão: Uma nova onda e o mesmo tormento

Nós brasileiros estamos submetidos a longo sofrimento, a uma dor que se desdobra em várias aflições neste ano em que “distopia” deixou de ser forte o suficiente para descrever o que vivemos, virou uma palavra pálida. Quando o país achava já ter vivido tudo, começam os sinais de que a pandemia vai se agravar. Mais mortes, mais doentes, mais saudades, mais erros do governo. Como o presidente se atreve a ser assim tão desrespeitoso com a vida humana, por tanto tempo? Como o ministro da Saúde consegue ser tão servil a um presidente que ameaça a saúde pública, pela qual ele deveria zelar?

Quando o Ministério acerta em uma postagem breve, o recado é censurado. Na quarta-feira, às 10h44, o aviso do Ministério da Saúde foi de que “não há vacina, substância ou remédio que previnam” a Covid-19. Portanto, “a nossa maior ação contra o vírus é o isolamento social e a adesão das medidas de proteção individual”. O recado foi retirado e substituído por postagens recomendando apenas o “tratamento precoce”. Pode-se imaginar o que houve. O presidente enquadrou o ministro. E o general mostrou de novo que para ele obedecer a uma ordem é mais importante do que cumprir seu dever. Ele está no comando da área da Saúde no meio de uma pandemia que sangra o país, mas para Pazuello o importante é o lema: “Ele manda, eu obedeço.”

A Constituição, à qual o general deve obediência muito maior, estabelece que é crime impedir alguém de cumprir o seu dever. Releia, ministro, os artigos 196 a 200 da Constituição Federal, que o Brasil escreveu após a ditadura. Aquela que é o nosso pacto social, nossa Carta Política. Eles definem os direitos e deveres do Estado na Saúde. As políticas públicas, diz o texto, devem reduzir o risco à doença e oferecer serviços de proteção. A rede de saúde é regionalizada e hierarquizada no Sistema Único, o nosso valioso SUS. Deve haver, ao mesmo tempo, descentralização e direção central. Portanto, é irrenunciável o papel de coordenação do governo federal. Mas não pode ser, como tem sido com Bolsonaro, no sentido inverso ao da proteção da saúde. Veja o artigo 200. Está escrito “executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica”. E lembre-se, ministro, dos momentos difíceis que passou com o coronavírus no corpo. “Estou zero bala”, disse ao presidente. Estava não general, estava entrando num túnel de dúvidas e angústias que muitos brasileiros vivem neste momento. E outros temem. Sim, temem. Isso não nos diminui, não nos transforma em fracos, como o presidente diz, com palavras carregadas de preconceito. Quem protege a própria vida ajuda a proteger a coletividade. O recado sensato do Ministério da Saúde foi eliminado porque houve, disseram, “erro humano”. O erro foi acertar.

Que as autoridades, todas elas, releiam o artigo 85 da Constituição, que descreve o que são os crimes de responsabilidade. O presidente já os cometeu várias vezes, além de infringir outros códigos. O artigo 2º da Lei 1079, a do impeachment, diz: “Os crimes definidos nesta lei, ainda quando simplesmente tentados, são passíveis da pena de perda de cargo”. Um desses é ameaçar os direitos sociais, como o da saúde.

Está havendo um crescimento dos casos de infecção, internação e morte. Ontem, em entrevista ao Jornal da CBN, o presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde, Carlos Eduardo Lula, disse que não dá para enfrentar a segunda onda sem ter uma coordenação federal nas políticas. Várias questões, segundo ele, têm que ser “capitaneadas pelo Ministério da Saúde”. O secretário lembrou que não haverá Natal, nem Ano-Novo, como normalmente vivemos.

Está sendo duro para todos nós. Cada um sabe a dor de viver o que vive. A solidão, o distanciamento, as renúncias, a saudade, a expectativa na espera de um exame, a dor da perda, o luto dos funerais apressados. Os que perderam seus entes queridos sofrem muito mais. Mas há uma dor coletiva, um sofrimento difuso no ar.

O Brasil está entrando em uma nova onda de agravamento da doença sem qualquer esperança de que o presidente mude seu comportamento. Estamos passando por um tempo extremo, com um governante que em nenhum momento, nestes duros oito meses, mostrou qualquer empatia pelos que sofrem. E além da falta de solidariedade, Bolsonaro também não entendeu, ainda, o papel do governo federal numa calamidade.


Míriam Leitão: Um país assim complicado

Tudo é sempre um pouco mais complicado quando se trata de política brasileira. Os partidos nem sempre são o que parecem, o centrão é de direita, o DEM veio do PFL, que veio do PDS, que nasceu na Arena, partido da ditadura, mas isso não quer dizer que seus líderes concordem com a defesa que Bolsonaro faz da mesma ditadura. O PSD é de Gilberto Kassab, político que se adapta a qualquer governo, mas o prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil, a maior vitória do partido, é crítico do presidente, principalmente da política de combate à pandemia.

A política brasileira é toda matizada, confirmando a lendária afirmação de que o Brasil não é para principiantes. O novelo das tendências políticas é tal que para entender é preciso puxar fio por fio.

O DEM tem maiores ambições, segundo aviso do seu presidente, ACM Neto, dado na entrevista publicada ontem pelo “Valor”. Quer ter um candidato ou estar na chapa da próxima disputa presidencial. Ele se fortaleceu neste primeiro turno. Aumentou o número de prefeituras e foi o que mais fez prefeito de capital logo na primeira rodada, entre elas, Salvador, onde o eleito Bruno Reis teve o maior percentual de votos e sucede a duas administrações de ACM Neto. Por que esse capital eleitoral seria posto a serviço de um presidente sem lealdades e com posições extremistas? Não seria neto de quem é se fizesse essa opção.

Na primeira República, os partidos eram estaduais. Tem horas que parece que esse DNA está ainda presente nas agremiações. O mesmo partido tem alianças diferentes dependendo da unidade da federação. Cada caso tem uma história à parte. Cada estado tem uma história toda particular de alianças, heranças e tendências.

O Acre tem uma história de extremos. Foi o primeiro estado em que o PT foi para um segundo turno, com Jorge Viana, em 1990. Depois de ser prefeito de Rio Branco, ele chegou ao governo do estado com a bandeira ambiental. Ficou dois mandatos. Veio o governo Binho Marques, que não quis concorrer à reeleição, apesar de 64% de aprovação. Em seguida, veio o criticado governo de Tião Viana. O PT teve cinco mandatos no governo estadual e quatro na prefeitura, chegou a eleger três senadores e a maioria da bancada federal. Nesta eleição, não conseguiu eleger um único vereador na capital.

Em 2018, o Acre deu a maior vitória a Bolsonaro, 82,77% dos votos. Elegeu o senador Márcio Bittar (MDB), um radical antiambiental. Junto com Flavio Bolsonaro (Republicanos) propôs o fim de qualquer reserva legal. Nesta eleição, Rio Branco levou para o segundo turno o pecuarista Tião Bocalom (PP), do mesmo partido do governador, que por sua vez apoiou a atual prefeita Socorro Neri (PSB), que está no segundo turno. Apesar da vitória acachapante em 2018 e da guinada conservadora permanecer em alta, a popularidade do presidente caiu no Acre. O único candidato que assumiu a defesa de Bolsonaro foi Ruy Duarte (MDB), que ficou em quarto lugar. O socioambientalismo sobrevive no Vale do Acre, onde nasceu, com destaque para a reeleição do prefeito de Xapuri.

O Espírito Santo teve vários governos de esquerda ou centro-esquerda, deu vitória de 63,19% a Bolsonaro em 2018. Hoje, a taxa de aprovação do presidente é de apenas 28%. O segundo turno em Vitória será disputado entre João Coser (PT), e Delegado Lorenzo Pazolini (Republicanos). Apesar do partido de Pazolini, quem teve o apoio de Bolsonaro lá foi o Capitão Assumção, um dos líderes do motim da Polícia Militar.

Qualquer estado que se olhe tem particularidades e nuances inesperadas. No Rio, o PSOL amargou um 6º lugar na disputa para a prefeitura, mas fez o vereador mais votado, Tarcísio Motta, e uma bancada de sete vereadores, tão grande quanto a do DEM e a do Republicanos que disputam o segundo turno. Em São Paulo, PT e PSDB fizeram a maior bancada, ambos com oito vereadores. Mas o PT ficou em 6º na disputa pela prefeitura. O PSOL, que foi para o 2º turno, fez a segunda maior, empatado com o DEM, que nem candidato majoritário teve.

O mesmo centrão que esteve nos governos de Fernando Henrique, Lula, Dilma e Temer está hoje com Bolsonaro, mas pode não estar. Segundo a definição de um político experiente: “O centrão troca de camisa quando sente o cheiro de mudança. Num dia era ‘presidenta’ Dilma, no outro votava pelo impeachment.” A política é assim complicada no Brasil.


Míriam Leitão: Muitas dimensões de uma derrota

A maior derrota do presidente Jair Bolsonaro é no campo das ideias. Ele defendeu o descuido com a vida, o eleitor premiou quem a defendeu. Ele quis extremismo, o eleitor, moderação. Ele ofende minorias, e as urnas elevaram a diversidade das câmaras de vereadores. Ele administra de forma errática, o eleitor quis boa gestão. Ele ameaça a democracia, o eleitor a defendeu. Sua derrota tem várias dimensões. A mais importante está ligada à pandemia. O “e daí?” pra vida dos brasileiros levou uma surra nas urnas.

Saiu perdedora a ideia de que sem estrutura partidária, com apenas os filhos e a milícia digital, ele poderia decidir o voto dos brasileiros. O principal recado do eleitor foi o de que confia na democracia e no sistema eleitoral, alvos contra os quais dispara constantemente. Ontem, voltou a atacar, logo cedo, depois de uma confessada noite mal dormida.

É natural que perdedores apresentem versões para atenuar as dimensões da derrota. E foi isso que fizeram ontem o presidente e seu vice, Hamilton Mourão. Bolsonaro disse que ganhou a direita conservadora e que a esquerda perdeu. Mourão disse que “sem uma estrutura partidária fica difícil”, e que ele “não entrou de cabeça”.

Há vários erros nessa reação. Quem implodiu a própria estrutura partidária foi Bolsonaro. E por quê? Porque ele sempre desprezou os partidos, esteve em 10, levou o PSL a ter a segunda maior bancada e o maior fundo eleitoral. Esse capital eleitoral foi destroçado pelo presidente e seus seguidores. Em dois anos, o PSL virou um nada. Repete o PRN de Collor, de existência curta. Com o Aliança, ele colheu a maior derrota da história da criação de partidos. A visão falsa dos fatos é a forma de Bolsonaro negar aos seus seguidores que ele seja um derrotado, que de fato é. O segundo turno de São Paulo, entre o PSDB e o PSOL, é apenas o exemplo mais visível disso.

Houve um aumento da representatividade de negros, mulheres, pessoas trans, grupos que ele ofende de forma jocosa. Desses grupos, Bolsonaro tira tudo. Internamente, nega-lhes o apoio de políticas públicas, externamente tira-lhes a voz com uma diplomacia estreita e alinhada aos países mais preconceituosos e fundamentalistas. Nesse aspecto, é dupla a sua derrota. Primeiro, os grupos que quer apagar da política ganharam mais espaço nas câmaras de vereadores. Segundo, esse aumento de representação amplia a democracia, que ele tem tentado minar. A democracia se fortalece quando é capaz de ter pessoas de todos os grupos da sociedade dentro dos espaços de decisão. São mais valiosos ainda nesse processo os que entendem a importância de combate às velhas discriminações. Pessoas negras que neguem o fosso racial histórico — visível, inegável — acabam tendo um efeito bumerangue. A mesma coisa ocorre no caso de mulheres que defendem a submissão aos homens. Consolidam o que se deve combater.

O presidente amanheceu admitindo não estar bem. É compreensível. Mas, mesmo indormido, permanece incansável no ataque à democracia. Ontem, voltou a dizer que o sistema brasileiro de apuração de votos, através da urna eletrônica, não é confiável. “Se nós não tivermos uma forma confiável de apurar as eleições, a dúvida vai permanecer”, disse ele disseminando mais uma vez a dúvida sobre o sistema brasileiro. Desacreditar a apuração é o método — aqui e nos Estados Unidos — de conspirar contra a própria democracia. O que houve foi que o sistema brasileiro foi atacado mas não foi atingido. Bolsonaro prometeu apresentar provas de que houve fraude na eleição que ele venceu em 2018. Nunca as apresentou.

Há muitas contas provando que ele é o derrotado nas eleições. Em São Paulo, o fiasco foi imenso. Na maior cidade do Brasil os dois candidatos confirmaram na primeira fala após o resultado que são contra as suas ideias. Bruno Covas (PSDB) deixou isso claro quando falou em “tolerância, valores democráticos e respeito à diversidade religiosa”. Seu adversário, Guilherme Boulos (PSOL), disse que era uma vitória contra Bolsonaro. Os balanços não deixam dúvidas de quem é o derrotado nesta eleição. Mas o mais importante não é um governo de estado a mais ou a menos, mas a ampla consagração das ideias de moderação, diversidade, boa gestão e proteção da vida ameaçada pela pior pandemia em um século, cuja gravidade ele ignora.


Míriam Leitão: O derrotado e o nosso risco

O grande derrotado desta eleição é Jair Bolsonaro. Publiquei essa frase aqui no dia primeiro de novembro, com base em entrevista com o cientista político Jairo Nicolau. Existem duas dimensões da derrota, a dele mesmo e a dos seus candidatos. Por outro lado, existem as perdas diárias do Brasil com este governo. Nessa última semana, Bolsonaro debochou do país, comemorou um evento que envolvia a morte de um jovem, indicou o quanto quer interferir na Anvisa, mostrou desprezo pela vida humana, e no fim de um dia de atitudes repulsivas falou em guerra contra os Estados Unidos. Essa última fala é tão ridícula que não merece ser analisada. O que o incomodou mesmo foi o fato de o senador Flávio Bolsonaro ter sido denunciado.

O grande projeto do presidente é ele mesmo e seus filhos. Ele é tão desagregador que dispersou até as forças com as quais chegou ao poder, há dois anos. Brigou, humilhou, traiu um grande número de aliados. Chegou a esta eleição sem partido. A Aliança, legenda que tentou criar, foi, segundo definição de Jairo Nicolau, “o maior desastre da história da formação dos partidos”. Os candidatos que apoiou estão tendo um fraco desempenho e sua reprovação está subindo.

Eleição municipal tem outra lógica, como ensinam os especialistas. Mas o bom desempenho eleitoral de administradores que levaram a pandemia a sério revela que o eleitor reprova o desprezo que o presidente demonstrou com os riscos da pandemia, que vai do “e dai?” ao “país de maricas”.

O argumento do cientista político Jairo Nicolau foi que Bolsonaro malbaratou seu próprio capital político. “Ele perde para o que poderia ter sido” se tivesse usado o impulso da sua eleição para organizar o seu campo político. Mas ele perde também pela trajetória daqueles que apoiou nesta campanha. A incompetência de Bolsonaro é um alívio, dado que seu projeto é obter vantagens para ele e seus filhos, desmontar a ordem constitucional e iniciar outro ciclo autoritário.

A questão é que o Brasil na gestão Bolsonaro tem perdido demais. Perdido vidas, tempo, rumo, inserção no mundo, valores civilizatórios, florestas, coesão social. Nesses quase dois anos, o país retrocedeu e as instituições foram fracas. Não defenderam o nosso patrimônio político. Como é possível que ele não tenha enfrentado um processo de impeachment depois de ter, em plena pandemia, realizado por sete domingos consecutivos manifestações antidemocráticas? Atentou contra a saúde e a Constituição ao mesmo tempo, e qual foi a resposta? Notas de repúdio e um processo no Supremo no qual ele não é o alvo, mas apenas os financiadores dos atos. Bolsonaro foi para frente do quartel-general do Exército e disse que as Forças Armadas estavam com ele. E qual foi a resposta? Alguns generais, inclusive da ativa, e o ministro da Defesa estiveram com ele na maioria desses atos. As Forças Armadas foram usadas como espantalho contra seu próprio povo. E aceitaram. A declaração do general Edson Pujol foi um alento na sexta-feira, mas com a nota de ontem voltou-se à ambiguidade.

Então, sim, a última semana foi ruim para Jair Bolsonaro. Seu filho foi denunciado pelo Ministério Público estadual, e nos Estados Unidos seu farol político foi derrotado. Perdeu do Rio a Washington. Terá um desempenho pífio nas eleições. O mais importante, contudo, é o que o país perde diariamente por ter um presidente como Jair Bolsonaro. Ele mentiu quando disse que a vacina, desenvolvida pela China e o Instituto Butantan, provoca “morte, invalidez e anomalia”, e não foi cobrado por isso. A Anvisa teve que liberar o retorno dos testes, porque ficou escandalosa a suspensão, mas Bolsonaro deu mais um passo na destruição da credibilidade da Agência de Vigilância Sanitária indicando o coronel da reserva Jorge Luiz Kormann para a diretoria do órgão. Ele é obviamente a pessoa errada: sem notório saber, negacionista da ciência, divulgador de fake news, autor da tentativa de manipular números da Covid. Não tenho esperança de que o Senado o rejeite. O Congresso tem ajudado o presidente a desmontar instituições confirmando todas as suas indicações desastrosas.

Uma eleição municipal tem muitos significados, mas claramente esta não fortalecerá o movimento que levou Bolsonaro ao poder. Entretanto, o triste balanço desses 22 meses e 15 dias é que Bolsonaro tem dilapidado o legado dos constituintes de 1988. E a resposta das instituições tem sido fraca diante do dimensão do risco.


Míriam Leitão: Além da moeda instantânea

No dia da eleição americana, havia uma animação no Banco Central brasileiro. Nada a ver com o que se passava nos condados azuis e vermelhos. Era o primeiro dia de testes de um sistema de pagamentos que começou a ser arquitetado há cinco anos. Para o cliente, o pagamento instantâneo, chamado de PIX, pode parecer apenas uma comodidade, mas, segundo o diretor do BC João Manoel Pinho de Mello, ele levará a mais competição, menores custos e mais inclusão no sistema financeiro. A nova forma de pagar começa a operar na segunda-feira com a expectativa de mudar a relação que o brasileiro tem com o dinheiro. Se conseguir diminuir a concentração do nosso mercado bancário já terá provocado um efeito importante.

O objetivo do PIX, como todo mundo entendeu, é que o dinheiro e a informação trafeguem de forma imediata. Cerca de 10 segundos, em média, segundo o Banco Central. E sem custos para pessoas físicas. Os clientes que pagam taxas em transferências terão redução de despesas, os credores terão menos riscos porque saberão na hora que as dívidas foram quitadas.

— Imagine uma carga no porto que precisa de várias guias de pagamento para ser liberada, com diversos órgãos de governo. Esse processo pode levar dias. Com o pagamento instantâneo, será na hora. O dinheiro chega em uma ponta e a informação de quitação volta na outra. Isso vale para tudo, é ganho de produtividade na economia — explicou Pinho de Mello.

As mudanças microeconômicas no sistema financeiro vêm buscando há muitos anos o mesmo objetivo: spreads menores. No BC, eles garantem que os juros caíram muito e em algumas linhas já são compatíveis com níveis internacionais. Ainda não é o que todo tomador sente. Com mais participantes nesse mercado de transação financeira, pode haver, num segundo momento, um custo do crédito menor. Com mais gente oferecendo empréstimos, a aposta é que os juros possam cair.

Para o pequeno empreendedor, por exemplo, espera-se o incentivo ao chamado nanocrédito, pequenas e rápidas operações de financiamento. Como a transferência não tem custos ou um custo bem menor do que o atual nas transações entre firmas, um comerciante pode, por exemplo, adiantar a passagem de ônibus de um fornecedor que lhe venda produtos mais baratos e de melhor qualidade. Hoje, o preço do TED e do DOC inviabiliza a margem dessas operações menores. Esse é só um pequeno exemplo de como o pagamento instantâneo pode ter efeito na ponta da economia.

Os bancos perderão as receitas com o TED e o DOC. O Banco Central não tem uma conta fechada, mas estima que somente o TED de pessoas físicas chegue a R$ 500 milhões por ano. João Manoel acredita que eles não vão fazer o truque de sempre — elevar outra tarifa para compensar a perda. Acha que também terão uma forte redução de custos.

— O dinheiro ainda é o principal meio de pagamento do país, e isso custa muito para os bancos, em termos de transporte, logística, segurança. Quanto mais o pagamento eletrônico instantâneo for usado, menores serão os custos para os bancos — explicou.

Há um problema. Somente os 35 maiores bancos terão acesso à conta de liquidação financeira do Banco Central, onde as informações serão processadas. As menores instituições, como as fintechs e cooperativas de crédito, terão que pagar uma taxa para usar esse sistema através dos bancos maiores, e o receio é que eles imponham custos que inviabilizem a competição. João Manoel diz que o Banco Central estará atento para evitar esse risco:

— O grande banco é o chamado participante direto, que tem acesso ao sistema do Banco Central. É assim porque é caro acessar o BC e não faria sentido impor isso a todos. Mas o grande não pode ter preços diferentes para os clientes indiretos. O próprio BC vai fazer essa fiscalização para que haja competição entre eles.

A “guerra das chaves” que acontece hoje, ou seja, as campanhas publicitárias pelo cadastro dos clientes, tem explicação. O que está em jogo agora é conseguir os dados, para que os clientes sejam fidelizados depois. Outra aposta do BC é que essas informações deem mais segurança aos bancos, que poderão reduzir os juros.

Há outras modernizações sendo feitas. O Cadastro Positivo entrou em operação em fevereiro, e o Banco Central tem acelerado os testes e os estudos para que o chamado open banking — quando o cliente permite que várias instituições tenham acesso aos seus dados — entre em vigor em 2022. Essa é a agenda para os próximos anos no sistema financeiro e que pode fazer com que o custo do dinheiro caia de forma estrutural no Brasil.


Míriam Leitão: Erros e omissões na crise do Amapá

O caso do Amapá é resultado de uma sucessão de erros de diversos órgãos. A infraestrutura é totalmente insuficiente, a distribuidora é estadual, mas desde 2015 é controlada pela Eletrobras. Em Brasília, há um jogo de empurra entre a Aneel e o ONS sobre quem deveria ter agido para evitar esse cenário. Ele era previsível, porque há um ano um dos três transformadores do estado estava quebrado. A companhia de transmissão foi comprada por um fundo abutre, que pouco entende do assunto. O Ministério das Minas e Energia aceitou ser parte de um teatro para o presidente Bolsonaro faturar politicamente.

O estado é conectado ao Sistema Interligado Nacional (SIN) por apenas uma rede de transmissão com três transformadores. Com o quebrado, sobraram dois. A empresa diz que um raio caiu sobre um, que queimou o outro. Ontem, no entanto, a defesa civil emitiu um laudo negando essa hipótese. Não havia guarnição do Corpo de Bombeiros na subestação para atuar imediatamente. O risco era previsível. Ninguém agiu preventivamente, nem o ONS, nem a Aneel nem o Ministério das Minas e Energia. A empresa estadual de distribuição opera em regime jurídico precário, ou seja, sua concessão chegou ao fim e foi prorrogada provisoriamente. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, está preocupado com o irmão, que concorre à prefeitura de Macapá.

O governo federal demorou a agir. Para se ter uma ideia, quando o Amapá já estava às escuras há três dias, o presidente Jair Bolsonaro pegou um voo na direção oposta. Foi ao Paraná para inaugurar uma pequena central hidrelétrica, que nada tem a ver com a crise. Na segunda, Bolsonaro tentou faturar politicamente. Postou que 76% da energia no estado já havia sido restabelecida. Era falso. Havia um fornecimento intermitente, com rodízio entre as regiões, e há queixas de que as áreas mais ricas estão sendo beneficiadas.

Pior foi o vídeo que Bolsonaro postou. Nele, o ministro Bento Albuquerque aparece abraçado a duas pessoas. Uma mulher fala seguidamente em Deus, compara Bolsonaro a Moisés e diz que a energia está restabelecida. O ministro completa: “Parabéns presidente Bolsonaro, estou aqui com os seus filhos”. Mistura explosiva: a luz não estava normalizada ao contrário do que o vídeo fazia crer, o ministro de área técnica reforçava a exploração demagógica da pobreza, e tudo isso usando o nome de Deus. Qualquer evento, por mais trágico ou penoso que seja, está sempre sendo usado nesta abusiva propaganda eleitoral totalmente fora de época, para 2022.

O sistema elétrico brasileiro é dividido em três tipos de empresas: as geradoras, que produzem a energia, as transmissoras, que levam energia por todo o país, e as distribuidoras, que fazem a conexão com o consumidor final. O problema aconteceu na transmissão, com o incêndio na subestação que receberia a energia do sistema e repassaria à distribuidora estadual.

— A maior responsabilidade pela crise é da empresa transmissora, que era de um grupo espanhol, Isolux, que faliu. Foi comprado por um fundo abutre, que pouco entende do setor elétrico. Mas o que espanta é que em Brasília os órgãos reguladores não fizeram nada com a quebra do primeiro transformador. Se um estivesse funcionando, não haveria o caos que estamos vendo— explicou um especialista do setor.

O consumo de energia no Amapá é baixo, cerca de 250 MWmédios, porque a população é pequena, cerca de 850 mil habitantes. O problema não é falta de energia, mas a infraestrutura precária do setor elétrico no estado, que concentrou os riscos em uma única subestação.

A Aneel baixou portaria na semana passada autorizando a Eletronorte a contratar energia extra, mas os técnicos não sabem como essa energia chegará no curtíssimo prazo. Geradores a óleo diesel têm sido enviados à região. A agência, como sempre, repassou a conta não aos responsáveis pelo problema, mas aos consumidores do país, pendurando mais esse encargo na conta de luz.

A crise está sendo usada para vários lobbies. Tem o que culpa a privatização. Só que venda de empresa com boa regulação já resolveu muito problema no passado. Há quem defenda que tem que construir gasoduto, há quem queira a construção de nova linha de transmissão. Não seria melhor, em vez de obras caras, pensar num sistema mais autônomo para locais muito distantes dos grandes centros consumidores? Apesar dos ganhos com o SIN, há também muitas vulnerabilidades. Um investimento em geração distribuída com energia renovável poderia dar mais segurança a quem importa: os consumidores.


Míriam Leitão: Um presidente que atormenta

O Brasil está vivendo a maior tragédia de saúde pública em um século, e o presidente comemora. Há 162 mil mortos, e o presidente diz “mais uma que Jair Bolsonaro ganha”. Não há vitória para qualquer pessoa num país que conta seus mortos. Esta é uma guerra pela vida que deveria unir, que tinha que seguir o comando apenas da ciência e da medicina. O drama que levou uma pessoa de apenas 33 anos não pode ser vitória de ninguém. Esta não é a primeira vez que Bolsonaro atenta contra a saúde pública espalhando descrédito contra uma vacina que pode vir a ser aprovada, não é a primeira vez que ele trata essa calamidade nacional como se fosse uma disputa de egos ou o palanque antecipado de 2022.

Até quando as instituições vão ignorar o fato de que há crime envolvido nisso? Vários crimes. Tipificados e arrolados no Código Penal para quem ameaça a saúde pública e o faz dessa forma, insistente e cotidianamente. Desde o início da pandemia, o presidente Bolsonaro cometeu inúmeros absurdos como o de combater a proteção contra o vírus. Ontem o país amanheceu com mais um tormento criado por ele.

Ele postou que a vacina que está sendo pesquisada pelo Instituto Butantan e a Sinovac na China traz “morte, invalidez e anomalia”. Não há qualquer comprovação. A postagem delinquente diz ainda que essa é a vacina que o “Dória queria obrigar a todos os paulistanos a tomá-la”. Com essas palavras ele está considerando a suspensão da Anvisa como definitiva? E termina com a frase horrenda, dadas as circunstâncias envolvidas, a de que é “mais uma que Bolsonaro ganha”.

A consequência foi lançar sobre a Anvisa a dúvida da politização. Os brasileiros precisam da Anvisa técnica, mais do que nunca. Os servidores certamente vão seguir seus protocolos com responsabilidade. Mas o evento cria uma névoa sobre a agência. Em nenhum momento, na entrevista de ontem, a Anvisa esclareceu que não considera que a vacina cause o que o presidente insinuou. O contra-almirante Antonio Barra Torres, para defender a agência que preside, deveria negar o que o presidente disse. Preferiu a tangente, ao dizer que não teceria comentários sobre questões políticas. Mas o que Bolsonaro tinha dito era um diagnóstico: “morte, invalidez e anomalia.” Se causa tudo isso, ele tem que dizer. Se não há qualquer indício, ele tem que dizer.

E por que ele não diz? Não é para proteger a Anvisa de contaminação política. Ele é o caminho dessa contaminação. Barra Torres foi o mesmo que participou de uma manifestação antidemocrática ao lado de Bolsonaro, sem máscara, gerando aglomeração no meio de uma pandemia.

Os testes com uma das vacinas mais promissoras foram suspensos pela Anvisa numa decisão que ainda não foi completamente esclarecida. A agência diz que seguiu o protocolo, já que houve um “evento adverso grave”. O Instituto Butantan disse que enviou o comunicado no dia 6, e que na segunda-feira, dia 9, às 20h40, recebeu a resposta de que os testes estavam suspensos. A Anvisa diz que o ataque de hacker impediu que ela recebesse no dia 6. O Instituto disse que como a agência havia convocado a reunião para a manhã de ontem, poderia ter esperado a conversa. A causa da morte do voluntário, segundo o IML, foi suicídio, portanto, sem relação com a vacina em si. Tudo isso poderia ser apenas — e já seria grave no contexto de uma pandemia — desentendimento burocrático entre o regulador e o produtor de vacinas. Mas o presidente da República tornou tudo mais grave.

Numa pandemia, o Brasil precisa manter a confiança na Anvisa e no Instituto Butantan. Se a Anvisa autorizar e o instituto produzir, a credibilidade dos dois órgãos será fundamental para que os brasileiros se imunizem. Da mesma forma o país precisa ter confiança no imunizante a ser produzido pela Fiocruz. Ou qualquer outro que seja importado pelo governo.

O Brasil tem um presidente que atormenta, que escolheu fazer parte do problema e não da solução. Ele politizou o Ministério da Saúde e o transformou numa sombra do que já foi, brincou com essa doença como se ela não tivesse a seriedade que tem, inoculou em seus seguidores a desconfiança na ciência e nas vacinas, prescreveu remédios sem comprovação científica, estimulou aglomeração e maus hábitos. O que falta para Jair Bolsonaro entender a dor do Brasil?


Míriam Leitão: Política externa perdida no mundo

O Brasil fica mais distante da OCDE, do acordo com a União Europeia e do mundo, enfim, com a eleição de Joe Biden e Kamala Harris. Isso porque o governo brasileiro deveria ter a esta altura uma estratégia de como mover suas peças no tabuleiro do xadrez mundial. Mudaram as circunstâncias, e o erro bolsonarista ficará mais caro. Estados Unidos e União Europeia estarão mais juntos a partir de agora na questão ambiental, e Jair Bolsonaro é o vilão óbvio, com sua política de desprezo à preservação ambiental, de desrespeito aos indígenas, de afronta aos negros.

O governo Biden tem uma lista imensa de urgências. A pandemia é a primeira delas e por isso ontem já estava sendo anunciado o grupo de transição que vai preparar o plano de combate ao coronavírus. A crise econômica é outra emergência. O plano de socorro terá que ser maior do que o programado, e no meio do caminho tem o Senado. A campanha de Biden, muito energizada pela vitória, está jogando tudo para garantir as duas cadeiras do Senado da Geórgia que foram para segundo turno. Caso se confirme o controle dos republicanos no Senado, tudo será mais difícil.

Na área ambiental, contudo, o avanço está garantido. O governo Biden já avisou que voltará ao Acordo de Paris. E poderá também desfazer ordens executivas e regulações infralegais que foram impostas pelo governo Donald Trump, que entregou a Environmental Protection Agency (EPA), a agência de proteção ambiental, a um lobbista da indústria do carvão. Nesse contexto de volta aos princípios do acordo e às regulações ambientais mais severas, os Estados Unidos ficarão mais próximos da Europa, que já tem pressionado o Brasil. Portanto, Bolsonaro estará mais sozinho com a sua política insensata na área do meio ambiente.

A política externa atual tenta apagar o Brasil do mapa-múndi. É um esforço diário para nos tornar irrelevantes. Demorar a cumprimentar o presidente eleito Joe Biden e não enviar autoridade para a posse de Luiz Arce na vizinha Bolívia são decisões obtusas. Caberia a Ernesto Araújo avisar a Bolsonaro: pode já ir se acostumando. Mas ficaram os dois velando o falecido governo Trump, erro que nem o autocrata Viktor Orban cometeu. Fazer pirraça com a Bolívia é ridículo. O país vizinho escolheu em eleições livres trazer de volta o partido de Evo Morales e não nos cabe desgostar.

O Brasil tem muito a perder com os erros da dupla. Primeiro, porque Bolsonaro com suas falas rudimentares sobre a Amazônia é um alvo fácil. Se fosse só ele, tudo bem. O problema é que empresas brasileiras também podem ser prejudicadas por essa política externa e ambiental sem sentido. Por isso, se Bolsonaro insistir em não ter um plano convincente de preservação ambiental, aumentarão as pressões aqui dentro. Empresas e o terceiro setor, a imprensa, os especialistas, lideranças políticas estão cada vez mais se alinhando numa coalizão pela preservação. Sem Trump, Bolsonaro ficará mais só e entre dois fogos. Caberia ao Itamaraty traçar uma estratégia. Mas o Ministério não pode fazer seu trabalho porque está sendo dirigido por um dos mais medíocres diplomatas que a Casa já produziu.

A ditadura militar no Brasil nasceu no contexto da guerra fria. Naquele momento, havia países comunistas, e os militares eram, por suposto, adversários da ideologia. Pois o Brasil de Ernesto Geisel foi o primeiro a reconhecer o governo do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), apesar de ser comunista.

O mais elementar em política externa é saber a distância entre as preferências pessoais do chefe de Estado e o seu papel de representante do país. Bolsonaro pode ter torcido muito contra Joe Biden e Luis Arce, mas em processos eleitorais legítimos Biden é hoje o presidente eleito dos Estados Unidos e Arce acaba de assumir a Bolívia. É um erro não mandar um alto representante para a posse do governante da Bolívia, país com o qual o Brasil tem a sua maior fronteira (3.423km). Os bolivianos escolheram a volta do partido de Evo Morales e não nos cabe desgostar. Com o país vizinho temos um acordo do gás e antigas tradições de amizade. Com os Estados Unidos, inúmeros interesses. A demora dos cordiais parabéns ficou ridícula para o Brasil. A descortesia com a Bolívia não faz qualquer sentido.

A OCDE tem regras de conformidade ambiental que ficarão mais fortes com o governo Biden. A União Europeia não ficará sozinha exigindo do Brasil mudança da política ambiental. O projeto de Ernesto Araújo de transformar o Brasil num grande pária avançou ainda mais nos últimos dias.