Míriam Leitão: Um presidente que atormenta

O Brasil está vivendo a maior tragédia de saúde pública em um século, e o presidente comemora. Há 162 mil mortos, e o presidente diz “mais uma que Jair Bolsonaro ganha”.
Foto: Alan Santos/PR
Foto: Alan Santos/PR

O Brasil está vivendo a maior tragédia de saúde pública em um século, e o presidente comemora. Há 162 mil mortos, e o presidente diz “mais uma que Jair Bolsonaro ganha”. Não há vitória para qualquer pessoa num país que conta seus mortos. Esta é uma guerra pela vida que deveria unir, que tinha que seguir o comando apenas da ciência e da medicina. O drama que levou uma pessoa de apenas 33 anos não pode ser vitória de ninguém. Esta não é a primeira vez que Bolsonaro atenta contra a saúde pública espalhando descrédito contra uma vacina que pode vir a ser aprovada, não é a primeira vez que ele trata essa calamidade nacional como se fosse uma disputa de egos ou o palanque antecipado de 2022.

Até quando as instituições vão ignorar o fato de que há crime envolvido nisso? Vários crimes. Tipificados e arrolados no Código Penal para quem ameaça a saúde pública e o faz dessa forma, insistente e cotidianamente. Desde o início da pandemia, o presidente Bolsonaro cometeu inúmeros absurdos como o de combater a proteção contra o vírus. Ontem o país amanheceu com mais um tormento criado por ele.

Ele postou que a vacina que está sendo pesquisada pelo Instituto Butantan e a Sinovac na China traz “morte, invalidez e anomalia”. Não há qualquer comprovação. A postagem delinquente diz ainda que essa é a vacina que o “Dória queria obrigar a todos os paulistanos a tomá-la”. Com essas palavras ele está considerando a suspensão da Anvisa como definitiva? E termina com a frase horrenda, dadas as circunstâncias envolvidas, a de que é “mais uma que Bolsonaro ganha”.

A consequência foi lançar sobre a Anvisa a dúvida da politização. Os brasileiros precisam da Anvisa técnica, mais do que nunca. Os servidores certamente vão seguir seus protocolos com responsabilidade. Mas o evento cria uma névoa sobre a agência. Em nenhum momento, na entrevista de ontem, a Anvisa esclareceu que não considera que a vacina cause o que o presidente insinuou. O contra-almirante Antonio Barra Torres, para defender a agência que preside, deveria negar o que o presidente disse. Preferiu a tangente, ao dizer que não teceria comentários sobre questões políticas. Mas o que Bolsonaro tinha dito era um diagnóstico: “morte, invalidez e anomalia.” Se causa tudo isso, ele tem que dizer. Se não há qualquer indício, ele tem que dizer.

E por que ele não diz? Não é para proteger a Anvisa de contaminação política. Ele é o caminho dessa contaminação. Barra Torres foi o mesmo que participou de uma manifestação antidemocrática ao lado de Bolsonaro, sem máscara, gerando aglomeração no meio de uma pandemia.

Os testes com uma das vacinas mais promissoras foram suspensos pela Anvisa numa decisão que ainda não foi completamente esclarecida. A agência diz que seguiu o protocolo, já que houve um “evento adverso grave”. O Instituto Butantan disse que enviou o comunicado no dia 6, e que na segunda-feira, dia 9, às 20h40, recebeu a resposta de que os testes estavam suspensos. A Anvisa diz que o ataque de hacker impediu que ela recebesse no dia 6. O Instituto disse que como a agência havia convocado a reunião para a manhã de ontem, poderia ter esperado a conversa. A causa da morte do voluntário, segundo o IML, foi suicídio, portanto, sem relação com a vacina em si. Tudo isso poderia ser apenas — e já seria grave no contexto de uma pandemia — desentendimento burocrático entre o regulador e o produtor de vacinas. Mas o presidente da República tornou tudo mais grave.

Numa pandemia, o Brasil precisa manter a confiança na Anvisa e no Instituto Butantan. Se a Anvisa autorizar e o instituto produzir, a credibilidade dos dois órgãos será fundamental para que os brasileiros se imunizem. Da mesma forma o país precisa ter confiança no imunizante a ser produzido pela Fiocruz. Ou qualquer outro que seja importado pelo governo.

O Brasil tem um presidente que atormenta, que escolheu fazer parte do problema e não da solução. Ele politizou o Ministério da Saúde e o transformou numa sombra do que já foi, brincou com essa doença como se ela não tivesse a seriedade que tem, inoculou em seus seguidores a desconfiança na ciência e nas vacinas, prescreveu remédios sem comprovação científica, estimulou aglomeração e maus hábitos. O que falta para Jair Bolsonaro entender a dor do Brasil?

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