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Daniel Aarão Reis: O bolsonarismo - Uma concepção autoritária em formação

A eleição de Jair Bolsonaro à presidência da República do Brasil, em novembro de 2018, surpreendeu e criou um estado de perplexidade e desorientação sobretudo no campo das esquerdas, mas também entre forças de centro e das direitas democráticas.

O presente artigo tenta contribuir para a compreensão do fenômeno, articulando-se nas seguintes seções: (1) Contexto internacional da ascensão das extremas-direitas; (2) A ascensão da extrema-direita no Brasil; (3) O caráter da extrema-direita brasileira; (4) A construção de alternativas democráticas.

A análise é de Daniel Aarão Reis, professor na Universidade Federal Fluminense (UFF), em artigo publicado por A Terra é Redonda, 09-03-2021.

Eis o artigo.

O contexto internacional da ascensão das extremas-direitas [i]

O crescimento das forças políticas de extrema-direita e de diversos tipos de regimes autoritários é uma tendência mundial desde fins do século XX e inícios do presente século.

No cerne do processo encontra-se o que se convencionou chamar de revolução digital ou informática que tem mudado radicalmente os padrões civilizatórios da humanidade. À semelhança da chamada revolução fordista que, na virada dos séculos XIX/XX, transformou em profundidade as sociedades humanas, a civilização da informação, produto da atual revolução, tem igualmente produzido efeitos sociais, políticos, culturais e econômicos desestabilizadores.

No quadro da nova revolução, destacam-se alguns aspectos na economia e na sociedade: a aceleração, desde os anos 1970, das desigualdades sociais e econômicas (T. Piketti, 2014); a partir dos anos 1980, a consolidação da hegemonia do capital financeiro, com ênfase para os capitais especulativos e os paraísos fiscais libertados de anteriores legislações restritivas; o enfraquecimento das regulamentações que regiam os movimentos internos e internacionais de capitais e mercadorias; a privatização de setores econômicos e serviços públicos, mesmo dos que eram até então considerados estratégicos aos interesses nacionais; a fragilização correspondente da capacidade de intervenção e controle dos Estados Nacionais; desde os anos 1990, o surgimento de novos setores/atividades dinâmicos, como, entre outros, a informática, a biotecnologia, a robótica, a inteligência artificial, de alto nível de monopolização ou oligopolização, com impactos radicais na área das comunicações (internet, mídias sociais, etc.); a realocação internacional da produção industrial mundial e o declínio acelerado do peso demográfico das classes operárias nos países capitalistas mais poderosos; a desarticulação e a precarização dos mercados de trabalho (uberização) e das instituições sindicais tradicionais; o surgimento de novos polos de desenvolvimento (Índia, China) e de megamercados regionais, alterando o equilíbrio instaurado no pós-Segunda Guerra Mundial.

Os regimes de democracia representativa têm sido incapazes de lidar com os desafios decorrentes destas mutações. As instituições políticas e jurídicas perdem credibilidade ao não atender às demandas sociais. Entre os jovens e as classes populares acentua-se o desinteresse em relação aos processos eleitorais e a desconfiança em relação a um sistema político criticado como ineficaz, corrupto e desmoralizado (S. Levitsky e D. Ziblatt, 2018 e D. Runciman, 2018). Trata-se de um processo em curso desde os anos 1960/1970, quando passaram a emergir como protagonistas das lutas políticas, movimentos sociais que não se deixam enquadrar pelos jogos institucionais ou/e eleitorais (D. Aarão Reis, 2018).

Os regimes de democracia representativa têm sido incapazes de lidar com os desafios decorrentes destas mutações - Daniel Aarão Reis Tweet

Instaurou-se uma “sociedade da insegurança” (N. Fraser, 2007). Os que perdem posições ou não conseguem mantê-las, as grandes massas de assalariados ou dos que vivem do próprio trabalho, sentem-se amedrontados. As referências culturais que pareciam sólidas desmancham no ar. Ações terroristas, desde 2001 (T. Ash, 2011); crises econômicas e catástrofes naturais acentuam uma atmosfera de incertezas e angústia.

As forças e os partidos políticos reformistas, democráticos ou socialistas não têm conseguido apresentar propostas que sejam capazes de reformar as estruturas políticas e econômicas, diminuir as desigualdades sociais ou/e questionar a hegemonia do grande capital financeiro [ii]. Encolhidos nas fronteiras nacionais perdem capacidade de enfrentar fenômenos que se desdobram globalmente e não conseguem controlar ou atenuar os efeitos destrutivos da revolução em curso.

Têm sido assim identificados, com ou sem razão, como sócios de regimes incapazes de defender as grandes maiorias, o que se tornou particularmente evidente no enfrentamento da crise econômica de 2008, quando o custo de superação de seus efeitos desabou nas costas dos trabalhadores assalariados (A. Przeworski, 2019).

É neste quadro geral de desespero que se reforçam as tendências e propostas nacionalistas e autoritárias de direita, num processo de reação nacionalista [iii], quase sempre expressas através de organizações ou partidos de extrema-direita [iv].

O fenômeno Donald Trump nos Estados Unidos, o crescimento das forças de extrema-direita na Europa Ocidental (ItáliaFrança e Inglaterra) e Central (Hungria e Polônia), na Ásia (Índia e Filipinas) e na América Latina (ChileColômbia e Brasil) atestam a existência do processo. Uma de suas principais particularidades é que tais forças não se confrontam abertamente com as instituições democráticas, mas as instrumentalizam, corroendo-as por dentro, desfigurando-as. Combinam eficazmente o recurso à opinião pública e o uso intenso das chamadas mídias sociais no quadro de opções nacionalistas, antidemocráticas e conservadoras do ponto de vista social e religioso [v].

É neste quadro geral de desespero que se reforçam as tendências e propostas nacionalistas e autoritárias de direita, num processo de reação nacionalista, quase sempre expressas através de organizações ou partidos de extrema-direita
Daniel Aarão Reis

A ascensão da extrema-direita no Brasil

A vitória de Jair Bolsonaro insere-se neste quadro internacional. É a expressão brasileira destas tendências.

Para compreendê-la, uma vez contextualizada no plano internacional, proponho a articulação de três temporalidades: na longa duração, o estudo das tradições autoritárias de direita no país; na média duração, a deterioração do sistema político entre a promulgação da Constituição de 1988 e as eleições de 2018; na curta duração, a incidência da campanha eleitoral e seus efeitos.

As tradições autoritárias de direita: a longa duração

São densas as tradições autoritárias de direita no Brasil. Entre outras, destacam-se o racismo; as desigualdades sociais; o patrimonialismo e o mandonismo; a exploração sistemática do anticomunismo; a discriminação de gênero e os regimes democráticos fechados e elitistas.

Examinemos cada um destes aspectos.

As relações escravistas, antes de serem tardiamente abolidas, disseminaram-se por toda a sociedade (escravismo doméstico ou de proximidade), gerando desprezo pelo trabalho manual e relações hierárquicas. O processo peculiar de miscigenação, apresentado como antídoto à discriminação racial, apenas disfarçou formas onipresentes de racismo, evidenciadas, entre outros índices, nas desigualdades de emprego, de renda e de educação; no uso e abuso da violência policial; na população carcerária. Um racismo estrutural. E estruturado [vi].

É neste quadro geral de desespero que se reforçam as tendências e propostas nacionalistas e autoritárias de direita, num processo de reação nacionalista, quase sempre expressas através de organizações ou partidos de extrema-direita
Daniel Aarão Reis

As desigualdades de toda a ordem não foram atenuadas pelo progresso econômico, registrado entre 1930 e 1980. Mesmo as políticas de redução da pobreza, quando formuladas e aplicadas (2002-2010), reproduziram padrões brutais de desigualdades regionais e sociais, configurando amplas maiorias numa condição de cidadania de segunda classe, cujos direitos, embora proclamados em leis e mesmo na constituição, não se concretizam, a não ser muito parcialmente, na prática social.

patrimonialismo e o mandonismo, fundamentos da Ordem agrária, ancorados longe no passado colonial, conservaram grande força. Em artigo recente, o antropólogo Roberto Da Matta referiu-se “ao colonialismo autoritário e burocrático, radicalmente católico e anti-igualitário”, combinado a “laços de puxa-saquismo com punhos de renda, irmão de um desumano escravismo negro”. [vii] O processo de urbanização não dissolveu sua força e incidência, nem a República, proclamada em 1889, foi capaz de neutralizar seus efeitos. O acesso limitado à plena cidadania – apesar do que dizem os textos legais – reproduz a preeminência das relações pessoais em detrimento de códigos legais impessoais.

discriminação de gênero persiste, evidenciada em altos índices de violência doméstica e de estupros [viii]. Os avanços no sentido da emancipação da mulher são muito recentes, datando dos anos 1970, salvo o direito de voto, assegurado desde 1934. As desigualdades profissionais e de renda, o limitado acesso aos níveis mais altos de prestígio social e de remuneração, a criminalização da interrupção voluntária da gravidez atestam a subordinação violenta da “segunda metade do céu”.

anticomunismo tem uma longa história no país. Esteve presente nos anos que assistiram à irrupção da revolução soviética. Seria retomado com imensa ênfase depois da insurreição revolucionária liderada pelos comunistas, ocorrida em novembro de 1935, servindo, um pouco mais tarde, como principal pretexto para o golpe de 1937, que instaurou a ditadura do Estado Novo, entre 1937-1945.

Nestas condições, as instituições democráticas não poderiam mesmo se consolidar. Uma república proclamada através de um golpe de estado, o permanente monitoramento do regime político pelos militares, a seletividade elitista na atribuição da cidadania, a extensão soluçante e limitada dos direitos civis, políticos e sociais - Daniel Aarão Reis Tweet

Como um espectro, condicionaria a sociedade brasileira nos anos 1950 e, em especial, na conjuntura que precedeu o golpe civil-militar de 1964, quando, mais uma vez, seria uma bandeira central para a unificação das forças golpistas, permanecendo vivo ao longo da ditadura, até 1979. Durante todos estes anos, mobilizadas pela Igreja Católica, as forças conservadoras – e, às vezes, até mesmo partidos de esquerda – acionariam permanentemente o comunismo como um espantalho, um perigo imediato, ameaçador, pondo em perigo as instituições e a própria vigência da “civilização cristã” no país [ix].

Nestas condições, as instituições democráticas não poderiam mesmo se consolidar. Uma república proclamada através de um golpe de estado, o permanente monitoramento do regime político pelos militares, a seletividade elitista na atribuição da cidadania, a extensão soluçante e limitada dos direitos civis, políticos e sociais, os principais saltos econômicos registrados sob dominação de regimes ditatoriais (1937/1945 e 1964/1979), tudo disso deixou marcas profundas nas tendências políticas de direita e de esquerda. O reconhecimento de amplos direitos data apenas dos últimos anos do século XX (Constituição de 1988), mas muitos dispositivos legais existem apenas no papel.

A combinação destes aspectos na longa duração estruturou uma sociedade marcada pelas desigualdades, hierarquia, violência, intolerância e discriminações (L. Schwarcz, 2019 e H.Starling, 2019).

Sem embargo, foi notável como amplos círculos – políticos e intelectuais – tenderam a subestimar a força destas tradições e a considerar a democracia brasileira como “consolidada”. Um caso típico de cegueira política e histórica.

Nunca foi tão urgente como hoje superar este equívoco.

Vários historiadores, desde os primeiros anos deste século, têm chamado atenção para as “relações complexas” que se estabeleceram entre as ditaduras e a sociedade, evidenciando como aquelas não foram produto apenas da vontade das classes dominantes e da repressão, (ressalvado o papel fundamental desta última), mas contaram, sob hegemonia do grande capital financeiro, com apoios transversais em todos os níveis da sociedade. Efetivamente, em torno dos dois regimes ditatoriais que se impuseram no país no século XX (1937-1945; 1964-1979 [x]), foi possível construir não raro um consenso social significativo, o que oferece subsídios para a compreensão da instauração quase pacífica de ambos e dos processos também pacíficos de sua superação. Importantes pesquisas têm demonstrado a adequação desta interpretação[xi].

Considerar as tradições autoritárias para compreender a atual ascensão da extrema-direita não deve conduzir, porém, à sua absolutização [xii]. Apesar destas tradições, maiorias expressivas elegeram à presidência da república o sociólogo de centro-esquerda Fernando Henrique Cardoso (1994/2002), o líder operário, Luiz Inácio Lula da Silva (2002/2010) e Dilma Rousseff (2010/2016), ex-militante da luta contra a ditadura. Em outras palavras: as tradições autoritárias condicionam opções, mas não as determinam automaticamente. Como gostava de dizer o intelectual israelense, Amoz Oz: “o passado nos pertence, não pertencemos ao passado”. As tradições, embora poderosas, não podem expulsar a política da história. A longa duração não exclui a avaliação da média e da curta duração. Cumpre agora analisar estas últimas.

As “relações complexas” que se estabeleceram entre as ditaduras e a sociedade, evidenciando como aquelas não foram produto apenas da vontade das classes dominantes e da repressão, mas contaram, sob hegemonia do grande capital financeiro, com apoios transversais em todos os níveis da sociedade
Daniel Aarão Reis

A média duração: a grande conjuntura 1988/2018

Tornou-se comum denominar o período que se inaugurou com a aprovação da Constituição de 1988 como “nova república” [xiii]. Segundo os adeptos da denominação, ela teria entrado em crise com o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, e sido definitivamente enterrada com a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018 [xiv] (A. Alonso, 2019 e E. Solano, 2019).

Aceite-se ou não a periodização, o fato é que a grande conjuntura entre 1988 e 2018 oferece uma plataforma interessante para avaliar as circunstâncias e as opções que levaram à perda radical do prestígio de um sistema político que parecia tão promissor em fins do século XX. Trata-se de uma reflexão importante, eis que a vitória da extrema-direita e de Jair Bolsonaro está intimamente vinculada à desmoralização do sistema político atual.

Entre outros aspectos, o que marca a trajetória da nova república, do ponto de vista político, ressalvados os anos presididos por Collor de Mello [xv] é a preeminência da polarização entre o Partido da Social-Democracia Brasileira/PSDB e o Partido dos Trabalhadores/PT [xvi]. Os dois partidos encarnaram as aspirações reformistas no sentido da construção de uma sociedade democrática e menos desigual.

A visibilidade, o prestígio e o poder adquiridos por eles corresponderam a políticas de defesa dos interesses das grandes maiorias. Entre muitas outras, o controle da inflação, empreendido nos anos de governo do PSDB e as políticas de distribuição de renda e as chamadas afirmativas contra o racismo, implantadas nos anos de governo do PT, em particular nos mandatos de Lula (2002/2010). Tiveram impacto positivo na redução dos índices de pobreza, mas não alteraram o padrão das desigualdades sociais que se mantiveram ou até se ampliaram. Entretanto, o ímpeto reformista dos dois partidos foi se arrefecendo, configurando-se, em ambos os casos, um “reformismo mole” (A. Singer, 2012).

Fez parte deste processo o pouco apreço por uma política ativista de memória, capaz de suscitar debates sociais e políticos a respeito do período ditatorial, características e legados, bem como a ausência de um debate socialmente amplo sobre direitos humanos e a condenação veemente de crimes contra a humanidade, cometidos pelo Estado brasileiro durante as ditaduras do século XX (D. Aarão Reis, 2019ª). O inventário das cicatrizes deixadas pela ditadura deixou de ser feito, com evidente prejuízo para a consciência cidadã [xvii].

Fez parte deste processo o pouco apreço por uma política ativista de memória, capaz de suscitar debates sociais e políticos a respeito do período ditatorial, características e legados, bem como a ausência de um debate socialmente amplo sobre direitos humanos e a condenação veemente de crimes contra a humanidade, cometidos pelo Estado brasileiro durante as ditaduras
Daniel Aarão Reis

Ao perderem as eleições para o PT, em 2002, o PSDB e seu líder, Fernando Henrique Cardoso, já registravam um considerável desgaste. Alianças consideradas sem princípios com partidos e grupos notoriamente conservadores e corruptos haviam corroído sua aura reformista e inovadora. Nada, no entanto, que ameaçasse sua posição de polo insubstituível nas lutas políticas institucionais.

Quanto ao PT, já no primeiro governo de Lula, escândalos de corrupção e principalmente o abandono de propostas reformistas mais consistentes começaram a abalar o prestígio e a colocar em dúvida os compromissos políticos do partido e do presidente. Entretanto, as dúvidas pareceram superadas com a reeleição de Lula (2006), e ao longo do segundo mandato (2006/2010), quando o país viveu momentos de intensa euforia social e política, o que se confirmaria com a eleição de Dilma Rousseff (2010). A nova república parecia segura e não poucos celebravam a consolidação da democracia no Brasil, chancelada internacionalmente com a aprovação do país como sede da Copa do Mundo (2014) e das Olimpíadas de Verão (2016).

A partir de 2010, no entanto, começaram a se fazer sentir os impactos da grande crise econômica mundial de 2008, muito subestimados e por isso mesmo mal atenuados ou controlados. Num quadro de agravamento das contradições, demandas sociais explodiram em vários níveis: por emprego; por serviços públicos de qualidade; por políticas de combate à corrupção, cuja existência tornou-se assunto nacional a partir de sucessivos escândalos envolvendo empresários e políticos; por políticas positivas em relação à segurança que, nas cidades, se tornava uma questão maior para todas as classes sociais.

As grandes manifestações de 2013, politicamente plurais, revelaram uma profunda insatisfação e desconfiança em relação aos partidos e lideranças políticas, expressas por multidões nas ruas e praças públicas.

Entretanto, face a este conjunto de desafios, PT e PSDB mostraram-se incapazes de oferecer propostas construtivas e credíveis. Enredados em suas querelas e jogos de poder, perdida sua vocação reformista original, era como se estivessem distanciados da sociedade, sem nexos com os problemas que atormentavam as pessoas comuns. Começou a brotar a ideia de que o sistema político já não funcionava a contento. Falido? Alguns começavam a dizer que estava podre.

Foi numa atmosfera de exasperação de contradições, condições propícias para a emergência de lideranças salvacionistas, outsiders supostos ou reais, que se abriu o ano eleitoral de 2018[xviii]. Ainda não estavam, porém, dadas todas as condições que ensejariam a vitória de Jair Bolsonaro.

Elas aconteceram na campanha eleitoral, na curta duração. Daí porque ser tão importante analisar esta temporalidade. Em caso contrário, como já se disse, a política seria expulsa da história.

As grandes manifestações de 2013, politicamente plurais, revelaram uma profunda insatisfação e desconfiança em relação aos partidos e lideranças políticas, expressas por multidões nas ruas e praças públicas
Daniel Aarão Reis

A campanha eleitoral de 2018: a curta duração

A análise da campanha eleitoral, na temporalidade da curta duração, é indispensável para a compreensão da ascensão da extrema-direita ao governo pelo voto.

Em pesquisas realizadas em 22 de agosto, menos de dois meses antes do primeiro turno, Bolsonaro ainda se mantinha em 22% das intenções de voto, e poucos acreditavam que fosse capaz de alcançar patamares muito mais altos. Daí a quase três semanas, em 10 de setembro, ele ganhara apenas mais 2 pontos, chegando a 24% das intenções de voto [xix]. Em outras palavras, apesar das tradições autoritárias e do desgaste do sistema político, não havia ainda certeza, muito pelo contrário, a respeito do sucesso da candidatura salvacionista de extrema-direita.

Que circunstâncias e opções conduziram à sua vitória?

De um lado, as esquerdas democráticas subestimaram o seu potencial de crescimento. Não conseguiram unir-se, dispersando-se em candidaturas rivais. Além disso, o PT recusou-se a avaliar a onda de fundo antipetista que permeava a sociedade, muito forte entre as classes médias, mas alcançando também camadas populares. Descartou assim a hipótese de apoiar um candidato de outro partido. E manteve durante longo e precioso tempo, em movimento suicida, a (anti) candidatura de Lula, ilegal na medida que ele fora condenado em segunda instância pela Justiça [xx].

Quando o partido, finalmente, resolveu apoiar formalmente a candidatura do ex-ministro da Educação e ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, o fez com ressalvas, apresentando-o como se fosse um peão de Lula. Tolhido pelos erros e inconsequências do PT e de Lula que sempre se recusaram a produzir qualquer tipo de autocrítica, Haddad não conseguiu apresentar propostas para neutralizar ou conter a corrupção em larga escala e a insegurança nas grandes cidades, dois grandes temas da campanha eleitoral, explorados de forma tosca, mas eficaz, pelo candidato de extrema-direita. Entre os dois turnos, Haddad recuperou terreno, cultivou personalidade própria, formulando propostas objetivas e convincentes, mas já não houve tempo político para reverter os resultados desfavoráveis.

Quanto ao PSDB, naufragada com a candidatura de Geraldo Alckmin, ex-governador de São Paulo e um dos líderes mais importantes do partido. Montando poderosa frente partidária, dispondo de vultosos recursos financeiros, agrupou muitas forças de centro e das direitas democráticas. Imaginava-se que a disputa tenderia a ser, mais uma vez, entre ele e o candidato do PT [xxi]. No entanto, em amplos contingentes do eleitorado, prevaleceu a percepção de que, para derrotar o PTBolsonaro reunia melhores condições do que Alckmin. Houve, assim, nas três últimas semanas da campanha, um trânsito maciço de votos para o candidato da extrema-direita, garantindo sua vitória.

As esquerdas democráticas subestimaram o seu potencial de crescimento. Não conseguiram unir-se, dispersando-se em candidaturas rivais
Daniel Aarão Reis

O vitorioso não se beneficiou apenas dos erros adversários. A partir de suas bases mais radicais, nas forças armadas e policiais [xxii], soube construir alianças surpreendentes e diversificadas. Escolheu como seu ministro da economia um empresário vinculado à especulação financeira que lhe abriu as portas para uma aliança com os capitais financeiros. No campo da economia também estruturou apoios entre os empresários ligados à exportação de produtos agrícolas, o chamado agronegócio, e com garimpeiros e madeireiros comprometidos com a devastação das florestas e com a abertura de fronteiras agrícolas.

Definindo o juiz Sergio Moro como ministro da Justiça, ganhou a confiança de todos os que consideravam a corrupção e a segurança grandes problemas nacionais [xxiii]. Explorando uma pauta conservadora do ponto de vista dos costumes, teceu laços com as igrejas evangélicas, com crescente força no país [xxiv]. Tais alianças seriam potencializadas pelas bancadas parlamentares ruralistas, armamentistas e religiosas, ditas BBB (do boi, da bala e da bíblia), conformando apoios eficazes na campanha eleitoral.

Restaria ainda mencionar duas importantes referências: o atentado sofrido por Bolsonaro, em 6 de setembro de 2018, que lhe permitiu afastar-se dos debates onde suas performances o desfavoreciam [xxv] e a organização e intensa exploração de uma sofisticada rede de comunicações, acionando de modo profissional as chamadas mídias sociais, seja para divulgar propaganda positiva, seja para disseminar falsas informações (fakenews).

Combinaram-se, assim, como sempre, erros (dos adversários) e acertos que beneficiaram o candidato vitorioso.

A elucidação das razões da vitória da extrema-direita e de Jair Bolsonaro passa, assim, pela compreensão do contexto internacional, do qual ela é a expressão brasileira, e pela articulação de três temporalidades: as tradições autoritárias de direita na longa duração; o desgaste do sistema político na média duração; e os erros (dos adversários) e acertos (próprios) da campanha eleitoral, na curta duração [xxvi].

Cumpre agora discutir melhor o caráter desta vitória e do governo liderado por Jair Bolsonaro desde 1° de janeiro de 2019.

A elucidação das razões da vitória da extrema-direita e de Jair Bolsonaro passa, assim, pela compreensão do contexto internacional, do qual ela é a expressão brasileira, e pela articulação de três temporalidades: as tradições autoritárias de direita na longa duração; o desgaste do sistema político na média duração; e os erros (dos adversários) e acertos (próprios) da campanha eleitoral
Daniel Aarão Reis

O caráter da extrema-direita brasileira

A vitória de Jair Bolsonaro, como já referido, suscitou um clima de grande perplexidade. Como é usual, as primeiras explicações e interpretações procuraram no passado paralelos ou fontes para entender o fenômeno.

Alguns afirmaram que o Brasil teria voltado aos anos 1960 e estaria na iminência de um golpe de estado, como em 1964. Outros preferiram ver semelhanças com a conjuntura que levou à promulgação do Ato Institucional n° 5, editado em dezembro de 1968, que radicalizou a ditadura então existente [xxvii]. Numa incursão a um passado mais distante, foram invocadas as experiências do movimento integralista brasileiro nos anos 1930, da ditadura do Estado Novo e, num plano mais geral, formularam-se associações – controvertidas – com o fascismo italiano e mesmo com o nazismo alemão, como se verá adiante.

Tais interpretações merecem discussão. Entretanto, como estou convencido de que a ascensão atual da extrema-direita no Brasil constitui um movimento original e ainda com perfil não consolidado, cumpre, antes de tudo, descrever o fenômeno para melhor captar sua especificidade e empreender, se for possível, sua conceituação.

estou convencido de que a ascensão atual da extrema-direita no Brasil constitui um movimento original e ainda com perfil não consolidado, cumpre, antes de tudo, descrever o fenômeno para melhor captar sua especificidade e empreender, se for possível, sua conceituação - Daniel Aarão Reis Tweet

Conforme esboçado na análise da campanha eleitoral a vitória de Jair Bolsonaro deveu-se à articulação de uma frente heterogênea que pode ser apresentada em forma de círculos, hierarquizáveis de acordo com a fidelidade a Bolsonaro.

Um primeiro círculo – núcleo forte e bastião do pensamento da extrema-direita – é constituído pelos oficiais das forças armadas, em particular do exército, mais os oficiais e suboficiais das Polícias Militares, da ativa e da reserva [xxviii]. Jair Bolsonaro, através de longa carreira parlamentar, projetou-se não apenas como representante dos interesses corporativos destas gentes, mas também como um dos únicos políticos, e com grande audácia, a resgatar em chave positiva a experiência da ditadura, inclusive seus métodos violentos de torturar e matar adversários.

A pauta da defesa dos costumes conservadores é outra importante referência a fidelizar estas bases a Bolsonaro, pois, em comum, cultivam o conceito de guerra cultural ou guerra híbrida, a ser travada contra os agentes – instituições e partidos – acusados de promover a destruição das tradições, da moral estabelecida, dos bons costumes e das tradições políticas e éticas da nação. Ingredientes importantes nesta perspectiva são as críticas ao globalismo, ao enfraquecimento dos estados e culturas nacionais, e aos novos métodos – encobertos e camuflados – através dos quais operariam novas e velhas esquerdas em sua luta permanente pelo controle da sociedade e do poder. Tais referências não podem ser nem exclusivamente nem principalmente atribuídas a Olavo de Carvalho, cujas manifestações caricaturais não deveriam servir para encobrir núcleos de formulação mais consistentes, que elaboram tais ideias há muitos anos no interior das, e protegidos por estruturas institucionais das forças armadas.

Foi no interior do estado maior do Exército que se formou uma equipe, ainda nos anos 1980, devidamente autorizada pelo ministro da arma, general Leonidas Gonçalves, que formulou volumoso livro, com um resgate da ditadura em chave positiva, enfatizando-se o papel dos militares como tutores da república e as sucessivas ameaças empreendidas pelas esquerdas no sentido da dissolução da nacionalidade brasileira. O texto, intitulado Orvil (anagrama de livro) só foi publicado mais tarde (L. Maciel e J. C. do Nascimento, 2012), mas se constituiu, desde então, numa referência para a extrema-direita militar e civil.[xxix].

Um segundo círculo, não menos importante, é constituído por setores populares de classe média, alguns com afinidades profissionais (pequenos empreendedores, caminhoneiros, taxistas, etc.), articulados pelas novas mídias sociais (whatsappfacebooktwitteryoutubeblogs, etc.), financiadas, em grande parte, por empresários bolsonaristas. Os valores compartilhados de extrema-direita compreendem, entre outros, o recurso à violência para matar criminosos comuns, o conservadorismo social, o ódio às lutas identitárias, etc.

Têm sido importantes nas ações de ruas e na intimidação de adversários, mas seus níveis internos de organização ainda são precários. Neste segundo círculo também poderiam ser incluídos as milícias. Constituídas por ex-integrantes das polícias militares, além de criminosos comuns, elas vêm ganhando força ao longo do atual século em algumas grandes cidades. Disputam espaço com facções de criminosos comuns no controle de atividades ilegais e semilegais e extorquem comunidades de diversos tipos, periféricas às grandes cidades, vendendo proteção em troca de segurança. A despeito de sua autonomia enquanto organizações criminosas, aparecem como um potencial e temível braço armado, eventualmente disponível para aterrorizar e matar adversários [xxx].

As igrejas evangélicas constituem um terceiro círculo. Não se estruturam monoliticamente, mas, em grande maioria, apoiaram ativamente a candidatura de Bolsonaro[xxxi]. Destaca-se também aí a pauta dos costumes. De modo geral, os evangélicos acreditam nos valores do trabalho, do ascetismo, do esforço próprio, da ajuda mútua e abominam as lutas identitárias, o consumo de drogas e a revolução comportamental que é um aspecto das transformações civilizacionais em curso. Apoiadas em crescente adesão social, fortes bancadas parlamentares (a bancada da Bíblia) e poderosos meios de comunicação, tornaram-se uma respeitável força política no país.

As igrejas evangélicas constituem um terceiro círculo. Não se estruturam monoliticamente, mas, em grande maioria, apoiaram ativamente a candidatura de Bolsonaro
Daniel Aarão Reis

Mas seria um equívoco imaginar que seriam dóceis aliados, pois há contradições entre os valores cultivados pelos evangélicos e determinados aspectos do credo bolsonarista, como o recurso à violência (bandido bom é bandido morto), a conciliação consequente com as milícias, rejeitada, e a liberação dos jogos de azar, que eles execram.

Num quarto círculo, encontram-se vastos setores das classes médias afluentes (profissionais liberais, assalariados de padrão mais alto, etc.), principalmente no sul e sudeste do país. Desorganizadas, unificaram-se em torno de Bolsonaro menos pelo compartilhamento de valores ideológicos e mais pela luta contra a corrupção e o antipetismo. A nomeação do Juiz Sergio Moro para o cargo de Ministro da Justiça consagrou a adesão destas camadas sociais a Bolsonaro, mas sua recente demissão, em 24 de abril passado, e suas denúncias contra a conciliação de Bolsonaro com a corrupção, abalaram a confiança destas bases [xxxii].

Num quinto círculo, finalmente, encontram-se setores importantes das classes dominantes brasileiras, do capital financeiro internacionalizado ao agronegócio, cujas propostas costumam ser veiculadas pelos grandes meios de comunicação. Eles não têm voto, mas têm recursos que condicionam votações. Num primeiro momento, viam com desconfiança a extrema-direita, preferindo um candidato de centro ou de centro-direita para derrotar o petismo. Neste sentido, apostaram suas fichas no PSDB e em seu candidato, Geraldo Alckmin.

À vista do fracasso deste último, porém, migraram em massa para a candidatura Bolsonaro, na expectativa de controlar e domesticar seu extremismo. A escolha de Paulo Guedes como ministro das finanças, um homem comprometido com programas e reformas ultraliberais, contribuiu para que se viabilizasse o apoio destas gentes.

Para encerrar, cumpre enfatizar o potencial de apoio social do qual dispõe Bolsonaro em camadas populares, o que, em parte, é assegurado pelo trabalho de base dos evangélicos, notoriamente ramificados, de forma capilar, nas comunidades mais pobres do país. Sua capacidade de comunicação, auxiliada por um trabalho profissional nas mídias sociais, só perde para a de Lula. Gestual e palavras obscenas, que chocam as camadas de elite e letradas do país, são, muitas vezes, encaradas como expressões de coragem e autenticidade, qualidades escassas entre os políticos profissionais. Não esquecer as expressivas votações de Bolsonaro nos grandes centros urbanos e nas capitais dos Estados. Mesmo na região Nordeste, que permaneceu majoritariamente fiel ao PT e a LulaBolsonaro venceu em grandes cidades consideradas de larga tradição de esquerda, como Recife, capital de Pernambuco.

A multiplicidade e a pluralidade das bases de apoio que garantiram a vitória da extrema-direita evidenciam seu caráter profundamente heterogêneo. Recorde-se que a vitória de Bolsonaro não foi uma surpresa apenas para seus adversários, mas também para ele e seus fiéis apoiadores.

Uma frente política constituída de forma apressada, sem propostas claras para uma série de problemas fundamentais do país (educação, saúde, transportes públicos, segurança etc.), apoiada em ideias simplistas, salvadoras, que ignoravam – e ignoram – a complexidade das questões com as quais teria que lidar caso o candidato fosse sufragado. A improvisação evidencia-se no troca-troca de ministros, tendo já sido substituídos doze deles em apenas um ano e meio de governo, além de dezenas de substituições em escalões secundários, mas importantes [xxxiii].

a extrema-direita atual é bastante diferente das referências que vertebraram as ditaduras do passado. E é questionável também a aproximação que se faz entre o quadro atual e a experiência integralista dos anos 1930 e, em particular, com a experiência do fascismo - Daniel Aarão Reis Tweet

Apesar de declarações altissonantes – e de bravatas em série –, que marcaram uma primeira fase do Governo, até junho de 2020, o governo e a extrema-direita não foram capazes de gestar até o momento uma doutrina coerente. Suas formulações encontrar-se-iam num estado gasoso, se a metáfora for permitida, o que dá conta das improvisações e acochambrações diversas, mal encobertas por uma estridente e poderosa propaganda. Trata-se de uma força política cujas concepções ainda estão em formação, como uma nebulosa, daí as dificuldades em conceituá-la, embora sejam bastante claros – e perigosos – seus propósitos autoritários e antidemocráticos.

Tais propósitos têm raízes autoritárias no passado brasileiro. Entretanto, a extrema-direita atual é bastante diferente das referências que vertebraram as ditaduras do passado. E é questionável também a aproximação que se faz entre o quadro atual e a experiência integralista dos anos 1930 e, em particular, com a experiência do fascismo.

De um lado, as conjunturas internacionais que ensejaram as ditaduras e o fascismo histórico (e o integralismo) têm características qualitativamente diferentes das atuais. As ditaduras exprimiam alianças de classe bem definidas e projetos claros de modernização autoritária. Não é o caso da atual extrema-direita[xxxiv].

Quanto ao integralismo e ao fascismo, caberia uma análise mais complexa [xxxv].

Se pensarmos o fascismo histórico, não há consistência teórica em identificá-lo com a atual extrema-direita brasileira. O fascismo caracterizou-se por propostas de regeneração cultural, de integração e enquadramento orgânico da sociedade, de mobilização intensiva e agressiva da população. Acionava um nacionalismo exacerbado, militar, violento e expansionista e voltado para a construção de um projeto de renovação da sociedade, típico das direitas revolucionárias. Ora, este conjunto de características e de referências não se encontra no bolsonarismo [xxxvi].

Do ponto de vista do debate a respeito da adequação e eficácia políticas do emprego do termo, preferimos empreendê-lo no próximo item, destinado ao estudo das alternativas disponíveis para lidar com a extrema-direita.

A democracia face à extrema-direita. Desafios & Alternativas

A análise do bolsonarismo tornou-se mais complexa em virtude de acontecimentos que se têm desdobrado a partir de junho de 2020.

Até então o governo manteve uma retórica beligerante, apoiando grupos extremistas que se destacavam por uma retórica de enfrentamento e que demandavam abertamente, às vezes com a presença e o estímulo do próprio presidente, o fechamento das instituições da democracia representativa, ou seja, um golpe de estado na tradição latino-americana dos anos 1960/1970.

Com o crescimento das tensões, associadas à crise gerada pela pandemia do vírus covid-19, extremamente mal gerenciada por Bolsonaro, à demissão do ministro da Justiça em abril de 2020, e a vários escândalos de corrupção, envolvendo fiéis aliados e até os próprios filhos de Bolsonaro, o governo sofreu profundo desgaste. Tendo sido sufragado por 57,8 milhões de votos (55,13% dos votos válidos), os índices de confiança caíram bastante, conforme flagrado por pesquisas realizadas em maio e junho de 2020, situando-se em torno de 30% [xxxvii].

Houve, a partir de então, notável e surpreendente reviravolta.

Bolsonaro abandonou à própria sorte os grupos extremistas que se isolaram e enfrentam hoje complicados processos na Justiça. Suspendeu igualmente a habitual retórica estridente, com aspectos paranoicos, e se dedicou, com sucesso, a formar ampla base política com diversos partidos minados por múltiplas acusações de envolvimento com a corrupção. No mesmo movimento, definiu um padrão de relações estáveis e amigáveis com lideranças do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, até então quotidianamente hostilizadas [xxxviii].

Se pensarmos o fascismo histórico, não há consistência teórica em identificá-lo com a atual extrema-direita brasileira. O fascismo caracterizou-se por propostas de regeneração cultural, de integração e enquadramento orgânico da sociedade, de mobilização intensiva e agressiva da população
Daniel Aarão Reis

Bafejado pelo impacto positivo do auxílio emergencial aprovado pelo Congresso, mas que tem sido atribuído ao presidente pelos beneficiários, e apesar do desgaste entre os que votaram nele pensando na luta contra a corrupção, Bolsonaro voltou a conhecer substancial crescimento nos índices de aprovação popular segundo pesquisas realizadas em setembro último [xxxix].

As opiniões e análises se dividem agora a propósito dos rumos do bolsonarismo e do governo de Jair Bolsonaro. Estaríamos assistindo a um recuo episódico, “tático”, ou se trataria de definição de novos rumos? O presidente estaria receoso de que os processos contra seus filhos pudessem alcançar um ponto de não-retorno? Atingindo-o através de um processo de impeachment, de duvidosos resultados? O que teria feito Bolsonaro desistir das bravatas e ameaças sem fim? Os altos mandos das Forças Armadas teriam desaconselhado aventuras militaristas e ditatoriais? O presidente teria concluído que, entre as próprias classes dominantes, não haveria espaço, pelo menos nas circunstâncias atuais, para surtos autoritários? Teria sido ele, afinal, domesticado no quadro dos parâmetros institucionais? Outra incógnita, maior, completa o quadro de dúvidas: as orientações ortodoxamente neoliberais, lideradas pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, seriam mantidas a todo o custo ou prevaleceriam inclinações por políticas nacional-estatistas, conferindo ao Estado um protagonismo decisivo na recuperação da economia?

O futuro do governo permanece indeciso. A cruzada contra a corrupção, depois da demissão do ministro da Justiça, Sergio Moro, em abril passado, deixou de ser uma prioridade, para dizer o menos. A proposta neoliberal de reorganização da economia encontra-se também em questão. O ministro da Economia, Paulo Guedes, paladino desta perspectiva, apesar de seus esforços, não conseguiu ainda esvaziar as tendências nacional-estatistas defendidas por vários ministros [xl]. Grande parte da mídia, partidária das medidas e políticas neoliberais, hesita em acreditar na solidez da posição do ministro da Economia e não está certa de que ele se sairá vencedor nos embates contra os nacional-estatistas incrustados no governo.

As campanhas com vistas às eleições municipais, considerando-se a excepcionalidade da pandemia, vêm transcorrendo normalmente, promovendo-se uma carta “naturalização” do governo Bolsonaro. Quanto aos erros clamorosos cometidos pelo presidente ao lidar com a pandemia, o cansaço que toma conta de amplos setores da população, devido aos rigores da pandemia, tende a neutralizar, ao menos em parte, o desgaste sofrido nos primeiros meses pelos propósitos negacionistas do presidente.

Neste quadro, as forças de esquerda, de forma geral, permanecem sem propostas claras e sem capacidade de intervenção e mobilização. As referências a um possível impeachment, por improvável, esfumaram-se. É como se no palco político, em vez de duas forças, estivessem se confrontando duas fraquezas. A extrema-direita não tem capacidade – ainda não – de derrotar o Congresso e o Judiciário ou ameaçar, pelo menos no curto prazo, as instituições democráticas. Mas estas instituições também não conseguem remover Bolsonaro.

Como entrever e propor alternativas?

Entre os que observam a cena política brasileira, há um consenso de que a maioria de votos obtidos por Bolsonaro nas eleições de outubro de 2018 deveu-se muito mais ao antipetismo do que propriamente ao entusiasmo suscitado pelas propostas e características do candidato vitorioso.

Votando ou se articulando em torno de Bolsonaro, muitos ficaram na expectativa que, depois da vitória, houvesse uma rápida domesticação do presidente. Uma expectativa não realizada, mesmo depois da reviravolta acima mencionada. Se é verdade que as provocações e bravatas diminuíram de intensidade, são poucos os que imaginam que ele teria abandonado propostas e perspectivas autoritárias. Em vez de um golpe frontal, não se pode descartar, dependendo das circunstâncias, a hipótese de uma estratégia de desgaste progressivo das margens democráticas, uma corrosão por dentro as instituições, mantendo-as, no limite, como se fossem cascas desprovidas de conteúdo, num estilo semelhante ao empreendido por V. Orbán na Hungria [xli].

O fato é que, uma vez ameaçadas, as forças políticas de centro e de direita democráticas, hegemônicas no Parlamento e no Poder Judiciário, reagiram, marcando limites às pretensões ditatoriais de Bolsonaro. As tendências e os métodos chavistas, de enfraquecimento progressivo das instituições democráticas, atribuídos pelas direitas ao PT e a Lula, estariam sendo, na prática, adotados por Bolsonaro [xlii]. Em protesto, manifestos de intelectuais, juristas e profissionais liberais, publicados pela imprensa, afirmavam-se na defesa das instituições democráticas. Panelaços contra Bolsonaro, em várias cidades, evidenciavam um crescimento da insatisfação.

Reitera-se o equilíbrio de forças: entre a extrema-direita, liderada por Bolsonaro e a direita/centro democráticos, representados por líderes parlamentares e ministros do Supremo Tribunal federal. Nenhum lado mostra-se capaz de derrotar o outro.

A ameaça à democracia representada pela extrema-direita continua real. É verdade que o presidente perdeu bases nas classes médias que votaram nele imaginando-o como um campeão na luta contra a corrupção. Entretanto, o avanço registrado em amplos setores sociais em virtude o auxílio emergencial concedido pode inspirar aventuras autoritárias com apoio popular, o que não seria inédito na história do Brasil [xliii].

Estas esquerdas, sempre plurais, não estão destinadas a permanecer desarticuladas e/ou apartadas. No Brasil atual, porém, no quadro da nova república, estabeleceu-se uma grande distância entre elas
Daniel Aarão Reis

Se o governo mantiver a orientação neoliberal, prometida durante a campanha eleitoral, será muito difícil ampliar ou manter substancial apoio popular. Já uma inflexão no sentido de uma política nacional-estatista, combinando-se com políticas assistencialistas, criariam condições mais favoráveis ao apoio de camadas populares [xliv].

O dado novo é que as esquerdas democráticas começam a sair do torpor que as caracterizou desde a derrota eleitoral de 2018. Entre elas cabe distinguir as ações empreendidas pelas esquerdas de Estado e pelas esquerdas sociais.

A conceituação tem sido defendida por Carlos Vainer, professor vinculado ao Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional/IPPUR/UFRJ). As esquerdas de Estado seriam representadas pelos partidos políticos ou outras associações que disputam espaços institucionais, e ritmam seus movimentos de acordo com os calendários eleitorais. Já as esquerdas sociais seriam constituídas por lideranças que operam no tecido social, articulando e organizando movimentos que se desdobram na base da sociedade.

A experiência dos governos petistas evidenciou que não há uma “muralha da China” entre estes dois tipos de esquerda: muitos representantes de movimentos sociais importantes foram aspirados por órgãos ou conselhos consultivos, abandonando ou deixando em plano secundário a militância social. Até mesmo um movimento social tradicional, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra/MST, deixou-se cooptar, em certa medida pelos acenos e promessas dos governos petistas.

Estas esquerdas, sempre plurais, não estão destinadas a permanecer desarticuladas e/ou apartadas. No Brasil atual, porém, no quadro da nova república, estabeleceu-se uma grande distância entre elas, na medida em que as primeiras – as esquerdas de Estado – têm sido aspiradas pelas alturas institucionais das lutas políticas, afastando-se claramente das dinâmicas, aspirações e movimentos que se desdobram nas bases da sociedade, onde atuam as esquerdas sociais [xlv].

As esquerdas de Estado não parecem sensíveis a um processo autocrítico. Continuam ruminando críticas e ressentimentos relativos ao passado de derrotas recentes. No seu conjunto, nas eleições municipais de novembro de 2020, perderam uma boa chance de aparecerem unidas, com uma proposta alternativa ao autoritarismo bolsonarista, politizando as escolhas locais. Ao contrário, dividiram-se e foram a reboque da dinâmica localista dos pleitos municipais.

Contribuíram assim, involuntariamente, para “naturalizar” o bolsonarismo e a desarmar a sociedade para eventuais surtos autoritários. De seu lado, o Presidente, salvo exceções, fez uma escolha de se manter “neutro” em relação a candidaturas às prefeituras das cidades brasileiras. Entretanto, nas cidades onde manifestou apoio, seus candidatos não aparecem como favoritos, evidenciando-se que a “onda bolsonarista” de 2018 encontra dificuldades em se repetir. Reproduz-se, na conjuntura eleitoral, o “empate” de fraquezas acima referido.

Quanto às esquerdas sociais, evidenciam maior dinâmica. Em várias cidades, tomam iniciativas para se defender dos efeitos da pandemia, organizando serviços próprios de saúde, desempenhando papéis que caberiam ao Estado, mas que não são por este assumidos por negligência ou incompetência. Nas ruas, apesar dos interditos impostos pela pandemia, promoveram manifestações, disputando os espaços públicos com os grupos de extrema-direita. Nas mídias sociais, fervilham ações de diferentes tipos– debates, palestras, lives. Intelectuais e artistas formulam plataformas comuns, assinam manifestos e se pronunciam em defesa da democracia [xlvi]. É bastante provável que, desaparecidos ou atenuados os efeitos da pandemia, brotem importantes movimentos sociais, dando vazão a demandas por melhores condições vida, serviços públicos decentes, renda básica para todos, diminuição das desigualdades sociais etc.

Trata-se de garantir as margens democráticas existentes, reunindo em torno delas, sem exclusões, todos os que estiverem dispostos a lutar por sua preservação. A ideia de concretizar este movimento em torno de uma plataforma antifascista pode ser problemática. Para além da já referida inconsistência teórica, é de se perguntar se as amplas maiorias saberão sequer o que significa o termo fascismo. Por outro lado, e mais importante, uma frente popular democrática deveria se evidenciar como alternativa – positiva e construtiva – e não apenas se formar na base do anti, eis que tais frentes – negativas – tendem a perder o essencial: de que democracia se está falando, que democracia é preciso construir [xlvii].

Quanto às esquerdas sociais, evidenciam maior dinâmica. Em várias cidades, tomam iniciativas para se defender dos efeitos da pandemia, organizando serviços próprios de saúde, desempenhando papéis que caberiam ao Estado, mas que não são por este assumidos por negligência ou incompetência
Daniel Aarão Reis

Entretanto, é preciso ir além de defender apenas as margens democráticas existentes – restritas e limitadas. Neste sentido, cabe às esquerdas democráticas – de Estado e sociais – se reinventarem e se reaproximarem: a prioridade é investir na ativação dos movimentos de rua, recuperando musculatura no tecido social, reconstruindo forças de que já dispuseram, mas as perderam, e sem as quais não conseguirão retornar ao proscênio, hoje ocupado pela extrema-direita e pelas direitas e centro democráticos.

Num plano mais geral, as esquerdas democráticas precisam formular um programa de democratização da democracia, uma condição indispensável para que as gentes tornem a se interessar – e a proteger, no limite, a se dispor a salvar – o regime democrático ameaçado.

Um conjunto complexo de desafios. Que sejam capazes de suscitar, como sugeriu S. Zizek, a coragem da desesperança [xlviii]. Deste tipo de coragem é que dependerá a sorte da democracia no Brasil. [xlix]

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Notas:

[i] Para o debate sobre a díade direita-esquerda e suas manifestações extremas, cf. N. Bobbio, 1995 e K. Soper, 1999.

[ii] O mesmo aconteceu com os estados socialistas autoritários que, ou se desagregaram (área soviética) ou fizeram opções pela associação com capitais internacionais, reiterando-se como estados despóticos, onde não existem a livre expressão do pensamento e qualquer tipo de organização autônoma das classes populares (China, Vietnã, Cuba e Coréia do Norte).

[iii] Muitos preferem chamá-la de populismo de direita (S. Torney, 2019).

[iv] Observe-se que as propostas autoritárias de direita e as alternativas socialistas despóticas retroalimentam-se à custa das instituições democráticas.

[v] Lideranças políticas e estudiosos têm caracterizado este processo como de ressurgência do fascismo. O debate sobre a questão será desenvolvido no ítem 3 deste artigo.

[vi] Para o racismo estrutural no Brasil, em seus vários aspectos, cf. disponível aqui. Consultado em 20/10/2020.

[vii] Cf. Roberto DaMatta, crônica publicada em O Globo, 10 de junho de 2020, p. 3.

[viii] Para a cartografia dos estupros no Brasil, cf. disponível aqui. Consultado em 20/10/2020. Para violência doméstica, cf. disponível aqui. Consultado em 20/10/2020

[ix] Cf. Rodrigo Patto Sá Motta, 2002.

[x] Entre 1937 e 1945, a ditadura do Estado Novo, liderada por G. Vargas; entre 1964 e 1979, a ditadura civil-militar, presidida por cinco sucessivos generais.

[xi] Entre outros, mencionaria Daniel Aarão Reis, Rodrigo Patto Sá Motta e Marcelo Ridenti, 2014; Rodrigo Patto Sá Motta, 2002 e 2014; Denise Rollemberg, 2008, 2010, 2010a; Lucia Grinberg, 2009; Janaína Cordeiro, 2015; Gustavo Ferreira, 2015; Tatyana Maia, 2012; Paulo Cesar Gomes, 2019; Lívia Magalhães, 2014.

[xii] Nos anos 1970, tornou-se comum analisar as ditaduras latino-americanas como expressão imediata das tradições ibéricas. O conceito enfraqueceu-se com os processos de democratização que se realizaram na…península ibérica, (J. Linz e A. Stepan, 1978 e J. Linz, 2000).

[xiii] Na aspiração por tempos melhores, os brasileiros tendem a usar – e a abusar do – o adjetivo novo para designar mudanças que superariam mazelas do passado. A chamada nova república evidencia a reiteração do recurso, embora em sua estrutura e dinâmica fossem visíveis as marcas do velho,de continuação com o passado.

[xiv] Na interpretação de petistas, de lulistas e de outros agrupamentos de esquerda, o impeachment de Dilma Rousseff foi um golpe de estado parlamentar, camuflado, efetuado por dentro das próprias instituições democráticas. Curioso é que estas forças, desde 1988, recorreram diversas vezes ao impeachment, sem que o mecanismo, essencialmente autoritário, lhes parecesse questionável.

[xv] Nas primeiras eleições diretas para a presidência república, em 1989, foi vencedor, no segundo turno, Fernando Collor de Mello, representante de forças conservadoras que almejavam políticas neoliberais. Seu governo, porém, foi curto (1990-1992), tendo sido apeado do poder por um processo de impeachment apoiado em ampla frente social e política.

[xvi] O PT foi fundado em 10 de fevereiro de 1980, na esteira de grandes movimentos sociais; e o PSDB surgiu no âmbito dos trabalhos de elaboração da nova Constituição, em 25 de junho de 1988.

[xvii] A Comissão Nacional da Verdade, organizada em 18 de novembro de 2011, mais de trinta anos depois do fim da ditadura, até realizou um trabalho positivo, mas não conseguiu alterar o quadro de silêncio social sobre os crimes e legados da ditadura.

[xviii] A esperança em salvadores da pátria tem larga tradição no país. Getúlio Vargas, Jânio Quadros, Fernando Collor, o próprio Lula, cada um a seu modo, todos se inscreveram neste registro de alternativas salvadoras a um sistema execrado.

[xix] Cf. disponível aqui. Consultado em 24 de junho de 2020. As eleições presidenciais realizaram-se em dois turnos: 7 e 28 de outubro de 2018.

[xx] A Lei n° 135, de 5 de maio de 2010, conhecida como Lei da Ficha Limpa, proíbe a candidatura de políticos condenados em segunda instância. A ironia é que foi promulgada pelo próprio Lula, quando no exercício de seu segundo mandato.

[xxi] Desde 1994, em seis sucessivas eleições presidenciais, os dois candidatos mais votados foram apresentados pelo PSDB e pelo PT.

[xxii] Desde 1992, em sete mandatos sucessivos, Jair Bolsonaro elegeu-se à Câmara de Deputados, defendendo interesses corporativistas das forças armadas e policiais e enfatizando o resgate positivo do regime ditatorial.

[xxiii] O juiz projetou-se como campeão nacional da defesa da moralidade. em virtude de seu protagonismo nos processos que desvendaram casos espetaculares de corrupção e acabaram levando à cadeia, entre muitos outros, o próprio ex-presidente Lula.

[xxiv] O censo nacional, realizado em 2000, apurou a existência de 26,2 milhões de pessoas que se autodeclaravam evangélicas, equivalentes a 15,4% da população. Em 2010, o número saltou para 42,3 milhões, 22% da população. O IBGE calculou então que existiriam 14 mil igrejas evangélicas. Consultado em aqui

[xxv] Bolsonaro teve participação pífia nos debates anteriores ao atentado, que o salvou de novos encontros, preservando-o de inevitáveis desgastes.

[xxvi] Para uma análise da presença das direitas políticas no Brasil, cf. André Kaysel e alii, 2015. Para uma interpretação da vitória eleitoral de Jair Bolsonaro, cf. Jairo Nicolau, 2020.

[xxvii] Os diplomas legais emitidos no quadro do estado de exceção instaurado em 1964 foram nomeados pelos próprios autores como atos institucionais ou atos complementares. Foram 17 atos institucionais e 104 atos complementares. O mais drástico e violento foi o AI-5.

[xxviii] Não seria razoável afirmar que todos os referidos oficiais sejam partidários de Bolsonaro, mas é inegável que, no seu conjunto, eles constituem importante base de sustentação do atual presidente.

[xxix]Para as bases militares de extrema-direita, cf. Bolsonaro e o mundo armado no Brasil. Debate entre Luiz Eduardo Soares e Piero Lerner: Disponível aqui. Para as concepções de guerra cultural, cf. J.C. de C. Rocha, 2020.

[xxx] O assassinato da vereadora Marielle Franco, do PSOL-RJ, perpetrado em 14 de março de 2018, foi obra de milicianos. Observe-se que, em algumas regiões, as milícias aliam-se ao tráfico, distribuindo seus “negócios”segundo interesses comuns. Para a força crescente das milícias e articulação com o tráfico cf. disponível aqui. Consultado em 22/10/2020.

[xxxi] Entre elas, destacam-se mesmo algumas lideranças que estão no campo das esquerdas. Por outro lado, o voto evangélico pode evoluir segundo as conjunturas, não sendo os fiéis meros carneiros nas mãos de seus pastores. Cf. B.A. Cowan, 2014. Tem crescido a literatura a respeito dos evangélicos, na proporção da importância dos mesmos na sociedade e na política do país. Cf., entre outros, citados pelo autor referido: S. Baptista, 2009 e M.N. Cunha, 2007.

[xxxii] O prestígio de Sergio Moro e dos procuradores de Curitiba foram gravemente atingidos com as revelações da Intercept, que revelou incontáveis tratativas e procedimentos ilegais e imorais empreendidos por eles. Cf. disponível aqui, consultado em 22/10/2020.

[xxxiii] Cf. Um governo de alta rotatividade. Alto escalão tem uma troca a cada três dias. In O Globo, 27 de agosto de 2020, p. 10.

[xxxiv] Considere-se que muitas forças políticas caracterizaram a ditadura instaurada em 1964, e também o Estado Novo, como fascistas. Foi mais um recurso de luta política do que um conceito adequado. Com o tempo, tais denominações perderam vigência.

[xxxv] Para o movimento integralista, cf. H. Trindade, 1979 e L. Gonçalves, 2018. A presença de núcleos nostálgicos do fascismo e do nazismo no interior da reação nacionalista de extrema-direita em várias partes do mundo tem levado muitos a apresentar este fenômeno novo e específico como uma ressurgência do fascismo/nazismo dos anos 1930. Foi o que tendeu a acontecer também no Brasil, em particular após o ascenso fulminante da extrema-direita. Para a especificidade do fascismo, que dispõe de abundante bibliografia,cf. Emilio Gentile, 2005, sobretudo a II Parte (pp. 169-375) e Robert Paxton, 2007, em particular os capítulos 7 e 8 (pp 283-361). Para uma síntese da especificidade do fascismo, segundo Paxton, cf. pp 358-361. Cf. ainda os estudos clássicos de Renzo Felice, 1977; e ZeevSternhell, 1994. Para o corporativismo estatal, doutrina inspiradora do Estado Novo cf. Antonio Costa Pinto, 2014. Para a vasta literatura sobre o nazismo, cf. I. Kershaw, 2010 e 2015 e R. Gelatelly, 2011. Para o ponto de vista marxista, cf. N. Poulantzas, 1978.

[xxxvi] Uma crítica pertinente ao bolsonarismo, como política excludente, distinta do caráter essencialmente integrador do fascismo, foi elaborada por R. Lessa, 2020. Ressalvem-se interpretações que atribuem ao fascismo uma acepção mais ampla, mais elástica, enfatizando-se não propriamente a experiência histórica, mas um complexo de valores autoritários e intolerantes. Cf. U. Eco, 1995.

[xxxvii] Pesquisas realizadas entre 7 e 10 de maio de 2020 indicavam o crescimento da rejeição ao governo, alcançando patamar de 43,4% (governo ruim ou péssimo). Já os índices de aprovação caíram para 32%. Cf. disponível aqui, consultado em 26 de junho de 2020. Tais resultados foram confirmados em novas pesquisas, publicadas em 26 de junho de 2020.

[xxxviii] Para a caracterização da paranoia de Bolsonaro e de alguns de seus auxiliares, cf. a transcrição da reunião realizada pelo conselho de ministros, presidida pelo próprio Bolsonaro, em 22 de abril de 2020: disponível aqui. Filmada e gravada, o conteúdo da reunião foi divulgado por decisão da Justiça, mostrando-se Bolsonaro e vários de seus correligionários tomados por um delírio de cerco típico das pessoas paranoicas (perseguem, mas se sentem perseguidas). Escrevi a propósito uma crônica: Um governo em cuecas, publicada em 13 de junho de 2020, em O Globo, p. 3. Paulo Sternick, psicanalista, em 21 de junho, no mesmo jornal, p. 3, consideraria a pulsão de morte do Presidente.

[xxxix]Observe-se que o auxílio, de R$600,00 por mês, previsto para durar 3 meses, foi proposto pelo governo em apenas R$ 200,00. Nos debates no Congresso, aumentou para R$500,00 sendo, mais tarde, fixado em R$600,00 pelo próprio Bolsonaro. Reduzido a R$ 300,00, o auxílio foi mantido até o fim do ano de 2020. O auxílio vem socorrendo dezenas de milhões de pessoas e seu impacto foi decisivo para evitar o agravamento da crise econômica e para ensejar a migração de muitos setores da pobreza e da miséria para a chamada classe C, ou seja, uma espécie de classe média inferior. Para a aceitação de Bolsonaro junto às camadas populares,cf. pesquisas realizadas em setembro último: disponível aqui. Consultado em 22/10/2020.

[xl] Tais tendências tornaram-se evidentes a partir da divulgação da reunião ministerial de 22 de abril. São defendidas pelos generais que assessoram Bolsonaro, como o gen. Braga Netto, e também pelos ministros de desenvolvimento regional, Rogério Marinho e de Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, cf. nota 44.

[xli] Observe-se que V. Orbán foi um dos poucos líderes internacionais a comparecer pessoalmente à posse de Bolsonaro, em janeiro de 2019.

[xlii] ElioGaspari, em sua coluna no Globo, de 10 de junho de 2020, p. 3, registrou reflexões de lideranças políticas (Joice Hasselmann, ex-líder do PSL, partido do governo na Câmara de Deputados) e intelectuais (José Arthur Giannotti, simpático ao PSDB, e Denis Lerner Rosenfeld, da direita democrática) que manifestavam alarme com seus procedimentos autoritários, classificados como chavismo de direita.

[xliii] Além da aprovação de 40%, que consideraram o governo “ótimo e bom”, Bolsonaro ainda conta com 29% que consideraram o governo “regular”. Além disso, recorde-se a força capilar – e popular – dos evangélicos.

[xliv] Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/IBGE, o país conta hoje, fins de outubro de 2020, com 14 milhões de desempregados. No quadro atual duvida-se da possibilidade de maciços investimentos internacionais, restando, portanto os investimentos estatais, combinados com setores industriais de intenso aproveitamento da mão de obra, como a construção civil. Por ironia, algo muito semelhante ao realizado pelos governos petistas.

[xlv] Cf. intervenção de Carlos Vainer na emissão Rebeldes, sempre, em três partes, a partir dos seguintes links: aquiaqui; e aqui.

[xlvi] Alcançaram grande repercussão, manifestos assinados por intelectuais de esquerda e do centro e direitas democráticos: “Estamos juntos”; “Basta” (juristas); “Somos 70%” e “Enquanto houver racismo, não haverá democracia”.

[xlvii] Cabe assinalar, contudo, que diversas manifestações e articulações populares têm se autoidentificado como antifascistas. Assim, não é de se excluir a hipótese que esta terminologia se afirme e se generalize.

[xlviii]S. Zizek, 2017.

[xlix] O presente texto atualiza e aprofunda questões veiculadas por artigo intitulado: “A extrema-direita brasileira: uma concepção política autoritária em formação”, publicado no Anuario de la Escuela de História, Universidad Nacional de Rosario, Argentina, em fins de outubro de 2020. Mencione-se igualmente uma primeira versão, intitulada: “Notas para a compreensão do Bolsonarismo”, publicada em abril de 2020 na Revista de Estudos Ibero-americanos, v. 46, n° 1/2020, Seção Tribuna. Revista de História da Escola de Humanidades da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUC/RGS, Brasil (Cf. D. Aarão Reis, 2020). Para a presente reelaboração, contribuíram sugestões de Angela Castro Gomes, Janaína Cordeiro, Marcelo Ridenti, Rodrigo Patto Sá Motta e Vladimir Palmeira, embora, de modo algum, possam ser responsabilizados por eventuais imprecisões e erros de avaliação que subsistam no artigo.

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Augusto de Franco: Sinais de envenenamento da democracia

Uma das descobertas mais importantes dos estudos (de pesquisadores do V-Dem, da Universidade de Gotemburgo) sobre a terceira onda de autocratização em curso é que 70% dos esforços de autocratização são feitos por meios legais (1).

Desde que a terceira onda de autocratização começou em 1994, 75 episódios de aumento de governos autocráticos – períodos de declínio democrático substancial – ocorreram em todo o mundo. A maioria não envolveu violência física. Ou seja, em mais de 52 países os processos de autocratização (ou de assassinato lento da democracia) não rasgaram as constituições (e, pode-se acrescentar, deixaram as instituições funcionando).

As democracias agora são mortas lentamente, como por envenenamento (por arsênico, por exemplo). Isso pode ser feito sem violar as leis, rasgar a Constituição, fechar as instituições (e empastelar a imprensa).

Tanques nas ruas? Nem pensar. Direitos políticos e liberdades civis formais podem permanecer vigendo. Além disso, eleições multipartidárias podem continuar ocorrendo normalmente.

Ah!… mas se tudo isso está funcionando, por que se diz então que as democracias estão sendo mortas? Pois é. Para dar uma resposta a esta pergunta é preciso entender o que é a democracia. Pela visão minimalista de democracia – como troca (eleitoral) de governo sem derramamento de sangue – a democracia não está ameaçada nesta terceira onda de autocratização. O que, por si só, revela que essa visão – que reduz a democracia ao processo eleitoral – é absurda. E é absurda, antes de qualquer coisa, porque não percebe que as principais ameaças atuais à democracia vêm dos populismos – que amam de paixão as eleições (2).

Todavia, mais de 80% dos nossos representantes políticos e uma parte considerável de nossos analistas, também não conseguem entender como a democracia pode estar sendo derruída sem violação das leis. É a isso que nos referimos quando falamos do nosso déficit de democratas.

Para onde devemos olhar para perceber os sinais de envenenamento que estão matando as democracias lentamente? E que sinais são esses?

Recolocando a questão. Onde estão os sinais de envenenamento (da democracia) quando o corpo (as instituições) ainda acha que está sadio? Ou seja, nos estágios iniciais da “doença”, as instituições não percebem que estão sendo envenenadas.

O Estado de direito não dá conta de identificar os ataques contemporâneos à democracia e de se defender desses ataques. Como eles (esses ataques, que são contínuos ou intermitentes – e não se parecem nada com um putsch de cervejaria) não violam abertamente as leis, então são considerados parte da dinâmica normal da democracia. É como colocar o vigia noturno de uma manufatura para cuidar da segurança da Microsoft.

É por isso que não existem leis contra a falsificação da opinião pública via manipulação das mídias sociais. E não é porque isso seja uma novidade contemporânea (do século 21). Bem antes, já não existiam leis contra o discurso inverídico, contra o uso da democracia (notadamente das eleições) contra a própria democracia e nem contra a destruição das normas não escritas que estão abaixo do sistema legal-institucional e lhe dão suporte.

É justamente nessas falhas estruturais da democracia que devemos procurar os sinais de envenenamento (ou de desconsolidação) da democracia (3).

Apenas com os indicadores atuais de direitos políticos e liberdades civis (usados, por exemplo, pela Freedom House, pela The Economist Intelligence Unit ou mesmo pelo V-Dem) não se consegue captar esses sinais. Até porque eles são fracos nos estágios iniciais do envenenamento. E além de fracos, eles não são visíveis diretamente. As mudanças que vão matar lentamente a democracia são subterrâneas (4).

Alguns sinais de envenenamento da democracia

Se houvesse um número suficiente de democratas, alguns sinais de avanço do autoritarismo e de desconsolidação da democracia teriam sido percebidos por uma parcela maior de pessoas e teriam alertado a sociedade sobre os perigos que está correndo.

Quais seriam esses sinais? Vão abaixo alguns exemplos. O primeiro deles – o marco zero de qualquer processo de desconsolidação da democracia – é o crescimento de uma retórica autoritária por parte de líderes emergentes que conseguem infectar a esfera pública; e o último, que resume tudo, é a dilapidação progressiva do estoque de capital social.

Tirando os itens mais óbvios, como os ataques à imprensa profissional, o surgimento de propostas de armamentismo da população (não apenas para defesa pessoal ou como política de segurança pública e sim como preparação para combater algum inimigo interno) e o florescimento de seitas fundamentalistas que misturam religião com política, cabe examinar aqui o que é menos óbvio ou menos percebido pelas análises políticas.

Registre-se que o caso brasileiro tem uma singularidade em relação a outros processos de autocratização da democracia que estão ocorrendo no mundo atual. Aqui há, historicamente, a permanência da tutela militar sobre o poder civil e a presença de forças armadas (ou policiais) possuídas pela ideologia do “inimigo interno”. É alto o grau de aparelhamento do governo por oficiais das forças armadas (sendo altíssima a porcentagem de militares da ativa ou da reserva que ocupam cargos de primeiro, segundo e terceiro escalões). Além disso, oficiais das forças armadas, da ativa ou da reserva, emitem declarações políticas tentando intimidar ou pressionar as instituições civis (como os tribunais superiores e o parlamento). Não vamos tratar agora, porém, dessa particularidade.

Mas estes – ataques à imprensa, armas e munições para abastecer milícias, tutela militar e militarização – não são sinais de envenenamento lento da democracia. Já são ofensivas abertas e declaradas à democracia. Vamos examinar aqui apenas sete sinais, portanto:

1 – O crescimento de uma retórica autoritária, inicialmente antissistema e, em seguida, anti-democracia.

2 – O aumento da relevância de forças políticas populistas (i-liberais e majoritaristas, ditas “de direita” ou “de esquerda”) e o recrudescimento da polarização (“nós” contra “eles”) com a consequente degeneração da política como guerra.

3 – A subversão da democracia por meios democráticos (ou o uso da democracia – notadamente das eleições – contra a própria democracia).

4 – A replicação do discurso antipolítico (associado – mas nem sempre – ao combate à corrupção) e a ascensão de movimentos de opinião que pregam a realização de cruzadas de limpeza (étnica, ética, religiosa ou nacional).

5 – A proliferação de milícias digitais que falsificam a opinião pública por meio da manipulação das mídias sociais.

6 – A violação das normas não-escritas que estão abaixo do sistema legal-institucional e lhe dão sustentação.

7 – Para resumir (ou sintetizar) tudo, a dilapidação do estoque (ou a interrupção do fluxo) de capital social.

Vamos examinar a seguir cada um desses sinais.

1 – O crescimento de uma retórica autoritária, inicialmente antissistema e, em seguida, anti-democracia

Como já foi dito, tudo começa com a retórica. É sempre o primeiro sinal. Se candidatos,  governantes ou representantes das forças políticas que o apoiam, têm a coragem de vir à esfera pública proferir ideias autoritárias (ainda que sejam só ideias), então isso – se não for um ato isolado, episódico, marginal, mas uma prática sistemática – é um indício de que um processo de autocratização está em curso.

“Ah! Mas é pura retórica” – argumentam as pollyannas que sempre pontificam nessas horas. Nada disso. Retórica é política. Se há a presença de uma retórica autoritária é porque já há uma política autoritária (às vezes em embrião).

O discurso intolerante é um sintoma de que uma guerra (contra a democracia: e a guerra, qualquer guerra, até mesmo a política praticada como continuação da guerra por outros meios, já é contra a democracia) está chegando. Quando as palavras começam a ser usadas como armas para atingir as instituições e os procedimentos democráticos, alguma coisa muito ruim está vindo. Tudo começa com a fala.

Se Jair Bolsonaro, quando era deputado, ao fazer apologia da ditadura e da tortura e falar em matar adversários políticos – tudo “pura retórica” – tivesse sido punido, talvez hoje não estivesse capitaneando, como presidente da República, a depredação da democracia no Brasil. Isso nos remete diretamente ao Paradoxo da Tolerância, de Karl Popper (1945): “A tolerância ilimitada pode levar ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada até àqueles que são intolerantes; se não estivermos preparados para defender uma sociedade tolerante contra os ataques dos intolerantes, o resultado será a destruição dos tolerantes e, com eles, da tolerância” (5).

Diz-se que a democracia é o tipo de regime onde é lícito discordar publicamente do próprio regime. E que atos ilícitos em uma democracia são aqueles que levem a ações concretas que ponham a democracia em risco real e iminente. Este é um erro muito comum, sobretudo sob a terceira onda de autocratização em que vivemos. Pois como definir  “risco real e iminente” numa época em que as democracias não caem mais por golpes armados, mas são derruídas lentamente, em alguns casos até sem violar explicitamente as leis e rasgar as constituições. Numa época como esta, quando os regimes democráticos são vítimas de um envenenamento diário, baseado – antes de qualquer coisa – em retórica autoritária e propaganda da intolerância, não vale mais o velho argumento principista de que vale tudo “se for só retórica”.

Argumentar, em termos teóricos, contra a democracia, é lícito, por certo, em democracias. Mas não fazer propaganda da ditadura, do fechamento do parlamento, da prisão dos membros dos tribunais, da volta de leis de exceção. Isso não é liberdade de opinião e sim apologia da ditadura. Apologia de ditadura não é liberdade de opinião: é crime. Pergunte-se a qualquer um na Alemanha se fazer apologia do nazismo é liberdade de opinião. Apologia do fim da liberdade de opinião não pode ser encarada como liberdade de opinião. Por isso a pregação da intolerância não pode ser tolerada.

O discurso intolerante pode ser detectado por perguntas simples. No caso brasileiro atual elas chegam a ser óbvias (6). Não é por falta delas que não se detecta precocemente a autocratização do regime e sim porque não há uma visão clara das condições para que uma democracia não se desconsolide. E não há, entre muitas outras razões, porque os populismos tomaram de assalto a esfera pública de opiniões.

O fato é que todos os populismos, digam-se “de esquerda” ou “de direita”, usam e abusam da retórica antissistema. Querem jogar o povo (quer dizer, seus seguidores) contra o sistema (o establishment, representado pelas elites). O problema é quando o sistema que denunciam é o sistema democrático. Aí é necessário acender o alerta amarelo no nosso sistema de detecção precoce de desconsolidação da democracia.

2 – O aumento da relevância de forças políticas populistas (i-liberais e majoritaristas, ditas “de direita” ou “de esquerda”) e o recrudescimento da polarização (“nós” contra “eles”) com a consequente degeneração da política como guerra.

Antes de qualquer coisa é necessário entender o que são os populismos contemporâneos. Não é a velha demagogia, que raramente ameaça de morte à democracia. Se a democracia não pudesse metabolizar os demagogos, fisiológicos e corruptos que sempre aparecem, então nunca teria havido democracia. O que a democracia não consegue metabolizar é um grande aumento de populistas antidemocratas, i-liberais e majoritaristas – que são uma forma contemporânea e maligna de populismo.

Populistas contemporâneos caracterizam-se por esposar as seguintes crenças: 1 – A sociedade está dividida por uma única clivagem, separando a vasta maioria (o povo) do establishment (as elites); 2 – A polarização (elites x povo) deve ser encorajada. Os representantes do povo (que são os atores legítimos ou mais legítimos) não devem fazer acordos (a não ser táticos) ou construir consensos (idem) com os representantes das elites (posto que estes são ilegítimos ou menos legítimos) e sim buscar sempre suplantá-los, fazendo maioria em todo lugar (majoritarismo); 3 – As minorias políticas (antipopulares) não devem ser toleradas (e devem ser deslegitimadas) quando impedem a realização das políticas populares e a legalidade institucional (erigida para servir às elites) não deve ser respeitada quando se contrapõe aos interesses do povo.

Definitivamente, daí sai não política, mas guerra. Ora, a guerra é o contrário da democracia (que é um modo pazeante, ou não-guerreiro, de regulação de conflitos): seja a guerra quente, seja a guerra fria, seja a política como continuação da guerra por outros meios (na fórmule-inverse de Clausewitz-Lenin). A predominância ou a incidência relevante de uma política como guerra do “nós” contra “eles” é um sinal de desconsolidação da democracia.

Quando uma força política populista (dita de esquerda, de direita ou de extrema-direita) consegue alcançar, digamos, uns 20% de adesão, já é sinal de que a democracia foi envenenada (e pode vir a se desconsolidar).

Mas se houver dois populismos (ditos “de esquerda” x “de direita”) polarizando o cenário político, então é sinal de que a democracia foi seriamente comprometida. Porque a polarização tende a marginalizar quem não está em um dos polos. Ela deforma o campo de tal maneira que uma partícula qualquer não pode ter uma trajetória livre nesse campo: escorrerá por creodos, por sulcos já cavados, indo parar em um dos polos, excluindo os democratas e, no limite, defenestrando-os da cena pública.

Quando um conjunto de forças democráticas não funciona mais como centro de gravidade da política, é sinal de que a democracia já começou a se desconsolidar. Cabe registrar que o conceito de ‘centro’, aqui mencionado, não é o geométrico, evocando uma equidistância entre esquerda e direita. Centro é o centro de gravidade da política. Então, repetindo, é possível afirmar que quando um conjunto de forças democráticas não funciona mais como centro de gravidade da política, é sinal de que a democracia já começou a se desconsolidar.

Não raro, populismos ditos “de esquerda” preparam o terreno para o surgimento de populismos ditos “de direita”. No Brasil deste século, o neopopulismo lulopetista começou a envenenar a democracia com a insistência no “nós” contra “eles” e a degeneração da política como guerra. Isso tornou o ambiente propício à reação extremada e surgiu então um populismo-autoritário bolsonarista, muito pior do que o anterior. Mas o inverso também pode acontecer. Ou re-acontecer.

Uma vez a esfera pública esteja vincada pela polarização entre dois populismos, dificilmente a democracia conseguirá se recuperar. Alerta vermelho, portanto, no nosso sistema de detecção precoce de desconsolidação da democracia.

3 – A subversão da democracia por meios democráticos (ou o uso da democracia – notadamente das eleições – contra a própria democracia).

Esta é uma falha genética da democracia dos modernos. Na democracia representativa, um dos critérios da legitimidade democrática (a eletividade) acabou se sobrepondo aos outros cinco critérios (a liberdade, a publicidade ou transparência, a rotatividade ou alternância, a legalidade e a institucionalidade). Os populistas então encontraram uma falha no arranjo representativo (e resolveram explorá-la): descobriram que é possível usar as eleições contra a democracia.

Para falar a verdade, os oligarcas atenienses – membros da aristocracia fundiária que se contrapunham à democracia, já haviam descoberto que é possível ganhar votações (7).

O fato é que a democracia virou, para todos os efeitos práticos, sinônimo de regime eleitoral. Surgiram até visões teóricas minimalistas da democracia como troca (eleitoral) de governo sem derramamento de sangue. Se essa é a visão de democracia então pode-se fazer qualquer coisa para desconstituí-la, desde que se mantenha o processo eleitoral.

Ocorre que os regimes não-eleitorais, na atualidade, são muito poucos e estão em extinção. Os adversários atuais da democracia, salvo um outro caso exótico (como Myanmar), não querem acabar com a democracia para instaurar ditaduras de manual como a Coréia do Norte ou Cuba. Os processos de desconstituição de democracia avançam hoje para transformar democracias liberais em democracias (apenas) eleitorais e para transformar democracias eleitorais em autocracias eleitorais.

As ditaduras clássicas ou autocracias fechadas (não-eleitorais), até muito recentemente, estavam presentes em apenas 27 países. Pela classificação do V-Dem (Varieties of Democracy da Universidade de Gotemburgo), em dados de 2017 (que não se alteraram significativamente), tínhamos apenas 39 democracias liberais, 55 democracias eleitorais e 56 autocracias eleitorais (que tendem, estas últimas, a crescer).

Quer dizer, a tendência aponta para o surgimento de regimes autoritários (autocracias) com a manutenção – não mais com a abolição – do processo eleitoral. Para lá caminharam Rússia e Turquia. Para lá caminham Hungria e Polônia. E para lá se tentou levar os Estados Unidos e ainda se tenta levar o Brasil.

O maior perigo hoje para os regimes democráticos é o uso da democracia contra a democracia. A subversão da democracia por meios legais, com a manutenção dos processos eleitorais. Quando populistas são eleitos é bom acender o alerta amarelo. Se eles são reeleitos, é caso para alerta vermelho no nosso sistema de detecção precoce de desconsolidação da democracia.

4 – A replicação do discurso antipolítico (associado – mas nem sempre – ao combate à corrupção) e a ascensão de movimentos de opinião que pregam a realização de cruzadas de limpeza (étnica, ética, religiosa ou nacional).

Este é outro indicador de depredação da política (democrática). É um ataque insidioso, uma vez que ninguém pode, em sã consciência, ser a favor da corrupção ou colocar-se contrário à luta para coibi-la.

Cruzadas de limpeza nunca resultam em mais-democracia. Cruzadas de limpeza da política – animadas por conclamações do tipo: “vamos caçar os corruptos” – nunca conferem à política a tarefa de consertar os erros da própria política. Querem reparar as mazelas da política por cima da política (e por fora da democracia) – muitas vezes a partir de estamentos corporativos do Estado. São, assim, antipolíticas.

Em geral as cruzadas de limpeza ética da política são tentativas de reeditar o jacobinismo, o terra-arrasadismo e o restauracionismo robespierriano. Exploram e instrumentalizam o moralismo da população, vendendo a ideia de que as pessoas estão nas péssimas condições de vida em que estão porque alguém está desviando e embolsando o dinheiro da saúde, da educação e de outros serviços sociais prestados pelo Estado. Investem no punitivismo, apoiando-se no ressentimento social, no desejo de vingança e na vontade de revanche (para “dar o troco”). Quando parte do público que acompanha a obra de limpeza entra em transe punitivista – vê uma cabeça rolar e só se satisfaz quando mais uma cabeça rola, e mais uma, e mais uma… – então é sinal de que a espiral da vingança já está instalada.

A grande inspiração para essas cruzadas – o jacobinismo da revolução francesa – não tinha qualquer compromisso com a democracia. Queria arrasar a terra para restaurar o mundo a partir do zero, de modo autocrático. O famoso discurso parlamentar de Robespierre, de 28 de dezembro de 1792, proferido na Convenção, dominada pelos jacobinos, deixa claro que se trata de instaurar processos de exceção, abrindo mão dos ritos jurídicos e do contraditório, apressando a condenação e a execução de Luís XVI: “Fundadores da República, segundo estes princípios, vocês podiam julgar, há muito tempo, na alma e na consciência, o tirano do povo francês. Qual a razão de um novo adiamento? Vocês gostariam de anexar novas provas contra o acusado? Vocês querem ouvir testemunhas? Esta ideia ainda não entrou na cabeça de nenhum de nós” (9). Um mês depois (em janeiro de 1793), Luís XVI seria executado na guilhotina. Logo em seguida, ainda no verão de 1793, o jacobino Marat seria assassinado pela aristocrata Marie-Anne Charlotte de Corday d’Armont. Robespierre então voltou a discursar: “Que o gládio da lei caia, que seus assassinos, que seus cúmplices, que todos os conspiradores pereçam. Que o sangue deles seja derramado para satisfazer a alma do mártir da liberdade. Nós o exigimos em nome da dignidade nacional ultrajada” (10). A partir daí instalou-se o Terror, e as cabeças começaram a rolar em julgamentos sumários sem provas.

As duas principais cruzadas contra a corrupção foram, nos últimos tempos, a operação Mani Pulite, na Itália dos anos 90 e a Operação Lava Jato, no Brasil a partir de 2014. Elas seguiram mais ou menos o seguinte roteiro: a) Deslegitimação do sistema político (que de tão apodrecido já não pode mais tomar medidas para sua própria restauração); b) Crítica à ineficiência ou excesso de liberalismo do sistema judicial e das leis (que seriam ineficazes para combater a corrupção); c) Prisões antes do julgamento e coação dos presos para forçar delações; d) Vazamentos para a imprensa (para conquistar a simpatia dos meios de comunicação e o seu apoio e formar uma opinião pública favorável aos seus procedimentos heterodoxos); e) Criação de movimentos sociais em apoio à cruzada de limpeza ética; e f) Constituição de uma força política com características jacobinas e restauracionistas após a terra-arrasada (de preferência com a cruzada lançando seus próprios candidatos nas próximas eleições: o que de fato aconteceu na Itália e pode acontecer no Brasil) para conquistar o poder de Estado (11).

Trata-se de um engano e de uma maneira de enganar a opinião pública. Nem a situação de penúria da população é consequência (a não ser em pequeníssima parte) do roubo dos corruptos, nem a corrupção destrói a democracia. Não há um só caso na história de um país democrático que tivesse virado uma ditadura em razão do aumento do número de corruptos por metro quadrado.

Como já foi dito anteriormente, a corrupção endêmica na política é metabolizável pela democracia: embora a enfraqueçam ou diminuam a sua qualidade, não a eliminam. Ao contrário, não raro, líderes honestos, verdadeiros Varões de Plutarco, podem acabar instaurando regimes autoritários: o exemplo mais eloquente são os autocratas espartanos que, aliás, financiaram, e operaram mesmo, em 411 e 404 a.C., dois golpes contra a democracia ateniense, que consideravam um regime de veadinhos e ladrões (sempre brandindo o espantalho do “corrupto” Péricles, não por acaso o principal expoente da democracia).

Mas as cruzadas de limpeza não ocorrem apenas contra a corrupção na política. Elas, às vezes, têm caráter de classe. As revoluções russa e chinesa promoveram verdadeiros massacres para limpar o país dos elementos capitalistas remanescentes. Também podem ocorrer por motivos étnicos ou nacionais, como na perseguição aos judeus na Alemanha nazista, na guerra da Bósnia e em vários genocídios africanos. Nestes casos são bem piores, considerando-se suas consequências anti-humanas. A origem de todas, entretanto, repousa na mesma ideia de pureza ou de purificação que seria necessária para preparar uma restauração do mundo. A matriz desse pensamento pode ser encontrada no pensamento totalitário de Platão que, por sua vez, deita raízes no tribalismo patriarcalista dório (Esparta, Creta e Siracusa) e nas urdiduras sacerdotais que inauguraram o modo próprio de pensar do patriarcado (12).

Em todo caso, quando aparece uma cruzada de limpeza, seja qual for seu pretexto, pode-se acender o alerta amarelo no nosso sistema de detecção precoce de desconsolidação da democracia. Coisa boa não virá na sequência.

5 – A proliferação de milícias digitais que falsificam a opinião pública por meio da manipulação das mídias sociais.

Como já foi dito no artigo As falhas genéticas da democracia (13), a democracia não tem proteção eficaz contra a falsificação da opinião pública a partir da manipulação das mídias sociais, que desabilita qualquer razão comunicativa, destruindo o espaço discursivo de interações de opiniões.

Esta falha só foi percebida muito recentemente (na última década). Os populistas, acionando suas facções, promovem ataques de enxame (swarm attacks, contra os quais não se conhece defesa) para inviabilizar a emergência de uma opinião pública, substituindo-a pela soma de opiniões privadas e, com isso, estilhaçam a esfera pública em miríades de esferas privadas, destruindo o processo de formação e de verificação da vontade política coletiva. Embora o problema seja recente, notadamente depois que mídias sociais e programas de mensagens apareceram e foram colonizados por facções populistas, já há vasta literatura sobre o fenômeno, mas não solução. Hoje este é o problema mais importante que a democracia enfrenta e que pode inviabilizá-la como modo de regulação de conflitos.

De qualquer modo, o assunto requer um tratamento mais aprofundado que extravasa o escopo (e o tamanho) deste artigo. Um texto resumo da problemática é A abolição da opinião pública pelos populismos, mas existem muitos outros (14).

Por ora, é suficiente ver que se há esses ataques sistemáticos, promovidos por alguns hubs (poucas centenas são suficientes) de uma rede descentralizada e tendo como correia de transmissão milhares de pessoas-bot (que, por sua vez, também usam bots), é sinal de que a democracia está indefesa. Alerta vermelho em nosso sistema de detecção precoce de desconsolidação da democracia.

6 – A violação das normas não-escritas que estão abaixo do sistema legal-institucional e lhe dão sustentação.

Em geral, presta-se pouca atenção a esse sinal. Mas ele é um dos mais importantes. Basicamente, a democracia não pode ser protegida apenas pelas leis (escritas). Por isso todo legalismo é insuficientemente democrático. Não, não basta não violar as leis para proteger a democracia. Sem um pacto social, mesmo que tácito, de respeito aos bons costumes políticos (as normas não escritas), a democracia fica indefesa quando se elege um tirano cujo programa é de destruição da democracia.

Existem regras não escritas que não devem ser violadas, nem mesmo em contendas acirradas. Alguns exemplos: √ Aceitar a derrota; √ Parabenizar o vencedor; √ Não tripudiar sobre o derrotado; √ Não mentir; √ Não acusar as regras (que foram aceitas antes da contenda) pela derrota; √ Não tentar mudar as regras do jogo durante o jogo; √ Não alegar falsamente que perdeu porque houve fraude; √ Não deslegitimar o adversário; √ Não encorajar a polarização (“nós” contra “eles”); √ Não transformar o adversário em inimigo (da pátria, do povo, da nação, do Estado, de Deus); √ Não levantar falso testemunho perante a justiça (nem praticar litigância de má-fé) contra um adversário; √ Tratar as divergências por meio de um debate aberto e tolerante, valorizando a moderação e a busca do consenso; √ Fazer oposição leal.

Se estas regras não escritas começarem a ser violadas – no todo ou em grande parte, como fez Trump nos Estados Unidos e Bolsonaro está repetindo no Brasil – então é sinal de que a democracia está em risco. Alerta amarelo no nosso sistema de detecção precoce de desconsolidação da democracia.

7 – Para resumir (ou sintetizar) tudo, a dilapidação do estoque (ou a interrupção do fluxo) de capital social.

A melhor maneira de detectar precocemente o avanço do autoritarismo é monitorar o fluxo de capital social. Se ocorrem instabilidades ou perturbações nesse fluxo é sinal de que há uma corrente subterrânea alterando profundamente a “produção” de capital social, antes que o seu estoque decaia perceptivelmente. Infelizmente, não temos ainda como fazer isso. Não há um consenso sobre quais seriam os indicadores de capital social e, muito menos, sobre os sinais que indicariam variações nos fluxos interativos da convivência social (pois é deste fluxo que se trata) quando o processo de autocratização ainda é subterrâneo (15).

Alguma coisa já se sabe, porém. Sabe-se, em primeiro lugar, que abaixo de certo nível de capital social nenhuma democracia pode perdurar. O livro pioneiro de Robert Putnam (1993) sobre as tradições cívicas na Itália moderna foi importante, além de tudo, pelo título: Making democracy work.

Sabemos também, em segundo lugar, que o capital social diz respeito aos padrões de convivência social, quer dizer, à configuração da rede social existente e à fenomenologia da interação que nela se manifesta. Quando algum processo de autocratização está em curso, a rede social que suporta (a palavra não seria bem essa, mas vá lá) a democracia começa a se esgarçar – e a fenomenologia da interação que nela se manifesta se altera – antes que isso seja percebido como mudanças nas instituições. Um indicador perceptível disso é que há um decréscimo na inovação social: os inovadores desaparecem, os atalhos entre seus clusters se desfazem e coisas novas deixam de ocorrer no mesmo ritmo com que ocorriam. Outro indicador é o aumento dos graus de belicosidade (ou de comportamento inamistoso) na base da sociedade e no cotidiano dos cidadãos, com um clima de “guerra fria” instalando-se em localidades e setores. Este comportamento adversarial atravessa inclusive as famílias e outras formas primárias de sociabilidade (como os grupos de amigos e colegas de trabalho e as vizinhanças residenciais, como condomínios, ruas e bairros).

Em terceiro lugar, sabemos que o capital social pode ser dilapidado – ou mantido abaixo de certos níveis ótimos para a continuidade do processo de democratização – pela manutenção de políticas públicas de oferta estatal centralizada, assistencialistas, clientelistas. Ainda que isso não seja decisivo para autocratizar a democracia, seu resultado é o enfreamento do processo de democratização. Indiretamente a democracia perde credibilidade quando não consegue mais responder tempestivamente aos anseios das pessoas, parecendo algo atrasado, anacrônico e inútil (o que é sinal de desconexão e desconsolidação democráticas).

Infelizmente, porém, quando conseguimos detectar, mesmo indiretamente, sinais de avanço do autoritarismo e de desconsolidação da democracia, é porque um processo de autocratização já está em curso. Quando percebemos que a democracia poderá ser envenenada é porque ela já foi envenenada. Ou seja, não temos ainda um bom sistema de detecção precoce. Mas é necessário continuar trabalhando nisso.

*Augusto de Franco,escritor, palestrante e consultor, com várias dezenas de importantes obras

Notas

(1) Cf. Anna Lührmann & Staffan I. Lindberg (2019), Uma terceira onda de autocratização está aqui: o que há de novo sobre isso?, Democratization, DOI: 10.1080 / 13510347.2019.1582029.

(2) Um estudo empírico recente mostrou que das 47 vezes que um líder populista assumiu o poder (via eleições) entre 1990 e 2014, em apenas oito casos (17%) ele deixou o cargo depois de perder eleições livres e justas: em geral os líderes populistas deixam o cargo em circunstâncias dramáticas. Além disso, eles duram mais no cargo (duas vezes mais do que os líderes democraticamente eleitos que não são populistas e são quase cinco vezes mais propensos do que os não-populistas a sobreviver no cargo por mais de dez anos). Mas tem mais: no geral, 23% dos populistas causam um retrocesso democrático significativo, comparado com 6% dos líderes democraticamente eleitos não populistas. Em outras palavras, os governos populistas são cerca de quatro  vezes mais propensos do que os não-populistas a prejudicar as instituições democráticas. E ainda: mais de 50% dos líderes populistas alteram ou reescrevem as constituições de seus países, e muitas dessas mudanças ampliam os limites dos mandatos ou enfraquecem os controles sobre o poder executivo. Por último, os populistas atacam os direitos individuais. Sob o domínio populista, a liberdade de imprensa cai em cerca de 7%, as liberdades civis em 8% e os direitos políticos em 13% – sem que nenhuma dessas três coisas deixe de existir. Confira Jordan Kyle e Yascha Mounk (2018), The Populist Harm to Democracy: An Empirical Assessment, Tony Blair Institut for Global Change, 26th December 2018.

(3) Foa e Mounk (2017) escreveram que “o fenômeno da desconsolidação democrática é conceitualmente distinto das avaliações sobre quão democraticamente um país está sendo governado em um dado momento. Uma importante linha de pesquisa na ciência política tenta medir o grau no qual um país permite eleições livres e justas ou oferece a seus cidadãos direitos básicos, como liberdade de expressão. Os dois trabalhos mais influentes nesse sentido são os índices Polity e o da Freedom House, que são muito bons para se medir o estado atual da democracia em determinado país. Mas a questão da consolidação ou desconsolidação democrática não diz respeito ao grau de democracia, mas à sua durabilidade”. Cf. Roberto Stefan Foa e Yascha Mounk (2017), The signs of deconsolidation, Journal of Democracy, Volume 28, Número 1, Janeiro de 2017 © 2017 National Endowment for Democracy and The Johns Hopkins.

(4) Com efeito, como escrevi no artigo Não é possível salvar a democracia, “por incrível que pareça o que mantém a democracia não é o que aparece e sim o que não aparece, o que não é tão tangível (como, por exemplo, a produção e o estoque de capital social). Como se sabe, abaixo de certo nível de capital social a democracia não pode funcionar. O problema é que a democracia pode continuar (aparentemente) funcionando enquanto o capital social está sendo erodido. Este é, precisamente, o problema das nossas democracias sob ataque dos populismos”. Cf. Franco, Augusto (2021). Não é possível salvar a democracia. Dagobah (25/01/2021).

(5) Em uma nota de rodapé, em O Feitiço de Platão, primeiro volume de A Sociedade Aberta e seus Inimigos, ele escreveu (segue a nota inteira): “A tolerância ilimitada pode levar ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada até àqueles que são intolerantes; se não estivermos preparados para defender uma sociedade tolerante contra os ataques dos intolerantes, o resultado será a destruição dos tolerantes e, com eles, da tolerância. Nesta formulação, não quero implicar, por exemplo, que devamos sempre suprimir a manifestação de filosofias intolerantes; enquanto pudermos contrapor a elas a argumentação racional e mantê-las controladas pela opinião pública, a supressão seria por certo pouquíssimo sábia. Mas deveríamos proclamar o direito de suprimi-las, se necessário mesmo pela força, pois bem pode suceder que não estejam preparadas para se opor a nós no terreno dos argumentos racionais e sim que, ao contrário, comecem por denunciar qualquer argumentação; assim, podem proibir a seus adeptos, por exemplo, que deem ouvidos aos argumentos racionais por serem enganosos, ensinando-os a responder aos argumentos por meio de punhos e pistolas. Deveremos então reclamar, em nome da tolerância, o direito de não tolerar os intolerantes. Deveremos exigir que todo movimento que pregue a intolerância fique à margem da lei e que se considere criminosa qualquer incitação à intolerância e à perseguição, do mesmo modo que no caso da incitação ao homicídio, ao sequestro de crianças ou à revivescência do tráfego de escravos”. Popper, Karl (1945). A Sociedade Aberta e seus Inimigos, Vol. 1. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974.

(6) As perguntas seguintes, sugeridas pelo caso brasileiro atual, também podem valer, mutatis mutandis, para outros países e regimes – conquanto se apliquem melhor a regimes democráticos parasitados por forças populistas-autoritárias. 1 – Existem e são significativas, por parte do governante ou das forças políticas que o apoiam, tentativas de demonizar os meios de comunicação não-alinhados ao governo, acusando-os de divulgarem fake news ou de serem “os inimigos” e estarem traindo a pátria? 2 – Há, por parte do candidato, do governante ou das forças políticas que o apoiam, tentativas de priorizar ou hierarquizar os sujeitos dos direitos humanos, como, por exemplo, as que afirmam que os direitos humanos devem ser destinados principalmente aos “humanos direitos” em detrimento dos “humanos tortos” ou dos “bandidos”? O candidato, o governante ou a forças políticas que o apoiam, difundem preconceitos contra os direitos humanos (por exemplo, os de que “bandido bom é bandido morto”)? 3 – Há tentativas de estabelecer uma associação automática – mesmo que feita somente através de discursos das forças políticas que apoiam um candidato ou governante – entre crime, corrupção e adesão a alguma ideologia considerada exótica? 4 – O candidato, ou governante ou as forças políticas que o apoiam, defendem que o combate às visões ideológicas julgadas perversas (por uma ideologia particular, tal como esposada pelo candidato ou pelo governo) será o mesmo (ou da mesma natureza) que o combate aos crimes? 5 – Há, por parte do candidato, do governante ou das forças políticas que o apoiam, tentativas de instalar uma guerra cultural (entre crenças, valores, costumes, cuja adesão cabe à decisão privada dos cidadãos)? 6 – O governante ou as forças políticas que o apoiam, qualificam como terroristas grupos sociais e forças políticas que se opõem ao governo? 7 – Há, por parte do candidato, do governo ou das forças políticas que o apoiam, manifestações de algum tipo de xenofobia e de fundamentalismo nacionalista (mesmo que disfarçado de patriotismo)? 8 – Há, por parte do candidato, do governante ou das forças políticas que o apoiam, a defesa de algum tipo de controle estatal da expressão artística, mesmo a pretexto de combater a zoofilia, a pedofilia, a sexualização precoce ou a indução ao gayzismo (que afetaria crianças e jovens)? E se não há, o candidato, o governante ou as forças políticas que o apoiam, emitem declarações ou organizam ações de propaganda a favor desse tipo de controle? 9 – O candidato, o governante ou as forças políticas que o apoiam, defendem algum tipo de intervenção estatal no ensino escolar a pretexto de coibir a doutrinação com alguma ideologia considerada exótica – ou com alguma ideologia com a qual não se identificam – em sala de aula? 10 – O candidato, o governante ou as forças políticas que o apoiam, estimulam a militarização da educação com a adoção de algum tipo de “religião patriótica”, que instaure um culto aos heróis da pátria? 11 – Há, por parte do candidato, do governante ou das forças políticas que o apoiam, tentativas de reescrever a história (e, sobretudo, de ensinar tais falsificações históricas nas escolas ou em cursos paralelos de deformação política), enaltecendo regimes autocráticos do passado ou promovendo antigos violadores de direitos humanos (por exemplo, conhecidos torturadores) como heróis da pátria? 12 – Há, por parte do candidato, do governante ou das forças políticas que o apoiam, alegações de que não faz sentido, em uma sociedade tradicionalmente cristã (ou hindu, ou islâmica, ou judaica), que o Estado seja laico? 13 – O candidato ou o governante se apresenta – e assim é visto pelas forças políticas que o apoiam – como escolhido ou guiado por deus para cumprir uma missão redentora? Apresenta-se como defensor da civilização contra algum inimigo universal que quer destruir os seus valores e instituições – a família, a religião, a pátria ou a nação (conferindo-lhe o status de entidade acima de tudo e colocando acima de todos um deus capaz de intervir na história ou na política) contra a qual haveria uma conspiração?

(7) Se a reforma de Clístenes, em 509 a.C., em vez de instaurar uma centena de poleis (comunidades políticas, instaladas nos demoi), tivesse introduzido a eleição geral de governantes pelo voto majoritário de todos os habitantes de Atenas, jamais teríamos ouvido falar a palavra democracia. Clístenes é comumente considerado o inventor da democracia. Mas a democracia não é invenção de ninguém. Ele não tinha a menor noção das consequências da sua reforma que substituiu o genos (os clusters das grandes famílias da aristocracia fundiária) pelo demoi (os cerca de cem distritos onde se formaram poleis, comunidades políticas). Aliás, a reforma de Clístenes só vigorou mesmo cerca de meio século depois. Os oligarcas de Atenas continuaram dominando as assembleias e elegendo seus representantes. Somente com a reforma do Areópago, proposta por Efialtes (antecessor de Péricles) em 461 a.C., alterou-se a composição de forças políticas na condução dos assuntos da cidade. Mas, subterraneamente, um movimento democratizante estava em curso a partir de 509 a.C. Ninguém sabe ao certo como foi introduzido o sorteio para a escolha dos membros do Areópago. Mas o sorteio foi decisivo para impedir que os oligarcas – mais organizados do que os simpatizantes da democracia (que nem sabiam o que era ou seria a democracia) – continuassem controlando os processos eleitorais. Sim, os oligarcas usavam as eleições contra a democracia. Parece óbvio. Quem está organizado para vencer eleições tem mais condições de vencer eleições. Pode-se dizer que, nos primeiros cinquenta anos, as eleições para o arcontado em Atenas foram usadas contra a democracia. Explica-se. As eleições sempre podem ser usadas como variantes de uma guerra (a “política como continuação da guerra por outros meios”). E a guerra é a autocracia.

(8) Cf. Regimes of the world (ROW): Opening new avenues for the comparative study of political regimes, por Anna Lührmann V-Dem Institute, Department of Political Science, University of Gothenburg, Sweden | Marcus Tannenberg V-Dem Institute, Department of Political Science, University of Gothenburg, Sweden | Staffan I. Lindberg V-Dem Institute, Department of Political Science, University of Gothenburg, Sweden, 19/03/2018 in Politics and Governance (ISSN: 2183–2463), 2018, Volume 6, Issue 1, Pages 60–77 | DOI: 10.17645/pag.v6i1.1214.

(9) O trecho inteiro de Robespierre é o seguinte. “Fundadores da República, segundo estes princípios, vocês podiam julgar, há muito tempo, na alma e na consciência, o tirano do povo francês. Qual a razão de um novo adiamento? Vocês gostariam de anexar novas provas contra o acusado? Vocês querem ouvir testemunhas? Esta ideia ainda não entrou na cabeça de nenhum de nós. Vocês duvidariam daquilo que a nação acredita fortemente. Vocês seriam estrangeiros à nossa revolução e, em vez de punir o tirano, estariam punindo a própria nação… Cidadãos, trair a causa do povo e nossa própria consciência, abandonar a pátria a todas as desordens que a lentidão desse processo deve excitar, eis o único perigo que devemos temer. Está na hora de ultrapassarmos o obstáculo fatal que nos prende há tanto tempo no início de nossa carreira. Assim, sem dúvida, marcharemos juntos para o objetivo comum da felicidade pública. Assim, as paixões odiosas, que brandam muito frequentemente neste santuário da liberdade, darão lugar ao amor pelo bem público, à santa emulação dos amigos da pátria. Todos os projetos dos inimigos da ordem pública serão vexados”. Maximilien de Robespierre: discurso de 28 de dezembro de 1792, proferido na Convenção. Cf. Gumbrecht, Hans Ulrich. As funções da retórica parlamentar na Revolução Francesa – Estudos preliminares para uma pragmática histórica do texto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.

(10) Idem.

(11) Cf. Franco, Augusto (2020). O texto de Moro sobre a Mani Pulite com alguns comentários. Dagobah (29/10/2020): http://dagobah.com.br/o-texto-de-moro-sobre-a-mani-pulite-com-alguns-comentarios/

(12) Isso já foi mostrado no artigo de Franco, Augusto (2019): Fundamentos filosóficos das teorias da corrupção. Dagobah (28/04/2019): http://dagobah.com.br/fundamentos-filosoficos-das-teorias-da-corrupcao/

(13) Franco, Augusto (2020). As quatro falhas genéticas da democracia. Dagobah (09/11/2020). http://dagobah.com.br/as-quatro-falhas-geneticas-da-democracia/

(14) Franco, Augusto (2020). A abolição da opinião pública pelos populismos. Dagobah (02/03/2020) http://dagobah.com.br/a-abolicao-da-opiniao-publica-pelos-populismos/. Pode-se ler também os numerosos artigos encontrados na seguinte busca: http://dagobah.com.br/?s=midias+sociais

(15) O conceito de capital social, com o sentido que hoje lhe atribuímos, foi cunhado por Jane Jacobs (1961) em Morte e vida de grandes cidades.  Em artigo de 2001 O conceito de capital social em Jane Jacobs já expus as razões dessa atribuição de autoria. As raízes da ideia devem ser buscadas, entretanto, em Alexis de Tocqueville (1835-1840) no seu A democracia na América. Mostrei, também em 2001, porque se trata de um conceito político no artigo O conceito de governo civil em Alexis de Tocqueville. Todavia, o conceito de capital social foi usado e ficou mais conhecido como uma noção metafórica, formulada em linguagem utilizada em teorias do desenvolvimento, para fazer referência a uma variável sistêmica que não é facilmente medida (ou sequer percebida) nas equações que tentam relacionar os diversos tipos de “capitais” tomados como fatores do desenvolvimento: os propriamente econômicos, como a renda e a riqueza (os capitais stricto sensu: capital financeiro e capital físico ou empresarial) e os demais “capitais” (lato sensu) tomados como externalidades e que se referem aos fatores humanos, ambientais e sociais (como o capital humano, o chamado capital natural e, finalmente, o capital social – que seria a tal variável sistêmica, que tem a ver com os índices de confiança e cooperação presentes em uma sociedade). No entanto, esse tipo de abordagem, que se tornou corrente quando o assunto passou a ser considerado no âmbito das teorias do desenvolvimento (ainda sob forte viés economicista e produtivista) a partir do célebre artigo de James Coleman (1988), Social Capital in the Creation of Human Capital  – e em seguida no seu tratado Foundations of Social Theory (1990) – está defasado em relação às recentes descobertas da fenomenologia da interação (sobretudo nos Highly Connected Worlds em que já vivemos no dealbar do terceiro milênio).


Sérgio Augusto: Como Pinochet influencia a extrema-direita contemporânea

Gangues pró-Trump usam símbolos do ex-ditador chileno e se inspiram em grupos paramilitares como o Patria y Liberdad, bancado pela CIA e surgido no Chile logo após a eleição de Salvador Allende

A cobra fumou. Tem muito tempo: 76 anos. Era uma jararaca e simbolizava a FEB (Força Expedicionária Brasileira), que, surpreendendo a descrença geral, fumou—ou seja, finalmente foi para a Itália lutar contra Mussolini e Hitler. Uma cobra do bem. 

As lendas amazônicas e a poesia de Raul Bopp nos legaram a Cobra Norato, a serpente emplumada de maias e astecas inspiraram D. H. Lawrence, mas não esperem boa coisa do ofídio batizado pelos gringos de “Hoppean snake” (ou a cobra de Hoppe). Hoppe, não Hopper (Edward), que nunca foi de pintar animais invertebrados.

Cascavel enroscada, com um quepe militar na cabeça, a cobra hoppeana virou uma espécie de suástica dos baderneiros de extrema direita americanos, onipresentes nos ralis trumpistas e ativíssimos naquela invasão do Congresso americano, incitando o desacato e o terror.

Os serviços de segurança, mesmo sob Trump, já estavam em seu rastro; com Biden na presidência, a vigilância deverá redobrar, tantas já foram as ameaças dos neofascistas de sabotar instalações elétricas, o sistema de telecomunicações, os serviços de saúde e outras variedades de terrorismo detectadas nas últimas semanas.

Os criadores dessa víbora inspiraram-se na que adorna a “bandeira de Gadsden”, pavilhão projetado há 246 anos pelo político e soldado Christopher Gadsden, por inspiração de Benjamin Franklin, para simbolizar as colônias americanas que se rebelaram contra os colonizadores ingleses e alimentar-lhes a patriótica beligerância. A inscrição que a acompanha (“Não pise em mim”) era uma advertência: pacífica, ela só atacava se fosse atacada. Outra cobra do bem, no caso, a serviço da Revolução Americana.

Sua filha bastarda, a peçonha de Hoppe, nem o Butantã talvez a aceitasse em seu ofidiário. 

O quepe que ela ostenta na cabeça é o do general Augusto Pinochet, sanguinário e corrupto ditador do Chile de 1973 a 1990, que, por não ter tido sucessores, encarnou solito a tirania que implantou sobre o cadáver de Allende. O helicóptero que também ilustra os estandartes e as camisetas da malta paramilitar machista vidrada em Trump (Boogaloo Boys, Proud Boys, Three Percenters e Oath Keepers) é uma réplica dos que transportavam presos políticos para despejá-los, vivos, nas águas do oceano, um dos highlights do programa de extermínio do regime pinochetista.

A aparentemente bizarra fixação de organizações políticas neofascistas americanas por Pinochet e a fetichização de sua parafernália repressivo-militar intrigaram o jornalista Christopher Chatham, que sobre elas produziu uma informativa reportagem para o Intercept, na semana passada. Chatham descobriu parentescos entre as gangues trumpistas e o grupo paramilitar Patria y Liberdad, bancado pela CIA  e surgido no Chile logo após a eleição de Allende.

A chave do fetiche está no nome da cobra. Hoppe é uma homenagem ao alemão de origem Hans-Hermann Hoppe, que dá aulas de economia na Universidade de Nevada, em Las Vegas, e amealhou seguidores como doutrinador da “economia libertária” de matriz austríaca, estufa do anarcocapitalismo, cujo objetivo supremo é a eliminação do Estado e a proteção à soberania do indivíduo e do “livre mercado”. 

Bagrinho e idólatra de Ludwig von Mises, que formou com Friedrich von Hayek a dupla dinâmica do libertarismo econômico, Hoppe tem livros traduzidos no Brasil pelo think tank Mises Brasil. O mais conhecido, “Democracia, o Deus que Falhou”, copiou o título (“The God That Failed”) de uma histórica coletânea de ensaios sobre a desilusão com o comunismo de seis notáveis intelectuais (André Gide, Arthur Koestler, Louis Fischer, Ignazio Silone, Stephen Spender e Richard Wright) publicada em 1949 e entre nós traduzida nove anos depois. 

Para Hoppe, comunismo e democracia são farinhas do mesmo saco, que ele rejeita com o vigor de um fanático apologista do mais puro darwinismo social. O fim justifica os meios, o sufrágio universal é uma opressiva intervenção estatista, é preciso desmantelar os programas de bem-estar social, privatizando em massa as empresas públicas e desregulando as corporações—a tais ideias peçonhentas outras foram agregadas, como, por exemplo, a remoção física de indesejáveis (comunistas, homossexuais etc) para manter a ordem numa sociedade libertária autêntica. 

OK, mas por que o Chile, por que Pinochet? 

Chatham lembra que Hayek foi, junto com Milton Friedman, um dos embaixadores do neoliberalismo no Chile de Pinochet, ao qual Paulo Guedes, o Posto Ipiranga, também prestou serviço. Hayek ficou amigo do soba andino, visitou Santiago, mas não teve nada a ver, pessoalmente, com o enriquecimento ilícito do ditador, embora as fraudes cometidas pelo general possam ter sido amplamente facilitadas pelo afrouxamento regulatório aviado por Hayek e conselheiros ideologicamente identificados com os anarcocapitalistas de Viena e Chicago. 

A ditadura de Pinochet deixou um saldo de 3000 mortos e mais de mil desaparecidos. Pinochet conseguiu driblar tanto a Justiça, que acabou morrendo antes de ser exemplarmente julgado e punido por crimes bem maiores que sua roubalheira, como foram vários de seus cúmplices no reinado de terror instaurado no Chile em setembro de 1973. Lá, os Ustras que aqui são idolatrados por Bolsonaro, Mourão e, implicitamente, pelo autoritário general Eduardo Villas Boas, tiveram de prestar contas com a Justiça. No Chile, a cobra do bem já fumou.


Simon Schwartzman: A eleição de Biden e o futuro da extrema direita

Há uma boa chance de que o radicalismo volte para os rincões de onde nunca deveria ter saído

Com a vitória de Joe Biden nas eleições presidenciais americanas, a grande pergunta para os Estados Unidos, que interessa também ao Brasil e a muitos outros países, é se o radicalismo de extrema direita de Donald Trump, Jair Bolsonaro e semelhantes é um fenômeno passageiro, que começa a se esvair, ou se, ao contrário, é o novo governo democrata que é passageiro. Foi esse o tema de recente seminário organizado pela Fundação Fernando Henrique Cardoso com a jornalista e escritora Anne Applebaum, autora de O Crepúsculo da Democracia, que deve ser publicado no Brasil proximamente.

O que caracteriza o radicalismo de extrema direita, assim como o de extrema esquerda, não são os valores e preferências de seus proponentes – mais ou menos a favor do mercado, de políticas sociais, dos direitos, e os costumes que defendem –, mas o ataque que fazem às normas e às instituições do Estado de Direito, que regulam os processos de disputa eleitoral, colocam limites no poder dos governantes e garantem as liberdades individuais. É o respeito a essas normas e instituições, e não o eventual apoio popular, que distingue os regimes democráticos dos autoritários em suas diferentes versões. Hitler e Mussolini, passando por Perón, Hugo Chávez, Tayyip Erdogan e Viktor Orbán são exemplos de governantes que chegaram ao governo com apoio popular e abusaram do poder para destruir as instituições que os elegeram.

Foi esse o caminho buscado por Trump ao negar a validade das eleições que perdeu e jogar seus militantes contra o Congresso. E tem sido esse também o caminho buscado por Bolsonaro ao tentar jogar as Forças Armadas contra o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional, quando eles anda pareciam independentes, e ameaçar desde já não reconhecer os resultados de uma futura eleição da qual eventualmente saia derrotado.

Impressiona, ao ver essa lista de governantes autoritários, a facilidade com que conseguem, uma vez eleitos, destruir as instituições democráticas e permanecer no poder, graças não só ao apoio popular, mas também ao beneplácito de muitos intelectuais e líderes políticos, empresariais e institucionais que não têm problema em jogar seus escrúpulos às favas em nome de seus interesses práticos mais imediatos. É um cinismo generalizado que percorre de cima a baixo a sociedade e afeta não só os valores mais abstratos do Estado de Direito e da democracia, mas coisas muito mais concretas, como a tolerância à corrupção, à discriminação social e à violência. Isso talvez se explique pela noção, dada como óbvia pelos economistas, de que o ser humano vive e atua em função não de princípios, mas de seus interesses egoístas, ou, como diria Thomas Hobbes, um dos fundadores da ciência política, de que, deixado à solta, o homem é o lobo do homem.

Se isso é assim, o fenômeno anormal que precisa ser explicado não é o surgimento e a permanência dos regimes autoritários, mas a existência e a persistência de regimes democráticos. Não basta dizer que os regimes democráticos são moralmente superiores aos autoritários, quando, para muitos, essa superioridade é demasiado abstrata e distante de seus interesses do dia a dia. É preciso também ver se, e em que medida, o Estado de Direito e os regimes democráticos também podem trazer benefícios práticos para a população que os tornem mais interessantes do que os autoritários. Com raras exceções, basta comparar as sociedades democráticas com as autoritárias para ver como são muito mais vantajosas. Nelas as pessoas vivem sem medo de dizer o que pensam e de ser oprimidas e achacadas pelos governantes; com a liberdade de se organizar e empreender e a confiança nas regras de funcionamento dos mercados, a economia floresce e é distribuída de forma mais igualitária; as instituições são preservadas, as políticas públicas de saúde, educação e meio ambiente são conduzidas pelas pessoas mais competentes e os conflitos de interesses, em vez de serem disputas sangrentas e sem limites, se resolvem de forma civilizada, segundo “regras do jogo” que todo mundo respeita.

Mas as democracias são imperfeitas, nem sempre conseguem cumprir o que prometem e padecem da “tragédia dos comuns”, que acontece sempre que os interesses individuais de curto prazo prevalecem sobre os interesses gerais de longo prazo. Por isso elas não ocorrem de forma natural, mas precisam ser construídas por elites capazes de pensar no longo prazo, obter apoio para suas ideias e mostrar resultados práticos de curto prazo, que possam fazer a ponte entre os interesses individuais e o interesse coletivo.

Se Biden for capaz de, ao mesmo tempo, restabelecer as normas básicas da democracia americana e lidar com os problemas de curto prazo da epidemia e da recessão econômica, há uma boa chance de que o radicalismo de direita americano volte para os rincões de onde nunca deveria ter saído. Da mesma forma, no Brasil o futuro depende da capacidade da parte sã que ainda resta de nosso sistema político, econômico e institucional de apontar para uma alternativa ética, também construtiva, ao bolsonarismo.

SOCIÓLOGO, É MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS


BBC Brasil: Autogolpe de Trump fracassou por não ter apoio militar, diz Steven Levitsky

Um acontecimento que não se via nos Estados Unidos desde o século 19

Patricia Sulbarán Lovera, BBC News Mundo

Um grupo de apoiadores do presidente americano, Donald Trump, invadiu e depredou a sede do Congresso dos EUA, em Washington, após ultrapassarem as barreiras montadas por agentes de segurança, em meio a confrontos isolados.

O ato violento no Capitólio na quarta-feira (6/1) ocorreu logo depois que Trump discursou para uma multidão em frente à Casa Branca, a quase 3 km dali, repetindo acusações sem prova e rejeitadas por diversos juízes do país de que houve fraude na eleição em que perdeu para Joe Biden.

O que se viu no Capitólio foram cenas de caos, com congressistas deitados no chão, sendo evacuados e colocando máscaras antigás.

Para o professor de governabilidade da Universidade Harvard, Steven Levitsky, a invasão do Congresso foi uma resposta a "quatro anos de descrédito e deslegitimação da democracia" por parte do Partido Republicano e de Trump.

Levitsky é coautor do livro Como as Democracias Morrem, de 2018, no qual expõe "os sinais alarmantes que põem em risco a democracia liberal dos EUA".

Estudioso também dos processos democráticos e presidenciais da América Latina, Levitsky descreveu a invasão do Capitólio por apoiadores de Trump como uma "tentativa de autogolpe", em entrevista à BBC News Mundo, serviço da BBC em espanhol.

Para ele, "a grande diferença entre esse autogolpe e os autogolpes na América Latina é que Trump foi completamente incapaz de obter o apoio dos militares" e "um presidente que tenta permanecer no poder ilegalmente sem o apoio dos militares tem poucas chances de sucesso".

Segundo sua análise, "a democracia sobreviverá a este dia", mas o que se coloca para o futuro do país é um período de crise bastante incerto.

BBC - Que interpretação o senhor dá para a insurgência de apoiadores de Trump no Capitólio dos Estados Unidos?

Steven Levistky - Pode-se presumir que isso iria acontecer. Donald Trump e muitos, muitos líderes republicanos têm incitado, têm mentido para sua base que os democratas estão arruinando o país e subvertendo a democracia. Eles vêm dizendo isso há cinco anos.

E então, depois de perder a eleição, não só Trump mas também líderes do Partido Republicano estavam lá no Congresso, repetindo a mentira e desacreditando a legitimidade da democracia e das instituições. Depois de anos mobilizando sua base com uma linguagem que incluía termos como socialismo ou traição, pode realmente surpreender que isso esteja acontecendo depois que você perdeu a eleição?

Na história da América Latina, quando os líderes incitam seus seguidores em um ambiente altamente polarizado, as pessoas agem. Palavras têm significado, elas têm poder.

O que me surpreende nisso é como a polícia estava mal preparada.

BBC - Como o senhor interpreta as reações de alguns membros do Partido Republicano e do próprio presidente Trump, que em um tuíte nesta quarta-feira (6/1) pediu a seus apoiadores que não fossem violentos?

Levistky - O presidente já foi radicalmente violento antes e, se não queria que isso acontecesse, precisava agir mais rápido e se mobilizar para evitar. Ele provavelmente não deveria ter sugerido que marchassem até o Congresso. Trump os enviou para lá, ele os incitou a se mobilizarem para o Congresso. O fato de que os líderes republicanos agora estão rompendo com Trump é hipócrita, depois de o apoiarem por anos, mas é importante e positivo. Parece-me positivo ter visto discursos como o de Mitch McConnell (líder da maioria do Partido Republicano no Senado).

BBC - Estamos diante de uma revolução, de um golpe de Estado, de uma insurreição?

Levitsky - É uma variante do que na América Latina chamaríamos de autogolpe. É um presidente mobilizando seus apoiadores para permanecer no poder ilegalmente. Será um autogolpe fracassado, mas é uma insurreição do poder para tentar subverter os resultados da eleição e permanecer no poder ilegalmente. Eu diria que foi uma tentativa de autogolpe.

BBC - Na América Latina, esse tipo de situações que o senhor descreve são prejudiciais à democracia. O senhor diria que este é um momento perigoso na história americana? Diria que a democracia permanecerá forte, e o presidente eleito Joe Biden será empossado em 20 de janeiro?

Levistky -Tenho esperado com terror por este dia na democracia americana nos últimos quatro anos. Todos os dias durante quatro anos. Nossa democracia está em grave crise e este é o ponto culminante dela. Mas não é que tenha saído do nada. Nossa democracia está em crise há vários anos e acho que vai continuar assim.

Este autogolpe vai fracassar. Aqueles que protestarem em algum momento serão retirados do Capitólio e em algum momento a eleição de Biden também será certificada, e Trump será removido da Presidência. Agora, não está claro como isso vai acontecer. Mas Trump vai fracassar, e a democracia americana sobreviverá aos eventos de hoje.

Mas isso não significa que está tudo bem. São acontecimentos aterrorizantes e prejudiciais como na América Latina. A grande diferença entre esse autogolpe e os autogolpes na América Latina é que Trump foi completamente incapaz de obter o apoio dos militares. Um presidente que tenta permanecer no poder ilegalmente sem o apoio dos militares tem muito poucas chances de sucesso.

BBC - O senhor fala com segurança que a democracia sobreviverá e que esta será uma tentativa fracassada.

Levistky - Hoje. Acredito que, no médio prazo, estamos nos aproximando de um período de crise. Eu digo que esta tentativa de hoje irá falhar, porque a correlação de forças não existe para apoiar Trump. Não tem apoio militar. A democracia sobreviverá quando acordarmos amanhã, mas não posso garantir o que acontecerá daqui a cinco anos. A democracia americana é um desastre.

BBC - O presidente eleito Joe Biden mencionou que a democracia estava "sob um ataque sem precedentes" com os acontecimentos desta quarta-feira. Esta situação é extraordinária no contexto da história americana moderna?

Levistky - É extraordinário e sem precedentes no contexto da história americana moderna. No século 19, o país passou por uma era de violência, especificamente nos anos anteriores à Guerra Civil, e também vivenciou violência, especificamente em nível estadual, durante anos após a Guerra Civil. Portanto, em meados do século 19, os EUA experimentaram crises ainda mais graves do que as que vemos hoje. Mas não sofremos algo assim no século 20.

Isso não tem precedentes na história democrática moderna.

BBC - E quais são os mecanismos dos poderes constituídos para lidar com essa crise? Na Constituição ou nas legislaturas?

Levistky - Formalmente, existem dois mecanismos, mas nenhum deles foi usado até agora. Um é o impeachment ou o impeachment que leva à remoção. Nos EUA, ocorreram julgamentos políticos de presidentes, mas não resultaram em sua destituição do poder. É um processo bastante longo, a menos que o façamos à maneira peruana, de retirar o presidente durante a noite. É improvável que isso aconteça.

E há outro mecanismo, a emenda nº 25 à Constituição, que é mais recente porque foi aprovada em meados do século 20, e também não foi usado até agora.

Nenhum desses mecanismos foi adotado.

A América Latina tem muito mais experiência em provocar a destituição de presidentes que abusam do poder do que os EUA. A grande maioria das democracias presidencialistas está na América, mas nunca usamos o mecanismo americano para remover um presidente nos termos constitucionais.

Acho que a melhor saída seria Trump renunciar, seria que aqueles de seu próprio partido pressionassem Trump a renunciar. Ele não vai, mas deveria.

BBC - Mas ele está dizendo que não vai. Então, se ele nunca o fizer, se ele nunca ceder, o que acontece?

Levitsky - Durante o mês de novembro, esperei que sua filha e seu genro o fizessem entender, e há reportagens que indicam que ele sabe que perdeu e que deve ir embora. Uma característica de Trump é que ele não antecipa as consequências do que diz e faz. Então, eu não acho que ele previu o que acabou acontecendo hoje no Capitólio, embora ele o tenha instigado.

Acho que Trump sabe que tem que sair e acho que o cenário mais provável, apesar deste terrível golpe fracassado, é que os americanos virem a página e deixem Trump passar suas últimas duas semanas no cargo. Tudo é possível neste momento, mas parece improvável que ele tente se recusar a sair em 20 de janeiro.

Não teremos mais uma transição pacífica de poder, mas será, mais ou menos, uma transferência de poder habitual.

BBC - O senhor disse que a invasão do Capitólio é o ponto culminante de cinco anos de um intenso jogo político entre o presidente Trump e o Partido Republicano. O que o senhor acha que acontecerá no contexto de uma nova Presidência democrata de Joe Biden?

Levitsky - Eu acho que é muito incerto. Decerto não há tantas pessoas nas ruas; obviamente estão fazendo muito barulho, mas em comparação com a marcha das mulheres depois que Trump foi eleito, esta é uma festa no jardim. Não é que as massas estejam tomando as ruas, isso não é uma revolução. Esta não é a Argentina em outubro de 1945.

Então, o que eu acho, dependendo do que Trump faz, é que em algum momento ele terá que desistir. E se ele desistir e voltar para a Flórida, acho que isso vai ficar mais fraco. Ainda haverá uma direita radicalizada e mobilizada, mas não acho que Biden esteja enfrentando uma crise de governança.

Na verdade, acho que talvez isso o fortaleça. Porque agora os republicanos estão à beira de uma divisão severa. Portanto, acho que há várias coisas que podem acontecer: Uma, que o Partido Republicano finalmente se reunirá e derrubará Trump, de modo que ele acabe isolado, junto com seus aliados como (Rudy) Giuliani e as pessoas a quem perdoou. E que Mitch McConnell, Marco Rubio e até Ted Cruz acabam abandonando Trump.

Ou a outra coisa que pode acontecer é que o Partido Republicano se divida, quebre, como parecia que ia acontecer nesta quarta-feira. Não estou falando de uma divisão formal, mas de uma composição na qual há uma ala do partido que ainda está fortemente alinhada com Trump e outra ala que está tentando ir além de Trump. E se os republicanos estão divididos, isso vai fortalecer Biden.


El País: Agenda progressista da Argentina dá oxigênio à esquerda na América Latina

Legalização do aborto põe o país na vanguarda da região, em contraposição ao conservadorismo de Bolsonaro, à inércia de López Obrador e ao autoritarismo do eixo bolivariano

Federico Rivas Molina e Francesco Manetto, El País

lei de aborto legal aprovada em 29 de dezembro na Argentina movimentou a esquerda latino-americana. Perdida a hegemonia do começo deste século, quando quase todo o continente estava dominado por Governos progressistas, as contadas voltas ao poder se viram prejudicadas pelas crises econômicas e, depois, pela pandemia. Agora, a recuperação da agenda em prol dos direitos sociais pode ser o alicerce de novos feitos, oxigenando a esquerda regional.

Na Argentina, Bolívia e México, onde a esquerda ou as propostas anti-establishment voltaram ao poder, passando pelos movimentos de insurreição popular no Chile e no Peru e as tentativas de uma construção política alternativa no Brasil e Colômbia, os projetos progressistas procuram um rumo que lhes permita reverter a atual hegemonia conservadora. O caminho é longo. Se falarmos de aborto legal, por exemplo, apenas Uruguai, Cuba, Guiana e Guiana Francesa avançaram antes da Argentina. E, embora a nova lei ponha o país platino na vanguarda, nações como o México estão, em seu conjunto, ainda muito distantes disso, apesar das bandeiras tremuladas por Andrés Manuel López Obrador.

O presidente mexicano, que recebe repetidas críticas do movimento feminista, defendeu na sua última entrevista coletiva deste ano que “as estruturas de poder” não deveriam intervir em decisões como a regulação da interrupção da gravidez, um tema sobre o qual, acrescentou, “há pontos de vista favoráveis e contrários”. A aposta dele seria, em todo caso, convocar um referendo. “O melhor é consultar os cidadãos e, neste caso, as mulheres. Há mecanismos para poder solicitar uma consulta.” López Obrador evita assim tomar partido sobre o direito ao aborto num país onde apenas a Cidade do México e o Estado de Oaxaca permitem a interrupção livre e gratuita da gestação até a 12ª semana.

Sua posição não é, entretanto, tão taxativa como a de outros líderes latino-americanos progressistas que não renunciaram a postulados tradicionalmente conservadores sobre o aborto. O dirigente opositor colombiano Gustavo Petro, por exemplo, voltou a declarar nesta semana que o caminho não deveria ser a proibição, e sim uma melhora na educação para chegar a uma “sociedade [com] zero aborto”. Tempos atrás, o ex-presidente equatoriano Rafael Correa foi além e ameaçou renunciar ao mandato se o Parlamento aprovasse a legalização. “Eu jamais aprovarei a despenalização”, anunciou no começo de seu último mandato, em 2013.

Parece um paradoxo, mas suas palavras são semelhantes às pronunciadas por Jair Bolsonaro no Brasil, um país que abraçou o extremismo conservador e, por seu peso, pode ditar a agenda regional. O presidente brasileiro também sentiu a onda expansiva iniciada em Buenos Aires. “No que depender de mim e do meu Governo, o aborto jamais será aprovado em nosso solo”, escreveu o presidente no Twitter. No Paraguai, o Congresso fez um minuto de silêncio por “pelas milhares de vidas dos irmãos argentinos que serão perdidas antes de nascer”.

“Estamos conscientes de que somos olhados”, diz Vilma Ibarra, secretária jurídica e técnica da presidência argentina e articuladora da lei de interrupção da gravidez aprovada no Congresso. “Sobretudo as mulheres nos olham. Abraçamos outras experiências porque sabemos que sem elas não chegaremos lá. Foi duro para as mulheres argentinas, mas a Espanha, Cuba, Uruguai e a Cidade do México nos abriram caminho. O bom dessas lutas é acompanhar e transmitir experiências. Agora vamos poder transmitir experiências na região”, diz Ibarra em uma teleconferência com correspondentes estrangeiros.

A retomada da agenda progressista na Argentina pode estimular movimentos semelhantes em outros países. A experiência boliviana, com a vitória eleitoral do presidente Luis Arce um ano depois da saída antecipada de Evo Morales, deu novo impulso à ideia da volta. Mas os problemas econômicos complicam os planos de expansão. O custo político de um ajuste pode ser excessivo. “À direita, o discurso de menos Estado com ajuste fiscal é natural. Mas à esquerda, a promessa de uma sociedade mais igualitária e com mais Estado, em um momento com menos dinheiro, ajuste fiscal e pandemia, soa mais complicado. Isso gera a tentação de recorrer às minorias, a uma agenda de expansão de direitos civis que não é só o aborto. Expande-se a ideia indigenista, retoma-se a agenda de longo prazo, de reforma cultural da sociedade”, explica o jornalista e analista Carlos Pagni, colunista deste jornal para questões latino-americanas. Trata-se, portanto, de reescrever os discursos, mas sem tropeçar nas pedras que no passado a afastaram do poder.

A essas reflexões se somam os debates de viés religioso ou relativos à influência política das igrejas que proliferam na América Latina e que em alguns casos engrossam as fileiras dos chamados partidos-movimentos de esquerda. “Há um esforço tácito de não se meter em assuntos que possam desatar a ira dos evangélicos e católicos, porque há uma grande parte da população que não apoia certas pautas”, aponta Sergio Guzmán, diretor da consultoria colombiana Risk Analysis. “A América tem uma taxa de religiosidade de 60% a 70%, na América Latina há mais ardor religioso. E as igrejas estão ganhando um papel determinante nas decisões políticas no continente. O próprio papa Francisco tratou de fazer uma mediação entre [os ex-presidentes colombianos] Juan Manuel Santos e Álvaro Uribe a propósito do processo de paz”, continua. A tendência não é nova, embora hoje as organizações religiosas estejam mais fragmentadas. Na Colômbia, continua ativo oExército de Libertação Nacional (ELN), uma guerrilha nascida no começo da década de sessenta com um prontuário ideológico que misturava marxismo e Teologia da Libertação. Um de seus pais foi justamente o sacerdote guerrilheiro Camilo Torres. E, embora este seja um caso extremo, é significativo que o conservadorismo e o machismo tenham impregnado durante décadas também o ideário de organizações insurgentes, incluindo a extinta guerrilha FARC. Ainda hoje, regimes que se autodenominam revolucionários, como o de Nicolás Maduro na Venezuela e Daniel Ortega na Nicarágua, se recusam a legislar sobre o aborto.

“A esquerda tem tendência a dar lições de moral”

Tatiana Roque é professora titular de Matemática na Universidade Federal do Rio de Janeiro e foi candidata a deputada federal pelo PSOL, que exerceu a oposição pela esquerda aos Governos do PT (2003-2016). Roque acompanhou com atenção a discussão sobre a legalização do aborto na Argentina. “O movimento argentino marca uma nova forma de fazer política, de criar consensos em uma sociedade que conclama a esquerda a dialogar. A esquerda tem a tendência a apontar, acusar, dar lições de moral, e isso afasta as pessoas com quem temos que conversar, pessoas de classe média baixa ou pobres. O processo do aborto na Argentina nesse sentido é um ensinamento, porque foram feitas gestões com os setores mais conservadores”, diz. Nessa estratégia de diálogo, Roque vê a semente da reconstrução de uma esquerda que, segundo ele, já não pode ter o PT como farol nem Lula como “o único capaz de articular”.

Nem a Argentina nem a Bolívia têm figuras com a influência que já foi exercida por Néstor Kirchner, Lula, Hugo Chávez, Pepe Mujica ou Rafael Correa. Alguns morreram ou estão aposentados da política ativa, outros foram presos por corrupção ou proibidos de participar de eleições por motivos semelhantes. Para o sociólogo argentino Mario Santucho, diretor da revista Crisis e especialista em movimentos de esquerda latino-americanos, essa falta de referências abre a porta a novos movimentos, mais atomizados, mas nem por isso menos potentes. “O feminismo na região não tem volta atrás. Embora tenha havido uma reação das igrejas, o que fica é uma consolidação destas agendas mais avançadas”, afirma Santucho. E cita como exemplo o Chile, onde a preparação de uma nova Constituição é também um debate sobre os novos valores da democracia. “Aí entram em jogo os direitos civis avançados, que não são só direitos em termos liberais”, afirma. “Estamos falando de uma nova ideia do social, do humano. Esse é o grande desafio da esquerda: conjugar um modo progressista e democrático com as novas discussões do século XXI, junto com os direitos sociais que sempre defendeu.”

Sergio Guzmán observa que são justamente as mulheres que têm assumido a liderança da agenda. “Os políticos progressistas homens são muito relutantes em liderar o tema”, diz em referência ao caso específico do aborto. “As políticas progressistas mulheres não têm nenhum problema em falar de liberdades e direitos.” Neste ano e em 2022, o mapa político será redefinido em países como Equador, Peru e Colômbia, enquanto Luis Arce, herdeiro de Morales, acaba de iniciar seu mandato na Bolívia. O jornalista norte-americano Jon Lee Anderson, profundo conhecedor da região, destaca a decadência da esquerda com retórica revolucionária, encarnada há uma década sobretudo por Hugo Chávez. Isso não representa a morte em si dos projetos progressistas, mas sim sua obrigação de se adaptar e reformular através de um novo caminho centrado nas políticas públicas.


Bernardo Mello Franco: O poeta e o golpe - Drummond em 1964

Em 1º de abril de 1964, Carlos Drummond de Andrade saiu de casa para conferir a agitação no Forte de Copacabana. Ele caminhou até a praia com o amigo Carlos Heitor Cony. Os dois queriam ver com os próprios olhos se o golpe estava mesmo na rua. “Há poucas dúvidas sobre a derrota de Jango”, constatou o poeta, que havia passado a madrugada colado a um rádio transistor.

Em seu diário, Drummond registrou a festa da classe média com a derrubada do presidente que prometia reforma agrária. Ele não comemorou o golpe, mas também não parecia contrariado:

“Eu voltava para casa quando se ouviram estampidos, houve um corre-corre, e eis que da janela dos edifícios gente sacode lenços, panos de prato, até lençóis, enquanto outra chuva, esta de papel picado, cai sobre o asfalto. O rádio espalhara a notícia, transmitida por Lacerda: Jango deu o fora. Volto à praia. Gente cantando o hino nacional, xingando Brizola em slogan improvisado. Sensação geral de alívio”.

Doze dias depois, o poeta começava a entender que o país estava mergulhando em uma nova ditadura. “Baixado o Ato Institucional, que atenta rudemente contra o sistema democrático. O Congresso, já tão inexpressivo, passa a ser uma pobre coisa tutelada. Vamos ver o que será das liberdades públicas”, escreveu.

Em junho, Drummond seria convocado a depor em inquérito administrativo da rádio MEC, ocupada pelos golpistas que se diziam “revolucionários”. Queriam que testemunhasse contra a ex-diretora, acusada de “atividades subversivas”. “Os inquéritos desse tipo traduzem mais o espírito de vingança do que o de justiça”, anotou.

Um mês antes, o poeta assistiu à prisão arbitrária de um livreiro na Rua do Ouvidor. Ele relatou o episódio com indignação: “Incrível. Prisão de Carlos Ribeiro, o ‘bom mercador de livros’, amigo de todos, sob suspeita de quê? De tramar a derrubada do marechal Castelo Branco?”.

Nos primeiros anos da ditadura, Drummond reduziu as notas sobre política. Em dezembro de 1968, no dia seguinte ao AI-5, ele escreveu que se sentia de volta à infância, quando viu o marechal Hermes da Fonseca suspender as liberdades civis.

“Quase sessenta anos depois, o governo de outro marechal (e na minha velhice) golpeia a Constituição que ele mesmo mandou fazer e suprime, por um ‘ato institucional’, todos os direitos e garantias individuais e sociais. Recomeçam as prisões, a suspensão de jornais, a censura à imprensa. Assisto com tristeza à repetição do fenômeno político crônico da vida pública brasileira”, anotou, antes de fazer um desabafo: “Renuncio à esperança de ver o meu país funcionando sob um regime de legalidade e tolerância. Feliz Natal...”.

Três dias depois, ele registrou a perseguição ao jovem compositor Chico Buarque, detido pela polícia política e “submetido a interrogatório grosseiro”. “Não há clima para festa”, resumiu.

“O observador no escritório” é um testemunho histórico, mas alguns de seus trechos ainda soam bem atuais. “Que país! Que tristeza!”, escreveu o poeta, em setembro de 1969.

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Hora de sair de férias. Feliz Ano Novo e até a volta.


Demétrio Magnoli: Bolsonaro usa versão vulgarizada de Lênin para praticar nacionalismo de extrema direita

Os 'liberais bolsonaristas', essa curiosa irmandade de falsários, precisam substituir seus manuais de cabeceira

 “Imperialismo, Estágio Superior do Capitalismo”, publicado em 1917, inaugurou o chamado marxismo-leninismo. Marx enxergava a luta de classes como motor da história. No seu livro, Lênin flexionou o conceito, introduzindo a ideia de que as burguesias das nações industriais exploravam não só o próprio proletariado mas, ainda, os “países atrasados” coloniais e semicoloniais.

Bolsonaro não deve ter lido nem Marx nem Lênin, mas utiliza uma versão vulgarizada do segundo para praticar seu nacionalismo de extrema direita.

Segundo Lênin, no “estágio supremo” do capitalismo, as burguesias imperialistas deflagrariam guerras incessantes pela partilha de esferas de influência, abrindo caminho à revolução mundial. Os bolcheviques tomaram o poder na Rússia, fundaram a Terceira Internacional e mobilizaram a teoria leninista para definir a linha dos partidos comunistas nos “países atrasados”.

Neles, os comunistas deveriam forjar “frentes nacionais” —ou seja, alianças anti-imperialistas com as elites locais. Nascia, no pensamento de esquerda, o argumento de legitimação de regimes autoritários apoiados na bengala retórica do nacionalismo.

Pretexto perfeito. Os regimes autoritários pós-coloniais na África culparam as potências coloniais do passado e os imperialistas do presente por seus fracassos. Fidel Castro alegou que as carências cubanas derivavam da sabotagem imperialista dos EUA.

A ditadura de Suharto na Indonésia exigiu fidelidade à Pancasila, uma “filosofia oficial” destinada a preservar a nação das “influências ocidentais” (o liberalismo e o comunismo).

Os militares argentinos deflagraram a Guerra das Malvinas, contra os britânicos, invocando o anti-imperialismo. A China acusa o imperialismo de atentar contra sua soberania sempre que confrontada com denúncias de violações das leis de Hong Kong ou dos direitos humanos dos muçulmanos do Xinjiang.

Imperialismo: Bolsonaro redescobriu o artefato que cansou de utilizar no passado, quando acusava potências estrangeiras de pretenderem “roubar nosso nióbio”. O velho imperialismo volta ao centro do palco, apenas rebatizado como “globalismo”.

Na sua mórbida campanha anti-imunização, Bolsonaro fez mais que declarar as intenções de não tomar a vacina e de submeter os brasileiros a um (ilegal) termo individual de responsabilidade. Em outubro, o presidente ensaiou exigir que, antes de ser usada no Brasil, uma “vacina estrangeira” fosse “aplicada em massa no seu país de origem”.

Depois, na reunião dos Brics, declarou que “o Brasil busca uma vacina própria” —isto é, nacional e soberana. Na prática, seu Ministério da Saúde corre, atrasado, para importar agulhas e seringas.

Junto com o nacionalista grão-russo Putin e o nacionalista de esquerda López Obrador, do México, Bolsonaro ocupou os últimos lugares na fila do reconhecimento da vitória do “globalista” Biden —mas ainda adiantou-se a Kim Jong-un. Destacou-se dos colegas, porém, ao dar um passo à frente para tornar-se o único governante do mundo que reproduziu as sentenças de Trump sobre uma fictícia fraude eleitoral nos EUA.

Biden prometeu cobrar os compromissos do Brasil com o Acordo de Paris e a preservação ambiental. Bolsonaro retrucou batendo os tambores da “soberania nacional”, um ritmo praticado há décadas pelo nacionalismo militar. Acrescentou, numa imitação das bravatas de Saddam Hussein, a ameaça de trocar a “saliva” da diplomacia pela “pólvora” de batalhões dispostos a invadir Washington.

A Faria Lima jamais será a mesma. Os “liberais bolsonaristas”, essa curiosa irmandade de falsários, precisam substituir seus manuais de cabeceira. Na canoa bolsonarista, Paulo Guedes deve trocar Hayek e Friedman por Lênin. Ou, para facilitar, em diapasão mais nacional e popular, por Jones Manoel, o queridinho de Caetano Veloso e da esquerda neostalinista brasileira.


Época: O horizonte da extrama-direita após o baque das eleições municipais

Como o bolsonarismo se reorganizará depois do fracasso nas urnas de 2020

Natália Portinari e Naira Trindade, de Brasília, e Gustavo Schmitt e Guilherme Caetano, Revista Época

O sábado 14, um dia antes do primeiro turno das eleições municipais, foi quando o presidente Jair Bolsonaro caiu em si. Apesar de ter passado a última semana fazendo lives em prol dos candidatos que apoiaria no dia seguinte, já sabia que o desfecho que se desenhava não era promissor. Suas principais apostas, Celso Russomanno, em São Paulo, e Marcelo Crivella, no Rio de Janeiro, amargavam números desanimadores, segundo as últimas pesquisas. Sem muita modéstia, atrelou o mau resultado dos aliados a sua própria ausência da corrida eleitoral — já que suas lives se tornaram frequentes apenas às vésperas do pleito. Mas reconheceu estar preocupado mesmo com outra coisa: o desempenho de seu filho Carlos Bolsonaro, candidato à reeleição para vereador no Rio de Janeiro.

Não se tratava, obviamente, do medo de que o zero dois não se elegesse. Carlos tinha sido o vereador com mais votos em 2016, e sua recondução ao cargo estava assegurada. O que deixava o presidente tenso era a possibilidade de sua votação ser abaixo do esperado. Bolsonaro atingiu em setembro o maior índice de aprovação numa pesquisa do Ibope desde que assumiu — 40% —, mas o respaldo dos eleitores ao filho serviria como um termômetro atualizado da popularidade do pai no reduto eleitoral da família. Abertas as urnas, ficou claro que os temores do presidente tinham, sim, fundamento. Carlos, que o acompanhou em carro aberto no dia da posse, acabou saindo menor do que entrou na campanha municipal. Em 2016, obteve 106 mil votos. Neste ano, não passou de 71 mil, uma queda de 33%. E, de quebra, o filho perdeu o posto de vereador mais votado da cidade para Tarcísio Motta, do PSOL.

Esse foi o pior recado do pleito, mas não o único. Russomanno, que contou com o apoio expresso do presidente, largou na frente nas pesquisas. No começo da campanha, isso encheu de esperança o Palácio do Planalto, que anseia fincar raízes no reduto eleitoral de seu adversário, João Doria, governador de São Paulo. Na tarde nublada de 3 de outubro, na Zona Sul de São Paulo, após um evento de campanha de Russomanno, Fabio Wajngarten, secretário executivo da Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom), era só otimismo. A bordo de um jipe Mercedes preto, disse a ÉPOCA, sorridente: “Ele (Russomanno) já está eleito”. E prosseguiu em sua análise: “De um lado, a esquerda está acabada por causa da Lava Jato. De outro, tem o PSDB desgastado em São Paulo. Ninguém aguenta mais. Foi assim em 2018”, apostou o secretário. Russomanno amargou o quarto lugar, com apenas 560 mil votos (10,5% do total), enquanto o adversário do tucano Bruno Covas no segundo turno será Guilherme Boulos, do PSOL — cenário que configura dupla derrota para o presidente, que há dois anos venceu na capital paulista com 60% dos votos.

Foto: Marcos Corrêa/PR

Em todo o país, dos 44 candidatos que ganharam o aval do presidente, apenas nove se elegeram. Entre esses poucos sortudos não estão parentes de sobrenomes considerados ilustres no bolsonarismo, como o irmão da deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP). Ela tem 1 milhão de seguidores no Twitter e 2,2 milhões no Facebook. Ele atraiu apenas 12 mil votos, abaixo da linha de corte para conseguir uma vaga na Câmara Municipal de São Paulo. O pai de Zambelli, candidato a vice-prefeito em Mairiporã, no interior paulista, tampouco prosperou. Edson Salomão, líder do Movimento Conservador e aliado do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), o zero três, ficou de fora da Câmara de Vereadores de São Paulo. No Rio de Janeiro, Rogéria Bolsonaro, ex-mulher do presidente e mãe de seus três filhos mais velhos, não foi eleita, apesar do sobrenome e do empenho, principalmente de Carlos.

Antes de dormir, no dia 15, Bolsonaro tentou minimizar a contagem de mortos e feridos. Escreveu em sua conta no Twitter que sua “ajuda a alguns poucos candidatos a prefeito resumiu-se a 4 lives num total de 3 horas”, que a esquerda saiu derrotada e que a “onda conservadora chegou em 2018 para ficar”. Dois dias depois, ao se reunir com alguns parlamentares empenhados na criação de seu (ainda inexistente) partido, o Aliança pelo Brasil, compartilhou uma análise mais realista sobre o pleito. Para o presidente, a direita foi prejudicada em razão da pulverização partidária: “Quem saiu ganhando foi o pessoal do (Luciano) Huck”, vaticinou. A preocupação exposta naquela conversa não demorou a migrar para dentro do grupo de WhatsApp do Aliança pelo Brasil, onde deputados, senadores, ministros e integrantes do governo Bolsonaro debatem a criação do novo partido.

O sentimento geral, segundo um membro do grupo relatou a ÉPOCA, foi de um “choque de realidade” diante do que a cúpula da legenda reconhece ser uma derrota da extrema-direita. Sem um partido que abarcasse toda a direita radical, seus candidatos haviam ficado dispersos por várias siglas nas eleições municipais. “A direita bolsonarista aprendeu uma lição nesta eleição, a de que existe um eleitor de direita não necessariamente bolsonarista”, disse Alexandre Borges, analista político e proveniente de antigos círculos de estudo de Olavo de Carvalho. “É uma descoberta dura para o bolsonarismo, que se achava dono desse campo político.”

Entre os que aproveitaram o fraco desempenho dos aliados do Planalto nas urnas para criticar o presidente, ninguém se compara aos que o ajudaram a se eleger em 2018 e depois romperam. “O grande derrotado dessas eleições é o bolsonarismo. O presidente virou o Mick Jagger. Ele apoiava alguém e o cara morria (nas pesquisas) no dia seguinte”, disse o Major Olimpio, senador do PSL por São Paulo, referindo-se à fama de pé-frio do vocalista dos Rolling Stones. O senador defende um “expurgo” de bolsonaristas do PSL e cita a deputada Zambelli como alvo. “A direita, na verdade, por princípio, respeita o indivíduo e a individualidade. O autoritarismo não convive com uma filosofia direitista. A lógica bolsonarista é muito mais próxima de Stálin, que perseguiu seus principais apoiadores”, disse a deputada estadual Janaina Paschoal (PSL-SP), convidada para ser a vice na chapa de Bolsonaro em 2018 e hoje uma feroz crítica. Mesmo dentro do bolsonarismo não faltou virulência.

“TORNA-SE CADA VEZ MAIS CONCRETA A POSSIBILIDADE DE BOLSONARO SE FILIAR A UM PARTIDO DO CENTRÃO PARA CONCORRER EM 2022, COMO PP, PL OU REPUBLICANOS — ESTE ÚLTIMO É ONDE ESTÃO ABRIGADOS SEUS FILHOS CARLOS E FLÁVIO BOLSONARO DESDE QUE DEIXARAM O PSL”

Parafraseando a máxima do escritor russo Tolstói, quando vencem, todos os grupos políticos se parecem, mas, quando perdem, cada um perde a sua maneira. Isso ficou evidente após a eleição. Os apoiadores do presidente deram início a um processo de busca de causas e explicações com características bem bolsonaristas. Não faltaram dissimulações e uma facção apontando o dedo contra a outra. O presidente logo engatou uma segunda marcha e passou a defender a interlocutores que o pleito municipal não serve como previsão do que ocorrerá na eleição presidencial de 2022. Mas a tentativa de baixar a temperatura não evitou uma lavagem de roupa suja e o fogo amigo.

Mateus Colombo Mendes, diretor do Departamento de Conteúdo e Gestão de Canais Digitais da Secom, escreveu uma longa análise e desabafo em sua rede social. “Chega do pensamento mágico de confiar apenas na imagem do presidente e de se ficar sempre esperando que o presidente resolva tudo sozinho, enquanto o restante fica resmungando nas redes, cada um na sua.” Filipe Martins, assessor especial da Presidência, compartilhou a postagem, logo depois de fazer sua própria reflexão, expondo indiretamente seu chefe. “Muitos se perguntam por que candidatos apoiados por cabos eleitorais de peso foram derrotados. A resposta é simples: perderam porque eleição municipal é base, é construção, não é improviso. Não adianta chegar às vésperas da eleição e dar carteirada nem tentar levar no grito”, escreveu.

O guru de Martins e do bolsonarismo, Olavo de Carvalho, aproveitou o momento de fragilidade para endurecer as críticas aos alvos de sempre: os militares, que ele acredita terem um projeto próprio de poder que não inclui necessariamente Bolsonaro e o núcleo ideológico de seu governo. “O péssimo desempenho dos bolsonaristas na eleição não tem mistério nenhum. Ludibriado pela conversa mole de generais-melancias, o presidente confiou demais no sucesso inevitável da sua liderança pessoal, sem perceber que ela não passava, precisamente, disso: uma liderança pessoal sem respaldo militante e incapaz, por isso, de transmitir seu prestígio a qualquer aliado.” “Melancia”, no vocabulário da direita extremada é sinônimo de quem é vermelho (comunista) por dentro.

Para a fúria ainda maior dos mais radicais da extrema-direita, Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo e, aparentemente, um dos “melancias” na visão de Carvalho, foi às redes comemorar o desempenho do centrão nas eleições. Ramos disse que o PT foi mal e frisou que PSD, PP, DEM e MDB vão governar mais prefeituras do que o partido do ex-presidente Lula. Para os olavistas, o centrão é o problema, não a solução. Para a ala mais pragmática do governo, o caminho após o fracasso eleitoral é mais, e não menos, centrão. A aposta é que, nas eleições presidenciais de 2022, a base de sustentação da campanha de Bolsonaro será formada por partidos tradicionais, os mesmos que o apoiam hoje no Congresso.

Como num roteiro de série de TV, os principais atores do bolsonarismo vivem um drama que envolve passado e futuro. Muitos apoiadores não acreditam que Bolsonaro conseguirá se firmar como um candidato competitivo à reeleição seguindo a fórmula adotada em 2018, com foco quase que exclusivo nas redes sociais. Para os defensores dessa tese, as eleições municipais deram algumas evidências favoráveis ao mostrar que forças de diferentes pontos do espectro político acordaram para a necessidade de ocupar espaços nas redes sociais. WhatsApp, Facebook, Instagram e Twitter já não são uma raia exclusiva do bolsonarismo. Isso aconteceu, por exemplo, na campanha para a prefeitura de São Paulo. Trabalhar nas redes sociais foi o que fizeram tanto Guilherme Boulos como Arthur do Val, o Mamãe Falei, ligado ao Movimento Brasil Livre (MBL), que atraiu 10% dos votos. “Nós trabalhamos bem com a rede. O PT apanhou e perdeu espaço para o PSOL porque ainda está na lógica ‘meio acadêmico, sindicato e Igreja’. O PSOL fez uma campanha virtual boa”, reconheceu o deputado federal Kim Kataguiri (DEM-SP), um dos fundadores do MBL.

Enquanto o campo virtual tem sido povoado por diferentes nuances partidárias, o mundo real ainda carece de ser compreendido pelos políticos da nova direita advinda do bolsonarismo — fraqueza que muitos enxergam como a principal ameaça à continuidade de um projeto conservador no Brasil. Estrategistas políticos que trabalharam em campanhas de candidatos ditos conservadores nestas eleições relataram a ÉPOCA as dificuldades em convencer seus clientes da importância de articulação política e dos atos de rua. “Eu disse a eles: ‘Saiam da internet’. Mas eles não entendiam. Diziam que o Jair Bolsonaro tinha sido eleito pela força das redes sociais e que em 2020 seria assim de novo. Diziam que não precisavam de coligação porque o PSL não havia feito isso em 2018”, afirmou Rodrigo Morais, que trabalhou no governo de transição de Bolsonaro e hoje tem uma consultoria política.

Solenidade de posse do General Luiz Eduardo Ramos Baptista Pereira, Ministro de Estado Chefe da Secretaria de Governo da Presidência da República.
Foto: Marcos Corrêa/PR

No entorno do presidente, é ruidoso o grupo que, ao contrário do general Ramos, defende que o bolsonarismo precisa de um partido para chamar de seu. Daí as tentativas, até agora infrutíferas, de criar o Aliança pelo Brasil. Bolsonaro nunca foi dirigente partidário, tampouco seus filhos. A dinâmica maçante da formação de uma sigla e seus diretórios é o que garante musculatura para que candidatos disputem cargos a cada dois anos. Sem isso, não surpreende que o presidente não tenha conseguido engajar eleitores para o pleito municipal. A burocracia partidária e seus dissabores — incluindo divergências políticas — foi o que ajudou a azedar a relação de Bolsonaro com sua legenda anterior, o PSL. Mas quem apoia o presidente hoje diz que, quando ele tiver seu próprio partido, tudo será diferente. “A eleição municipal deixa claro a desvantagem da direita em relação à esquerda, já que falta estrutura partidária. Fora isso, a esquerda tem ONGs, centro de estudo e de formação de pensamento. A direita também tem de ter isso”, disse o empresário Otávio Fakhoury, aliado de primeira hora de Bolsonaro e hoje investigado nos inquéritos das fake news e da promoção de atos não democráticos.

Um ano depois de sua concepção, o plano de fundar o Aliança não conseguiu reunir nem 10% das 492 mil assinaturas necessárias para o registro da legenda junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). E as trocas de farpas entre bolsonaristas durante todo o processo denota que a concordância ideológica não se converte em harmonia na hora de dividir o poder. Integrantes do grupo rivalizam entre si por protagonismo e sofrem com uma ausência de definição, da parte de Bolsonaro, de quem é o verdadeiro responsável pelo Aliança. Quem vem assumindo as rédeas do projeto é o advogado Luis Felipe Belmonte, que coordenou viagens e eventos em prol da sigla nos últimos meses. Mas o futuro do Aliança é ainda incerto. Parte da base de apoiadores nos estados se voltou contra os organizadores, como Belmonte e os também advogados Karina Kufa e Admar Gonzaga. As brigas dificultam ainda mais a criação da legenda e a coleta de assinaturas. Oficialmente, porém, o grupo atribui à pandemia e às eleições municipais a demora do registro dos apoiamentos no TSE.

Depois dos desentendimentos passados com Luciano Bivar, presidente do PSL, o presidente parece estar reticente diante da possibilidade de “entregar” seu partido às mãos de alguém que não seja um de seus filhos. Bolsonaro também teme que o gesto de alavancar o Aliança desagrade ao centrão, que hoje é a base de seu governo, sobretudo diante da possibilidade, cada vez mais concreta, de que ele se filie a um partido tradicional para concorrer em 2022, como o PP, o PL e Republicanos, que é onde estão abrigados seus filhos Carlos e Flávio Bolsonaro. Sem a onda antipolítica alimentada pela Operação Lava Jato e com poder de fogo das redes sociais reduzido, o caminho para a direita bolsonarista a partir de 2021 é incerto porque requer diálogo — item escasso por aquelas bandas.


Demétrio Magnoli: Mito da conspiração mundial sempre andou junto com a extrema direita

Estrutura gramatical do QAnon recupera e atualiza a narrativa dos Protocolos dos Sábios do Sião

Na sua reta final, a campanha de Donald Trump à reeleição entrelaça-se ao culto online QAnon. O fenômeno inscreve-se numa longa história e descortina as tendências evolutivas do discurso da extrema direta, nos EUA e mundo afora.

O QAnon nasceu como narrativa conspiratória singular. Segundo ela, o Partido Democrata americano é o núcleo de um complô de líderes pedófilos que organiza o sequestro de crianças para escravizá-las a redes de exploração sexual. Sob o comando de figuras como Joe Biden, Hillary Clinton e Barack Obama, operam Angela Merkel, Emmanuel Macron, Xi Jinping e outros “globalistas” engajados no negócio diabólico da pedofilia. Nessa moldura, Trump ocuparia o papel de salvador providencial das famílias, o derradeiro escudo protetor da cristandade ameaçada.

O mito da conspiração mundial sempre andou junto com a extrema direita. A estrutura gramatical do QAnon recupera e atualiza a narrativa dos Protocolos dos Sábios do Sião, fabricada pela polícia secreta da Rússia czarista para impulsionar o antissemitismo. Os Protocolos contam a história de um complô multissecular dos judeus destinado a assumir o controle dos bancos, das escolas e dos veículos de comunicação, o que propiciaria a conquista dos poderes estatais. A lenda, inventada em 1903, fez seu caminho até o movimento nazista e, mais tarde, foi adotada pelos negacionistas do Holocausto.

Nos Protocolos, os judeus encarnam o cosmopolitismo, o liberalismo, o agnosticismo e a depravação. O QAnon simplesmente substitui os judeus pelos “globalistas”. Os judeus dos Protocolos imolariam crianças para extrair o sangue usado no cozimento do matzá da Páscoa; os “globalistas” sacrificariam crianças puras nas engrenagens da luxúria.

A novidade está na plasticidade do QAnon —isto é, na sua natureza agregadora. Ao longo de poucos anos, o mito original foi incorporando outras lendas difundidas no ciberespaço. Obama não nasceu nos EUA e é um muçulmano disfarçado como cristão. Osama Bin Laden não morreu, mas foi escondido pelo governo americano. A Terra esférica é uma mentira carimbada pela Nasa. O coronavírus foi produzido num laboratório chinês e exportado ao Ocidente com a cumplicidade dos “globalistas”, que querem destruir as economias e submeter as nações a perversas instituições multilaterais. A “vacina chinesa” é um vetor de controle biológico dos indivíduos.

Acostumados a um universo extremo de fantasias, os seguidores do QAnon tendem a assimilar as sub-teorias conspirativas adventícias. Já os crentes dessas sub-teorias nem sempre compram o complô dos pedófilos, mas não se importam em consumir seletivamente as teses delirantes que circulam nas mesmas praças discursivas.

A lenda mais recente está adaptada à hipótese realista do fracasso de Trump na disputa pela Casa Branca —e é proclamada pelo próprio presidente americano. O resultado adverso decorreria de vasta fraude eleitoral e anunciaria uma ofensiva avassaladora do “Estado profundo”, por meio de uma “revolução colorida” que confiscaria as armas e as liberdades dos cidadãos.

Como qualquer discurso conspiratório que se preze, o QAnon triunfa nos dois cenários. Se Trump perder, a profecia cataclísmica realizou-se, impondo uma resistência ilimitada contra o governo dos pedófilos. Se, no fim das contas, Trump vencer, a exposição do maligno complô evitou o pior, provando a necessidade de uma guerra inclemente diante do ardiloso inimigo.

Há outra distinção relevante. No tempo dos Protocolos, a narrativa da conspiração movia-se exclusivamente de cima para baixo, ou seja, das lideranças políticas rumo ao grande público. Hoje, na era das redes sociais, ela transita nas duas direções, que se retroalimentam. Engana-se quem pensa que a “guerra da vacina” é, apenas, uma expressão da rivalidade eleitoral de Jair Bolsonaro com João Doria.​

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Elimar Nascimento: Para onde vai a Extrema direita?

Esclareça-se, imediatamente, que o objeto destas poucas reflexões não é o Brasil, nem o mundo, mas sobretudo o Ocidente, na sua expressão europeia e americana. Espaço onde forças políticas de extrema direita, posicionando-se claramente contra os princípios democráticos, embora não necessariamente fascistas, ascenderam politicamente desde os inícios do atual século. Porém, o autor não resiste e encerra o artigo com breve reflexão sobre a conjuntura nacional.

É verdade que a extrema direita muito se expandiu no mundo ocidental no século XXI.  Ascendeu ao poder no país mais poderoso do mundo (EEUU); naquele país que ocupa a fronteira entre o Ocidente e o Oriente (Turquia); em países da Europa Oriental (Polônia e Hungria); no Extremo Oriente (Filipinas); na América do Sul (Brasil), sem contar com o Oriente Próximo (Israel). Cresceu ou participa do poder em vários países europeus, como a Holanda, Áustria, Noruega, Eslováquia, Bulgária, Dinamarca, Finlândia, Suíça, Grécia e França. Não são forças políticas iguais, mas têm como traço comum o de serem ultraconservadoras, populistas, nacionalistas e hostis a procedimentos democráticos.

Também é verdade que a extrema direita dá sinais de recuo. O barco de Trump começa a fazer água, o que não significa que esteja a deriva e que as eleições já estejam perdidas. A Liga do Norte de Matteo Salvini, na Itália, foi derrotada em janeiro deste ano na região da Emília Romana. Eram eleições cruciais para seu retorno ao poder. Na Polônia, o partido da extrema direita no poder, de Andrzej Duda, ganhou por uma diferença irrisória. O maior fenômeno nas eleições do dia 12/07, naquele país, foi a ascensão extraordinária do candidato de centro-direita, prefeito da capital, Varsóvia. E, finalmente, a extrema direita de Le Pen perdeu fragorosamente as eleições municipais recentes na França, onde emergiu, indubitavelmente vitoriosos, os verdes.

Ossos do ofício, contudo, nos obriga a ver o recuo da extrema direita como uma tendência não consolidada. Poderá vir a se consolidar, mas ainda não é fato inconteste.

Se a Liga do Norte foi derrotada nas eleições de janeiro/2020, na região de Emília Romana, foi vitoriosa nas eleições europeias de maio seguinte com 34,3% dos votos, tornando-se, assim, o partido mais votado na Itália. Na sequência, ficou o Partido Democrático, partido de esquerda, com 22,7% dos votos, enquanto o Movimento 5 Estrelas, antissistema, que foi o partido mais votado nas eleições nacionais de 2014, ficou em terceiro lugar com 17,1%. Nas eleições europeias de 2014 a Liga do Norte havia obtido apenas 6% dos sufrágios. Aos 34,3% das últimas eleições europeias deve-se somar 8,8% da Forza Itália, do ex-primeiro ministro Silvio Berlusconi, e 6,5% dos pós-fascistas Irmãos de Itália. Os votos somados da direita e da extrema direita corresponde a praticamente metade do eleitorado italiano. Dessa forma, as forças mais conservadoras continuam ativas e protagonistas, embora na oposição.

Se a vitória do Partido ultraconservador Leis e Justiça (PiS), na Polônia, foi apertada, com 51,2% dos votos, não se pode esquecer que seu adversário, Rafael Trzaskowski, é o líder de uma coalizão de centro-direita, Coalizão Cívica. A esquerda sumiu do mapa eleitoral do país. De toda forma, as forças opositoras, de cunho liberal, não conseguiram parar as reformas que desde 2015 o presidente Andrzej Duda lidera sob protestos da União Europeia, com submissão do judiciário e perseguição às minorias e à imprensa. A política populista de distribuição de benefícios sem dúvida contou para a vitória do PiS, em uma eleição concorrida, com cerca de 70% de comparecimento eleitoral, em plena pandemia. Diga-se de passagem, contudo, que 58% dos poloneses julgam que seu país sofre restrições democráticas.

Na França, a partido da extrema direita, antiga Frente Nacional, hoje Reagrupamento Nacional, foi derrotado. Dentre as cidades médias e grandes venceu apenas em Perpignan. Se em 2014 o partido de Le Pen tinha 1.438 assentos nos conselhos municipais em 463 municipalidades das 34.968 que tem a França, nas eleições de 2020 alcançou apenas 840 assentos em 258 municipalidades. Seus militantes esperam que Perpignan seja a municipalidade vitrine, onde eles poderão explicitar sua capacidade de governo. Veremos. O partido de Macron e o partido da direita clássica, Os Republicanos, também perderam. Apenas o partido Socialista mostrou alguma capacidade de recuperação em meio a uma eleição marcada pela abstenção (60%), sobretudo de pessoas idosas. Esta abstenção, assim como a grande vitória dos verdes, deveu-se em parte a pandemia. Os verdes, por serem inexperientes e internamente conflituosos podem não se sair bem no exercício do poder municipal que conquistaram, permitindo o ressurgimento das forças conservadoras.

Se a pandemia contribuiu para a vitória dos verdes na França, está facilitando a possível derrota de Trump nos Estados Unidos. Ela colocou por terra seu grande trunfo eleitoral que era o bom desempenho da economia americana. Por sua vez, sua gestão da saúde suscitou uma série de críticas, inclusive dentro do partido Republicano, que já tem um comité para lutar por sua derrota. Isso mesmo, um comité que já arrecadou milhões de dólares e divulga milhares de vídeos de ex-votantes de Trump que se dizem arrependidos e explicam o porquê para milhares de eleitores republicanos que não estão satisfeitos. A diferença nas pesquisas eleitorais de Joe Biden, o candidato democrata e ex-vice de Obama, já alcançou os dois dígitos. A última de que tenho notícia, de 7 de julho, era de 15%. A crise chegou ao comité eleitoral de Trump que demitiu aquele que lhe deu a vitória em 2016. Nada está ainda decidido, mas as chances de Trump se reduzem a cada dia. É possível, porém, que uma vez mais ele surpreenda, revertendo a tendência declinante, mas não será fácil. Se for derrotado a tendência de recuo da extrema direita deve se acelerar.

Os quatro eventos acima arrolados mostram derrotas de forças políticas de extrema direita, de caráter populista, embora ainda não seja completamente certo no caso dos Estados Unidos, pois as eleições só ocorrerão em 3 de novembro. Se o recuo da extrema direita é o evento mais visível, não se pode esquecer que as situações citadas mostram também a fragilidade do populismo, o evento político mais impressionante no século XXI, com cortejamento da esquerda e da direita.

A questão que mais interessa aos brasileiros é saber se processo similar tenderia, também, a ocorrer no Brasil. Os maiores indícios são negativos. Todas as pesquisas de opinião mostram que Bolsonaro perdeu prestígio desde medos de 2019, quando tinha uma aprovação superior a 40%, mas se estabilizou em torno dos 30%. Se as eleições presidenciais de 2022 fossem hoje ele estaria no segundo turno com cerca de 30% de intenção de votos. Deve agradecer, entre outros, a ausência de uma oposição consequente. As iniciativas de organizar uma oposição mais robusta não vão além de manifestos organizados por setores políticos e da sociedade civil. A oposição articula-se penosamente no Congresso. A esquerda se mantém dividida e o centro e centro-direita articulam-se apenas para evitar o controle da Câmara dos Deputados por parte do Executivo.

Os movimentos dos partidos políticos de esquerda indicam que ela partirá dividida para as eleições municipais de novembro. O PT mantém sua estratégia do “eu sozinho”. O restante da esquerda não consegue ampliar seu leque de alianças.

O passo mais vitorioso contra as investidas antidemocráticas do Presidente foi dado pelo Supremo, ultrapassando ou não suas prerrogativas. Sem que se saiba se este recuo não será seguido de novas investidas. Aparentemente, não, ou pelo menos não no mesmo tom, pois dois eventos são responsáveis pela mudança da tendência de queda de popularidade do Presidente: sua mudança de tática, abandonando a hostilidade em relação às Instituições democráticas e ingressando nas negociações políticas com os partidos do Centrão, que ele tanto renegava; e, sobretudo, a adoção de benefícios pecuniários à população mais carente, medida adotada em grande parte graças ao Congresso Nacional, por ocasião da pandemia. Um novo programa para institucionalizar esta prática está em curso, com possibilidade de mudar a tendência do comportamento eleitoral dos habitantes de menor renda no Nordeste. O que poderá reduzir as chances do PT chegar ao segundo turno.

Os segmentos ultraconservadores e conservadores da sociedade brasileira conseguiram, finalmente, seu líder, e um líder que tem a cara de seus liderados, em sua arrogância e desprezo pelas diferenças culturais, pelos procedimentos democráticos e pela vida dos brasileiros, sobretudo os mais pobres: “E daí?” Aliás, à semelhança do desembargador de Santos, e tantos outros que pululam neste país racista e machista.

Assim, duas das questões na agenda política são perguntas ainda sem respostas: a extrema direita continuará em refluxo no mundo, com a derrota de Trump? O Brasil seguirá o mesmo movimento em 2022?


O Estado de S. Paulo: Aliados de Bolsonaro tentam isolar extremistas

Grupos de apoio ao presidente moderam discurso e apagam vídeos depois de participarem de atos antidemocráticos e STF pôr em xeque ‘presidencialismo de colisão’

Marcelo Godoy, Pedro Venceslau e Daniel Bramatti, O Estado de S.Paulo

Após fracassar sua ofensiva para deter as ações do Supremo Tribunal Federal (STF), o bolsonarismo propõe agora uma détente entre as instituições e procura isolar os grupos radicais que pregam “intervenção militar”, com o fechamento do Congresso e da Corte. Nos círculos mais próximos do presidente, o movimento é justificado em razão da avaliação de que extremistas, como Sara Geromini, estariam “contaminando” os movimentos pró-governo.

A decisão de se descolar desses grupos veio após ações do STF que levaram extremistas à prisão e à quebra de sigilos de apoiadores e parlamentares bolsonaristas, além da prisão de Fabrício Queiroz, apontado pelo Ministério Público como operador financeiro de Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) no esquema das rachadinhas. Os grupos intervencionistas sempre foram tolerados e até dividiram carros de som com expoentes do bolsonarismo. Organizadores de atos pró-governo e aliados do presidente pregam agora que eles sejam isolados e rotulados como indesejados, como se fossem black blocs da direita.

“Desde as Diretas-Já sempre tem um maluco com uma placa que diz bobagem. Esse pessoal com bandeiras inadequadas não representa o pensamento do grupo que apoia Bolsonaro”, disse ao Estadão Luís Felipe Belmonte, terceiro na hierarquia do Aliança Pelo Brasil, partido que o presidente Jair Bolsonaro tenta criar. Belmonte foi um dos alvos da ação da PF no caso das fake news. “Essa história de fechar Congresso e STF é uma conversa estúpida e sem nenhum fundamento. Não tem apoio no grupo do Bolsonaro.”

Um dos fundadores do Avança Brasil, Newton Caccaos disse que os grupos radicais “atrapalham” com atitudes impensadas, como os fogos contra o STF. “Não sei qual é a da Sara Geromini, que já foi de esquerda, mas virou de lado. Não podemos ser confundidos com os mais radicais e intervencionistas.”

A operação de retirada do bolsonarismo das pautas extremistas ocorre dois meses após o presidente ter ido a ato que defendia o golpe em frente ao quartel do Exército, em Brasília. A mudança pode ser vista nas redes sociais. Na quinta-feira, o youtuber Alberto Silva, do canal O Giro de Notícia, publicou vídeo no qual aparece vociferando contra “eles”, sem especificar o alvo. “Eles fazem esse tipo de notícia como se nós fôssemos bandidos”, disse, citando escândalos do noticiário nos últimos anos. “Aqui o dinheiro é lícito.”

Dias antes, o canal de Silva apagou 148 vídeos, segundo levantamento de Guilherme Felitti, da empresa de análise de dados Novelo. Os títulos e descrições das obras removidas dão uma ideia de quem seriam “eles”: a sigla STF aparece 251 vezes, sempre como alvo. Outros canais também moderaram o discurso. “Sou contra fechar o Supremo”, disse em vídeo Adilson Dini, do Ravox Brasil, um dos investigados pela Justiça. 

Os bolsonaristas apagaram 3,1 mil vídeos desde que o STF agiu contra o esquema que buscava emparedar a Corte, segundo os dados de Felitti. “É claro que o STF está agindo com base em uma demanda, porque a democracia vem sendo atacada. O problema é que a gente está concentrando o poder no Supremo. Qual a garantia de que isso não vai ensejar abusos?”, indagou o cientista social Caio Machado, da Universidade de Oxford, que pesquisa desinformação e discursos de ódio no YouTube.

Colisão

Para o ex-ministro da Defesa Raul Jungmann, Bolsonaro se elegeu como representante da antipolítica e com as redes sociais. “Mas não se governa com a antipolítica ou com as redes.” Ao se recusar a criar uma coalizão, Bolsonaro escolheu o que Jungmann chama de “presidencialismo de colisão”, uma fórmula que está esgotada.

“Desarticulada pelo STF, a base digital dele perde capacidade de operar. Também ficou evidente que as Forças Armadas nunca estiveram à disposição de Bolsonaro (para aventuras).” Símbolo disso seria a passagem à reserva do ministro da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos, após pressão do Alto Comando do Exército. 

Com a pandemia, as ações do STF e a falta de apoio à ideia de um golpe, o presidente se veria, na análise do cientista político José Álvaro Moisés, em uma encruzilhada. “Ele não cria uma resposta coordenada e eficaz contra a crise da covid-19. Isso afeta todas as classes sociais.”

É por isso que Bolsonaro lançou a détente, afastando-se de manifestações e demitindo Abraham Weintraub da Educação. Na Guerra Fria, a détente foi a política entre as superpotências – EUA e URSS – que visava a diminuir as tensões e o risco de uma guerra catastrófica. A détente bolsonarista serve para estancar a crise com o STF e o Congresso. Em encontro com Dias Toffoli, presidente da Corte, Bolsonaro disse: “O nosso entendimento pode sinalizar que teremos dias melhores para o nosso país”.

Para Manoel Fernandes, sócio da consultoria Bites, Bolsonaro precisa manter a base mobilizada com confrontos. “Em breve vai arrumar outro inimigo.” O alvo, então, pode ser um governador ou o resgate da pauta de costumes. Na guerra fria entre os Poderes, o STF e o Congresso têm suas armas – o primeiro, inquéritos criminais e o segundo, o impeachment. Bolsonaro sabe. E, por isso, adota o estilo Jair paz e amor. “O que ninguém sabe é até quando”, disse Moisés.

Cresce oposição nas redes

Levantamento da Bites mostra que no Facebook, Bolsonaro obteve neste ano mais compartilhamentos do que o presidente americano, Donald Trump. O presidente tem 10,5 milhões de seguidores, fez 990 publicações e conseguiu 20 milhões de compartilhamentos. Trump, com 28 milhões de seguidores, publicou 2.680 posts e teve 17 milhões de compartilhamentos.

Desde a posse, Bolsonaro somou 14 milhões de seguidores nas suas redes – hoje tem 37,4 milhões. Fez 8,7 mil posts e obteve 1 bilhão de interações. Ao mesmo tempo, segundo Fernandes, ele criou um sistema de comunicação em torno dele – só os cinco principais sites de propaganda em forma de notícia do bolsonarismo contaram 24 milhões de visitas em maio, enquanto seus influenciadores mantêm de 400 mil a 2 milhões de seguidores no YouTube.

Mas nem tudo são rosas para o bolsonarismo. A radicalização dele criou um movimento – ainda difuso – de oposição. De 15 de março a 25 de junho, Bolsonaro teve 38,7 milhões de menções no Twitter associadas a hashtags positivas e 17,2 milhões negativas. “Um dado importante é a quantidade de perfis únicos que produziram as hashtags, incluindo as repetições. São 7,1 milhões de bolsonaristas e 8,2 milhões de perfis de oposição. Tem mais gente de oposição falando do que bolsonarista. Os bolsonaristas falam mais vezes”, disse Fernandes. Para ele, os números mostram que só uma oposição unida e com um líder claro pode derrotar Bolsonaro.

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