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Extrema direita mundial estreita laços com Governo Bolsonaro

Após troca de comando nos EUA, Brasil ganha centralidade entre nações que pregam contra o que chamam de comunismo e defendem pautas ultraconservadoras. País emula modelo húngaro de controle

A deputada bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF) exibiu orgulhosa uma foto com a deputada alemã Beatriz von Storch, do partido de extrema direita AfD. “Hj recebi a deputada Beatrix von Storch, do Partido Alternativa para Alemanha [AfS], o maior partido conservador daquele país. Conservadores do mundo se unindo p/ defender valores cristãos e a família”, escreveu a deputada em sua rede social. A foto causou choque, especialmente pelo fato de Storch ser neta de Lutz Graf von Krosigk, ministro de Finanças do Governo nazista de Adolph Hitler. Nascido em 2013, o partido AfD é alvo de investigação do serviço secreto alemão por conexões com atos extremistas no país.

Não foi a primeira demonstração de proximidade da base de Bolsonaro com grupos extremistas. No final do ano passado, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) promoveu uma live com o líder do Vox, Santiago Abascal. Um ano antes, o deputado esteve na Hungria com o premiê Viktor Orbán, do partido Fidesz. Em comum entre a AfD, o Vox e o Fidesz, a busca por pautas conservadoras radicais, a xenofobia, a hostilização à esquerda e à imprensa.


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O Brasil virou terreno fértil para expandir suas ideias sob o governo Bolsonaro, que ainda traz um elemento extra: após o fim do Governo de Donald Trump nos Estados Unidos, a ofensiva ultraconservadora colocou no Brasil de Jair Bolsonaro todas as suas fichas, considerado o país com maior influência de consolidar a agenda ultraconservadora. O papel do Governo brasileiro ficou claro em janeiro de 2021, quando funcionários de alto escalão de Trump enviaram mensagens a outros países informando que projetos que tinham sido conduzidos pela Casa Branca seriam assumido a partir daquele momento por Bolsonaro. Seria do presidente brasileiro a função de liderar a aliança internacional ultraconservadora criada para influenciar as decisões da ONU, OMS e outros organismos. A informação faz parte de um e-mail enviado a colaboradores por Valerie Huber, a pessoa escolhida pela Casa Branca no governo Trump para tratar de temas de saúde da mulher. Numa mensagem de 20 de janeiro de 2021 obtida pelo EL PAÍS, Huber anuncia que o Brasil, gentilmente, ofereceu-se para coordenar essa “coalizão histórica”.

A coalizão de cerca de 30 países ganhou o nome de Declaração de Genebra e se transformou numa referência das alas mais radicais em movimentos religiosos. “Países que desejam se unir à Declaração podem fazer isso contatando a embaixada do Brasil nos EUA, por mais detalhes”, explicou. Huber foi a pessoa que arquitetou a coalizão e, ao longo dos últimos meses, costurou uma aproximação importante com a pasta de Damares Alves.

O Governo Bolsonaro não é o único neste movimento de manter viva a agenda de extrema direita no mundo. Mas, tornou-se chave para o fortalecimento desse grupo. De fato, a ausência de Trump não desfez a coordenação internacional. Nos últimos meses e em plena pandemia, membros do Governo brasileiro foram convidados de destaque em encontros fechados com representantes de ONGs cristãs americanas, com grupos de lobby anti-LGBTe antiaborto, além de reuniões com partidos como o Vox e outros grupos de extrema-direita.

Para diplomatas estrangeiros, o que se vê na atuação do Brasil não é nada mais que um roteiro já desenhado e implementado em países menores, mas que tiveram já anos de governos ultraconservadores. Agora, a meta é sua internacionalização. “Há um script e ele é assustador”, afirmou um negociador da UE, na condição de anonimato. O script é a transformação dos governos da Hungria e da Polônia que, ao longo de uma década, conseguiram desmontar uma democracia liberal e instaurar uma nova base ultraconservadora.

A costura dessa aliança começou a ganhar forma já nos primeiros dias do governo Bolsonaro. De forma inédita, o Brasil enviou ao menos seis missões em menos de um ano em 2019, com agendas que incluíam a promessa de uma coordenação na luta contra a perseguição sofrida por cristãos, a defesa da família e a necessidade de proteger a “soberania”. Não faltou ainda um encontro entre o então secretário da Cultura de Bolsonaro, Roberto Alvim, com equipes do ministério da Cultura da Hungria. Alvim acabou caindo diante de um polêmico vídeo no qual ele usou referências nazistas.

Longe dos encontros ministeriais, reuniões informais, conferências fechadas e um intercâmbio intenso também foram estabelecidos entre membros do segundo escalão do governo brasileiro e húngaro. Não faltou nem mesmo uma visita de Eduardo Bolsonaro ao primeiro-ministro em Budapeste. A frequência dos encontros se contrasta ainda mais diante da constatação de que, em toda a era republicana, o Brasil jamais havia enviado uma missão com um chanceler para Budapeste.

O primeiro-ministro Húngaro Viktor Orbán, em abril de 2018.
O primeiro-ministro Húngaro Viktor Orbán, em abril de 2018. DARKO VOJINOVIC / AP

Modelo Orbán
As coincidências entre a agenda internacional de Bolsonaro e suas ações no Brasil chamam a atenção por sua semelhança em relação aos projetos que, ao longo de anos, foram implementados por Viktor Orbán. O húngaro assumiu o poder em 2010. Mas, durante uma década, o que ocorreu foi o esvaziamento da democracia e um abalo nos pilares da liberdade. Hoje, Orbán controla a Corte Constitucional, o Ministério Público e dois terços do Parlamento, além da imprensa, clubes de futebol, as artes, os espaços públicos e universidades.

Com eleições se aproximando em 2022 e com a oposição tentando criar pela primeira vez uma frente única para derrotá-lo, o primeiro-ministro ampliou sua radicalização e o uso da guerra cultural como forma de reagir à pressão. No Parlamento, leis foram aprovadas nas últimas semanas tornando a adoção de crianças por casais homossexuais um ato praticamente impossível. Ele ainda modificou normas que acabaram impedindo que menores de 18 anos tenham acesso a qualquer tipo de material que possa fazer alusão ao movimento LGBT. Livros com tais conteúdos são obrigados a trazer um alerta em suas capas e a publicidade de qualquer empresa terá de seguir regras sobre a divulgação de conteúdo.

Em seu projeto de destruição da democracia num caminho similar ao que adota Bolsonaro hoje, Orbán foi em busca da construção de uma Justiça que fosse leal a ele e sua ideologia. Se uma primeira tentativa de reforma do Judiciário esbarrou em protestos da UE, ele agora modifica de forma mais sutil, transformando o sistema de pontos pelos quais os candidatos são julgados para ganhar vagas de juizes. Quem passou por funções no governo, segundo a nova lei, ganha pontos extras. Resultado: o fim de qualquer investigação sobre corrupção no governo e entre seus aliados e o respaldo legal às mudanças de leis sobre o conceito de família, religião, imigração e do próprio sistema democrático.

Outro foco dos ataques de Orbán tem sido as ONGs, ativistas ou qualquer movimento que questione de forma dura o governo, outra bandeira também adotada pelo governo Bolsonaro. Uma das formas de intimidação em Budapeste sobre os movimentos sociais foi a proliferação de controles de auditoria e de impostos, principalmente entre 2014 e 2016. Além disso, todas as entidades que recebem algum tipo de recursos do exterior passaram a ser registadas por “agentes externos”. Apesar de o país ter cerca de 60.000 ONGs, elas passaram a ser excluídas do processo de elaboração de políticas públicas.

Assim como Bolsonaro argumenta que o único termômetro da representatividade da democracia é a eleição, o governo Orbán usa exatamente esse argumento para justificar que organizações da sociedade civil não têm mandato para atuar na formulação de políticas públicas. As coincidências na forma de agir entre os dois governos também ocorrem no tratamento da imprensa. Tanto em Brasília como em Budapeste, os meios de comunicação são considerados como uma força a ser neutralizada.

Por anos, aliados do governo passaram a comprar jornais locais, rádios e outros canais. Quando praticamente toda a imprensa estava nas mãos desses empresários, eles decidiram doar seus impérios para uma obscura fundação, em 2018. No total, 400 meios de comunicação estariam sob uma só direção. Uma semana depois, Orbán assinou um decreto isentando essa fusão de qualquer controle externo, numa centralização sem precedentes. A coordenação entre jornais regionais, revistas, rádios e TVs passou a ser completa, com títulos parecidos para suas manchetes, mesmas imagens e argumentos.

Enquanto financia quem o apoia, o governo “leva à fome” os meios independentes. Empresas que fazem publicidade em jornais contrários ao governo temem perder contratos públicos e o governo passou a não mais responder aos emails e pedidos de informação por parte desses jornais. Enquanto isso, jornalistas são assediados e a oposição passou a ser praticamente vetada de todos os debates nas televisões.

O mesmo movimento de controle também passou pela academia de ciência, dirigidas por leais seguidores do partido de Orbán. Tais estruturas passaram a concentrar grande parte do dinheiro do Estado, com professores com salários mais elevados, esvaziamento dos cursos de Ciências Humanas, o controle das universidades e, na prática, o fim de suas autonomias.

A guerra cultural ainda teve como objetivo reescrever a história do país e estabelecer o comando de teatros e museus para que a ideologia de extrema direita prevalecesse nas peças escolhidas, nas mostras e até mesmo na programação da Opera Nacional. Com uma diferença de dez anos em relação ao governo Bolsonaro, a Hungria serve de modelo de uma guinada iliberal. E que agora é assumida em parte pelo Brasil para influenciar na agenda internacional.


Jamil Chade: Brasil vive momento mais perigoso de sua democracia

O palco está montado para uma guerra suja. Irresponsável e nefasto, Bolsonaro deixou de flertar com o autoritarismo. Hoje, ele é o golpe

Teremos eleições em 2022? A mera existência de uma pergunta como essa em pleno século 21 é um dos sintomas mais dramáticos da ameaça que a democracia brasileira atravessa.

Ao longo dos últimos meses, governo, milícia digital e cúmplices de um movimento autoritário disseminaram dúvidas sobre a legitimidade das urnas no país, contradizendo auditorias nacionais e internacionais. O objetivo nunca foi o de construir um sistema mais sólido.

Mas, assim como toda a estratégia do bolsonarismo, a meta é a de minar a credibilidade e desmontar a confiança popular sobre as instituições.


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O projeto não é novo. A extrema-direita no Brasil iniciou os ataques contra a democracia ao colocar opositores, imprensa e sociedade civil como alvos de uma operação de destruição de reputações, além de borrar as fronteiras entre a Justiça e o Executivo.

Para esse grupo no poder, jamais houve um limite sobre o que era possível fazer para justificar a morte — inclusive no cadastro do SUS — de qualquer um que representasse um questionamento.

Ao disseminar mentiras como política pública, as autoridades buscaram retirar qualquer legitimidade dessas vozes.

Não faltaram ainda ofensivas para rever a história do Brasil, transformando o Golpe de 1964 em um ato a ser comemorado.

Enquanto isso ocorria, um avanço claro era feito para fechar qualquer tipo de canal para permitir a influência da sociedade civil na condução das direções do país. Operações para esvaziar a imprensa também passaram a ser recorrentes, com ataques verbais do presidente Jair Bolsonaro, a opacidade sobre decisões de estado, a lentidão de seus serviços de imprensa em dar respostas aos jornalistas e campanhas declaradas apelando à população para considerar a imprensa como inimigos.

Ao longo de dois anos e meio, o resultado foi a redução do espaço cívico, as dúvidas sobre informações apuradas de maneira profissional e a construção deliberada de um cenário de incertezas.

Agora, o palco está montado para uma guerra suja. Irresponsável e nefasto, Bolsonaro deixou de flertar com o autoritarismo. Hoje, ele é o golpe.

Não podemos esperar pelos tanques para agir. Eles talvez nunca virão. Mas a destruição da democracia, por um sistema sofisticado, está em curso.

Em 2022, viveremos a eleição mais importante de nossa jovem democracia. O que estará em jogo não é o destino de um candidato. Mas de uma nação. E, por isso, a luta diária por sua realização se confunde com a própria sobrevivência da liberdade. Não há mais tempo a perder.

Jamil Chade é correspondente na Europa desde 2000, mestre em relações internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra e autor do romance O Caminho de Abraão (Planeta) e outros cinco livros.


Luiz Carlos Azedo: O general linha-dura

Braga Netto assumiu a Defesa para pressionar os demais Poderes e resgatar a tutela militar sobre as instituições. O que consegue, porém, é desgastar as Forças Armadas

Desde que assumiu o Ministério da Defesa, o general Braga Netto tem atuado para alinhar as Forças Armadas aos objetivos políticos do presidente Jair Bolsonaro. Extrapola, porém, as atribuições do cargo, ao se pronunciar sobre temas políticos que não dizem respeito nem demandam o posicionamento do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Como na desequilibrada nota contra a CPI da Covid, que foi emitida em nome dos comandantes militares, sem que saio menos um deles, com certeza, tenha sido consultado. Mesmo quando nega ter pressionado o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), a aprovar a proposta de voto impresso, sob risco de as eleições não serem realizadas, Braga Netto se manifesta sobre o assunto de forma inapropriada, pois é prerrogativa do Congresso decidir a questão sem se submeter a chantagens. Na prática, a nota reverbera de forma ambígua as suspeitas e ameaças do presidente Jair Bolsonaro ao pleito.

Pode ser que Braga Netto esteja confundindo os papéis de antigo ministro da Casa Civil, no qual desempenhava importantes missões políticas, e de ministro da Defesa, que não deve se imiscuir nas relações entre os Poderes. Em vez de se espelhar no figurino dos ex-ministros da Defesa Joaquim Silva e Luna, o primeiro militar a ocupar um cargo criado para ser exercido por civis, e de seu antecessor Fernando Azevedo e Silva, que se recusou a desempenhar esse papel, Braga Netto vestiu a fantasia dos generais linha-dura que pontificaram durante o regime militar — até o presidente Ernesto Geisel demitir o general Sílvio Frota, seu ministro do Exército.

Apesar dos desmentidos à matéria publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, de autoria das jornalistas Vera Rosa e Andreza Matais, houve a conversa do interlocutor de Braga Netto com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que não desmentiu a informação, tergiversou. Nos bastidores do Congresso, comenta-se que o portador do recado fora ninguém menos do que o senador Ciro Nogueira (PP-PI), que assumirá a Casa Civil no lugar do general Luiz Ramos. Mente-se muito na política, embora a mentira acabe quase sempre desnudada. Mente-se muito mais nos jogos de guerra. Os militares chamam isso de contrainformação, cujo objetivo é impedir ou dificultar o acesso à informação verdadeira, mediante, principalmente, a divulgação de informações diversionistas. O Palácio do Planalto trabalha nessa linha, não preza a transparência nem a informação de interesse público.

Por exemplo, o YouTube acaba de retirar do ar 15 lives do presidente Jair Bolsonaro sobre a pandemia da covid-19, por conterem informações falsas. O general Braga Netto, como chefe da Casa Civil e coordenador do governo no combate à pandemia, foi um dos construtores da narrativa negacionista e das desastradas ações do Executivo que defendiam o uso maciço da cloroquina e outros medicamentos ineficazes no combate ao coronavírus. Essa narrativa, até hoje, está presente nas redes sociais e somente fracassou porque o Brasil já registra 546 mil mortes pela doença. Mais cedo ou mais tarde, Braga Netto será chamado a depor na CPI do Senado, que investiga a atuação do Ministério da Saúde na pandemia, por sua atuação na Casa Civil.

Melar as eleições
A polêmica sobre o voto impresso é um case de contrainformação. A narrativa de Bolsonaro falseia a realidade com objetivo de melar as eleições de 2022, caso seja derrotado, como tentou o ex- presidente dos Estados Unidos Donald Trump, em quem se espelhou, ano ser derrotado pelo presidente Joe Biden. Quanto maior o favoritismo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas pesquisas de opinião e a desaprovação do governo, mais recrudescem os ataques de Bolsonaro à urna eletrônica, em que pese nunca ter apresentado provas de fraude na apuração das eleições de 2018, que afirma, fantasiosamente, ter ganhado no primeiro turno.

Braga Netto substituiu o general Fernando Azevedo para pressionar os demais Poderes e resgatar a tutela militar sobre as instituições republicanas. O que vem conseguindo, porém, é desgastar as Forças Armadas, como no episódio da não-punição do exministro da Saúde Eduardo Pazuello por ter participado e se manifestando no desfile de motociclistas bolsonaristas no Rio de Janeiro, mesmo estando na ativa. A politização das Forças Armadas e seu envolvimento na política em si é uma ameaça à democracia. O presidente Bolsonaro tenta cooptar militares da ativa para seu projeto autoritário ao requisitá-los para exercer funções civis no governo; de igual maneira, ao estimular pronunciamentos como o do ministro da Aeronáutica, brigadeiro Carlos de Almeida Baptista.

Entretanto, não existe um ambiente favorável a um golpe de Estado no país, muito pelo contrário, cresce a campanha pelo impeachment. Por isso, a retórica do presidente da República contra a segurança da urna eletrônica e as pressões de Braga Netto para aprovação do voto impresso soam como uma espécie de déjà-vu político. Esse morde-assopra é uma tática conhecida de contrainformação, que os militares utilizam em tempos de guerra, para testar suas cadeias de comando e a capacidade de resistência do inimigo. Por essa razão, tanto o Judiciário quanto Congresso precisam exercer com firmeza suas prerrogativas constitucionais, entre as quais, decidir sobre o sistema de votação e limitar a presença de militares da ativa em cargos civis.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-general-linha-dura/

Eduardo Sombini: Bolsonaro vive paradoxo entre radicalizar sua base e governar, dizem professores

Retrocesso —esta é a palavra a que mais de 40 autores de uma coletânea recém-lançada recorrem para sintetizar o que aconteceu no Brasil nos dois primeiros anos do governo de Jair Bolsonaro (sem partido).

No episódio desta semana do Ilustríssima Conversa, o repórter Eduardo Sombini recebe os cientistas políticos Fábio Kerche, professor da Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro), e Marjorie Marona, professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

Kerche e Marona são organizadores, com o professor da UFMG Leonardo Avritzer, do livro “Governo Bolsonaro: Retrocesso Democrático e Degradação Política”, publicado pela editora Autêntica.

Na conversa, eles discutiram a contradição entre o bolsonarismo como movimento político, que demanda a radicalização do discurso para engajar suas bases, e a construção da governabilidade do presidente, que requer a negociação com outros Poderes e partidos.

Marjorie Marona (esq.) e Fábio Kerche, coorganizadores do livro ‘Governo Bolsonaro: Retrocesso Democrático e Degradação Política​’ – Divulgação

Na avaliação dos convidados, Bolsonaro tentou governar contornando o presidencialismo de coalizão —o conceito faz referência à necessidade de os presidentes brasileiros formarem alianças para garantir maioria no Congresso.

Mesmo depois da aproximação com o centrão, Bolsonaro não joga de acordo com essas regras, e a CPI da Covid no Senado sem maioria governista, para eles, é reflexo da transformação do Palácio do Planalto em campo de batalha e da destruição de pontes com outras instituições.

Kerche e Marona também falaram sobre as ameaças do presidente ao Supremo Tribunal Federal e a indicação do ministro Kassio Nunes Marques, a corrosão da autonomia do Ministério Público Federal com a nomeação de Augusto Aras para a Procuradoria-Geral da República, as relações com os militares e as perspectivas para a segunda metade do mandato de Bolsonaro.

As ameaças [do presidente] foram cada vez mais se aproximando de bravatas. Tenho a impressão que Bolsonaro vai conduzir esses últimos dois anos de governo para tentar chegar às eleições de 2022 com alguma condição de se colocar como candidato com uma base social de 20%. Tenho a impressão que isso foi tudo que restou a ele.

Bolsonaro já esteve mais forte no passado, junto aos militares, por exemplo. Acho que as instituições, que estão sob tensão, vão se organizar caso Bolsonaro seja derrotado e a gente vai ter uma transição, com a expectativa de retomar a qualidade da nossa democracia. Acho que quem ganhar a eleição presidencial [de 2022] assume Fábio Kerche.

 

O Ilustríssima Conversa está disponível nos principais aplicativos, como Apple PodcastsSpotify e Stitcher. Ouvintes podem assinar gratuitamente o podcast nos aplicativos para receber notificações de novos episódios.

O podcast entrevista, a cada duas semanas, autores de livros de não ficção e intelectuais para discutir suas obras e seus temas de pesquisa.

Já participaram do Ilustríssima Conversa Regina Facchini e Isadora Lins França, organizadoras de coletânea sobre direitos LGBTI+ no Brasil, Alessandra Devulsky, autora de livro sobre racismo e colorismo, Idelber Avelar, que discutiu a ascensão do bolsonarismo, Christian Dunker, psicanalista que reconstituiu a história da depressão, Lira Neto, que narrou a saga dos judeus sefarditas até o Recife, Roberto Simon, autor de livro sobre o apoio da ditadura brasileira ao golpe contra Allende, no Chile, Heloisa Buarque de Hollanda, que situou as principais tendências do pensamento feminista contemporâneo, Ilona Szabó, que discutiu as ameaças à democracia no Brasil, Luiz Simas, que apontou os conflitos do Brasil institucional e da brasilidade, Malu Gaspar, repórter que investigou os escândalos de corrupção e a derrocada da Odebrecht, Flavia Rios, coorganizadora de coletânea da intelectual Lélia Gonzalez, Karla Monteiro, biógrafa do jornalista Samuel Wainer, Vinicius Torres Freire​, que tratou de medidas econômicas durante a crise do coronavírus, Muryatan Barbosa, pesquisador da história do pensamento africano, e Júlio Delmanto, autor de livro sobre a história social do LSD no Brasil, entre outros convidados.

A lista completa de episódios está disponível no índice do podcast. O feed RSS é https://folha.libsyn.com/rss.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2021/05/bolsonaro-vive-paradoxo-entre-radicalizar-sua-base-e-governar-dizem-professores.shtml


Míriam Leitão: Centro não é o ponto entre dois extremos

Na disputa entre Lula e Bolsonaro não há dois extremistas. Há um: Bolsonaro. O centro deve procurar seu espaço, seu programa, seu candidato, ou seus candidatos, porque o país precisa de alternativa e renovação. Mas não se deve equiparar o que jamais teve medida de comparação. O ex-presidente Lula governou o Brasil por oito anos e influenciou o governo por outros cinco. Não faz sentido apresentá-lo como se fosse a imagem, na outra ponta, de uma pessoa como o presidente Jair Bolsonaro.

O PT jogou o jogo democrático, Bolsonaro faz a apologia da ditadura. A frase que abre esse parágrafo eu disse em 2018, em comentários e colunas, no segundo turno das últimas eleições. Era a conclusão da análise dos fatos e das palavras dos grupos políticos que disputavam a eleição. Fui hostilizada por dirigentes petistas do Rio dentro de um avião, processei por difamação um servidor do Planalto no governo Dilma. Sou vítima de constantes fake news e agressões do gabinete do ódio do governo Bolsonaro. Já fui criticada em público pelo ex-presidente Lula mais de uma vez e fui vítima de mentiras sórdidas ditas pelo presidente Jair Bolsonaro. Poderia com base nisso afirmar que os dois são iguais? Objetivamente, não. Seria falso. Posso concluir que ambos não gostam de mim, mas isso é o de menos. Não é uma questão pessoal.

Em dois anos e quatro meses, Bolsonaro superou as piores expectativas. Na pandemia, ele mostrou seu lado mais perverso. A lista é longa. Deboche diante do sofrimento alheio, disseminação do vírus, criação de conflitos, autoritarismo. O país chegou ao número inaceitável de 400 mil mortos com um presidente negacionista ameaçando usar as Forças Armadas contra a democracia. Em Manaus, no último fim de semana, ele repetiu que poderia lançar os militares contra as ordens dos governadores. “Se eu decretar, eles vão cumprir”. Esse clima de beligerante intimidação prova, diz um general, uma “necessidade doentia de demonstrar ter poder”. Segundo essa fonte, “cada vez que se declara detentor dessa suposta força, demonstra na verdade não tê-la”. Seja qual for a análise da mente distorcida do presidente, o fato é que ele ameaça o país com a ruptura institucional no meio de um doloroso sofrimento coletivo.

O ex-presidente Lula teve uma política ambiental de excelentes resultados na gestão da ministra Marina Silva e do ministro Carlos Minc. O país viu avanços na inclusão de pobres e negros. Na economia, houve erros e acertos. No campo institucional, escolheu ministros do Supremo qualificados e nomeou procuradores-gerais da lista tríplice. Bolsonaro quer devastar a floresta, capturar as instituições e seu governo exibe preconceito como se fosse natural.

Bolsonaro faz ataques sistemáticos aos veículos de imprensa e aos jornalistas. Lula ameaçou impor o que ele chamou de “regulação da mídia”, mas recuou diante da resistência dos órgãos de comunicação. Ameaças nunca devem ser subestimadas, mas as instituições sabem lidar com um governante que tenha um mau projeto. Mais difícil é se defender de um inimigo da democracia como Bolsonaro.

As decisões recentes do Supremo Tribunal Federal tiraram as penas que recaíram sobre Lula e ele tem dito que foi inocentado. Tecnicamente sim, porque não é mais um condenado pela Justiça. O PT defende a tese de que foi tudo uma conspiração contra o partido. Falta explicar muita coisa, mas principalmente a materialidade do dinheiro que foi devolvido por corruptos e corruptores ao poder público.

Bolsonaro usou o sentimento anticorrupção sem o menor mérito, como se vê na sucessão de rachadinhas, funcionários fantasmas, pagamentos em dinheiro vivo e transações imobiliárias que rondam a família. Isso sem falar nas relações estreitas com personagens obscuros, como o miliciano Adriano da Nóbrega.

Partidos de outras tendências políticas devem trabalhar para oferecer alternativas ao eleitor brasileiro, porque a democracia é feita da diversidade de ideias e de propostas. O erro que não se pode cometer é dizer que essa é a forma de fugir de dois extremos. Isso fere os fatos. Não existe uma extrema-esquerda no país, mas existe Bolsonaro, que é de extrema-direita. No governo, ele multiplicou as mortes da pandemia e sempre deixa claro que se puder cancela a democracia.

Fonte:

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/centro-nao-e-o-ponto-entre-dois-extremos.html


Eliane Cantanhêde: Fechando as porteiras

A lógica se inverteu. Não é mais o governo que aproveita a “distração” do Brasil e da mídia com a pandemia e os já mais de 400 mil mortos para passar suas “boiadas”. Agora, são o Supremo, o Congresso e a sociedade que se unem para resistir às “boiadas” governistas, enquanto o presidente Jair Bolsonaro, seus ministros e assessores estão muito ocupados com a CPI da Covid.

Um bom exemplo é o próprio meio ambiente. Foi o ministro Ricardo Salles quem avisou, naquela reunião ministerial histórica, que o governo estava aproveitando a pandemia para passar a “boiada” e pisotear o Ibama, o ICMBio, a legislação ambiental e, portanto, toda a estrutura de fiscalização e acompanhamento de florestas, rios, santuários. Mas a resistência cresce, e é sólida.

O delegado Alexandre Saraiva foi afastado da PF no Amazonas ao denunciar Salles por se aliar a madeireiros ilegais e, em vez de proteger a Amazônia, operar para destruí-la. Com essa denúncia, mais as ações de Ministério Público, ex-ministros, ONGs e entidades contra Salles e a política ambiental, a oposição colhe assinaturas para uma nova CPI, a do Meio Ambiente, na Câmara. Pode não ser inteligente, porque divide os holofotes da CPI da Covid, no Senado. Mas mobiliza.

Como há “fatos determinantes” abundantes para a da covid, também não faltam para uma eventual CPI do Meio Ambiente. Há montes de cinzas, madeira ilegal, dados e evidências de destruição. Aliás, Bolsonaro anunciou na cúpula do clima que estava dobrando os recursos para a fiscalização ambiental. No dia seguinte, veio o anúncio do Orçamento da União com cortes de R$ 240 milhões exatamente aí.

Funcionários do setor denunciaram “o colapso da gestão ambiental”, mas o desmanche não se resume a Ibama e ICMBio, resvalando para o Inpe. Nem a reação a ele. Sete ex-ministros da Educação, por exemplo, lançaram manifesto a favor do Inep, que cuida de Enem (ensino médio) e Ideb (ensino básico). Segundo eles, “o Inep está gravemente enfraquecido e isso coloca em risco políticas públicas cruciais”.

O que dizer da Cultura, que já teve secretário de alma nazista, mantém um negro racista na Fundação Palmares, persegue os ícones do teatro (como Fernanda Montenegro) e da música (como Chico Buarque), além de investir contra a Ancine e o Conselho Superior do Cinema?

E, por falar em “risco a políticas públicas cruciais”, ainda não está claro quem e por que, efetivamente, impediu o Censo de 2021. O IBGE pediu R$ 2 bilhões, Congresso destinou R$ 71 milhões e, com o corte do Planalto, sobraram R$ 58 milhões. Sem dinheiro, sem Censo. Sem Censo, como avaliar e planejar o País? Será que Bolsonaro temia a foto do “seu” Brasil na campanha à reeleição?

Na política externa, o chanceler Ernesto Araújo caiu, mas os escombros se espalham por toda parte, na forma de má vontade com insumos das vacinas, críticas de governos, parlamentos, entidades, sociedades. Até integrantes do Parlamento Europeu condenaram o “negacionismo” e a “necropolítica”, ou “política da morte”, no Brasil.

E na economia? O ministro Paulo Guedes não caiu, mas não sobra pedra sobre pedra de sua equipe, seus planos, suas reformas e seus propósitos liberais. E não por culpa da esquerda, da oposição ou da mídia, e não adianta dizer que foi por causa do Congresso. Quem não assume, e inclusive sabota, a política de Guedes é… Jair Bolsonaro.

Agora, o presidente só pensa em soterrar a CPI da Covid, mas continua em campanha por aí e proibindo máscaras, álcool em gel e – pelo que se deduz da revelação do general Luiz Eduardo Ramos – até vacinas. Enquanto isso, as boiadas enfrentam cada vez mais resistência. A turma dos atos golpistas insiste em defender o indefensável, mas a reação é firme e só aumenta.

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,fechando-as-porteiras,70003701080


Vinicius Torres Freire: Paulo Guedes não sabe o que diz sobre saúde, pobres e não sabe o que faz

“Pobre? Está doente? Dá um voucher para ele. Quer ir no Einstein? Vai no Einstein. Quer ir no SUS, pode usar seu voucher onde quiser”, disse Paulo Guedes em seu mais recente surto de ignorância e horror a pobre.

Estritamente falando, um voucher é um vale, como um vale-refeição. No desvario de Guedes, “um pobre” receberia um vale-saúde para se tratar onde quisesse, no SUS ou no Einstein, um dos grandes e excelentes hospitais privados de São Paulo. Nem Guedes deve acreditar estritamente nessa idiotice. Mas argumente-se por absurdo e a favor do ministro.

O setor público gasta por ano 3,9% do PIB em saúde (na média trienal até 2017, do IBGE, ou até 2018, da OMS). Equivale a uns R$ 1.380 por pessoa, R$ 115 por mês. Dá para pagar um plano de saúde dos mais baratos, sem contar coparticipação, com serviço inferior ao do SUS. Daria um pouco mais por pessoa caso o dinheiro todo fosse reservado para quem ora não tem plano de saúde (71,5% da população, segundo o IBGE).

O vale-plano-de-saúde não daria para escolher o Einstein, ocioso ressaltar, nem o SUS. Não haveria mais SUS. O dinheiro da saúde pública teria sido confiscado pelo vale-guedes. Não haveria mais serviço público de vacina, de emergência (ambulância, PS), remédio, exame, nada. Se o seu plano baratinho não cobrisse certos tratamentos ou se você se arrebentasse em um local descoberto (quase todos), que você pagasse ou morresse.

Obviamente esse argumento é louco, simplificação da mais grosseira. Serve apenas para sugerir que a coisa não funciona assim, aqui ou alhures.

O gasto em saúde no Brasil já é majoritariamente privado (famílias, empresas, filantropia): 58% do total. Não é assim na Argentina (38%) ou no México (48,7%), menos ainda é o caso de França (27%), Reino Unido (21%) ou Alemanha (22%) e nem mesmo o do Chile (49,7%) e o dos EUA (49,6%). Na mão de um Guedes da vida (ou da morte) iremos na direção dos EUA, que tem um dos gastos em saúde mais ineficientes da OCDE (clube de três dúzias de países ricos).

Mas, afora para ricos, e olhe lá, o SUS é o recurso de primeira ou última instância, que banca tratamentos que muito plano não cobre, por falta de dinheiro ou competência. O SUS é uma rara preciosidade nacional, com problemas de administração, sim, mas não é conversa para o bico de Guedes.A discussão não cabe em poucas colunas de jornal. A comparação entre sistemas nacionais de saúde, muito diversos, é complexa. Existem vários esquemas de financiamento público, com serviços quase todos prestados pelo setor privado, mas inteiramente pagos e vigiados pelo governo (Canadá), ou como o SUS original, estatal, do Reino Unido. Em geral, voucher, no sentido estrito, é alternativa parcial onde o sistema de saúde é tão precário que se dá um vale aos muito pobres de país muito pobre, naÁfrica ou na América Central.

O problema aqui é Guedes e seu mundo de caricaturas reacionárias. Não trata de assuntos de modo técnico: adora dar aulas magnas genéricas baseadas em suas fantasias liberalóides apodrecidas. Não propõe políticas públicas específicas e fundamentadas, com planos e apoio político para implementá-las.

Vive de tiradas, truques com os quais pensa engambelar o Congresso e mentiras lunáticas (trilhão de privatização, 44 milhões de testes de Covid, déficit público zero em um ano etc.). Adora velhos mitos extremistas da direita americana e tem saudade do Chile de Pinochet.

Essa barbaridade guedista, variação pedante do bolsonarismo dá mais pano para a manga. Vamos voltar a tratar disso.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/viniciustorres/2021/05/paulo-guedes-nao-sabe-o-que-diz-sobre-saude-pobres-e-nao-sabe-o-que-faz.shtml

 


Janio de Freitas: Piora nos índices sociais vai se acelerar em número e desumanidade

Jair Bolsonaro quer mais cortes em gastos sociais previstos no Orçamento para este ano. As mutilações já feitas foram brutais, mas Bolsonaro quer mais alguns bilhões para o que se mostra no governo como o segundo gasto na ordem de nobreza: a compra de parlamentares com a liberação de bilhões para suas propostas de obras, que são catapultas eleitorais. O único gasto mais nobre no Planalto é o dos militares, cujo montante inicial perdeu apenas 3%.

As reduções são o oposto do requerido pelo forte agravamento das condições de sobrevida da maioria dos brasileiros. A retenção por mais de três meses do também mutilado auxílio emergencial anulou o alívio trazido pelas parcelas do ano passado, concedidas pelo Congresso.

A fome aumenta, e se espraia mais. Qualquer oferta de alimento atrai filas enormes, e as coletas de doações recebem ainda quantidade ínfima para a necessidade crescente. A maioria não tem disponibilidades para ser solidária.

Aos que a têm, o que falta, historicamente, é o próprio sentido de solidariedade, até de humanidade mesmo. Fosse diferente, já veríamos, há tempos, forte movimento de socorro aos que têm fome.

Na chegada de Bolsonaro ao poder, considerava-se, com provável otimismo, haver em torno de 24 milhões de brasileiros vivendo com menos de R$ 246 por mês: R$ 8 por dia. Passados dois anos, a FGV e dados do IBGE indicam o aumento desse contingente para 35 milhões de pessoas.

Não só os já habitantes da pobreza descem à miséria mais miserável. O título de reportagem de Fernando Canzian para a Folha sintetiza o que se passa nos intermediários: “Fenômeno dos anos Lula, classe C afunda e cai na miséria”. Eloquência justificada por mais de 30 milhões que “estão despencando diretamente da classe C para a miséria”.A pandemia não é causa única da derrocada social. Desde seu primeiro momento, o governo investiu contra os programas sociais, sem exceção, e os manteve na precariedade quando o vírus se anunciou,se propagou e se impôs.

Nem a mínima atenção foi dada à necessidade de se buscarem modos de atenuar os efeitos socioeconômicos da pandemia. E, em paralelo, fosse preparada a defesa da população com a compra de vacinas, campanhas instrutivas, orientação para as alternativas empresariais e gerais.

Nada disso, era só uma “gripezinha”, a cloroquina a eliminaria. A vaguidão de Paulo Guedes, com os pés no ministério e a cabeça na Bolsa, e o desvario de Bolsonaro associaram-se ao vírus.

Passamos de 400 mil mortes. Esse morticínio atordoa, as crianças e famílias que caem no desamparo, se desorganizam, também perdem a vida por outra que começa e só podem temer.

O vírus não é o causador único dessa imensa desgraça coletiva. Tanto que maio e junho são esperados por cientistas como ainda mais calamitosos no Brasil. E explicam: por decorrência da baixa vacinação até aqui, da falta de vacinas porque o governo chegou tarde, desacreditado e arrogantemente suspeito ao balcão mundial dos imunizantes.Logo, os passos degradantes na escala socioeconômica, mais do que continuar, vão se acelerar em número e em desumanidade. Nenhuma resposta lúcida pode ser esperada do governo que pretendeaté cortar mais gastos sociais.

Se a sociedade, por sua vez, é inerte por preguiça moral maciça ou indolência cultural incapacitante, a alienação é a mesma e mesma a consequência. Então, lamento, o que há a dizer é isto: a perspectiva de futuro próximo é péssima —talvez seja o que nossa paralisia mereça.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/janiodefreitas/2021/05/piora-nos-indices-sociais-vai-se-acelerar-em-numero-e-desumanidade.shtml

 


Dorrit Harazim: Joe, Jair e Modi

Esta semana Joseph Robinette Biden Jr. trocou de roupa e de imagem oficial. Sai de cena “Uncle Joe”, a grife caseira do democrata conciliador, afável e algo distraído por ele cultivada ao longo de 4 décadas de vida pública. Esta semana Joe Biden se apresentou perante o Congresso com nova roupagem — a do arrojado visionário 46º presidente dos Estados Unidos — e detalhou como pretende reformatar já no presente a vida da nação sob seu comando. Também descreveu os planos, metas e projetos com que planeja moldar o futuro das gerações seguintes, sem esquivar-se de alocar cifras concretas a cada item do pacotão. Se aprovada na totalidade pelo Senado, o que é pouco provável, sua agenda de resgate da economia, força de trabalho e seguridade familiar custará astronômicos US$ 4,1 trilhões. Mas, mesmo que venha a ser fatiada, a visão de Biden sobre o papel do Estado ficou clara: o Estado deve funcionar como zelador da infraestrutura humana e do bem-estar social. Soou quase revolucionário e revela quanto o mundo está carente de bom senso.

A surpresa com esse Biden arrojado se justifica, uma vez que, durante a campanha eleitoral, ele se apresentara como mero homem de transição capaz de aquietar o país tarja preta que sobrevivera a Donald Trump. Uma vez sentado no Salão Oval, porém, o mandatário de 78 anos e alguns lapsos já fez saber que não exclui tentar a reeleição dentro de quatro anos. Sai de cena o gestor conciliador, como Biden foi retratado enquanto candidato, para dar lugar a quem pretende ser lembrado como líder mundial transformador. Para tanto, mantém algumas características pétreas — é disciplinado, metódico e prefere ficar abaixo do radar para não escorregar.

Na verdade, por mais que Biden queira envergar simultaneamente o manto do New Deal de Franklin D. Roosevelt, da Grande Sociedade de Lyndon Johnson, importar algumas ideias de Barack Obama e outras mais arretadas de Bernie Sanders, bastará que consiga liderar a urgente arrancada ambiental para fazer um governo de dimensão histórica. Sem isso, o restante de sua visão para uma sociedade menos desigual, de maior justiça racial, econômica e jurídica ficará embaçada. Sem isso, até mesmo a espetacular invertida que imprimiu ao combate e controle da Covid-19 nos EUA, por meio de uma vacinação maciça e ordenada, acabará parecendo natural à medida que a vida por lá retomar alguma normalidade. O vírus pode até ressuscitar em novas ondas, mas nada roubará de Biden a gratidão nacional pela tranquilidade vacinal que injetou no país.

Enquanto isso, Jair Bolsonaro e o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, terão, para sempre, seus nomes e sobrenomes vinculados ao epíteto Covid-19. Ambos se condenaram à morte política e à desgraça histórica por abandonar suas gentes a morrer sem oxigênio. Abatidos feito moscas, aos montes, milhares, centenas de milhares, mal enterrados ou incinerados em piras humanas, pranteados no medo e em silêncio. Na capital indiana, as autoridades florestais tiveram de emitir uma autorização especial para o abate de árvores, pois a lenha dos crematórios acabara. A ativista política e escritora Arundhati Roy publicou no “Guardian” um testemunho pungente da desolação que tomou conta do país. “No lugar mais baixo da mercadagem pela vida”, escreveu Roy, “você suborna o atendente para poder jogar um derradeiro olhar sobre o embrulho que foi sua pessoa amada, agora estocado na morgue hospitalar”. Há quem venda terras ou propriedades, ou junte as últimas rúpias em busca de atendimento em hospital privado — sem garantia de internação, apenas como depósito.

No último Fórum Econômico Mundial, em janeiro, quando Europa e Estados Unidos mergulhavam na segunda mortandade da pandemia, o líder indiano não expressou nenhum sentimento, empatia ou compreensão com a aflição de seus pares. Ao contrário, arrostou soberba. “Amigos”, discursou na ocasião, “convém não comparar a Índia a qualquer outra nação… Abrigamos 18% da população mundial e salvamos a Humanidade de um imenso desastre, pois conseguimos conter o vírus”. Como se sabe, o país, hoje, mais se assemelha a um inferno de 1,4 bilhão de almas errantes, largadas à própria sorte.

No cômputo dos crimes cometidos por mandatários contra seus povos, será difícil elencar a quem ficará reservado o opróbio maior da era Covid-19 — se a Jair Bolsonaro ou Narendra Modi. Por serem filhos de culturas tão diversas, também suas respectivas formas de desprezo pelo bem comum, a índole autoritária, a ignorância, as medidas repressivas, o escárnio pelo outro, se manifestam de formas díspares. Porém ambos comungam da mesma incapacidade de compreender o que aprendemos a chamar de civilização, felicidade, progresso, humanidade.

Não defendem a vida, qualquer espécie de vida, de quem não lhes seja de imediata utilidade. A Covid-19 apenas serviu de oportunidade para isso ficar claro.

Fonte:

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/joe-jair-e-modi.html


Armando Castelar Pinheiro: À espera da inflexão

Há que resistir à tentação de usar a inflação no ajuste das contas públicas: a conta vem depois, não compensa

A realidade tem se mostrado mais complexa que as previsões. Novas cepas, múltiplas ondas de casos e mortes, efeitos colaterais das vacinas, tudo eleva a incerteza sobre quando se controlará a pandemia da covid-19 e, não menos importante, como será o novo normal depois disso. Fica claro, também, que os países ricos não conseguirão controlar a epidemia vacinando só suas populações, enquanto no resto do mundo a pandemia segue solta, facilitando o surgimento de novas e mais virulentas variantes do vírus.

Isto posto, tudo indica que 2021 verá uma inflexão nesse processo, fruto do gigantesco esforço de vacinação em curso. E de que, os dados mostram, as vacinas estão funcionando. Até aqui foram aplicadas quase 900 milhões de doses globalmente, quase uma dose para cada seis pessoas com 20 anos ou mais. Na última semana, mais de 100 milhões de doses foram administradas e a tendência é esse ritmo acelerar, conforme suba a produção de vacinas. Mesmo que isso não ocorra, mantido esse ritmo o ano fechará com 4,5 bilhões de doses aplicadas, o suficiente para vacinar boa parte dos mais vulneráveis.

A vacinação avançou mais em alguns países ricos, como os europeus e os EUA, com grandes emergentes como Brasil, Argentina, China, México e Índia vindo atrás, nessa ordem, em termos de vacinas aplicadas por habitante. Onde a vacinação andar mais rápido, a atividade econômica e o emprego também se recuperarão mais ligeiro e significativamente. Os EUA são o grande caso de sucesso na economia, para o que os redobrados estímulos fiscais também contribuem.

No Brasil, tudo parece meio parado, à espera que a vacinação avance o suficiente para a normalização, ainda que parcial, para usar o jargão da moda, da economia. Já se aplicaram cerca de 35 milhões de doses e o ritmo tem ficado, com alguma volatilidade, perto de um milhão de doses por dia. Isso permitirá vacinar, com duas doses, todos os brasileiros com 20 anos ou mais até o fim do ano. Se conseguirmos mais vacinas, poderemos atingir essa “normalização parcial” no terceiro trimestre, com o ano fechando com uma retomada mais firme da atividade.

O problema é que há muito mais com que se preocupar, o que não parece estar ocorrendo. O que me fez lembrar da frase de Samuel Johnson: “Confie nisso, senhor, quando um homem sabe que está em vias de ser enforcado, concentra sua mente maravilhosamente”. Quem sabe a forca ainda não está apertando tanto quanto parece, mas a impressão é de rompimento com o padrão das últimas décadas, quando a proximidade da crise concentrou as mentes e levou à aprovação de ajustes fiscais. Não vemos isso agora, como ficou claro na confusão, ainda em curso, com o orçamento público deste ano.

O drama humanitário - mais de 20 mil mortes por semana - explica em parte essa apatia com a deterioração do quadro fiscal. É na saúde pública que as mentes estão concentradas. Parte da explicação também está, porém, em muito da deterioração futura vir de maiores despesas com juros, e não do mais visível déficit primário.

Entre fevereiro de 2020 e o mesmo mês este ano, a Dívida Bruta do Governo Geral saltou de 75,2% para 90% do PIB. A despeito desse salto, a despesa com juros sobre essa dívida caiu de 5,5% do PIB nos 12 meses até fevereiro de 2020 para 4,7% do PIB um ano depois. Isso porque, na média dos 12 meses terminados em fevereiro último, a taxa de juros implícita incidente sobre essa dívida foi de apenas 5,7%, contra 7,5% um ano antes.

Essa taxa de 5,7% é a menor registrada na série histórica disponibilizada pelo Banco Central (BC). Essa excepcionalidade fica ainda maior quando se olha para essa taxa em termos reais, descontando a variação acumulada pelo IPCA: nos 12 meses até fevereiro de 2021, a taxa real ficou em 0,5%, contra uma média de dez vezes esse valor em 2007-20 (5%).

Nos próximos meses a taxa de juros real incidente sobre a dívida pública vai continuar caindo, indo para valores negativos. Porém, olhando um pouco mais à frente, parece inevitável que ela suba, possivelmente de forma significativa. Isso por dois fatores.

Um, a alta dos juros pagos pelo Tesouro americano, que deve continuar conforme a economia do país se recupere, dado que o governo americano necessita emitir altos volumes de dívida para financiar seu elevado déficit. O processo será gradual, oscilando com as ondas da pandemia, mas deve ganhar força com a recuperação da atividade e a queda do emprego.

Outro, a necessidade de controlar a escalada inflacionária doméstica, que fará o BC continuar a elevar a taxa Selic, indexador de 45% da dívida pública, provavelmente para além do que projeta o analista mediano do Focus (6% ao final de 2022). A inflação segue surpreendendo para cima e o risco de o BC perder o controle das expectativas inflacionárias tem aumentado.

Torço que se resista à tentação de usar a inflação no ajuste das contas públicas: a conta vem depois, não compensa. É hora de começar a se preparar para esse novo desafio fiscal.

*Armando Castelar Pinheiro é Coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV, professor da Direito-Rio/FGV e do IE/UFRJ 


Maria Cristina Fernandes: Bolsonaro pode perder corrida pelo dinheiro para governadores

Presidente se mostrou no encontro como um aliado arrependido do trumpismo

Dezessete chefes de Estado e a presidente da Comissão da União Europeia falaram antes do presidente Jair Bolsonaro na Cúpula dos Líderes pelo Clima. O presidente do país “detentor da maior biodiversidade do planeta”, como Bolsonaro definiu o Brasil, começou a falar quase duas horas depois de a conferência virtual ter começado. E não pôde, a exemplo de Angela Merkel (Alemanha), Emmanuel Macron (França), Ursula Leyen (UE) e Cyril Ramaphosa (Africa do Sul), saudar, com uma estocada da boa diplomacia, a volta dos Estados Unidos, anfitrião do encontro, ao esforço contra o aquecimento global.

Os americanos voltaram ao Acordo de Paris um mês depois da posse do presidente Joe Biden e três anos e sete meses depois de o ex-presidente Donald Trump tê-lo denunciado. Os líderes europeus e da África do Sul não deixaram passar a oportunidade de lembrar Biden do passado muito recente do país que agora se arvora à liderança global do ambientalismo na tentativa de reconquistar um viés de “superioridade moral” perdido na era Trump. Bolsonaro, porém, não pôde fazer o mesmo porque, de todos os 40 chefes de Estado convidados para a conferência, foi o mais estreito aliado de Trump.

E foi assim que o presidente brasileiro se mostrou no encontro. Como um aliado arrependido do trumpismo, incapaz até mesmo de adotar a linha de outros infratores das metas ambientais, como o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau. No comando de um país que, a exemplo do Brasil, não cumpriu o que havia acordado no Acordo de Paris, em 2015, Trudeau colocou o combate ao aquecimento global como prioridade que secunda o enfrentamento da covid-19. Como a pandemia nunca foi sua prioridade, Bolsonaro preferiu centrar seus esforços numa única mentira, a do empenho nacional pela redução dos gases do efeito-estufa.

Os argumentos foram os mesmos apresentados na carta enviada, na semana passada, ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden. A carta parece ter sido tão pouco convincente que o presidente americano esperou a vez de David Kabua, presidente das Ilhas Marshall, país minúsculo do Pacífico que tende a desaparecer pelo avanço dos oceanos, mas não Bolsonaro. Biden deixou a sala da conferência virtual antes de o brasileiro começar a falar. A mensagem brasileira foi mais ponderada do que as da era Ernesto Araújo, mas distorce a responsabilidade do país pela emissão de gases estufa, traça meta de redução baseada numa pedalada (para trás) sobre as conquistas anteriores e comemora a matriz limpa do parque energético como feito de seu governo.

A conferência deixou claras as dificuldades de Bolsonaro em limpar a imagem do Brasil depois da devastação e do desmonte das instituições de fiscalização promovidas por seu governo. Por razões inversas, Biden também pisou em ovos em seu discurso, que abriu a conferência. Ciente de que uma parte importante do eleitor americano rejeita o discurso ambiental, falou mais em emprego do que em clima. Ancorou a necessidade de mudar a matriz energética do país com o desenvolvimento de novas tecnologias como meio para a geração de emprego. O temor do eleitorado se estende ao mercado. À tarde, de volta à tela, mal acabara de falar da necessidade do esforço conjunto para o financiamento das ambiciosas metas ali traçadas, as bolsas despencaram, alarmadas com aumento de impostos.

O presidente chinês, Xi Jiping, citado por Merkel, Macron e pelo primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, em função dos esforços na pauta ambiental que precedem os dos EUA, também tratou de seus interesses sem subterfúgios. Ao enfatizar o multilateralismo, deixou claro que as conquistas não decorrerão do novo protagonismo americano mas do conjunto das nações. Xi insiste em se apresentar como liderança dos países em desenvolvimento propugnando o reconhecimento dos esforços que estes têm feito no sentido de buscar o desenvolvimento sustentável.

Todos os chefes de Estado exibiram esforços maiores do que aqueles que têm sido efetivamente feitos. E todos se comprometeram com metas ambiciosas para 2030 a serem acordadas na conferência das Nações Unidas sobre o clima, em Glasgow, em novembro. Nenhum deles, porém, enfrenta descrédito tão grande sobre a distância a ser percorrida entre os esforços e as metas quanto Bolsonaro.

O primeiro teste se dará no acesso ao fundo de US$ 1 bilhão, mobilizado a partir da coalizão de EUA, Noruega e Reino Unido e de empresas como Amazon, Airbnb, Bayer, Nestlé, Unilever, Boston Consulting Group, McKinsey, Salesforce e GKS (ver reportagem na página A5). É um dinheiro a ser destinado para o mundo inteiro e não apenas para o Brasil como desejava o Palácio do Planalto. E até mesmo os governos subnacionais estarão elegíveis. Como o pagamento se dará por meio de resultados, e não antecipadamente para armar a Guarda Nacional, como desejava o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, as chances de o governo federal são mais reduzidas do que, por exemplo, as do Consórcio Amazônia, que reúne os nove Estados da região.

Por meio um plano chamado “Recuperação Verde da Amazônia Legal”, os governadores apresentaram projetos como apoio na certificação de produtos sustentáveis para acesso aos mercados nacional e internacional, incentivo à pecuária intensiva, redução de carbono nas atividades de mineração e fomento ao turismo ecológico. Os desembolsos se dão mediante averiguação, por consultores independentes, do desempenho acordado. Depois de carregar sozinho o fardo da herança trumpista na cúpula, Bolsonaro ainda corre o risco de ser ultrapassado, em casa, pelos governadores, no acesso ao dinheiro.


Murillo de Aragão: Dificuldade em enxergar o óbvio

Estamos perdendo a capacidade de valorizar o que existe de bom

O Brasil é uma das últimas fronteiras do mundo para investimentos. Há necessidades gigantescas na área de infraestrutura e existe um mercado de mais de 200 milhões de pessoas educadas para o consumo.

As oportunidades existentes são únicas. Talvez nós, brasileiros, não tenhamos uma clara noção do nosso potencial devido à nossa irresistível vocação para falar mal do país. Na linha do que é ruim a gente mostra; o que é bom a gente esconde.

O setor imobiliário, por exemplo, pode avançar de forma extraordinária com a expansão do crédito. Somos uma das sociedades mais interconectadas do planeta, sistema que resistiu mesmo com o aumento de 50% do tráfego na internet durante a pandemia.

No campo ambiental, além de possuirmos uma das melhores matrizes energéticas do mundo, somos um dos maiores produtores de alimentos do planeta, mesmo com uma cobertura florestal que representa mais de 50% do território nacional. O agronegócio no Brasil, em sua imensa maioria, segue uma rígida legislação ambiental.

Com todo o fuzuê em torno das queimadas em nossas florestas, somos responsáveis por pouco mais de 3% das emissões globais de carbono. Os Estados Unidos, país campeão das narrativas em torno da defesa do meio ambiente, contribuem com mais de 14%. O pequeno Japão colabora com mais de 8% das emissões globais. E nenhum dos dois países é perseguido pela opinião pública mundial por questões ambientais.

 “No final das contas, temos imensos desafios a enfrentar, mas o Brasil é melhor do que parece”

No campo político, apesar da lentidão exasperante, fomos além do que a maioria dos países de nossa dimensão consegue em termos de reformas. E continuamos a avançar, com a nova lei de saneamento, a lei de recuperação judicial, o marco do gás e a autonomia do Banco Central.

Em 2019, tínhamos pouco mais de 700.000 investidores na bolsa de valores. Hoje são mais de 3 milhões de brasileiros. E esse número deve triplicar nos próximos anos. Temos mais de 300 fintechs em operação e um consistente processo de desbancarização em curso.

No campo institucional, os atritos entre os poderes da República representam mais a impossibilidade de uma hegemonia antidemocrática do que a possibilidade de uma ruptura institucional. O Brasil vive um sistema político compartilhado que ajuda a impedir a violência política arbitrando os conflitos.

No entanto, existe uma infeliz preponderância do conflito político estéril sobre a solução para nossos principais desafios. O desejo de destacar o atrito prevalece sobre a vontade de resolver nossos problemas. As good news de nosso país são soterradas pelas más notícias, fazendo com que percamos uma visão mais precisa da realidade.

No final das contas, temos imensos desafios a enfrentar, mas o Brasil é melhor do que parece. Isso, porém, não parece interessar a boa parte de nossa opinião pública nem às nossas autoridades, que se concentram mais no conflito do que nos desafios. Disse Clarice Lispector, “o óbvio é a verdade mais difícil de se enxergar”.

Publicado em VEJA de 28 de abril de 2021, edição nº 2735