Estados Unidos

Henrique Brandão: Os anos de 1960, nos EUA, pela lente do Harlem

Fui dormir tarde sábado. O motivo: resolvi “maratonar” a série “Godfather of Harlem”, em exibição na Fox Premium. Ontem, a Patricia Kogut ocupou o espaço de sua coluna para falar justamente dela. A série está disponível no Now, no canal da Fox Premium, e tem dez capítulos.

Não foi por acaso que a crítica de TV de O Globo dedicou generoso espaço à série. “Godfather of Harlem” (em tradução livre, “O Padrinho do Harlem”, mas, após o filme de Francis Ford Copolla, “The Godfather”, talvez seja mais apropriado traduzi-la para “O Poderoso Chefão do Harlem”), é uma série que vale cada minuto na frente da telinha (a partir de agora tem spoiler).

“Godfather of Harlem” conta a história de Bumpy Johnson que, em 1963, após sair da prisão, volta a Nova York e a seu bairro, Harlem, onde era o rei das ruas. O cenário que encontra, no entanto, é outro bem diferente de onze anos atrás. Na sua ausência, a máfia italiana invadiu seus domínios. A heroína, droga que se disseminou no período, agora dominava as ruas. Para manter seus negócios, Johnson terá que lutar contra os antigos aliados italianos.

A série é baseada em fatos reais. Bumpy Johnson (1905-1968) existiu e muitos dos personagens da série também. É o caso, por exemplo, de Malcolm X (1925-1965), seu jovem colega de crimes nas ruas do bairro. Ao sair da prisão, Bumpy encontra o amigo já convertido ao islamismo e um destacado prócer do movimento negro, agora preocupado com o trabalho social junto aos drogados e empenhado na luta pelos direitos civis. A relação entre eles é contraditória, mas fraternal, e perpassa toda a série.

Como todo bom filme de “gangster”, o conflito na disputa por espaços no submundo do crime, que envolve tráfico, apostas e prostituição é o elemento principal da trama. Não tem mocinho. Bumpy, apesar de paternalista com os parceiros e moradores, quando necessário é brutal, assim como seus rivais. A diferença é que ele está em seu habitat natural, o Harlem, bairro ao norte de Manhattan, majoritariamente habitado por negros. Viveu, desde sempre, a desigualdade social, o racismo e a violência. Diante do cenário, conseguiu sobreviver e se impor, adotando o método dos adversários.

O contexto dos anos de 1960, com a explosão do movimento dos direitos civis, é o pano de fundo da trama. Além de Malcolm X, outros personagens reais são importantes na história, como Adam Clayton Power Jr. (1908-1972), um pastor batista que foi o primeiro descendente afro-americano a ser eleito para a Câmara Federal em NY (de 1945 a 1971, pelo Partido Democrata).

Além dos personagens baseados em pessoas reais, o uso do noticiário transmitido pela TV, aparelho que era relativamente recente nos lares e bares dos EUA naquele período, é um recurso que situa, a todo momento, a narrativa dentro do tempo histórico.

Está tudo lá. Até Cassius Clay (1942-2016), o jovem boxeador em luta pelo cinturão dos pesos-pesados que, por conta de sua conversão ao islamismo, mudaria depois o nome para Mohamed Ali. Suas conversas com Malcolm X são definidoras de sua trajetória e a interferência de Bumpy Johnson, blindando-o das pressões da máfia italiana, fundamental para garantir o título. Está lá também o teatro Apolo, ícone do Harlem, palco de shows de figuras importantes da música negra norte-americana daquele momento, como James Brown.

É interessante observar as nuances das posições políticas dos envolvidos na luta pelos direitos civis em relação à Marcha sobre Washington por Trabalho e Liberdade, gigantesca manifestação que tomou conta da capital norte-americana em 28 de agosto de 1963. Cada qual com seus motivos, tanto Malcolm X como Adam Clayton têm ressalvas ao papel de liderança exercido por Martin Luther King (um dos organizadores da Marcha, John Brown, à época um jovem de 25 anos, acabou de falecer no EUA, vítima de câncer, aos 80 anos).

A série assume explicitamente a tese de que a máfia é a responsável pelo assassinato de John Kennedy. Ao ver a cena pela TV do assassinado de Lee Oswald, executado dentro de uma delegacia, na frente de jornalistas e de vários policiais, que nada fazem para impedir o crime, Bumpy Johnson comenta que é evidente a participação da polícia, infiltrada até a alma pela máfia, na queima do arquivo.

Na sequência, Bumpy Johnson explica aos comparsas a ligação da máfia com os Kennedy, que começa pelo pai do presidente eleito, que enriqueceu como contrabandista. O pivô do rompimento da aliança entre os Kennedy e a máfia, que apoiou John na eleição, foi a atuação de seu irmão Bobby no cargo de Procurador Geral dos EUA (este depois também seria assassinado pela “Cosa Nostra” em plena campanha eleitoral para presidente).

Fora o imbricamento com os fatos reais, que acrescenta verossimilhança à narrativa, salta aos olhos o evidente capricho da produção, com uma reconstituição de época primorosa.

O elenco é cheio de feras. A começar por Forest Whitaker, no papel de Bumpy, como sempre dando show. Giancarlo Esposito dá vivacidade ao deputado Adam Clayton e Nigél Tatch, brilha na pele do Malcolm X (a semelhança física é impressionante). Vicente D’Onofrio se destaca na composição de um mafioso italiano rude e violento (Vicent Gigante). Paul Sorvino encarna o chefe da “Cosa Nostra”, Frank Costello. Chamam atenção também a bela Ifenesh Hadera, como Mayme Johnson, esposa de Bumpy, e Antoinette Crowe-Legacy, a filha do mandachuva do Harlem viciada em heroína.

Patricia Kogut indica duas outras séries para quem estiver interessado em saber mais daquela época efervescente dos EUA: “Bob Kennedy president” e “Quem matou Malcolm X”. Este último, seis episódios que desvendam os meandros da política do movimento negro islamita norte-americano, com todas as suas idiossincrasias. Elas realmente acrescentam informações relevantes. Juntaria a esta lista o último filme de Spike Lee.

O fim dos dez capítulos deixa claro que haverá uma continuação. A primeira temporada acaba com o presidente Kennedy assassinado e Malcolm X sendo punido pela organização muçulmana à qual pertence, Nação do Islã. No entanto, nos EUA dos anos de 1960, muita coisa ainda viria a acontecer, principalmente em se tratando do movimento pelos direitos civis. Se for tão boa quanto a temporada de estreia, a continuação, promete.

Não perca!!!


Luiz Sérgio Henriques: Os vivos e os mortos

Não é mais incomum ver EUA e Brasil associados sob o rótulo de ‘párias’ ambientais e sanitários

Que os mortos possam julgar os vivos não é um absurdo. O que nos educa para cenas desse tipo, naturalmente, é a arte, uma forma extraordinária de conhecimento. E aqui ressurge a lembrança do “incidente” imaginado por Érico Veríssimo na sua fictícia Antares. Uma greve de coveiros faz com que se acumulem os insepultos. E são esses mortos sem sepultura que retornam, exigindo providências para poderem enfim descansar. Revisitam parentes e amigos, testemunham discussões e conflitos embaraçosos, até ocuparem a praça da cidadezinha, onde encenam um duro juízo sobre a mediocridade e a vileza que desgraçadamente puderam constatar entre aqueles que assombraram com sua volta fantástica.

Deixamos para trás a ditadura, em cuja atmosfera, na arrojada ficção de Veríssimo, se quis cancelar da memória o “incidente”, e já há três décadas vivemos o mais longo período democrático da História republicana. Nesta pandemia, contudo, os mortos ao redor parecem reatualizar a incômoda alegoria. É que eles são em número muito maior do que se poderia esperar de um país cuidadoso com seus cidadãos, mesmo que esta seja uma catástrofe sanitária sem paralelo desde 1918 e, nascida na globalização, se tenha espalhado feito rastilho de pólvora, cobrando pesadíssimo tributo, em especial das populações do Brasil e dos Estados Unidos, os líderes mundiais na contagem de corpos.

Não são poucas as dessemelhanças entre os dois países-contintente. A riqueza e o poderio americano, de alcance global, contrastam com o tamanho menor da nossa economia e sua projeção externa obviamente mais contida. Paradigma do capitalismo liberal – que às vezes, para o bem e para o mal, tentamos reproduzir, rasgando nossa certidão “ibérica” de nascimento –, os Estados Unidos conseguem mobilizar mais recursos científicos, apesar de se contarem entre os heróis brasileiros sanitaristas da altura de um Oswaldo Cruz ou de um Vital Brasil, que nos legaram uma tradição valorosa de pesquisadores e instituições. Sobretudo, apesar da nossa abissal desigualdade, temos o SUS, que, como se diz com precisão, é a barreira que nos separa da barbárie e nos diferencia da medicina privada dos americanos.

A semelhança conjuntural entre as duas Repúblicas consiste na ação de dois mandatários singularmente afins em estilo, métodos e propósitos. Uma afinidade buscada conscientemente pela figura menor – pelo “Trump latino-americano” – até o ponto da caricatura. Figuras da cisão e da cizânia, desmentem a noção de que o governante, uma vez eleito, representa todos os governados, compondo e mediando os mais diversos interesses, ainda que, legitimamente, busque dar um rumo de acordo com a vontade majoritária que expressa. Externamente, ostentam particularismo nacional similar. Como se vê quase todo dia, os Estados Unidos retiram-se barulhentamente do mundo que eles próprios contribuíram para construir durante “o século norte-americano”; já o Brasil demite-se da liderança regional, afasta-se por motivos rasos dos seus vizinhos e amigos naturais, fazendo tudo para apagar os traços mais atraentes do soft power delineado por gerações de políticos, diplomatas e artistas. Dois desastres cuja proporção ainda nos deixa atônitos.

Natural que, nestes termos, ambos os governantes sejam, rigorosamente, os responsáveis pelo rotundo fracasso da resposta dos respectivos países à pandemia. Não importa que o vírus tenha vindo de Wuhan e que, a princípio, a autocracia chinesa, como é inerente às autocracias, tenha também querido cancelar a má novidade. O fato é que o vírus, de índole “globalista”, constitui ameaça generalizada, sem mencionar que outros mais hão de vir, até como efeito provável do desmatamento – e aí já estamos falando de corda em casa de enforcado. Uma situação-limite que exigiria dos Estados Unidos a liderança do capitalismo democrático; do Brasil, o reforço da Federação, da coesão social e a articulação de um discurso público orientado para a solidariedade, particularmente com os mais frágeis.

Trump e Bolsonaro, ao contrário, esmeram-se no “economicismo”, exatamente à maneira do marxismo vulgar que apregoam detestar. Opõem a preservação de vidas e a de empregos, sabotam a ciência e as informações, mesmo provisórias, que ela tem gerado no calor da hora. Conseguiram inserir o uso de máscaras e a distância social no repertório das tais guerras de cultura, que dividem, enfraquecem e esgotam seus desatinados combatentes. E assim terminaram por se colocar, e aos seus países, sob suspeição geral: não é mais incomum ver Estados Unidos e Brasil associados sob o rótulo de “párias” ambientais e sanitários.

Na ficção de Veríssimo, uma certa “operação borracha” é montada para apagar o abalo causado pelos mortos sobre os vivos, subvertendo a rotina destes à luz do evento inesperado. Mas Antares, literariamente poderosa, era pequena e os mortos no coreto da praça eram poucos. Agora os corpos se empilham e, mais até do que no tempo do grande romancista, não será possível contar nenhuma história ingênua sobre eles.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil


Sergio Amaral: E se Biden ganhar?

Descompasso com um governo democrata nos EUA ampliaria o isolamento do Brasil

Ao início do ano, as chances de vitória de Joe Biden pareciam remotas. Hoje elas se tornaram plausíveis, sobretudo em decorrência dos sucessivos reveses de Donald Trump na gestão da crise do coronavírus, na deterioração da economia e na mobilização da sociedade contra o racismo.

Não que a vitória de Trump esteja afastada. O desemprego pode sinalizar uma melhora ou a vacina contra o vírus começar a ser distribuída. Mas o fato é que a melhora de Biden nas pesquisas é consistente. As sondagens conferem ao candidato democrata uma dianteira de cerca de dez pontos na média nacional e uma vantagem de 279 delegados para o colégio eleitoral, contra 188 para Trump. O próprio perfil de Biden, conciliador, moderado, propenso à convergência e à busca de união, em vez da divisão, vai-se mostrando apropriado para presidir as transformações profundas na sociedade.

O que seria um governo democrata? No plano interno, sobressai o desafio de retomar a economia e de acomodar expectativas de duas correntes relevantes para a vitória nas eleições: os aguerridos eleitores de Sanders e a comunidade afrodescendente.

A ala de Bernie Sanders sustenta duas bandeiras principais: a extensão do Obamacare a todos, isto é, aos 30 milhões de americanos que não contam com nenhuma cobertura de saúde; e o chamado Green New Deal, que traria maior participação do Estado na indução do crescimento e na inclusão social, associada ao compromisso com a causa ambiental.

A comunidade negra, energizada por cerca de 2 mil manifestações de protesto, apenas nos Estados Unidos, afirma que é chegada a hora de adotar políticas estruturais para enfrentar um racismo que se tornou sistêmico.

No plano externo, apesar da polarização na cena mundial, os desafios de Biden são contornáveis. Sua diplomacia deverá expressar os valores e princípios entronizados na campanha eleitoral, como meio ambiente, defesa dos diretos humanos e um multilateralismo reformado, marcas da administração Obama.

A confrontação com Beijing dificilmente será superada em curto prazo. A decisão de conter a China resultou de um entendimento bipartidário que contou com o apoio de cerca de 70% dos eleitores. Além disso, o contencioso bilateral tem um componente estratégico, em certa medida antagônico: a China pretende o reconhecimento de sua emergência como uma das duas superpotências do século 21. Trump optou por conter essa emergência. Biden provavelmente buscará, em vez da escalada das sanções, um modus vivendi que separe áreas de competição estratégica dos setores de cooperação.

Com a Europa persistirão dificuldades objetivas que as ameaças de Trump contribuíram para agravar, como o gasoduto Nord Stream 2 com a Alemanha, a taxação das Giant Techs com a França ou as diferenças quanto à reforma da Otan e da OMC. Mas não há nada que não possa ser negociado no âmbito de um propósito comum de reconstruir uma aliança que não precisava ter sido ameaçada.

Com relação aos países que possam representar uma ameaça à segurança dos Estados Unidos, como Rússia, Irã e Coreia do Norte, o governo democrata contará com as sanções unilaterais impostas por Trump para negociar os seus interesses e as próprias sanções, a partir de uma posição de força.

As eleições de novembro não deverão ser apenas uma corriqueira escolha de dirigentes ou partidos. Ao contrário, incluem uma agenda complexa que poderá configurar um novo contrato social e um ajustamento externo às novas realidades de um jogo de poder multipolar. O novo presidente precisaria contar, além de suas qualidade de moderação e equilíbrio, com forte apoio político. Nesse aspecto a conquista do Senado poderá ser relevante.

As implicações para o Brasil de eventual eleição de Biden serão significativas e decorrerão, sobretudo, do equívoco de colocar as principais fichas nas mãos de Trump e de suas políticas A eleição de um democrata poderá levar a um desencontro em temas como multilateralismo, meio ambiente e o próprio projeto de um Green New Deal, ainda pouco claro, mas que conta com simpatia nas hostes de Biden e na Europa.

A consequência desse descompasso seria ampliar o isolamento do Brasil, que já se manifesta em nossa própria região, nas convergências históricas com a Europa e até mesmo nas relações com um importante parceiro econômico, como a China. Lamentavelmente, o Brasil parece ter optado por hostilizar ou distanciar-se exatamente daqueles que mais compram de nós ou investem em nosso país.

Os índices de desflorestamento na Amazônia seriam uma fonte permanente de fricção com um governo como o de Biden, apoiado por uma ativa militância ambientalista, tanto na sociedade e na mídia quanto no Congresso. Nesse sentido, a criação do Conselho da Amazônia é um passo na direção correta. Mas vale a pena ter presente a advertência do embaixador da Alemanha, pouco antes de deixar o País: as medidas para combater o desflorestamento precisam ser drásticas, rápidas e continuadas.

*Sergio Amaral foi Embaixador em Washington


Hélio Schwartsman: Uma questão de honra

Distinção originária na colonização ajuda a explicar nova fase da epidemia de Covid-19 nos EUA

Os EUA, ao contrário do que se possa pensar, são um país culturalmente diverso, e marcas dessa variedade se refletem em uma série de estatísticas. Há, por exemplo, estados com índices de homicídios baixos como os europeus, e outros com um perfil bem mais próximo do de países da América Latina.

Nos anos 90, os psicólogos Richard Nisbett e Dov Cohen ensaiaram uma explicação para o fenômeno.

Alguns estados, notadamente do sul e do oeste do país, seriam marcados pela cultura da honra, na qual a reputação de um indivíduo é o seu maior bem e, em certas condições, ele está autorizado a recorrer à violência para mantê-la. Daí uma maior quantidade de assassinatos em brigas de bar, disputas amorosas etc. Outros traços da cultura de honra seriam o individualismo mais exacerbado, o recurso a punições mais rigorosas e maior tendência ao militarismo.

Em contrapartida, estados do nordeste e do meio-oeste seriam caracterizados por uma cultura, não exatamente coletivista, mas que põe mais ênfase no respeito à lei e no recurso às instituições para aplicá-la.

Para Nisbett e Cohen, as origens dessa distinção remontam à colonização. Enquanto o norte foi povoado por imigrantes de regiões agrícolas, o sul recebeu descendentes de pastores, que não dependiam tanto de colaborar com seus vizinhos e tendiam a resolver por si sós as dificuldades que aparecessem.

O interessante dessa distinção é que ela ajuda a explicar a nova fase da epidemia de Covid-19 nos EUA, que cresce acentuadamente em estados caracterizados pela cultura da honra, como Flórida, Texas, Arizona e Tennessee. Os mecanismos de ação seriam a maior resistência em usar máscaras, que já foram acusadas de emascular seus portadores, e a precipitação em reabrir a economia, para que cada um volte a ser senhor de seu destino.

O problema é que vírus, diferentemente de pessoas, não estão nem aí para a honra de ninguém.


Mario Vargas Llosa: Casa de loucos

Livro de Bolton fala o que sabíamos: Trump carece de preparo para ocupar o cargo

Embora a Casa Branca tenha tentado de todas as formas impedir a publicação das memórias de John Bolton, que foi conselheiro de Segurança Nacional do presidente Donald Trump, entre abril de 2018 e setembro de 2019, o livro, intitulado The Room Where It Happened (A sala onde tudo aconteceu, em tradução livre), acaba de ser lançado nos EUA, logo após ser autorizado por juízes.

Trata-se de um ensaio volumoso no qual Bolton narra com riqueza de detalhes sua experiência de trabalhar por um ano e meio com Trump e o critica severamente, dando exemplos abundantes do que todos já sabíamos. O presidente dos EUA carece da preparação mais elementar para ocupar o cargo que tem e os erros e as contradições que comete a cada dia, por essa mesma razão, apesar da popularidade que conquistou nos primeiros anos de seu governo e parece ter perdido. Segundo as últimas pesquisas, o democrata Joe Biden venceria as eleições de novembro.

A expectativa que o livro suscitou nos EUA e no mundo se deve, sobretudo, ao fato de Bolton ser um ultraconservador, mas culto e bem instruído, que colaborou em cargos importantes com os governos de Ronald Reagan e George Bush, dos quais foi embaixador na ONU.

Tanto em seus trabalhos públicos como em seus comentários na Fox News, Bolton sempre defendeu as opções mais extremas - como, por exemplo, no caso de Israel, tornar Jerusalém a capital do Estado sionista, a ocupação militar da Cisjordânia e, agora, sua anexação. Desde que ganhou as eleições presidenciais, Trump sinalizou que ele teria um cargo importante em seu governo.

De fato, foi nomeado conselheiro de Segurança Nacional, encarregado de orientar diariamente o presidente em questões internacionais, acompanhá-lo em suas viagens e junto ao secretário de Estado, de coordenar e dar uma direção coerente à política internacional dos EUA.

A primeira coisa que Bolton descobriu em seu novo trabalho foi que o presidente não gostava dos grossos bigodes de morsa que ele usa e, a segunda, foi como Trump não tem noção de coisas tão elementares como a situação da Finlândia, a qual o presidente americano acreditava, ingenuamente, que não era um Estado independente, mas fazia parte da Rússia.

Embora esses erros tão grosseiros, que documentam uma ignorância suprema da geopolítica, apareçam às vezes nas memórias de Bolton, estas não têm em nada o caráter fofoqueiro e delator que muitos leitores esperavam. Pelo contrário, é um documento rigoroso, praticamente um diário de sua experiência de ter de informar, primeiro, e em seguida, lidar com as iniciativas intempestivas, e muitas vezes desconcertantes, do presidente (corrigir seus erros, pode-se dizer), que têm marcado sua gestão governamental.

Bolton pertence a uma família da classe trabalhadora de Maryland e cursou direito em Yale graças a uma bolsa de estudos e a empréstimos. Desde muito jovem, é republicano e defende as opções mais conservadoras e reacionárias, com argumentos, é preciso dizer, muito mais sólidos do que aqueles que se costuma usar naquela unidade política.

Desde cedo, declarou-se seguidor das teses do filósofo e historiador irlandês Edmund Burke e seu primeiro livro, no qual explica suas convicções políticas, Surrender Is Not an Option (Render-se não é uma opção, em tradução livre), foi um best-seller. Este novo livro também estará entre os mais vendidos e, talvez, seja o mais divertido, pois, em razão da oposição a Trump, a esquerda foi rápida em festejá-lo.

Bolton chegava em seu escritório na Casa Brancas às 6 horas e ali tomava o café da manhã com autoridades diplomáticas e militares, era a primeira reunião de trabalho do dia. Em teoria, seu trabalho consistia em traçar as grandes linhas da política dos EUA em seu âmbito internacional. Na verdade, sua obrigação era, sobretudo, tentar entender o que Trump queria neste domínio e tratar de pôr em ordem, dar algum sentido e fazer desaparecer os infinitos erros que o chefe de Estado cometia diariamente nessa área.

O que conta é perfeitamente explicável. Como geralmente não sabia onde estava, o presidente Trump desconfiava de todo mundo - exceto, talvez, de sua filha Ivanka e de seu genro - e prestava muito mais atenção à imprensa e, acima de tudo, à televisão, do que aos grandes assuntos do dia.

As reuniões com seus colaboradores mais próximos se caracterizavam, principalmente, pela abundância de palavrões ferozes que proferia e pelo frenesi com que demitia e mudava de assessores. Bolton ter permanecido ao seu lado por mais de um ano e meio foi algo milagroso. No final, ele o forçou a renunciar, acusando-o de ter abusado ao viajar demais usando aviões militares, uma acusação sem sentido quando alguém lê essas memórias, onde Bolton especifica com doentia meticulosidade as viagens que fez e as condições em que viajou.

O livro desenvolve todos os tópicos internacionais importantes nos quais Bolton interveio, da Líbia à China, do Irã a Cuba, da Rússia à União Europeia, do Afeganistão ao Reino Unido e, sinceramente, o leitor fica tonto com essa atividade frenética que, além disso, era pouco valorizada por Trump, se não brutalmente contradita por suas declarações prematuras à imprensa, as quais, mais tarde, os conselheiros, e especialmente Bolton, tiveram de dar um jeito, sem parecer que estavam desmentindo seu chefe. O caos que esse livro documenta sem humor, e no qual o mau humor aparece fatalmente, nos permite chamar a Casa Branca, sem exagero, de uma verdadeira casa de loucos.

Por razões óbvias, as quase 50 páginas que Bolton dedica à Venezuela são de especial interesse para o escritor desta coluna. Observa-se, desde o primeiro momento, que Trump e seus principais colaboradores ficaram surpresos com a enorme oposição a Maduro, que parecia apoiar Guaidó, e imediatamente concordaram em apoiá-lo, mas descartando de cara a possibilidade de uma ação militar contra o regime chavista. Como deve ser lembrado, apesar deste acordo, o presidente Trump ameaçou Maduro mais de uma vez com uma ação armada, sabendo perfeitamente que isso estava descartado de antemão e suas bravatas careciam de toda a consistência.

Por outro lado, naquelas reuniões privadas e secretas, Trump mostrava certo ceticismo com a figura de Guaidó e, mais ainda, certa simpatia secreta por Maduro, “esse cabeça dura”, a mesma que, apesar de tudo, também tinha pelo novo czar da Rússia, Vladimir Putin.

Bolton analisa, com rigor, as difíceis relações que Trump manteve com seus antigos aliados na Europa Ocidental e sua tendência sistemática de realizar reuniões com ditadores meio malucos, como o gordo que lidera a Coreia do Norte com mão de ferro ou o senhor da Rússia.

O que acontecerá agora nos EUA se a maioria do povo americano mantiver Trump no poder nas eleições de novembro? Eu acho que seria uma grande desgraça para os EUA, em particular, e para o mundo livre, em geral. Por causa de sua ignorância e arbitrariedade, Trump conseguiu distanciar seu país de seus aliados tradicionais e, em vez disso, se aproximar de seus inimigos, sem nem mesmo perceber que era esse o caso.

Este é o testemunho mais importante dessa memória de John Bolton. Se isso acontecer, por mais quatro anos, eles ganhariam ainda mais terreno do que já alcançaram nesses primeiros quatro anos de governo. Que paradoxo que um americano ultrarreacionário como Bolton tenha mostrado como e por que Trump deve ser derrotado nas eleições. / Tradução de Romina Cácia

  • É Prêmio Nobel de Literatura

Humberto Saccomandi: Uma epidemia de ódio ameaça EUA e Brasil

O ódio político pode afetar a economia pois leva ao impasse

Cuidado com a sua raiva. Raiva do presidente Jair Bolsonaro, do PT, do STF, do MST, da mídia, do movimento LGBT, dos ambientalistas, do seu colega evangélico, do seu primo que pede intervenção militar. A raiva política, que parece ter o efeito positivo de ressaltar nossas convicções e/ou indignações, provavelmente está trazendo prejuízos a todos. É um epidemia para a qual não existirá vacina tão cedo.

Essa é, adaptada ao Brasil, a tese de Steven Webster, professor de Ciências Políticas na Universidade de Indiana (EUA), que lancará em setembro o livro "American Rage", a raiva americana. Há uma extensa literatura recente que tenta lançar luz sobre o crescente fenômeno da polarização política nos EUA. Webster disse ao Valor que se concentrou nas consequências sistêmicas.

Para ele, a raiva ao oponente político virou a força dominante da política americana. E essa extrema polarização está destruindo a confiança das pessoas nas instituições, o que leva a um governo disfuncional, ameaça a democracia e causa prejuízos à economia. Isso parece ocorrer no Brasil também.

A disfunção ficou evidente na reação catastrófica dos dois países, na área da saúde, à epidemia. Para os apoiadores de Donald Trump/Bolsonaro, a cloroquina era uma solução, apesar da evidências científicas de que o medicamento não funciona. Os presidente não buscaram políticas de consenso nem colaboração com os Estados. Agora, ambos ignoram a disparada no número de casos.

Sempre houve raiva política na história dos EUA. O que há de novo nos últimos 25 anos, diz Webster, é a extensão da raiva dos americanos e a frequência com que eles estão dispostos a expressá-la.

Ele atribui isso a três fatores principais: um é o casamento da identidade partidária com a identidade racial, cultural ou ideológica. “Cada vez mais os republicanos são o partido dos brancos, e os democratas são uma coalizão multiétnica. Essa diferente composição influencia as políticas que os partidos acabam defendendo.”

Os outros dois fatores são: as mudanças na mídia, com a importância crescente da mídia explicitamente partidária; e as novas tecnologias de internet, que facilitam a expressão do ódio. É mais fácil ser agressivo com alguém numa rede social, sentado no sofá de casa, do que fazê-lo socialmente, num bar.

“Trata-se cada vez mais de um jogo de soma zero. Minha vitória é a sua derrota, e vice-versa. Houve uma transição de eu perceber que há pessoas que discordam de mim para eu achar que essas pessoas são oponentes a serem derrotados”, diz Webster. “A raiva leva as pessoas a enxergar os outros pela lente da política, e não como pessoas, numa espécie de desumanização política. Os apoiadores do outro lado são vistos cada vez mais como uma ameaça ao bem-estar do país e até como menos inteligentes.”

Essa polarização pela raiva não foi criada nem por Trump nem por Bolsonaro. Ela os precedeu e é provável que continuará depois deles. Mas ambos deliberadamente a fomentam e se nutrem dela.

Webster diz que os dois principais partidos americanos mudaram e rumam para os extremos. Mas ele condivide a teoria da polarização assimétrica, isto é, que os republicanos foram mais para a direita do que os democratas para a esquerda. E, para se justificarem, precisam tentar colar no oponente a pecha de extremista. Trump repete todo dia que os democratas foram tomados por radicais. No Brasil, qualquer um que se oponha a Bolsonaro vira instantaneamente socialista ou comunista.

“O ódio político pode afetar a economia porque leva ao impasse. Se os eleitores estão com raiva do partido rival, isso cria o incentivo para as autoridades eleitas não façam acordos com membros do outro partido. E sem esse entendimento suprapartidário, é difícil enfrentar grandes questões nacionais”, disse.

O Medicare, o programa de saúde público para pessoas com mais de 65 anos, criado em 1965, no governo do democrata Lyndon Johnson, só passou no Congresso dos EUA graças ao voto favorável de 13 senadores republicanos, pois 7 senadores democratas votaram contra. Quando o Obamacare, seguro saúde compulsório com ampla participação privada, foi aprovado em 2010, nenhum deputado ou senador republicano votou a favor. Trump não conseguiu derrubar o programa, mas o desidratou. Com isso, dezenas de milhões de americanos enfrentam agora a epidemia sem plano de saúde.

Nem todo o mundo é assim, claro. A Dinamarca aprovou nesta semana um ambicioso plano de cortar as emissões de carbono em 70% até 2030. A proposta teve o apoio de mais de 95% do Parlamento. Os principais lobbies empresariais defendem o plano, ainda que ele possa levar a um aumento de impostos para financiar a conversão energética.

No Brasil e nos EUA, esse consenso é impossível. Temas de ambiente e aquecimento global foram colocados no escaninho da esquerda. Viraram não-assunto para a direita. Do mesmo modo, limitar a imigração é tema ignorado pela esquerda, apesar de ser demanda legítima de parte da população.

O candidato democrata, Joe Biden, pode não alimentar o ódio na sua campanha, mas ele quase não precisa disso, pois boa parte do país já tem tanta raiva de Trump e só a presença do presidente nas eleições já basta. “E é muito provável que grupos democratas explorem essa raiva.”

Ainda que a raiva possa ajudar os democratas nas eleições, ela é um risco à democracia, diz Webster. “Quanto mais os EUA ficarem polarizados, mais difícil se tornará manter a democracia. A democracia requer confiança, fazer concessões, um equilíbrio delicado, cada vez mais raro.”

Há saída para essa epidemia de ódio? “Espero, mas sou pessimista”, diz Webster. “Acho que será preciso algo grande e que afete todo o país para fazer as pessoas deixarem de lado a sua natureza partidária. Há evidência de que, quando algo as fazem se enxergar como americanos, e não democratas ou republicanos, isso reduz a hostilidade. Foi o que ocorreu no 11 de Setembro. A confiança no governo aumentou, o presidente George W. Bush teve a sua maior aprovação e muita gente trabalhou junto para um objetivo comum. É difícil saber se isso é factível sem que algo terrível aconteça. E ninguém deseja um ataque terrorista.”

Ele recomenda conter a raiva. “Uma dose de raiva é bom, pois eleva a participação na politica. Precisamos de uma quantidade saudável de raiva, não demais”.

*Humberto Saccomandi é editor de Internacional


El País: EUA enfrentam a maior onda de protestos raciais desde o assassinato de Martin Luther King

Donald Trump investe contra governadores depois de uma noite de fúria às portas da Casa Branca: “Vocês têm que dominar a situação, vão ficar parecendo uns imbecis”

Uma primavera turbulenta, com consequências imprevisíveis, tomou conta dos Estados Unidos. Pelo menos 25 grandes cidades do país encararam a noite de domingo sob toque de recolher por causa do aumento da virulência e da amplitude dos protestos contra o racismo nas forças de segurança. Imagens como as de uma igreja histórica em chamas em frente à Casa Branca ou o Exército patrulhando as ruas de Santa Monica (Califórnia) marcaram o sexto dia consecutivo de mobilizações. Pelo menos uma pessoa morreu em Louisville, Kentucky, e duas outras, em Los Angeles e Nova York, foram baleadas. Esta é a mais ampla onda de protestos, em extensão e intensidade, de que este país se lembra desde o assassinato de Martin Luther King Jr., em 1968. Nesta segunda-feira, Donald Trump acusou os governadores de serem “fracos” e pediu que sejam mais duros.

Mais de 4.000 pessoas foram detidas no fim de semana durante a onda de protestos antirracistas Estados Unidos, de acordo com a contagem da agência Associated Press, e há uma lista interminável de saques, incêndios, com vários feridos. Cerca de 5.000 membros da Guarda Nacional (o Exército de reservistas sob o comando dos governadores de cada Estado) patrulham as ruas de uma dúzia de territórios. Os tumultos de 1992 em Los Angeles, por Rodney King, foram mais violentos e deixaram mais de 60 mortos, mas se restringiram a essa cidade. Houve também crises de violência racial em 2014 em Ferguson, Missouri, e em 2015 em Baltimore, Maryland, mas nunca em todo o país de uma só vez, por tantos dias e crescendo.

A onda de indignação começou com a morte de George Floyd em uma brutal prisão gravada em vídeo, mas se tornou um protesto nacional contra o racismo sistêmico nos Estados Unidos, contra as forças de segurança e até contra Donald Trump, um presidente que não tem feito nada para acalmar os ânimos. Nesta segunda-feira de manhã, ele foi duro com os governadores em uma reunião por videoconferência: "Vocês precisam dominar a situação; se não dominarem, estão perdendo tempo. Vão passar por cima de vocês, vocês vão ficar parecendo um bando de imbecis”, afirmou, segundo uma gravação à qual a rede CBS teve acesso, citada pela Reuters.

A cidade de Washington acabara de viver sua noite mais violenta até agora nesta crise. A prefeita, Muriel Bowser, decretou o toque de recolher entre às 23 horas e às 6 horas desta segunda-feira. Depois de entrar em vigor, a capital norte-americana mergulhou no caos. Os bombeiros conseguiram controlar um incêndio nos porões da histórica Igreja de Saint John, em frente à Casa Branca, conhecida como “a igreja dos presidentes”, na qual Abraham Lincoln, o presidente que aboliu a escravidão, costumava ir rezar.

Milhares de manifestantes conseguiram chegar às imediações da residência presidencial, apesar do esforço da polícia para bloquear as ruas de acesso após o tenso dia anterior. Os agentes dispararam gás lacrimogêneo por horas para dispersar as pessoas. "Viemos mostrar nosso apoio a George Floyd pelo abuso policial que sofreu, e a polícia responde usando excesso de violência", se queixou Maicy, 40 anos, afro-americana que viajou de Maryland para a capital para protestar pela segunda noite consecutiva.

Segundo a imprensa norte-americana, no domingo, durante os confrontos, o presidente passou pelo menos uma hora em um bunker (um abrigo subterrâneo), construído para uso em emergências como ataques terroristas. Por todo o resto da cidade, houve saques e destruição em numerosos edifícios.

Em Minneapolis, Minnesota, milhares de pessoas bloqueavam a rodovia Interstate 35 quando um caminhão acelerou através da multidão em alta velocidade e provocou pânico e deixou feridos. O motorista foi retirado da cabine do veículo e espancado, segundo testemunhas citadas pela Reuters. Cerca de 150 pessoas foram presas nessa concentração.

Los Angeles começou o domingo com uma mobilização policial que não se via desde os tumultos por Rodney King. Forças de todas as polícias dos municípios vizinhos, aquelas que dependem do xerife, e a Guarda Nacional patrulhavam as ruas da cidade. Ao meio-dia, o prefeito de Los Angeles, Eric Garcetti, o chefe de Polícia, Michel Moore, e o chefe dos bombeiros, Ralph Terrazas, deram uma entrevista coletiva conjunta para advertir que as cenas de violência e saques do dia anterior não se repetiriam. As autoridades tentaram transmitir solidariedade aos protestos e o aviso de que os episódios violentos não tinham nada a ver com as reivindicações e agiriam contra eles com a maior força.

Pouco depois, na localidade de Santa Monica ocorreu exatamente o que haviam anunciado que não seria permitido. Enquanto centenas de pessoas protestavam pacificamente pelo conhecido calçadão da praia, um grupo começou a invadir lojas do Santa Monica Place, um shopping center próximo, ante a passividade dos agentes. Imagens aéreas de televisões locais mostraram claramente que eram grupos organizados que se deslocavam de carro. Chegavam, quebravam vidros, saíam com a mercadoria que conseguiam levar nas mãos e se escondiam de novo no carro.

Situações como essa se repetiram por todo o país. Em Birmingham, Alabama, manifestantes derrubaram uma estátua confederada. Em Nova York, uma grande manifestação percorreu a ponte do Brooklyn. Eclodiram confrontos que forçaram o fechamento das pontes com Manhattan e um pequeno incêndio de rua. A polícia da cidade deteve a filha do prefeito, Bill de Blasio, que também participava dos protestos.

Os combates continuaram pela madrugada com saques nas lojas do bairro do Soho. Uma pessoa foi levada a um hospital depois de ser baleada. Em Atlanta, onde há dois dias os manifestantes destruíram a entrada da sede da CNN, houve cenas de tensão com o lançamento de gás lacrimogêneo. Dois policiais foram demitidos por uso excessivo da força. Em Louisville, Kentucky, as autoridades disseram que um homem foi morto pela polícia a tiros na madrugada desta segunda-feira, depois que ele abriu fogo primeiro, enquanto tentavam dispersar uma concentração. Essa crise irrompe a seis meses das eleições presidenciais, em plena frustração pelas ordens de quarentena para conter pandemia de coronavírus e com um desemprego que já atingiu o incrível número de 40 milhões de pessoas.


RPD || Ricardo Tavares: Democracia estressada

Política norte-americana segue intensa e no centro da epidemia do coronavírus Covid-19 que assola os Estados Unidos. Enquanto Trump demostra grande dificuldade em se adaptar ao novo cenário para concorrer à reeleição, os democratas definiram Biden como o candidato à Presidência

O novo corona vírus pode ter paralisado a sociedade e a economia norte-americanas, mas a política continua sua dinâmica intensa. Nos EUA, os conflitos políticos estão no centro da gestão da pandemia, que está influenciando decisivamente a preparação para as eleições presidenciais em novembro deste ano.

O Presidente Donald Trump faz coletivas de imprensa diárias sobre a pandemia com longas digressões que muitas vezes contradizem seus técnicos também presentes. Esta alta exposição à mídia, apesar do gerenciamento desastrado da crise, fez crescer sua popularidade.
No Partido Democrata, a pandemia resolveu a disputa entre o Vice-Presidente Joe Biden e o Senador Bernie Sanders; Sanders finalmente reconheceu que não tem chance alguma de ganhar as primárias contra Biden e encerrou sua campanha. Biden é o candidato Democrata à Presidência.

O Partido Republicano continuou sua trajetória de desencorajar eleitores a votarem, uma estratégia que assegura a predominância do partido na política americana, apesar de a maioria ter votado Democrata em eleições recentes. No estado de Wisconsin, os Republicanos forçaram o voto presencial, descartando o adiamento das primárias até junho.

Trump
Trump não esconde sua decepção com a pandemia. Esperava fazer campanha para a reeleição em cima de seu desempenho econômico. Em fevereiro, a taxa de desemprego nos EUA era de 3.5%, a mais baixa das últimas décadas. Hoje, há 17 milhões de desempregados e, nas próximas duas semanas, devem ser 20 milhões, uma taxa de desemprego de 15% da força de trabalho.

O presidente dos EUA está mostrando grande dificuldade de se adaptar ao novo cenário. Sua administração está povoada de pessoas leais, independente de sua competência. Mesmo com os pacotes de apoio a pessoas e empresas já aprovados pelo Congresso, a implementação administrativa das políticas tem sido lenta e ineficaz.

Se os eleitores decidirem se preocupar com o desempenho do Presidente na área de saúde, a situação de Trump pode ser ainda pior, dependendo do status da pandemia próximo à data das eleições, 3 de novembro. De momento, ainda falta tudo nos hospitais americanos. Médicos compram suas próprias máscaras em muitos Estados. O governo federal não coordena as iniciativas dos estaduais, é cada um por si. Alguns Estados estão-se coordenando entre si. Os EUA ainda são o único país capaz de liderar uma ampla coordenação internacional de resposta à crise da pandemia, mas a diplomacia americana parece estar falida.

Biden
As eleições de novembro serão Trump X Biden. Joe, como o candidato é popularmente conhecido, fez uma campanha bastante errática nas primárias do Partido Democrata. Perdeu as três primeiras primárias. O crescimento de Bernie Sanders assustou os centristas do Partido, que se uniram em torno de Biden para impedir uma vitória do candidato visto como socialista. O golpe de misericórdia em Sanders, no entanto, foi dado pelos eleitores negros nas primárias do sul dos EUA. Foram vitórias avassaladoras em Estados onde os membros do Partido são predominantemente negros que criaram momento para a candidatura de Biden, até o ponto em que sua vitória se tornou certa. O conceito de “classe trabalhadora” de Sanders não atraiu o eleitorado negro.

Biden é admirado por seu grande trabalho como Vice-Presidente de Barrack Obama, o primeiro presidente negro da história do país. Mais: os eleitores negros são o grupo mais fiel ao Partido Democrata. As condições sociais desta população melhoram em administrações democratas. Sem uma maciça presença de eleitores negros nas urnas – o voto nos EUA é facultativo – é quase impossível uma vitória Democrata para a presidência.

Quatro anos atrás, Bernie Sanders continuou em campanha contra Hillary Clinton nas primárias democratas de 2016, mesmo depois de não ter mais chances de vitória. Isto contribuiu para o desgaste da candidatura de Clinton, e foi aproveitado pela campanha de Trump. Muitos eleitores que votaram em Sanders nas primárias do Partido Democrata vieram a votar em Trump, principalmente em Estados do meio-oeste. A saída de Sanders das primárias, diante da crise da pandemia e do risco de um prolongamento até o verão americano deste processo, tenta evitar uma repetição deste fenômeno.

No entanto, é impossível prever o resultado das eleições de novembro. Biden cresceu na adversidade durante as primárias. Venceu apesar de ter menos dinheiro de campanha do que Sanders. Mas mostrou deficiências como debatedor e ator de campanhas. Biden enfrentará em novembro a campanha extremamente bem financiada de Donald Trump, que joga pesado e não hesita em usar táticas de baixo nível.

Estresse
Nenhuma democracia ocidental em um país desenvolvido possui um partido político dedicado a desencorajar estrategicamente eleitores de irem às urnas. O Partido Republicano de hoje é um partido de base rural num país totalmente urbanizado. Reúne quatro forças essenciais para seu sucesso: uma aliança de grupos “pro-business”, religiosos evangélicos, defensores do acesso fácil a armas (organizados nacionalmente pela NRA – National Rifle Association), e o importante apoio do grupo de media Fox News, do empresário australiano-americano Robert Murdoch.

Em 2016, Trump perdeu no voto popular agregado nacionalmente, mas ganhou no Colégio Eleitoral, através do qual o presidente é escolhido por delegados eleitos Estado por Estado. Este Colégio é uma influência do federalismo do sistema político americano e neutraliza a influência dos Estados e das cidades mais populosas. Como o voto é facultativo, a lógica eleitoral tem dois elementos – motivar seus eleitores a ir votar e, ao mesmo tempo, desencorajar os eleitores de seu opositor a se apresentar nos locais de votação. A eleição ocorre num dia comum de trabalho. Nas últimas eleições presidenciais, o índice de votação variou entre 49%, em 1996, ao máximo de 58.2%, em 2008, quando Obama venceu pela primeira vez. Em 2016, somente 55.7% dos eleitores inscritos compareceram às urnas.

Um episódio preocupante ocorreu na semana passada em Wisconsin. O governador do Partido Democrata, Tony Evers, determinou o adiamento das primárias no Estado para junho deste ano, a fim de evitar a aglomeração de pessoas, por conta da pandemia. O legislativo estadual, controlado por Republicanos, apesar de os Democratas obterem a maioria dos votos no Estado, recusou a mudança. O caso foi parar na Suprema Corte do EUA, que deu ganho de causa aos legisladores. O voto ocorreu sob grande risco para os eleitores.

Esta batalha pelas condições de votação durante a pandemia pode chegar até o dia 3 de novembro de 2020, data das eleições presidenciais. O Partido Democrata apoia o voto pelo correio e outras medidas para maximizar a participação popular, ao passo que o Partido Republicano resiste à adoção maciça destas medidas. Este quadro levou o Prêmio Nobel de Economia Paul Krugman, que se tornou comentarista político, a proclamar recentemente: “A democracia americana pode estar morrendo.” Não está, mas certamente está bastante estressada, ainda mais em tempos de corona vírus.

*Ricardo Tavares é consultor internacional de empresas de tecnologia. É mestre em ciência política pelo Iuperj e membro do Council on Foreign Relations (CFR).


O Globo: 'Tudo o que me importa é isso: Derrotar Donald Trump', diz Hillary Clinton

Quatro anos após perder a disputa pela Presidência dos EUA, a ex-primeira-dama deixa a ‘aposentadoria’ de lado para divulgar documentário e se mostra disposta a trabalhar para impedir a reeleição do republicano

Carlos Helí de Almeida, de O Globo

BERLIM - Por mais de três décadas, Hillary Clinton esteve no centro da política americana. Foi primeira-dama, senadora, secretária de Estado e a mulher que chegou mais perto de se tornar presidente dos Estados Unidos, quando concorreu como candidata do Partido Democrata à Presidência em 2016, disputa que perdeu para Donald Trump. “Há todo um jogo cultural, político e econômico para manter as mulheres longe do poder”, disse ela à epoca.

Aos 72 anos, ela reconhece que subestimou o machismo de parte do eleitorado. Ela tem dedicado seu tempo à família e à divulgação de “Hillary”, série documental dirigida por Nanette Burstein, que em breve chegará ao Brasil. Mas está atenta às primárias democratas de onde sairá o candidato que disputará a eleição com o republicano. Ela não nega as críticas feitas no passado ao senador Bernie Sanders, um dos favoritos na disputa, mas diz que apoiará seja quem for o candidato do partido. “Será difícil, não importa quem for o escolhido. Mas acredito que possamos vencer. Farei todo o possível para isso”, disse ao GLOBO durante o 70º Festival de Cinema de Berlim, onde a série fez sua estreia europeia.

O GLOBO - “Hillary” mostra os duros comentários que a senhora fez sobre Sanders, com que disputou a candidatura em 2016 [“Ninguém gosta dele, ninguém quer trabalhar com ele. Ele não fez nada, é um político de carreira”]. Arrepende-se disso?
HILLARY CLINTON -
Fiz esses comentários há cerca de um ano e meio. Não estava pensando em eleição. Apoiarei quem quer que seja o candidato democrata. Mas, obviamente, tenho as minhas opiniões e visões sobre aqueles que estão concorrendo e sobre quem é o mais forte para derrotar Trump. No final do processo, tudo o que me importa é isso: derrotar Trump. Quem for o mais forte será a minha esperança.

A série mostra a senhora, na campanha de 2016, se referindo a Trump como “Manchurian candidate” (referência ao livro homônimo de Richard Condon, que virou jargão político para fantoche). Ainda acredita nisso?
Não iria tão longe hoje. Mas poderia até dizer que ele admira [o presidente russo Vladimir] Putin e que está disposto a cumprir as ordens dele. O que vemos, infelizmente, é um homem enamorado por lideranças autoritárias. Ele adoraria poder mandar opositores para a cadeia, demitir à vontade e exigir que façam o que diz. Porém, mais importante é o que ele tem feito: prejudicou a relação com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e com a União Europeia, pense no Acordo de Paris sobre as mudanças climáticas, no tratado nuclear com o Irã, no papel dos EUA no mundo... É muito a cartilha de Putin. Não posso afirmar que sabemos tudo sobre a relação entre os dois. Não sabemos porque nada é reportado. Vivemos um momento infeliz e perigoso da História, em que líderes autoritários têm sido encorajados pelo presidente americano, ao invés de serem contidos.

Como vê o futuro do Partido Democrata?
Temos que esperar para ver como o processo vai se desenrolar e quem, no final das contas, será o nosso indicado. Acho imperativo que o candidato democrata ganhe a eleição desta vez. Não há nada mais importante do que isso.

Que conselho daria para o candidato que enfrentará Trump em novembro?
Tive mais votos do que Trump. Três milhões a mais do que ele. Houve aspectos sem precedentes na eleição de 2016, que agora vemos se repetir, como a interferência russa. Tenho dito a cada candidato que temos que derrotar Trump, mas também que superar as interferências estrangeiras, a propaganda nas mídias sociais, o roubo de informações para ser usado como munição de campanha e a violação do direito de voto. Esta última é a estratégia preferida do Partido Republicano: querem impossibilitar o voto daqueles que possam não votar neles. Será difícil, não importa qual seja o escolhido. Mas creio que possamos e devamos vencer. Farei tudo o que for possível para que isso aconteça.

O mundo seria um lugar melhor se governado por mulheres?
Nos dê uma chance! [Risos.] Ouça, não digo que nós, mulheres, somos seres superiores. Não mesmo. Mas posso dizer que as experiências das mulheres e algumas de nossas lutas deveriam ser muito mais representadas em todos os aspectos da sociedade. Gostaria de ver o que aconteceria com as mulheres na liderança.

A senhora se diz uma pessoa reservada, mas concordou com um documentário de quatro horas sobre sua trajetória...
Estou na vida pública há muito tempo. Tenho visto tantos equívocos e distorções sobre mim, histórias ridículas a meu respeito, que, em algum momento, quis acertar as coisas. Está tudo ali, quem sou, no que acredito, o que eu defendo. Talvez seja a oportunidade de contar minha história de uma vez por todas.

Agora que o capítulo político da sua vida está encerrado, tem mais tempo para a vida pessoal?
Pessoalmente, estou me sentindo ótima. Tenho tempo para o meu marido, para a minha filha e, principalmente, para os meus três netos. É um prazer. Mas, como americana e cidadã do mundo, estou perturbada. É uma existência esquizofrênica. Porque, em família, vivemos um momento maravilhoso, de longas caminhadas, idas ao cinema. Mas acordo todo dia e vejo o que está acontecendo a nossa volta, que estamos cometendo erros sérios, e que isso trará consequências para os meus netos.

Fala-se muito em manipulação de dados, em notícias falsas, em descrença no sistema democrático. A democracia caducou?
A democracia vive uma crise. As pessoas estão insatisfeitas, apáticas e não querem nem sequer votar. Mas não creio que sairemos dela com líderes que representam os extremos. É uma crise de descrença na democracia, uma rejeição de instituições e de lideranças. A política, como tudo no mundo hoje, é impulsionada pela tecnologia, mas o que os algoritmos priorizam? A nossa luta é para que as pessoas que querem voltar a tomar decisões consigam a atenção que precisam. Não sei a resposta. Mas, se não descobrirmos, os autoritários e os extremistas vão tomar as decisões.

O que o feminismo significa para a senhora?
Feminismo significa que as mulheres têm os mesmos direitos que os homens, que somos iguais na economia, na política e na sociedade. Não somos nem melhores nem piores e devemos nos esforçar por essa igualdade, na lei e na prática.

Consegue pesar o papel do preconceito de gênero na sua derrota em 2016?
O preconceito de gênero teve o seu papel, não há dúvidas. Pensei que pudesse ignorá-lo e superá-lo, mas não foi possível. Há uma parte do eleitorado — e isso se aplica aos EUA e a outros países — que não se sente confortável com uma mulher presidente ou primeira-ministra. No sistema presidencialista, essa parcela é maior porque o chefe de Estado e de governo é uma única pessoa. Acho que há muito viés inconsciente. Na campanha de 2016, as pessoas diziam coisas como “voto em mulher, mas não nela”, se referindo a mim. Temos que estar a par disso, mas não permitir que sejamos mutiladas por esse viés, e fazer o possível para superá-lo.


El País: Maduro acusa Bolsonaro e pede mediação de “países amigos” para conflito com os EUA

O líder chavista acusou o presidente brasileiro de querer provocar um “conflito armado” contra a Venezuela

Nicolás Maduro revelou ontem que pediu que a Espanha e “outros países amigos” criem um grupo de apoio para facilitar o diálogo diante das eleições parlamentares deste ano na Venezuela e que ajudem o regime em sua ofensiva contra as sanções dos EUA. “Oxalá o presidente argentino Alberto Fernández nos ajude com isso. Também fizemos saber à Espanha, ao Panamá, ao México e à União Europeia” que foi iniciada uma ofensiva internacional no Tribunal Penal Internacional, onde nesta semana o ministro das Relações Exteriores Jorge Arreaza interpôs uma ação contra o presidente Donald Trump pelas sanções contra a Venezuela, que qualificou como um “chamamento à guerra” por parte dos Estados Unidos. Maduro agora recorre a Haia, onde desde 2019 repousa uma ação interposta por seis países (Argentina, Chile, Peru, Colômbia, Canadá e Paraguai) contra ele, acusando-o de crimes contra a humanidade durante a violenta repressão às jornadas de protesto de 2014 e 2017, disse o líder chavista, que aproveitou para qualificar o conteúdo da conversa entre a número dois do regime, Delcy Rodríguez, e o ministro dos Transportes da Espanha, José Luis Ábalos, de “secreto”.

Em uma entrevista coletiva realizada no palácio de Miraflores, em Caracas, o líder chavista disse que entre esses “países amigos” estariam Argentina, México, Panamá, Rússia e também a União Europeia. O líder bolivariano ressaltou a importância de que esse diálogo, para o qual disse contar com a disposição do presidente argentino, aconteça antes das eleições legislativas para conseguir um Conselho Nacional Eleitoral (CNE) “de consenso”. A oposição rejeita a atual composição do órgão eleitoral dominado por chavistas e estão fora do diálogo novas eleições presidenciais que resolvam a crise institucional que o país enfrenta desde que Maduro tomou posse em seu segundo mandato, em 2019, depois de eleições consideradas fraudulentas. “Na Venezuela acontece uma das guerras mais importantes do século XXI e por isso divulgamos a verdade sobre o nosso país para exigir justiça ao mundo inteiro. Quando conseguimos um lote importante de medicamentos em algum país e estamos prontos para trazê-lo, chega uma ordem, retiram a carga e o paciente que está na Venezuela fica sem seu medicamento”, afirmou.

Esta seria a quarta rota de conversações e mediação que se abriria no último ano, depois do fracasso das reuniões do Grupo Internacional de Contato às quais se uniu o Grupo de Lima para promover uma transição política na Venezuela, da suspensão das negociações de Oslo e Barbados e da Mesa de Diálogo Nacional, à qual se juntou recentemente o ex-presidente do Governo (primeiro-ministro) espanhol José Luis Rodríguez Zapatero, que em 2016, 2017 e 2018 também liderou tentativas de diálogo.

Maduro considerou também que “esse processo de diálogo deveria conhecer todas as ações perante o Tribunal Penal Internacional (TPI) para exigir a cessação de todas as medidas coercitivas contra a Venezuela por parte do Governo dos Estados Unidos”. Maduro referiu-se à denúncia apresentada quinta-feira por seu ministro das Relações Exteriores, Jorge Arreaza, perante o TPI pelos supostos crimes contra a humanidade propiciados pelas sanções dos Estados Unidos contra a Venezuela. “Oxalá esse grupo de países amigos diga a ele e faça com que entenda e defenda perante o Governo dos Estados Unidos o direito da Venezuela ao seu desenvolvimento econômico sem medidas persecutórias, coercitivas e criminais”, sugeriu.

Durante a coletiva Maduro também abriu fogo contra o Brasil. “[O presidente] Jair Bolsonaro está por trás das ameaças terroristas contra a Venezuela e os está arrastando a um conflito armado com a Venezuela por amparar terroristas”, disse em referência aos militares venezuelanos que se asilaram no país vizinho depois de um ataque a um depósito de armas no sul da Venezuela. Lembrou que este fim de semana realiza um novo exercício militar com mais de dois milhões de soldados e milicianos para o qual a artilharia foi mobilizada. Mísseis russos BUK foram expostos na base militar de La Carlota, em Caracas.

O líder chavista disse também que na Espanha há uma campanha contra a Venezuela, mas que as pesquisas realizadas no país atestam que a maioria o considera presidente constitucional. Às perguntas de um correspondente e na presença de sua número dois, a vice-presidenta Delcy Rodríguez, Maduro se referiu pela primeira vez ao incidente no Aeroporto de Barajas, em 24 de janeiro, em torno do encontro entre Rodríguez e o ministro dos Transportes da Espanha, José Luis Ábalos, que provocou uma tempestade no panorama político espanhol. A vice-presidenta venezuelana está proibida de entrar no território Schengen devido às sanções impostas pela União Europeia.

Maduro brincou, entre risos da própria Rodríguez e de outros ministros, sobre o conteúdo da conversa e disse que inventaram uma novela. “Na Espanha fizeram uma novela, a Delcygate. Isso é secreto. Ela terá de contar”, disse. “Delcy passou pelo aeroporto da Espanha e seguiu seu rumo. Deixou lá nosso ministro do Turismo [Félix Plasencia], que cumprimentou o Rei, empresários e ministros espanhóis. Mas a direita espanhola queria prendê-la e humilhá-la. Delcy morou seis anos em Londres e cinco em Paris, é quase europeia, fala bem inglês e francês. Os amigos dela são europeus. Parem de perseguir a Venezuela.”

Ábalos teve que dar explicações sobre sua reunião no Aeroporto de Barajas nesta quarta-feira no Congresso, na sessão de controle do Executivo. Quando a reunião foi revelada, o ministro dos Transportes negou que tivesse acontecido. Depois mudou sua versão e reconheceu que houve “uma saudação que durou entre 20 e 25 minutos”. Um relatório policial ao qual o EL PAÍS teve acesso confirmou que Rodríguez não entrou em território europeu, mas detalhou que a reunião durou “aproximadamente uma hora”.

O líder chavista reiterou sua disposição de realizar eleições parlamentares, que por mandato constitucional devem acontecer até o fim deste ano. Disse estar disposto a dar algumas garantias, como a eleição de um novo Conselho Nacional Eleitoral, que deixaria a cargo da atual Assembleia Nacional, mas aquela dirigida pela junta paralela de Luis Parra, a que Maduro reconhece.

Por outro lado, voltou a lançar ameaças de prisão contra o presidente encarregado reconhecido por 60 países e chefe do Parlamento, que voltou a desafiar as proibições de saída do país impostas pela Justiça venezuelana para fazer uma turnê internacional. “No dia em que os tribunais expedirem o mandato de prender Juan Guaidó por todos os crimes que cometeu, ele será detido. Esse dia ainda não chegou, mas chegará.”

Por último, e em referência ao retorno do presidente encarregado Juan Guaidó à Venezuela depois de sua turnê internacional, Maduro disse que estão sendo avaliadas as medidas que serão tomadas contra membros do corpo diplomático credenciado no país, que voltaram a acompanhar o líder da oposição em seu retorno ao país “O embaixador da França [Romain Nadal] se imiscuiu mais uma vez em assuntos internos. Estamos avaliando a resposta e vamos avaliar os casos um por um e veremos se nossa resposta é que nossos embaixadores convoquem mobilizações em oposição aos Governos desses países, se transformarmos em um caos em relações diplomáticas e políticas no mundo ou que respeitem” advertiu.


Martin Wolf: Reeleição de Trump é perigo para o mundo

O povo americano escolher um demagogo clássico por duas vezes não poderá ser classificado como um acidente

De uma só cartada, o presidente dos EUA, Donald Trump, ficou livre. Com a esperada demonstração de partidarismo puro e simples, os republicanos do Senado (com exceção de Mitt Romney) abandonaram seus papéis de juízes constitucionais dos supostos abusos de poder cometidos por ele. Eles transferiram a decisão para os eleitores, nas eleições presidenciais de novembro. Trump terá muitas vantagens: apoiadores fervorosos, um partido unido, o colégio eleitoral e uma economia saudável. Sua reeleição parece provável.

A razão mais óbvia da possível vitória de Trump é a economia. Até mesmo por seus parâmetros, o discurso sobre o Estado da União na semana passada foi um caso de exagero carregado de hipérboles. Conforme observou Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de Economia, o desempenho dos EUA parece fraco pelos padrões de outros países em aspectos importantes, especialmente a expectativa de vida, as taxas de emprego e a desigualdade.

Além disso, o PIB, o nível de emprego, o desemprego e os salários reais seguem em grande parte tendências definidas no pós-crise. Dada a escala do estímulo fiscal, que resultou em grandes e persistentes déficits fiscais estruturais, isso não é uma grande realização. Mesmo assim, muitos americanos sentirão que a economia está melhorando. E isso certamente terá um grande papel nas próximas eleições.

Se Trump vencer, a nova vitória poderá ser ainda mais significativa que a primeira. Pois o povo americano escolher um demagogo clássico por duas vezes não poderá ser classificado como um acidente. Será um momento decisivo.

A implicação mais óbvia da vitória de Trump seria para a democracia liberal nos EUA. O presidente acredita estar fora do alcance da lei e do Congresso em relação ao que faz no cargo. Ele acredita dever explicações apenas para o eleitorado. Ele também acredita que todos os membros nomeados de seu governo, servidores públicos e autoridades eleitas de seu partido, devem lealdade a ele, e não a qualquer causa maior.

Os pais fundadores temiam esse tipo de homem. No primeiro dos Artigos Federalistas, Alexander Hamilton escreveu que “dos homens que subjugaram as liberdades das repúblicas, o maior número começou suas carreiras cortejando o povo de maneira servil; começando como demagogos e terminando como tiranos”. Nisso, ele foi acompanhado por Platão, que escreveu como um homem que assume o poder como protetor do povo pode ser tornar “um lobo - ou seja, um tirano”. Em seu Discurso de Despedida de 1796, George Washington afirmou que “as desordens e o sofrimento resultantes [do sectarismo] gradualmente levam a mente das pessoas a buscar segurança e confiar no poder absoluto de um indivíduo”. E o sectarismo certamente é abundante na América de hoje.

Não temos como saber até onde Trump estará disposto a ir ou até onde as instituições da república permitirão que ele vá. Mesmo assim, será que há algo que Trump poderia fazer, além de perder a lealdade de sua base, que pudesse convencer Mitch McConnell, líder da maioria republicana no Senado, a se entusiasmar com ele? Não são as instituições que importam mais, e sim as pessoas que as servem.

Mesmo que a grande republica sobreviva em grande parte ilesa ao teste (o que é uma posição otimista), a reeleição desse homem - um demagogo, um nacionalista, um mentiroso contumaz e um admirador de tiranos - terá uma implicação mundial.

Déspotas veem Trump como alma gêmea. Os liberais democratas sentiriam-se ainda mais abandonados. A noção do Ocidente como uma aliança com algumas fundações morais iria se evaporar. Ele passaria a ser, na melhor das hipóteses, um bloco de países ricos tentando manter suas posições globais. Como nacionalista, ele continuaria detestando e desprezando a União Europeia (UE) como um ideal e detentora de um poder econômico de oposição aos EUA.

David Helvey, secretário da Defesa assistente e em exercício dos EUA, recentemente escreveu sobre a hostilidade da China e Rússia à “ordem baseada em regras”. Esse ideal é realmente importante. Infelizmente, seu inimigo mais poderoso é agora o seu próprio país, porque isso sempre dependeu da visão e energia americanas. Com seu mercantilismo e bilateralismo, Trump apontou um míssil intelectual e moral contra o sistema comercial global. Ele até mesmo vê seu próprio país como a maior vítima de sua própria ordem. O problema, então, não está no fato de Trump não acreditar em nada, e sim no fato de que aquilo em que ele acredita está sempre muito errado.

De uma maneira mais ampla, seu transacionalismo e disposição de usar todos os instrumentos imagináveis do poder dos EUA cria um mundo instável e imprevisível não só para os governos, mas também para os negócios. Essa incerteza também poderá piorar num segundo mandato. É uma questão em aberto a sobrevivência de algum tipo de ordem jurídica internacional.

Há grandes desafios práticos que precisam ser administrados. Um deles é a relação complexa e tensa dos EUA com a China. Mas mesmo neste ponto Trump está longe de ser o mais radical dos americanos. Ele tem uma camada de pragmatismo. Gosta de fazer acordos, não importando o quão mal ajambrados eles possam ser.

Talvez a questão mais importante (se não tivermos em conta evitar uma guerra nuclear) seja a gestão dos recursos comuns do planeta - acima de tudo, a atmosfera e os oceanos. Preocupações cruciais são o clima e a biodiversidade. Pouco tempo resta para agir contra as ameaças nos dois casos. Um governo Trump renovado, hostil a essas causas e ao próprio conceito da cooperação global, tornariam impossíveis as ações necessárias. Seu governo parece nem mesmo reconhecer o patrimônio público como uma categoria de desafio digna de preocupação.

Estamos num ponto crítico da história. O mundo precisa de uma liderança global excepcionalmente sábia e cooperativa. Não vamos conseguir isso. Pode ser tolice esperar isso. Mas a reeleição de Trump poderá muito bem representar uma falha decisiva. Preste atenção: o ano de 2020 será importante. (Tradução de Mário Zamarian)

*Martin Wolf é editor e principal analista econômico do FT


William Waack: Zeitgeist com Twitter

Forças profundas favorecem a reeleição de Trump, além da incompetência dos adversários

É evidente a consternação com que parte muito relevante da imprensa americana constata a sucessão de fatos que sugerem um grande impulso para a reeleição de Donald Trump em novembro. Livre do impeachment, comemorando o mais longo período recente de expansão da economia americana e até aqui sem adversários do Partido Democrata capazes de enfrentá-lo, “não tem mais coleira alguma que segure Trump”, resignou-se o The New York Times.

De fato, as mudanças que Trump já provocou no sistema político americano e, mais ainda, na visão que os americanos têm de si mesmos e seu papel no mundo parecem irreversíveis – se são benéficas para o futuro do país e a ordem internacional é outra questão. Pois essas transformações têm causas muito mais amplas do que o comportamento que se possa considerar desprezível e ilegal de um indivíduo (Trump). Elas têm de ser vistas como parte de uma revolta mundial contra a democracia liberal. O nosso “Zeitgeist” (espírito de uma época) com Twitter.

Por ser Trump um anti-intelectual a ponto do analfabetismo cultural e errático em seus pronunciamentos, a mesma parte relevante da imprensa americana e internacional assume que ele não tem projeto coerente que precise de uma teoria para ser explicado. Mas é óbvio que visões de mundo podem ser “intuitivas” em vez de “ideológicas” ou “filosóficas”, e que estratégias podem ser instintivas em vez de claramente delineadas e sistematizadas (Bolsonaro entraria nessa última categoria).

É provável que Trump nem entenda direito o tipo de forças que representa. Pois não são apenas radicais as mudanças que ele já provocou – como o fim da percepção do papel “excepcional” de seu país no mundo. Elas refletem um padrão que se constata no sucesso em outras regiões do mundo de regimes autoritários pós-Guerra Fria, o de um profundo ressentimento “provinciano” por parte de camadas significativas de eleitores diante do “mundo cosmopolita” (os tais “globalistas”) defendido por elites econômicas, intelectuais e políticas que perderam a conexão com essas forças subterrâneas, mas decisivas.

Um dos “feitos” de Trump, de forte apelo psicológico, é ter convencido nacionalistas americanos (sempre abraçados na “star and stripes”) a abandonar a ideia de que os EUA sejam moralmente superiores. E que seu país possa ser “great again” sem precisar ser um líder mundial, sem ter o que ensinar a outras nações. É uma mudança monumental em relação ao que foi até aqui o papel representado pelos EUA na ordem mundial que instituiu e liderou após a Segunda Guerra.

Para esse interessante paradoxo que Trump transformou em sucesso eleitoral – a visão de que os EUA são “vítimas” da americanização do mundo – a resposta dos democratas é um presente para a campanha do atual presidente. Um autodenominado “socialista” é até aqui um de seus principais candidatos. O chamado “centro” ideológico do Partido Democrata não foi capaz de escalar até agora alguém de forte apelo eleitoral para reconquistar parcelas que, em 2016, abandonaram o partido em pequenos Estados decisivos para a composição do colégio eleitoral (não custa repetir que é indireta a eleição do presidente americano).

Os democratas demonstraram em Iowa, de forte valor simbólico no começo oficial da campanha, assustadora incompetência no uso de tecnologias digitais. Utilizadas com grande eficácia por republicanos, que há mais de década encontraram nas redes sociais uma alternativa ao que identificavam como “bias liberal” da imprensa tradicional. Já usam “geofencing” para abordar grupos específicos de eleitores (católicos, por exemplo) enquanto democratas não conseguem tabular resultados de primárias.

A reeleição de Trump não é inevitável. Isso não existe em política e história. Mas se tornou mais provável.