Estados Unidos

Bernardo Mello Franco: Diplomacia da submissão

Na semana passada, Jair Bolsonaro aproveitou o feriado da Independência para fazer mais um pronunciamento na TV. “Naquele histórico 7 de setembro de 1822, às margens do Ipiranga, o Brasil dizia ao mundo que nunca mais aceitaria ser submisso a qualquer outra nação”, disse. Dom Pedro guardaria a espada se soubesse o que fariam com seu brado retumbante.

Desde a vitória do capitão, o Brasil diz ao mundo que aceita ser submisso à Casa Branca. Outros governos já haviam se ajoelhado diante dos EUA, mas nem a ditadura militar foi tão servil nas relações com o país.

Para agradar Donald Trump, Bolsonaro tem jogado no lixo décadas de política externa independente. Em vez de defender o interesse nacional, a diplomacia brasileira passou a defender o interesse de Washington. A vassalagem acaba de se repetir na disputa pelo comando do Banco Interamericano de Desenvolvimento.

Fundado em 1959, o BID sempre foi presidido por um latinoamericano. Um acordo entre os países reservava a vice-presidência aos EUA. Desta vez, Trump resolveu ignorar a regra e indicou um ex-assessor para chefiar o banco. O Brasil já havia lançado candidato, mas voltou atrás e traiu os vizinhos para apoiar a manobra.

Em plena Semana da Pátria, o Itamaraty festejou a eleição do americano Mauricio Claver-Carone. Mais um gesto de submissão a Trump, que já debochou dos esforços de Bolsonaro para imitá-lo.

Além de humilhar a diplomacia brasileira, a subserviência demonstra falta de visão estratégica. O republicano aparece em desvantagem nas pesquisas para a eleição de novembro. Se o democrata Joe Biden chegar lá, seu partido deve incentivá-lo a retaliar o capitão.

No sábado, o Ministério das Relações Exteriores afirmou que a vitória de Clever-Carone honrou “valores comuns e fundamentais às Américas”. A nota ajudará a contar a história do desmanche do Itamaraty na gestão do bolsonarista Ernesto Araújo.

Outras páginas terão que ser escritas mais tarde. O governo alterou a classificação de papéis para esconder instruções que aproximaram o Brasil de teocracias islâmicas na ONU. Os telegramas ficarão em sigilo até 2025.


Míriam Leitão: Política externa contra o Brasil

A subserviência aos Estados Unidos, marca maior da política externa do governo Bolsonaro, produz prejuízos concretos. Os americanos reduziram as cotas na exportação brasileira de aço. O Brasil não apenas aceitou, mas premiou o país, mantendo as cotas de importação de etanol americano sem tarifa. Cedeu também quando retirou o nome brasileiro e aderiu ao candidato americano, que foi eleito neste fim de semana para presidir o Banco Interamericano de Desenvolvimento. Um americano no BID é fato inédito na história da instituição. No caso do etanol, o governo quis beneficiar a campanha de Donald Trump à reeleição, só que em detrimento dos interesses dos produtores do Brasil.

Quando se fala que uma política externa independente é a que pensa nos interesses do Brasil em primeiro lugar, isso não é apenas retórica. Há efeitos concretos. A subserviência tem um preço. Quando um governo se deixa dominar por uma visão ideológica, o país como um todo perde. Nesses três casos o Brasil teve prejuízos, e os Estados Unidos, vantagens. O governo apresenta tudo como se fosse a expectativa de um ganho futuro que nunca vem, diz, por exemplo, que cedeu no álcool porque no futuro vai ganhar no açúcar.

O Brasil ficou contra o Brasil no BID. Foi exatamente isso que aconteceu. O governo já havia apresentado a proposta de um candidato brasileiro, mas a submissão foi tanta que assim que o governo americano apresentou o nome dele o Itamaraty e o Ministério da Economia aderiram imediatamente. Detalhe: desde a sua fundação, o banco é dirigido por um latino-americano. Faz parte das normas não escritas nas instituições multilaterais que o BID sempre é dirigido por um país da região.

Essa quebra de regras imposta por Trump foi tão acintosa que revoltou líderes europeus. O representante da União Europeia para a política externa Josep Borrell enviou a todos os países que têm capital na instituição uma proposta de adiamento da escolha para depois das eleições americanas. Vinte e dois ex-governantes da América Latina assinaram uma carta defendendo esse adiamento. Mas os Estados Unidos impuseram seu candidato e seu calendário. O governo brasileiro foi atrás, como um cachorrinho, com o rabinho entre as pernas.

Maurício Claver-Carone, o candidato de Trump, foi eleito no dia 12 de setembro, com os votos do Brasil e da Colômbia, mas sem os votos de Argentina, México e Chile, e sem o apoio dos países europeus, que votam porque têm capital no banco. Trump impôs à América Latina a quebra de uma tradição de seis décadas, e com a ajuda brasileira. Além de aceitar passivamente ser atropelado e aderir ao atropelador, o governo brasileiro ficou mal com países da região.

No caso do etanol, o governo decidiu manter por mais três meses a cota de importação de 187,5 milhões de litros sem tarifa. O tempo foi escolhido para favorecer Trump junto a produtores de milho, a matéria-prima do etanol deles. Ouvido pelo “Estadão”, o presidente da Unica, Evandro Gussi, disse que os estoques aqui neste momento estão 43% acima do mesmo nível do ano passado. Se fosse dentro de uma política de abertura comercial seria louvável. Mas é por um período específico, para ajudar o presidente americano em sua campanha, justamente ele que tem tomado decisões protecionistas em relação ao Brasil. O Itamaraty costuma ceder e soltar uma nota se elogiando. Trata concessão como se fosse conquista.

Nas questões conceituais, a política externa erra na área ambiental, política e de direitos humanos. O Brasil se aliou a países fundamentalistas islâmicos contra os direitos da mulher. Em artigo recente na “Folha”, Jacqueline Pitanguy alertou que no Conselho de Direitos Humanos da ONU o Brasil ficou junto de Arábia Saudita, Qatar, Afeganistão, Bahrein, Egito numa resolução que condenava a discriminação da mulher e estabelecia o “acesso às informações e métodos contraceptivos”. Ela lembra que nesses países árabes a mulher é cidadã de segunda classe.

A Constituição brasileira condena qualquer discriminação de gênero, portanto, a política externa brasileira é inconstitucional na área de direitos da mulher. Na economia, trai os interesses econômicos do próprio país. A diplomacia do governo Bolsonaro se divorciou do Brasil.


Demétrio Magnoli: Bolsonaro e Trump representam a política dos idiotas

Profecia de H.L. Mencken escrita em 1920 realizou-se com a eleição dos dois presidentes

"À medida em que a democracia é aperfeiçoada, o cargo de presidente representa, cada vez mais adequadamente, a alma profunda do povo. Em algum grande e glorioso dia, a gente simples dessa terra realizará, finalmente, a plenitude de sua vontade e a Casa Branca será adornada por um completo idiota." A profecia, de H.L. Mencken, foi escrita em 1920, durante uma cinzenta campanha eleitoral, e realizou-se em 2016, com Trump (e, no Brasil, dois anos depois, com Bolsonaro). A culpa é mesmo da "gente simples" dessas terras?

O termo "idiota", de raízes gregas, foi usado, num passado já distante, como diagnóstico psicológico do indivíduo com moderada incapacidade intelectual. Os psicólogos o abandonaram e ele passou a descrever uma pessoa estúpida ou, ainda, alguém presunçoso. Os dois qualificativos aplicam-se aos ocupantes da Casa Branca e do Planalto.

Mencken, porém, não escrevia sobre algum presidente singular, mas sobre a democracia e a "alma profunda do povo". Será que tinha razão?

Na sua frustrada campanha presidencial, saiu da boca de Hillary Clinton o adjetivo "deploráveis" para fazer referência aos eleitores de Trump —que não eram a maioria numérica mas constituíram a maioria eleitoral. Nos fóruns petistas brasileiros, diante do triunfo de Bolsonaro, não faltaram acusações ao povo "ingrato" (além das rituais condenações à "mídia"). Hoje, frente a uma parcial recuperação da popularidade do presidente, não poucos analistas sugerem que o fenômeno derivaria da "compra de consciências" pelo auxílio emergencial. O povo tem, então, os idiotas que merece?

O populista venera o povo. Mencken, exato oposto, enxerga a sociedade pelas lentes de um plebeu aristocrático. O erro dele mereceria extenso exame filosófico mas, na prática, empresta um álibi às elites políticas bem pensantes: a culpa pela ascensão dos idiotas não seria delas, mas da "gente simples" incapaz de distinguir os bons dos maus.

Os bons precisam de um espelho. Nos EUA, os democratas batidos em 2016 ignoraram, anos a fio, a maioria do eleitorado branco do Meio-Oeste, que forma uma classe média açoitada pela transição tecnológica e pela crise estrutural da indústria tradicional. O partido contava com as graças da alta finança e falava para uma nação imaginária, definida como coleção de minorias. Trump venceu esgrimindo um discurso nativista, conspiratório e preconceituoso que apelava aos ressentimentos do "americano esquecido". Eleitores democratas desencantados refugiaram-se atrás do candidato da direita nacionalista, fazendo as diferenças mínimas que decidiram a eleição. Quem, na esfera política, agiu como idiota?

As fontes circunstanciais de Bolsonaro encontram-se no populismo fiscal dilmista, na exposição da macrocorrupção, na estratégia eleitoral de Lula e até na facada de um ninguém. Mas suas fontes profundas têm algo em comum com as de Trump.

No Brasil governado pelos bem pensantes, o Estado foi capturado por poderosos grupos empresariais e corporações do alto funcionalismo. Ao longo da bonança internacional que acompanhou os governos de esquerda, as castas de privilegiados receberam créditos, financiamentos, isenções, gordos salários e benefícios, às custas da saúde, da educação, do transporte de massa, dos equipamentos culturais. Como moeda de troca eleitoral, os pobres ganharam o Bolsa Família. A ascensão do idiota estava escrita nas estrelas.

A política da idiotia tem duas faces. O Bolsonaro que circula sem máscara entre ambulantes, enquanto emite cheques emergenciais, só ganha pontos porque, do lado oposto, os bem pensantes fingem residir na Nova Zelândia e clamam por quarentenas eternas. A "gente simples" dessas terras já elegeu Collor, FHC e Lula, Maluf, Erundina e Marta, Haddad, Serra e Doria. O idiota não é produto de sua "alma profunda", mas da idiotia dos bacanas.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Vladimir Safatle: Identitarismo branco

Demorou muito tempo até que eu percebesse o quanto a pretensa especificidade da filosofia ocidental era um dos mais brutais dispositivos coloniais já inventados

A noção de “identidade” conseguiu colocar-se no centro dos embates políticos de nossa época. Ela trouxe novos problemas e novas sensibilidades com as quais precisaremos lidar no interior das lutas sociais contemporâneas por reconhecimento. Para ela, convergem questões práticas e teóricas complexas que concernem a integralidades dos sujeitos, pois tocam a gramática social naquilo que ela tem de mais estruturador, a saber, em suas dinâmicas de relação e de unidade.

Muitos utilizam “identidade” para desqualificar lutas que questionam práticas seculares de exclusão naturalizadas sob as vestes de discursos universalistas. Assim, na perspectiva desses críticos, as lutas ligadas a movimentos feministas, negros, LGBT+ seriam em larga medida “identitárias” porque visariam, na verdade, criar uma nova geografia estanque de lugares de poder. Lugares esses indexados por identidades específicas.

Muitos dos sujeitos organicamente vinculados a tais lutas lembram, no entanto, que até para não cristão vale o dito do Evangelho: “Tira primeiro a trave do teu olho, e então poderás ver com clareza para tirar o cisco do olho de teu irmão”. Ou seja, antes de acusar qualquer um de regressão identitária seria o caso de começar por se perguntar sobre o identitarismo naturalizado pela hegemonia de uma história violenta de conquistas e sujeição operada, majoritariamente, por brancos europeus.

Essa colocação é astuta e irrefutável. Ela não afirma que a naturalização de identidades e suas fronteiras é o horizonte efetivo das lutas que nos atravessam, mas que falar em qualquer experiência de universalidade concreta está interditada até que o foco mais forte de identidade seja deposto, e esse foco encontra-se normalmente do lado dos que atacam certas lutas sociais por serem “identitárias”.

Se me permitem, gostaria de usar a primeira pessoa do singular para descrever um aspecto desse problema, pois há vários outros que deverão ser acrescidos. Quando ainda era estudante de filosofia, lembro de um colega perguntar a um professor sobre a razão pela qual não estudaríamos, em nosso curso, filosofia chinesa, indiana, africana, entre outros. “Simplesmente porque não há”, foi a resposta. Em todo lugar que não tivesse sido marcado pelo “milagre grego” o que haveria era a prevalência do mito. Razão, logos, era uma invenção grega que nos havia salvo, “nós, os ocidentais”, da cegueira do pensamento mítico e de seus limites à autorreflexão.

Essa razão, esse logos seria não apenas uma capacidade argumentativa de dar e reconhecer razões, mas uma forma de vida capaz de racionalizar processos sociais em direção à realização de uma sociedade livre composta por sujeitos autônomos (“autonomia”: mais uma invenção pretensamente grega). Assim, não apenas a razão seria o presente do ocidente ao mundo, mas também a liberdade.

Demorou muito tempo até que eu fosse capaz de perceber o quanto essa pretensa especificidade da filosofia no ocidente era um dos mais brutais dispositivos coloniais já inventados, era o núcleo de um dos mais resilientes processos identitários que conhecemos. Pois, se a Europa com sua matriz grega era um mar de filosofia cercada de mito por todos os lados, então qual destino teríamos todos a não ser querermos nos tornar “bons europeus” e a abraçar os processos de “modernização” que começaram em seu solo, a nos abrirmos à “maturidade” de sua forma de vida? Outras formas de pensamento poderiam nos oferecer belos mitos, ensinamentos morais edificantes, mas muito pouco a respeito de processos concretos de emancipação e interação racional com o mundo.

Mas, se assim fosse, havia uma conta que teimava em não fechar. Quando chegaram à América, vários jesuítas ficaram estarrecidos com o que encontraram entre vários povos ameríndios. Não foi canibalismo ou a pretensa selvageria que os estarreceram. Deixemos falar um desses jesuítas, que escreveu em 1642 sobre um povo que habitava o atual Quebec: “Os Neskapi imaginam que eles devem, por direito de nascimento, gozar da liberdade dos burros selvagens, sem respeitar a quem quer que seja, salvo quando sintam vontade. Eles me criticaram cem vezes por termos medo de nossos capitães, enquanto eles riem e zombam dos seus. Toda a autoridade de seus chefes está no domínio da língua, pois eles são potentes na medida em que são eloquentes, e mesmo se eles morrem de falar, eles só serão obedecidos se agradarem aos selvagens”. Povos sem medo, cujas relações a autoridades se fundam na eloquência, ou seja, na capacidade contínua de argumentação racional e persuasão. Não era estranho encontrar gente como o padre Lallemant em 1644, dizendo a respeito dos Wendats do Quebec: “Não creio que existam pessoas sobre a terra mais livres que eles”. Sua capacidade de argumentação, diz o padre, era maior do que a de um francês médio, já que eles viviam em sociedades nas quais o poder precisa a todo momento dar e reconhecer razões para agir. Era isso que efetivamente estarreciam os jesuítas, a saber, a descoberta de que eles eram mais livres do que “nós”.

Ou seja, quando alguém como Thomas Hobbes dizia, na mesma época, que no estado de natureza encontrávamos “o homem como lobo do homem”, para completar lembrando: “os povos selvagens de muitos lugares da América, com exceção do governo de pequenas famílias, cuja concórdia depende da concupiscência natural, não possuem nenhuma espécie de governo, e vivem nos nossos dias daquela maneira brutal que antes referi”, isso só se sustentava como, digamos, uma “fake news”. Bastava ler o padre Lallemant. E quando o “tolerante” Locke dizia que, mesmo sendo livres, faltava a esses povos segurança porque lhes faltavam Estado e outras instituições políticas nossas, alguém deveria ter lembrando a Locke que termos como “estado”, “nação”, “povo” só tem algum sentido quando nos perguntamos contra quem eles são mobilizados.

Em suma, todos esses dispositivos de pensamento eram peças de um profundo identitarismo branco que visava não apenas jogar na invisibilidade formas outras de vida, mas principalmente impedir que essa experiência de descentramento produzida pelo contato com a alteridade implicasse um processo efetivo de transformação. O pretenso universalismo dessas formas de pensar era, na verdade, um sistema defensivo contra a força de descentramento própria a um mundo em expansão potenciał.

Lembrar desses momentos da filosofia ocidental é apenas uma forma de insistir como a universalidade efetiva nunca existiu e como tudo feito em seu nome foi marcado pelo saque e pelo roubo. Foi apenas quando ela se voltou contra si mesma e contra os horizontes sociais que a produziram que a experiência ocidental do pensamento esteve a altura de seu objeto. Mas, fora desses momentos, processos de segregação e silenciamento foram a verdadeira norma.

Não haveria outra forma de terminar esse artigo que não se lembrando de um dos maiores acontecimentos históricos que conhecemos, a saber, a revolução haitiana que se inicia em 1791. Ela marca a luta de libertação daqueles que até então tinham sido colocados na condição de “coisas”, de “escravos” pelo poder colonial. Em 1804, quando a libertação estava consolidada, os haitianos promulgam uma impressionante constituição. Vale a pena lembrar aqui dos artigos 12, 13 e 14. O primeiro afirma: “Nenhum branco, independente de sua nação, colocará o pé neste território a título de senhor ou proprietário, e não poderá no futuro adquirir propriedade alguma”. Mas o artigo 13 produz uma especificação: “O artigo precedente não tem efeito algum para as mulheres brancas naturalizadas haitianas pelo Governo, nem para as crianças nascidas ou a nascer delas. Estão ainda compreendidos neste presente artigo, os alemães e poloneses naturalizados pelo Governo”.

De fato, ao tentar reescravizar os haitianos, Napoleão enviou tropas nas quais havia uma legião de 5.200 poloneses. Ao chegar no campo de batalha, eles descobriram que não se tratava de uma revolta de prisioneiros, como os franceses haviam lhes contado, mas uma insurreição pela liberdade. Muitos soldados então desertaram e começaram a lutar ao lado dos haitianos. Eles foram para o Haiti acreditando que estavam a defender os “ideais iluministas”, mas logo compreenderam que tais ideias estavam, de fato, do outro lado do campo de batalha.

Daí o sentido do artigo 14 da Constituição haitiana: “Toda acepção de cor dentre as crianças de uma mesma família, cujo chefe de Estado é o pai, deve necessariamente cessar. Os haitianos serão conhecidos apenas através da denominação genérica de Pretos”. Ou seja, a extrema inteligência política dos haitianos lhes permitiu fazer de um termo até então usado como marca de exclusão o nome de uma verdadeira universalidade por vir. O nome de algo que indica o vetor efetivo de uma sociedade em revolução. Para os haitianos, pretos serão também aqueles que lutaram a seu lado por uma sociedade radicalmente livre e igualitária, que não querem mais defender essa sociedade marcada pela espoliação, silenciamento e segregação, mesmo que eles sejam brancos como um polonês.Adere a


Situação da Amazônia pode contaminar relação entre Brasil e EUA, diz Rubens Barbosa

Em artigo publicado na revista Política Democrática Online de agosto, embaixador analisa reflexos de possível eleição de Joe Biden

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Diante de uma provável vitória de Joe Biden nas eleições dos Estados Unidos, o presidente Jair Bolsonaro está seguindo o conselho de John Bolton, ex-secretário de Segurança Nacional de Trump, que recomendou ao Brasil fazer pontes com o candidato democrata. “O desafio geopolítico talvez seja o dilema mais sério para o governo brasileiro, caso Trump seja derrotado”, analisa o presidente do Irice (Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior), o embaixador Rubens Barbosa, em artigo que produziu para a revista Política Democrática Online de agosto.

Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de agosto!

A revista é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília. Todas as edições podem ser acessadas, gratuitamente, no site da instituição. De acordo com Barbosa, “o tema da Amazônia, em vista da prioridade ambiental democrata, se sair do âmbito da burocracia e ganhar relevância na opinião pública, poderá contaminar a relação bilateral e afetar o financiamento e infraestrutura por parte de instituições públicas e privadas internacionais”.

No artigo publicado na revista Política Democrática Online, o embaixador diz que o Brasil vai ter de decidir se fará uma opção, evitada pela maioria dos países europeus e asiáticos, por um dos lados ou se preferirá permanecer equidistante nessa disputa.

Barbosa também questiona: “Eventual oposição à tecnologia chinesa no 5G e apoio à proposta dos EUA na OMC (Organização Mundial do Comércio) sobre a participação apenas de países de economia de mercado – o que excluiria a China – indicariam que o Brasil teria escolhido seu lado. Os EUA convencerão o Brasil a ficar contra a China?”.

De acordo com o presidente do Irice, levando em conta que a disputa entre as duas potências está apenas começando e durará por muitas décadas, manter-se equidistante parece ser a melhor atitude na defesa do interesse nacional.

O alinhamento com os EUA, segundo Barbosa, nem sempre explicitado nas relações bilaterais, torna-se automático quando se trata de votações de resoluções sobre costumes, mulheres, direitos humanos, saúde e sobre o Oriente Médio nos organismos multilaterais, como a ONU (Organização das Nações Unidas), OMS (Organização Mundial da Saúde) e OMC.

“Em muitos casos, o Brasil fica isolado com EUA e Israel e, na questão de costumes, apenas com países conservadores (Arábia Saudita, Líbia, Congo, Afeganistão)”, escreve o autor. “O tema da Amazônia, em vista da prioridade ambiental democrata, se sair do âmbito da burocracia e ganhar relevância na opinião pública, poderá contaminar a relação bilateral e afetar o financiamento e infraestrutura por parte de instituições públicas e privadas internacionais.

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Míriam Leitão: Risco democrático é o ponto central

“Esta eleição é sobre preservar a democracia”, disse o senador americano Bernie Sanders na convenção do Partido Democrata. A mensagem foi passada até nos cenários escolhidos. O ex-presidente Barack Obama falou diretamente do icônico “National Constitution Certer”, museu da Constituição, na Filadélfia. O candidato Joe Biden confirmou no seu discurso que essa é a luta principal. No Brasil, o Supremo deu o mesmo recado. Proibiu o Ministério da Justiça de fazer dossiê contra funcionários que não apoiam o governo. “É incompatível com a democracia”, segundo o ministro Luiz Roberto Barroso. A Corte condenou a espionagem de adversários feita pelo Ministério da Justiça, confirmando, por nove a um, o voto claro da ministra Cármen Lúcia.

A democracia, que parecia garantida, passou a ser ameaçada por governantes sem valores democráticos e com desprezo pelas instituições. O importante no dossiê contra policiais antifascistas e pessoas notáveis, como os professores Paulo Sérgio Pinheiro e Luiz Eduardo Soares, é que ele não pode ser feito. É inaceitável. Simples assim. Alguns ministros ressaltaram que o relatório tinha péssima qualidade como documento de inteligência. Isso é assunto lateral. O relevante é a atitude do Ministério da Justiça, de usar a máquina para investigar servidores que não concordam com o governo.

O ministro André Mendonça é o maior derrotado, mesmo tendo sido poupado, e até defendido pelo presidente Dias Toffoli. O país viu seu contorcionismo. A ministra relatora quis saber: existe ou não existe o dossiê? Ele tentou escorregar, mas a realidade se impôs. O pior momento do ministro da Justiça foi alegar questão de segurança nacional para negar ao STF o acesso ao documento. Felizmente, a ministra Cármen não se deixou enganar pela mentira embrulhada na bandeira. Exigiu conhecer o teor e fundamentou seu voto: “O Estado não pode ser infrator, menos ainda em afronta a direitos fundamentais que é sua função garantir e proteger.”

A existência dessa atitude infratora do governo, de montar um dossiê identificando servidores contrários ao fascismo, foi revelada pelo jornalista Rubens Valente no UOL. O país não caiu no erro de deixar passar para ver como é que fica. A Rede Sustentabilidade foi ao Supremo. O STF estabeleceu que o Ministério da Justiça não faça mais esse tipo de investigação, porque isso ameaça a democracia e é “desvio de finalidade”.

Na discussão, duas coisas ficaram claras: mesmo que seja nomeado ministro do Supremo, André Mendonça não merece a cadeira. Ele se comportou mal com suas versões conflitantes, mas o pior foi não entender a função constitucional do Supremo. Outro ponto a ficar explícito foi a constrangedora submissão do procurador-geral da República ao executivo. Colocando-se, na prática, como assistente do advogado-geral da União, Augusto Aras traiu o papel que a Constituição entregou ao chefe do Ministério Público.

Nos Estados Unidos, a convenção democrata, toda virtual, trouxe um recado real. Obama disse que Donald Trump representa a maior ameaça às instituições americanas. “É isso que está em jogo neste momento, a nossa democracia.” E por fim avisou sobre a dureza da luta dos próximos 70 dias: “Essa administração já mostrou que destroçará a nossa democracia, se é isso que precisa para ganhar.”

O candidato democrata Joe Biden confirmou a mensagem de toda a convenção. Falou dos tempos sombrios que Trump representa. “O caráter nacional está em disputa nas urnas. A decência, a ciência, a democracia.” Falou em “salvar nossa democracia”. Em tempos de descrença, alguém pode perguntar para que ela serve afinal? Para ter líderes que tragam uma palavra de conforto quando o país atravessa período de sofrimento. “O melhor caminho para superar a dor, a perda e a desolação é encontrar um propósito”, disse o candidato democrata, que em sua vida pessoal viveu o que diz. E o propósito final tem que ser sempre ampliar a inclusão de todos os grupos da sociedade. A convenção democrata trouxe de volta à cena a nova demografia da América, colorida, diversa, multicultural, ecumênica, que está explícita na exuberante diversidade de Kamala Harris, negra, filha de imigrantes — mãe indiana e pai jamaicano — e que estará na chapa que enfrentará Donald Trump.


Vera Magalhães: Democracia acima de tudo

Firmeza dos democratas nos Estados Unidos deveria inspirar os brasileiros

“Este presidente e aqueles no poder estão contando com o seu cinismo. (…) E é assim que nossa democracia murcha, até não ser mais democracia. Não deixe isso acontecer. Não permita que nos tirem nossa democracia.”

O discurso, dito olhos nos olhos por um Barack Obama bem mais grisalho e com semblante muito mais grave que aquele que incendiou os Estados Unidos em 2008, já nasceu histórico.

Foi a primeira vez que um ex-presidente do país se referiu ao seu sucessor, ao presidente em exercício, com palavras tão duras e diretas. Obama chamou Donald Trump textualmente de incompetente, que encara a presidência “como outro reality show”.

No próprio discurso, o democrata deixou explícito por que resolveu romper a liturgia e chamar as coisas pelos nomes que têm: “O que nós fizermos nos próximos dias vai ecoar pelas gerações que virão”.

A mesma falta de meias-palavras esteve presente nas falas de Michelle Obama, Bill e Hillary Clinton e dos candidatos a presidente, Joe Biden, e a vice, Kamala Harris. Sim, são todos do mesmo partido, mas estão longe de ocupar as mesmas casas no tabuleiro ideológico, de ter as mesmas origens, de concordar em muitas políticas públicas.

A democracia emerge da convenção democrata como um bem inegociável. Porque ela é fundamental, e não um mero detalhe.

Corta para o Brasil. Na mesma semana em que o Supremo Tribunal Federal teve de dar mais uma reprimenda no Executivo por vilipendiar a democracia, desta vez produzindo dossiê contra 579 adversários, os mesmos ministros trataram de dar aquela aliviada para o ministro responsável pela excrescência, André Mendonça. E a Polícia Federal comandada por ele acaba de convocar um jornalista a depor com base na Lei de Segurança Nacional, um resquício da ditadura, por uma coluna de opinião.

Aqui a democracia é um apêndice, um adereço contra o qual o presidente investe diuturnamente sob um dar de ombros preguiçoso dos políticos, dos juízes, dos procuradores e da sociedade entre anestesiada e cúmplice da barbárie.

Adversários de Bolsonaro estão mais preocupados em criar uma narrativa para si que em se unirem na defesa incondicional de princípios inegociáveis e dizer com todas as letras que Bolsonaro é, sim, uma ameaça ao estado democrático de direito. Como Trump também é.

Em seu novo livro, O Tempo dos Governantes Incidentais, o sociólogo e cientista político Sérgio Abranches se debruça sobre esse novo tipo de mandatário eleito em circunstâncias excepcionais (daí por que “incidentais”) e que, recorrendo à desinformação, a um passado falsamente idealizado e ao populismo barato, além da estratégia de aniquilação dos adversários, corroem as instituições por dentro.

Os democratas perceberam que não se combate um adversário descompromissado com a ética, a verdade e as responsabilidades do cargo com palavras vazias. E foram ao ponto ao apontar também que Trump não faz o seu trabalho, não lidera o país em seu momento mais grave no século.

Bolsonaro também passou meses sem fazer o seu trabalho: comandando claques golpistas, no lombo de cavalos, mostrando cloroquina para a ema e mais preocupado em lotear os órgãos de Estado que em dirigir o País na pandemia.

E ainda assim os presidentes da Câmara e do Senado não o chamam à responsabilidade, e os postulantes a seu lugar em 2022 seguem cometendo os mesmos erros e se preparando para repetir a polarização nefasta que o elegeu.

Há tempo de os políticos brasileiros acompanharem os artifícios de que Trump vai lançar mão, de teorias da conspiração à sabotagem dos Correios, para se preparar para enfrentar um presidente que não hesitará em lançar mão de todos os expedientes para se perpetuar no cargo, sua única preocupação genuína.


Dorrit Harazim: O fator Kamala

Biden precisa dela para seu projeto de arrancar o país da era Trump

Que ninguém se engane: a indicação de Kamala Harris como vice do candidato democrata Joe Biden, que em novembro próximo disputa a Presidência com Donald Trump, é coisa grande. Não por ter sido surpresa — Harris sempre esteve entre as primeiras da lista de 11 finalistas sabatinadas para o cargo. É coisa grande por abrir caminho, algum dia e com séculos de atraso, a um autorretrato mais verdadeiro da sociedade americana em acelerada mutação.

Para Donald Trump e sua América nostálgica dos anos 1950, a indicação da senadora multirracial é desconcertante. Por um lado, fica difícil acenar com o fantasma do crime e caos urbano dominarem o país em caso de vitória democrata. O currículo de Harris, quando procuradora-geral da Califórnia, foi notoriamente durão — demais, até, para muitos jovens negros da época. Trump também não irá muito longe com seu bordão apocalíptico de uma “América comunista”, dado que Harris nunca foi da ala mais radical/progressista do Partido Democrata. Por fim, acusar a adversária de chapa, abertamente, de ser mulher, negra e de ascendência asiática, pode ser arriscado demais. Trump até tentou, em entrevista à rádio Fox Sports. Sugeriu que “algumas pessoas” diriam que “homens” poderão se sentir “insultados” com a indicação de uma mulher — tudo em fraseado indireto e no condicional, não atribuível a ele.

Kamala, como a candidata a vice prefere ser identificada em campanha, encarna tudo o que desestabiliza a escassa autoconfiança do ocupante da Casa Branca. Ela sabe quem é e domina o poder que deriva desse autoconhecimento. É debatedora afiada, capaz de desconcertar pesos pesados como o ex-ministro da Justiça Jeff Sessions e o ministro do Supremo Brett Kavanaugh, em sabatinas no Congresso. Foi impiedosa com o próprio Biden no primeiríssimo debate entre a plêiade de candidatos à indicação democrata, o que lhe valeu críticas de deslealdade partidária.

Ainda assim, Biden não a teme, precisa dela para seu projeto de arrancar o país da era Trump e servir de transição para tempos mais civilizados. Será presidente de um só mandato, se eleito e empossado aos 78 anos. Precisa de alguém capaz de substituí-lo desde o dia de sua posse.

Kamala Harris, de 55, é uma assombração para Mike Pence, o atual vice-presidente que mantém fidelidade ladina a Trump, pois pretende sair candidato solo em 2024. Seu debate televisivo com a adversária democrata tem tudo para ser tão faiscante quanto os dois confrontos agendados entre Trump e Biden. Sobretudo quando se sabe que 1 em cada 3 vice-presidentes da história dos Estados Unidos tornou-se chefe da nação, comparado a apenas 1 em cada 145 governadores ou 1 em cada 124 senadores.

Onipresente em defesa do chefe, Pence tem sido o contraponto perfeito para a destemperança errática do presidente. Monocromático no visual e monocórdio na fala, o máximo que Pence se permite é um ligeiro levantar de sobrancelha em sinal de lamento, nunca de rancor ou raiva. Divergiu publicamente de Trump uma só vez, às vésperas da eleição de 2016, quando veio à tona a famosa gravação chula, sexista e cafajeste do candidato. Na ocasião prevaleceu sua fidelidade à fé evangélica que norteia seu cotidiano — em 2002 ele afirmara nunca sentar-se à mesa para jantar com uma mulher que não fosse sua esposa, nem participar de eventos sem Kate em que bebidas alcoólicas seriam servidas. É esse personagem que eleitores americanos verão em confronto com uma adversária assertiva e incômoda em tudo.

Kamala tem dupla função. Uma, na atual campanha : bater em Trump sem receio de prejudicar o papel tiozão de Biden. Cabe-lhe apontar, através de dados e retórica, a incapacidade do presidente para liderar a nação, seja na guerra à pandemia seja na pacificação racial e social do país. Embora candidatos a vice tenham pouco impacto efetivo sobre a base eleitoral já constituída do presidenciável, talvez Kamala até consiga garantir o voto de mulheres negras em estados cruciais como Michigan e Pensilvânia, que tanta falta fez a Hillary Clinton em 2016.

Sua segunda função é mais duradoura e independe de vitória: apressar a urgente adequação do país a suas muitas gentes. Kamala Devi, filha de imigrantes , tem sangue negro e indiano, é casada há 6 anos com um advogado branco e judeu de Nova Jersey e tem duas enteadas adultas que a chamam de Mamala. Abriu caminho a fórceps, empurrada por pais que valorizavam educação, formação e atitude. Tem a cara, as cores e o vigor que a esclerosada máquina do Partido Democrata fingia ter, mas não abraçava de fato. Agora terá de ser na marra.

Kamala também tem a cara, cores e vigor que Donald Trump precisa deslegitimar a qualquer custo. O primeiro tiro indica o estado de alarme do 45º presidente dos EUA. Foi de um pódio da Casa Branca que Trump levantou a falsa hipótese de Kamala Harris não preencher os requisitos de cidadania americana para o posto. “Me falaram disso ainda hoje”, comentou meio en passant durante a coletiva de quinta feira. “Não tenho ideia se é isso mesmo …”, acrescentou com a habitual vileza de isentar-se de qualquer responsabilidade pelo que diz. Conseguiu, assim, colocar em roda uma falsa discussão sobre o que diz a 14ª Emenda de 1868, que concede cidadania americana a quem é nascido dentro de suas fronteiras territoriais — a jus solis que já ameaçara abolir por decreto. Pela Constituição dos EUA, são apenas dois os requisitos para se tornar presidente ou vice: ter nascido em solo americano e ter idade acima dos 35 anos. Kamala preenche ambos.

Outros tiros virão, mas as Kamalas já são muitas, e muitas mais virão. O que não muda é o medo que o presidente dos EUA tem de mulheres fortes e do poder que elas emanam.


Marco Aurélio Nogueira: Os democratas norte-americanos e seus demônios

Como toda boa organização política, o Partido Democrata norte-americano é um compósito de correntes. Tem sua direita, seu centro e sua esquerda, que se batem entre si especialmente durante as convenções partidárias, quando as eleições presidenciais chegam à fase das definições e as campanhas ganham cara, força e ritmo.

As alas à esquerda costumam ser mais combativas, como é de esperar. Vocalizam grupos enraizados no mundo cultural e acadêmico. São expressivas nos movimentos por direitos e reconhecimento. Fazem política de um modo particular, no qual a ideologia e o simbolismo têm papel de destaque. Renegam o pragmatismo e gostam de promover o desgaste das candidaturas partidárias, sobretudo as presidenciais. Alegam que a pressão interna é decisiva para que o Partido Democrata não esmoreça e combata o sistema.

Em 2016, fuzilaram Hillary Clinton e contribuíram, indiretamente, para afastar eleitores progressistas ou predispostos a apoiar a candidata do partido. Os demônios partidários terminaram por tirar parte dos votos de Hillary.

Estão ensaiando fazer o mesmo hoje, mediante a interposição de vetos (discretos ou ostensivos) a Joe Biden e à escolha da senadora Kamala Harris como sua companheira de chapa. As ressalvas se apoiam em críticas à “elite democrática”, que só olharia para os próprios interesses, não ouviria as vozes mais jovens nem daria a devida ênfase às questões identitárias e às reformas sociais. Em certos setores, dá-se maior importância ao passado de Kamala Harris – que foi procuradora do estado da Califórnia – que a seu significado político na disputa eleitoral de 2020. Chega-se mesmo a dizer que a senadora é uma “policial” travestida de democrata e indiferente aos eleitores negros mais jovens.

Ainda faltam três longos meses para as urnas e pode ser que o furor esquerdista arrefeça. Vozes importantes, como Bernie Sanders, não estão a insuflar os ventos da discórdia, o que é um sinal unitário significativo, que reconhece a dimensão estratégica da atual disputa eleitoral. Uma vitória sobre Donald Trump é vista como uma espécie de tábua da salvação para os democratas, um impulso para que o partido volte a ser pujante e recupere sua marca política e social.

A escolha de Kamala Harris como vice-presidente foi inteligente. Negra, feminista, militante de direitos civis e com larga experiência administrativa, a senadora é uma moderada na arena partidária. A ideia é que ela atraia votos de setores que se abstiveram em eleições anteriores, dialogue com o movimento negro e por direitos civis sem, ao mesmo tempo, assustar os eleitores republicanos.

Trump sentiu o golpe e tem se dedicado a bater insistentemente em Kamala.

Ao opor vetos ideológicos à chapa de Joe Biden, os esquerdistas mais inflamados reforçam aquela “abdicação pelo imaginário americano” que o professor Mark Lilla (em O progressista de ontem e o do amanhã, publicado em 2017 pela Companhia das Letras) entende ser a principal fragilidade dos liberals, ou seja, dos democratas. Dizem pouco para o americano comum, as grandes multidões, ajudando a empurrar os democratas para “as cavernas que construíram para si próprios na encosta do que um dia foi uma grande montanha”, nas palavras de Lilla.

O professor é um crítico firme das inflexões identitárias que adquiriram expressivo peso no movimento social e nas áreas intelectuais próximas do Partido Democrata. Na sua visão, tais inflexões enfraquecem a solidariedade social e incentivam o populismo, com o enfraquecimento da dimensão institucional da cidadania. De quebra, põem em circulação uma “pseudopolítica de autoestima e autodefinição estreita e excludente”, que celebra um posicionamento refratário a avanços políticos consistentes, trocando-o por uma “evangelização” de baixa produtividade política. A diferença, para Lilla, é que “evangelizar é dizer verdades ao poder e fazer política é conquistar o poder para defender a verdade”.

O que vale para os Estados Unidos vale também para outras sociedades. A insistência em demarcar identidades partidárias ou ideológicas tem sido, em todas as partes, o laço que asfixia as forças democráticas e impede sua articulação. A eventual derrota de Trump em novembro próximo terá impacto significativo e poderá representar uma nova temporada de florescência democrática, com efeitos que se espalharão pelo mundo.

*Professor titular de teoria política da Unesp


Elimar Nascimento: Para onde vai a Extrema direita?

Esclareça-se, imediatamente, que o objeto destas poucas reflexões não é o Brasil, nem o mundo, mas sobretudo o Ocidente, na sua expressão europeia e americana. Espaço onde forças políticas de extrema direita, posicionando-se claramente contra os princípios democráticos, embora não necessariamente fascistas, ascenderam politicamente desde os inícios do atual século. Porém, o autor não resiste e encerra o artigo com breve reflexão sobre a conjuntura nacional.

É verdade que a extrema direita muito se expandiu no mundo ocidental no século XXI.  Ascendeu ao poder no país mais poderoso do mundo (EEUU); naquele país que ocupa a fronteira entre o Ocidente e o Oriente (Turquia); em países da Europa Oriental (Polônia e Hungria); no Extremo Oriente (Filipinas); na América do Sul (Brasil), sem contar com o Oriente Próximo (Israel). Cresceu ou participa do poder em vários países europeus, como a Holanda, Áustria, Noruega, Eslováquia, Bulgária, Dinamarca, Finlândia, Suíça, Grécia e França. Não são forças políticas iguais, mas têm como traço comum o de serem ultraconservadoras, populistas, nacionalistas e hostis a procedimentos democráticos.

Também é verdade que a extrema direita dá sinais de recuo. O barco de Trump começa a fazer água, o que não significa que esteja a deriva e que as eleições já estejam perdidas. A Liga do Norte de Matteo Salvini, na Itália, foi derrotada em janeiro deste ano na região da Emília Romana. Eram eleições cruciais para seu retorno ao poder. Na Polônia, o partido da extrema direita no poder, de Andrzej Duda, ganhou por uma diferença irrisória. O maior fenômeno nas eleições do dia 12/07, naquele país, foi a ascensão extraordinária do candidato de centro-direita, prefeito da capital, Varsóvia. E, finalmente, a extrema direita de Le Pen perdeu fragorosamente as eleições municipais recentes na França, onde emergiu, indubitavelmente vitoriosos, os verdes.

Ossos do ofício, contudo, nos obriga a ver o recuo da extrema direita como uma tendência não consolidada. Poderá vir a se consolidar, mas ainda não é fato inconteste.

Se a Liga do Norte foi derrotada nas eleições de janeiro/2020, na região de Emília Romana, foi vitoriosa nas eleições europeias de maio seguinte com 34,3% dos votos, tornando-se, assim, o partido mais votado na Itália. Na sequência, ficou o Partido Democrático, partido de esquerda, com 22,7% dos votos, enquanto o Movimento 5 Estrelas, antissistema, que foi o partido mais votado nas eleições nacionais de 2014, ficou em terceiro lugar com 17,1%. Nas eleições europeias de 2014 a Liga do Norte havia obtido apenas 6% dos sufrágios. Aos 34,3% das últimas eleições europeias deve-se somar 8,8% da Forza Itália, do ex-primeiro ministro Silvio Berlusconi, e 6,5% dos pós-fascistas Irmãos de Itália. Os votos somados da direita e da extrema direita corresponde a praticamente metade do eleitorado italiano. Dessa forma, as forças mais conservadoras continuam ativas e protagonistas, embora na oposição.

Se a vitória do Partido ultraconservador Leis e Justiça (PiS), na Polônia, foi apertada, com 51,2% dos votos, não se pode esquecer que seu adversário, Rafael Trzaskowski, é o líder de uma coalizão de centro-direita, Coalizão Cívica. A esquerda sumiu do mapa eleitoral do país. De toda forma, as forças opositoras, de cunho liberal, não conseguiram parar as reformas que desde 2015 o presidente Andrzej Duda lidera sob protestos da União Europeia, com submissão do judiciário e perseguição às minorias e à imprensa. A política populista de distribuição de benefícios sem dúvida contou para a vitória do PiS, em uma eleição concorrida, com cerca de 70% de comparecimento eleitoral, em plena pandemia. Diga-se de passagem, contudo, que 58% dos poloneses julgam que seu país sofre restrições democráticas.

Na França, a partido da extrema direita, antiga Frente Nacional, hoje Reagrupamento Nacional, foi derrotado. Dentre as cidades médias e grandes venceu apenas em Perpignan. Se em 2014 o partido de Le Pen tinha 1.438 assentos nos conselhos municipais em 463 municipalidades das 34.968 que tem a França, nas eleições de 2020 alcançou apenas 840 assentos em 258 municipalidades. Seus militantes esperam que Perpignan seja a municipalidade vitrine, onde eles poderão explicitar sua capacidade de governo. Veremos. O partido de Macron e o partido da direita clássica, Os Republicanos, também perderam. Apenas o partido Socialista mostrou alguma capacidade de recuperação em meio a uma eleição marcada pela abstenção (60%), sobretudo de pessoas idosas. Esta abstenção, assim como a grande vitória dos verdes, deveu-se em parte a pandemia. Os verdes, por serem inexperientes e internamente conflituosos podem não se sair bem no exercício do poder municipal que conquistaram, permitindo o ressurgimento das forças conservadoras.

Se a pandemia contribuiu para a vitória dos verdes na França, está facilitando a possível derrota de Trump nos Estados Unidos. Ela colocou por terra seu grande trunfo eleitoral que era o bom desempenho da economia americana. Por sua vez, sua gestão da saúde suscitou uma série de críticas, inclusive dentro do partido Republicano, que já tem um comité para lutar por sua derrota. Isso mesmo, um comité que já arrecadou milhões de dólares e divulga milhares de vídeos de ex-votantes de Trump que se dizem arrependidos e explicam o porquê para milhares de eleitores republicanos que não estão satisfeitos. A diferença nas pesquisas eleitorais de Joe Biden, o candidato democrata e ex-vice de Obama, já alcançou os dois dígitos. A última de que tenho notícia, de 7 de julho, era de 15%. A crise chegou ao comité eleitoral de Trump que demitiu aquele que lhe deu a vitória em 2016. Nada está ainda decidido, mas as chances de Trump se reduzem a cada dia. É possível, porém, que uma vez mais ele surpreenda, revertendo a tendência declinante, mas não será fácil. Se for derrotado a tendência de recuo da extrema direita deve se acelerar.

Os quatro eventos acima arrolados mostram derrotas de forças políticas de extrema direita, de caráter populista, embora ainda não seja completamente certo no caso dos Estados Unidos, pois as eleições só ocorrerão em 3 de novembro. Se o recuo da extrema direita é o evento mais visível, não se pode esquecer que as situações citadas mostram também a fragilidade do populismo, o evento político mais impressionante no século XXI, com cortejamento da esquerda e da direita.

A questão que mais interessa aos brasileiros é saber se processo similar tenderia, também, a ocorrer no Brasil. Os maiores indícios são negativos. Todas as pesquisas de opinião mostram que Bolsonaro perdeu prestígio desde medos de 2019, quando tinha uma aprovação superior a 40%, mas se estabilizou em torno dos 30%. Se as eleições presidenciais de 2022 fossem hoje ele estaria no segundo turno com cerca de 30% de intenção de votos. Deve agradecer, entre outros, a ausência de uma oposição consequente. As iniciativas de organizar uma oposição mais robusta não vão além de manifestos organizados por setores políticos e da sociedade civil. A oposição articula-se penosamente no Congresso. A esquerda se mantém dividida e o centro e centro-direita articulam-se apenas para evitar o controle da Câmara dos Deputados por parte do Executivo.

Os movimentos dos partidos políticos de esquerda indicam que ela partirá dividida para as eleições municipais de novembro. O PT mantém sua estratégia do “eu sozinho”. O restante da esquerda não consegue ampliar seu leque de alianças.

O passo mais vitorioso contra as investidas antidemocráticas do Presidente foi dado pelo Supremo, ultrapassando ou não suas prerrogativas. Sem que se saiba se este recuo não será seguido de novas investidas. Aparentemente, não, ou pelo menos não no mesmo tom, pois dois eventos são responsáveis pela mudança da tendência de queda de popularidade do Presidente: sua mudança de tática, abandonando a hostilidade em relação às Instituições democráticas e ingressando nas negociações políticas com os partidos do Centrão, que ele tanto renegava; e, sobretudo, a adoção de benefícios pecuniários à população mais carente, medida adotada em grande parte graças ao Congresso Nacional, por ocasião da pandemia. Um novo programa para institucionalizar esta prática está em curso, com possibilidade de mudar a tendência do comportamento eleitoral dos habitantes de menor renda no Nordeste. O que poderá reduzir as chances do PT chegar ao segundo turno.

Os segmentos ultraconservadores e conservadores da sociedade brasileira conseguiram, finalmente, seu líder, e um líder que tem a cara de seus liderados, em sua arrogância e desprezo pelas diferenças culturais, pelos procedimentos democráticos e pela vida dos brasileiros, sobretudo os mais pobres: “E daí?” Aliás, à semelhança do desembargador de Santos, e tantos outros que pululam neste país racista e machista.

Assim, duas das questões na agenda política são perguntas ainda sem respostas: a extrema direita continuará em refluxo no mundo, com a derrota de Trump? O Brasil seguirá o mesmo movimento em 2022?


O Globo: Trump deixará instituições em estado muito pior do que quando assumiu, afirma Steven Levitsky

Em entrevista exclusiva, Steven Levitsky comenta possibilidade de fraude em novembro e de Trump não reconhecer resultado das eleições; segundo ele, 'a democracia americana está doente'

Paola De Orte, O Globo

WASHINGTON - Nesta semana, logo após a divulgação de dados que mostravam queda de 33% em termos anuais no segundo trimestre da economia americana, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, publicou um tuíte sugerindo que as eleições fossem adiadas. A possibilidade foi descartada no mesmo dia por aliados do presidente no partido Republicano. Analistas trouxeram diferentes explicações para a declaração: Trump poderia estar tentando distrair o público dos números ruins na economia ou preparando seus apoiadores para uma narrativa a ser emplacada caso perca as eleições.

O professor da Universidade de Harvard Steve Levitsky acredita que a publicação reflete a personalidade do presidente, mas pode também ter por trás uma estratégia de desacreditar o sistema eleitoral como um todo. O coautor do best-seller “Como as Democracias Morrem” acredita que esse tipo de ação faz parte de um padrão mais amplo de comportamento autoritário e que, apesar de o país ter instituições democráticas sólidas, elas estão hoje mais frágeis do que quando o presidente assumiu.

Qual o objetivo do presidente ao sugerir adiar as eleições?

Trump, ao contrário de outros presidentes, faz coisas sozinho, sem consultar assessores. Pode ter sido uma estratégia ou apenas algo estúpido que ele tuitou. Se foi uma estratégia, não acho que ele esteja tentando adiar as eleições. Está claro na Constituição que só o Congresso pode fazer isso, e ele não tem apoio do Congresso. Ainda que possa utilizar uma manobra autoritária para violar a Constituição, é improvável. O mais provável é que tenha sido apenas algo estúpido que disse. Ou pode ser parte de um esforço maior para desacreditar as eleições. Ele sabe que há chance alta de perder. Não está claro se está disposto a aceitar a derrota. Uma das coisas que tem feito é falar em fraude, que o voto por correio é fraudulento, ainda que ele mesmo tenha votado assim muitas vezes. Tenta minar a legitimidade das eleições, criando uma narrativa que o permita dizer que terão fraude. Assim, quando perder, pode alegar isso. Não tenho certeza de que exista um plano autoritário por trás, não acho que ele tenha o poder de usar isso para continuar no cargo. Pode ser apenas uma coisa pessoal para seu ego, para que possa sair por aí gritando que não perdeu.

É mais uma questão de personalidade do que uma estratégia?

São ambas as coisas, não são mutualmente excludentes. Ele tem tentado desacreditar as eleições, disse que houve fraude em 2016, que pode não aceitar o resultado. Isso é parte de um esforço para poder dizer que as eleições não são justas. Ao mesmo tempo, pode ter sido só uma reação pessoal. Ele não tem familiaridade com a Constituição, não se importa em seguir as práticas democráticas ou as normas constitucionais.

Por que o presidente tuitou sobre o adiamento logo após serem divulgados dados ruins sobre a economia?

Não tenho evidências de que a equipe de Trump tenha um plano bem pensado. É ele se lamuriando. Sim, ouvimos notícias devastadoras que não vão ajudá-lo. Ele está tentando vender a ideia de que a economia está se recuperando. Mas as coisas não estão bem, estão piorando. E isso foi uma evidência clara de que as coisas estão terríveis e de que isso vai prejudicar sua reeleição. Quanto mais Donald Trump pensar que ele vai perder a eleição, mais vai jogar bombas no processo eleitoral.

Por que um presidente teria interesse em desacreditar eleições?

Trump é diferente dos autoritários sobre os quais escrevemos no nosso livro, porque a maior parte deles têm um projeto para se manter no poder. Não há evidência de que ele tenha. Ele tem personalidade autoritária, instinto autoritário, mas não está claro que tenha um plano autoritário. A razão para o tuíte pode ter sido apenas se sentir melhor. Por que alguém tentaria desacreditar eleições? Porque você quer criar dúvidas na cabeça das pessoas. Se boa parte da população acreditar que as eleições foram injustas ou roubadas, ele poderá dizer que nunca perdeu uma eleição e se sentir melhor. Em um cenário mais sinistro, poderia usar isso. É o que autoritários fazem, usam dúvidas sobre eleições para justificar seu comportamento. Não acho que Trump pode ou fará isso. Mas um autoritário que lança dúvidas sobre eleições pode usar isso para justificar sua insistência em novas eleições e se recusar a entregar o poder.

Quais as chances de o presidente se recusar a aceitar o resultado da eleição?

Altas. Não sei o quão sério será, nem por quanto tempo ele conseguirá se safar. Mas acho que, se Trump perder, há chances altas de que questione se as eleições foram livres e justas.

Quais as consequências disso?

Há dois cenários. Hoje, com Biden liderando por uma margem grande, a alegação de fraude não será crível. Isso convenceria apoiadores de Trump de que as eleições não são livres e justas, o que é catastrófico em termos de confiança nas instituições democráticas. Mas ele provavelmente não será capaz de se manter no poder para destruir a democracia. A única maneira de fazer isso é se a mídia de direita, a Fox News, o partido Republicano inteiro e talvez quatro ou cinco membros da Suprema Corte estiverem alinhados. Aí teríamos uma grande crise democrática. Isso não vai acontecer do jeito que a coisas estão hoje, porque Biden está na frente por muitos pontos. Mas, se for uma eleição apertada como a de 2014 no Brasil, e se for plausível que tenha havido fraude, então poderíamos entrar em crise.

O presidente Bolsonaro disse em março que houve fraude nas eleições que ganhou. Por que um presidente alegaria fraude nessa situação?

Eu não conheço Bolsonaro, não entendo como seu cérebro funciona. Às vezes, parece que ele imita Trump como um papagaio, como fez em seu comportamento com relação ao coronavírus e à hidroxicloroquina. Se eu fosse seu assessor, o aconselharia a encontrar outro líder político para copiar. É estranho um presidente acusar de fraude uma eleição que ganhou. Trump fez isso em 2016 porque perdeu o voto popular e odeia isso. Odeia o fato de que mais pessoas votaram em Hillary Clinton do que nele. Então quer que acreditem que imigrantes ilegais votaram e que ele ganhou o voto popular. Essa não pode ser a razão para Bolsonaro, porque ele ganhou o voto popular, e por muito. Talvez possa ser porque Bolsonaro provavelmente enfrentará uma eleição mais difícil em 2022 do que em 2018. O Brasil, como os EUA, tem um processo eleitoral sofisticado. Não há muita evidência de fraude significativa nas eleições brasileiras modernas. Mas, talvez Bolsonaro vá perder uma eleição apertada em 2022. Minar a legitimidade do processo eleitoral pode deixar dúvidas na mente das pessoas sobre se o processo é livre e injusto.

Há hoje um debate nos EUA sobre restrição ao voto de minorias. Como isso acontece?

Nos últimos dez anos, houve esforço dos Republicanos em partes do país para dificultar o registro e o voto, reduzindo os locais de votação. Eleitores não brancos e imigrantes têm mais dificuldade, e eles são eleitores dos democratas. Os republicanos estão tentando diminuir seu comparecimento às urnas. Isso já acontecia antes de Trump. A ameaça agora é que ainda não controlamos o coronavírus, e a situação pode piorar em novembro. Haverá cidades em que será perigoso sair. Quem trabalha nas eleições presenciais nos EUA são voluntários, pessoas aposentadas. Muitos ficarão em casa. Pode haver caos no dia, locais de votação podem não ter ninguém para trabalhar e acabarem fechando. As pessoas ficarão com medo de votar presencialmente porque as filas podem ficar muito longas, cinco ou seis horas. Elas podem não se sentir seguras de esperar esse tempo. Por causa da pandemia, o voto por correio é essencial. Em muitos estados, isso já acontece, apenas em alguns poucos, oito ou nove, isso ainda é uma questão.

Há maior chance de fraude nas eleições por correio?

Existe a possibilidade de usar o voto por correio para fraudes. Mas nossas eleições são descentralizadas. Cada localidade possui diferentes sistemas. É impossível orquestrar uma fraude nacional. Poderia haver conspirações para cometer fraudes localmente, como ocorreu com os republicanos na Carolina do Norte em 2018. Mas a probabilidade de fraude em larga escala é baixa. Cinco estados usam apenas votação por correio. A evidência é de que há pouca fraude.

Quando o presidente sugere o adiamento das eleições, a possibilidade de elas serem adiadas é a única preocupação?

Não, isso faz parte de um padrão mais amplo. Quando você elege uma figura autoritária que não está comprometida com as regras democráticas, você coloca sua democracia em risco. Ficamos vulneráveis a um presidente que está disposto a violar as regras, ainda que possa não ser capaz de fazê-lo. Neste caso, acho que ele não será capaz, mas ele faz pressão contra as regras diariamente. Ele viola a prática democrática, corrói a legitimidade das normas. Às vezes, viola regras. Claramente violou, ao tentar usar o poder da Presidência para convencer governos estrangeiros a encontrar sujeira contra seu rival nas eleições.

Por isso, sofreu impeachment. Se você elege um presidente autoritário, ele agirá como autoritário quando estiver no cargo. É isso que Trump está fazendo. Por sorte, temos uma oposição bastante forte e, assim como o Brasil, instituições democráticas fortes que são difíceis de desmontar, mas Trump as está enfraquecendo. E, todos os dias, é uma nova tentativa, um novo ataque. Isso deixará a legitimidade e a força de nossas instituições em forma muito pior do que em 2016. A democracia pode não morrer, mas está adoecendo cada dia mais.

Qual o estado da democracia nos EUA hoje?

Fraca e vulnerável. O problema é a polarização extrema entre os dois partidos. Isso torna o sistema presidencial quase totalmente disfuncional, uma das razões pelas quais respondemos tão mal à pandemia. Nossa democracia está doente por termos eleito um líder incompetente e autoritário, mas também por não termos nossas instituições funcionando. Temos provas de que o presidente abusou do poder para conseguir que um governo estrangeiro interviesse em nossas eleições. Esse tipo de abuso é para o que a instituição do impeachment foi criada. Mesmo assim, não conseguimos removê-lo.

Nossas instituições não estão funcionando e isso está cobrando um preço. Os americanos estão cada vez mais céticos sobre a capacidade do nosso sistema democrático de resolver problemas que a nossa sociedade enfrenta, como emprego, saúde, imigração, mudanças climáticas. Meu medo é que, mesmo que sobrevivamos a Trump, o que provavelmente acontecerá, nossa sociedade pode ficar vulnerável a um novo Trump, talvez um Trump mais esperto que prometa resolver nossos problemas por meios autoritários. Nós tivemos sorte, pois Trump é um presidente inepto. Ele não é um líder muito esperto, capaz, disciplinado. Mas nossa sociedade está vulnerável a eleger um demagogo que seja mais esperto do que Trump. Aí sim teremos um problema.


Jason Stanley: Fascismo nos Estados Unidos?

As ações de Trump não são o maior motivo de alarme, mas o fato de que essas ações são realizadas com um partido que há muito tempo é implacável para controlar um país no qual tem apoio minoritário

RAQUEL MARÍN

Durante toda a presidência de Donald Trump houve preocupação com suas tendências antidemocráticas. Mas neste verão, em plena crise dos Estados Unidos, se fala cada vez mais abertamente de uma variante especialmente perigosa de autoritarismo já conhecida pela história da Europa no século XX. Depois desses anos de violento sentimento anti-imigração, nos quais houve mudanças nas leis para proibir a entrada nos EUA de residentes de vários países muçulmanos, diatribes contra a imprensa livre e, nas últimas semanas, o envio de forças federais a várias cidades para combater manifestações majoritariamente pacíficas em favor da justiça racial, cada vez mais políticos e jornalistas usam o termo “fascismo” para qualificar a ameaça que o Governo Trump representa.

A palavra “fascismo” implica muitas coisas, e seu uso em relação a Trump é polêmico. Por isso vale a pena que aqueles de nós que pensamos que o uso de um termo tão dramático é apropriado façamos uma pausa para apresentar nossos argumentos. Os EUA não são, por enquanto, um regime fascista. Embora os manifestantes encontrem violentas represálias das forças federais, podemos criticar o partido governante e seu líder sem medo de sofrer consequências. Os tribunais estão ocupados por juízes muito partidários, nomeados por Trump, mas agem com relativa independência. No Congresso, a maioria corresponde ao partido da oposição. Se falarmos de regimes, o Governo de Trump não preside um regime fascista.

Seria ingênuo pensar apenas em regimes que já são fascistas. Estaríamos indefesos diante dos movimentos sociais e políticos determinados a transformar as democracias liberais e empurrá-las ainda mais para o fascismo. Se somos verdadeiramente antifascistas, todos os movimentos fascistas devem nos inquietar. E esses movimentos podem nascer e nascem nas democracias. Os Estados Unidos continuam sendo uma democracia liberal, mas é legítimo se preocupar.

Embora acreditemos que é pouco provável que os EUA se tornem um regime fascista, também é legítimo se preocupar com as táticas políticas fascistas. A base de uma democracia saudável é formada pelas normas democráticas liberais: o mesmo respeito a todos os cidadãos e a tolerância de costumes e crenças diferentes. Para a política fascista, a diferença é uma ameaça mortal. A liberdade, a alma da democracia, é inimiga do fascismo. O que preocupa é a possível transformação do regime dos EUA no futuro. Quais são as razões para ter esses temores sobre a democracia mais antiga do mundo?

Uma característica dos movimentos e partidos fascistas é o racismo descarado. E a política do presidente sempre teve algo a ver com o racismo. Desde 2015 não deixa de demonizar os imigrantes, e está tendo reações muito duras aos protestos políticos dos negros. E agora decidiu deliberadamente basear sua campanha eleitoral na oposição ao movimento de justiça racial Black Lives Matter e, o mais inquietante de tudo, classificou seus promotores de terroristas. No entanto, Trump não é o primeiro presidente a usar o racismo em uma campanha política. Relacionar os norte-americanos negros com a criminalidade é uma tática tão frequente nas eleições presidenciais que não recorrer à demagogia racial é a exceção. O atual candidato democrata, Joe Biden, tem um histórico muito conhecido de demagogia racial mal dissimulada. O fato de um político fazer uma campanha racista não é motivo suficiente para pensar que haverá uma infração escandalosa às normas políticas tradicionais. Para compreender por que há mais preocupação agora, precisamos nos aprofundar mais.

Outra característica dos líderes fascistas é como alteram a realidade para fazer que sua propaganda tenha aspecto de verdade. Quando Trump decidiu enviar as forças federais a Portland, as manifestações lá e em outras cidades já tinham começado a decair; enviar as tropas para aquela cidade e ameaçar enviá-las a outras foi uma provocação para causar exatamente o caos que se supunha que devessem impedir.

O recente tuíte de Trump criticando o voto pelo correio e levantando a possibilidade de adiar as eleições é um exemplo de várias táticas fascistas clássicas misturadas em uma. Os líderes fascistas acusam os processos democráticos de serem corruptos e fraudulentos. Mas, assim como acontece nos fascismos, o que lançaria dúvidas sobre a validade das eleições seria precisamente seguir as recomendações de Trump, como impedir o voto pelo correio e adiar as eleições. Da mesma forma, os líderes fascistas sempre denunciam outros por fazerem o que eles estão fazendo. Nesse caso, Trump e os republicanos são os que colocaram em risco a validade das eleições, por exemplo, com suas táticas para impedir que determinados grupos votem. No entanto, o tuíte acusa os democratas, que estão tentando garantir a limpeza das eleições apesar de todas essas artimanhas. Mas por mais repugnante que seja a maneira de agir de Trump, o mais alarmante não é que ele tome essas medidas, mas o contexto histórico em que as toma. Outra característica dos regimes autoritários é o partido único. Faz muito tempo que o Partido Republicano tacha seus adversários de ilegítimos e sempre qualifica a oposição centrista de comunistas ocultos. Os republicanos conseguiram ganhar muitas eleições presidenciais e no Senado apesar de os eleitores que os apoiam serem minoria. Existem motivos para pensar que o Partido Republicano é um partido minoritário que pretende se alavancar como único partido.

O segundo motivo de inquietude é que os EUA acabam de deixar para trás uma “guerra contra o terrorismo” em que se usava a tortura contra os suspeitos. Dentro dessa guerra foi criada uma Administração nova à qual foram concedidos poderes extraordinários para rastrear e deter residentes sem documentos. Essas são as forças paramilitares, treinadas para tratar com brutalidade pessoas que não são norte-americanas, que hoje foram enviadas a várias cidades norte-americanas para enfrentar os manifestantes. É frequente que os regimes fascistas surjam depois de guerras coloniais e que as forças que lutaram nelas se orientem agora para dentro. É fácil ver os paralelos no momento atual.

Em resumo, as ações concretas do Governo de Trump, por mais inquietantes que possam ser, não são o maior motivo de alarme. É que essas ações estão sendo realizadas no contexto de um partido político governante que há muito tempo se mostra implacável para controlar um país no qual tem apoio minoritário. E em um país que não desmontou o aparato de segurança que construiu em uma aventura imperialista fracassada no Oriente Médio. Durante vários anos disseram a seus agentes que todos os residentes sem documentos são terroristas. E agora o presidente ordenou que os norte-americanos que se manifestam pacificamente sejam tratados como terroristas. São dias aterradores, não apenas por causa dos demônios atuais, mas porque o país está há muito tempo permitindo que seus demônios do passado sobrevivam sem tocá-los.

Jason Stanley é professor de Filosofia da Universidade de Yale e autor de Como Funciona o Fascismo: A Política do “Nós” e “Eles” (L&PM).