Estados Unidos

Ligia Bahia: A saúde sai do limbo nos EUA

Trump insistiu nas declarações sobre a disposição de Biden para fechar a economia seguindo a ciência

As estratégias para enfrentar a Covid-19 ocuparam o centro das atenções nas eleições nos EUA. O apreço ou desprezo pela ciência, a incapacidade para coordenar o enfrentamento da pandemia ou a defesa da economia e os defeitos ou qualidades atribuídos ao Obamacare orientaram a definição dos votos.

Joe Biden declarou que apoiaria, em vez de difamar, pesquisadores e especialistas. Disse ainda que incentivaria o uso de máscaras sempre, garantiria avanços para a testagem por meio de investimentos em testes rápidos e se certificaria sobre padrões nacionais seguros para a abertura de escolas e empresas.

Donald Trump afirmou que considera ter nota A+ no gerenciamento da pandemia e apenas um D em divulgação, “porque são produzidas notícias falsas”. O atual presidente insistiu nas declarações sobre a disposição do adversário para fechar a economia seguindo recomendações científicas, disse que tinha testado positivo e retomou a campanha por ter recebido tratamento com anticorpos e outros medicamentos. Contudo o que está em jogo é mais do que a condução política contra a pandemia. O resultado das eleições decide o destino da Lei de Cuidados Acessíveis (ACA, na sigla em inglês) — o Obamacare —, aprovada em 2010 pelos democratas e que, segundo Trump, é “muito cara e não funciona.”

O sistema de saúde nos EUA, que se baseia em planos privados e programas governamentais, vai descer do muro. O plano apresentado por Biden propõe a expansão de coberturas por meio da organização de um seguro público e da redução na idade (de 65 para 60 anos) para ingresso. Enquanto o atual governo atua junto à Suprema Corte defendendo a inconstitucionalidade do Obamacare.

Embora uma decisão jurídica contrária ao aumento da proteção à saúde fosse improvável (houve sentenças que acataram a legislação em 2012 e 2015), a morte da progressista Ruth Bader Ginsburg e a indicação de Amy Coney Barrett, reforçando uma maioria de juízes conservadores (6 a 3), aumentariam as chances de anular a lei. Os republicanos apoiam e prometeram conservar garantias para pessoas com doenças preexistentes, contidas na ACA, mas não apresentaram normas para obrigar que as empresas vendam planos para quem tem mais probabilidade de risco. Outros temas, como direitos reprodutivos e a atenção à saúde para imigrantes, provocaram polêmicas laterais.

Trump cortou recursos para clínicas de planejamento familiar que realizam ou oferecem orientação sobre aborto, permitiu que as empresas empregadoras excluíssem o acesso a anticoncepcionais e programas para pacientes LGBTQ e expandiu a “Política da Cidade do México” (datada de 1984, gestão Reagan), que bloqueia assistência internacional a organizações envolvidas com a interrupção segura da gravidez.

O republicano quer reverter a decisão da Suprema Corte de 1973 (Roe versus Wade) sobre direito ao aborto. Biden tem posicionamentos opostos, prometeu reverter políticas discriminatórias de gênero. Assim como propôs mudar as regras de separação entre pais e filhos na fronteira e instituir um roteiro rumo à cidadania para imigrantes ilegais, incluindo a permissão de adesão a planos privados e a remoção do tempo de espera de cinco anos para o ingresso em programas governamentais de saúde dos legalizados.

Oportunidades de expor programas para a saúde foram bem aproveitadas por Biden. Trump não é um candidato convencional, atacou constantemente a burocracia e recentemente os médicos, a quem acusou de receber dinheiro para registrar indevidamente mortes por Covid-19. Seu admirador no Brasil tenta com afinco parecer igual, mas não consegue. O governo federal organizou uma burocracia militar dispendiosa e ineficiente na saúde e cultiva uma base de médicos militantes. Para Biden, Trump não soube proteger a América. A frase teria que ser adaptada para fazer sentido entre nós, onde a pandemia também segue ceifando vidas. Ficaria assim: Bolsonaro não soube proteger o Brasil, mas conseguiu arrumar a vida de um monte de gente ao bagunçar a saúde pública.


Cacá Diegues: Um novo modo de ver o mundo

As redes sociais deviam ser um instrumento de conhecimento, como a ciência

Miles Taylor, ex-chefe de Gabinete do Departamento de Segurança Interna dos EUA, acaba de se identificar como autor do artigo publicado como anônimo pelo “New York Times” há cerca de dois anos. No artigo, que o jornal informava apenas ter sido escrito por um colaborador do presidente, Taylor dizia que Trump era contraditório, mesquinho, ineficaz, amoral, um risco para as instituições democráticas do país. Na época, Trump mandou abrir investigação entre seus funcionários para descobrir o autor. Agora, Taylor pediu demissão de seu cargo, sem nunca ter sido descoberto.

Ainda no mundo do inesperado, Donald Trump, depois de empossado, demitiu de sua assessoria o famoso Steve Bannon, criador do sistema de fofocas e mentiras virtuais, as célebres fake news que, pelas redes sociais, o haviam elegido. Demitido, Bannon se mandou para a Itália, onde foi assessorar o populismo de direita que tomou o poder com o Movimento 5 Estrelas e a Liga. Reclamando do tratamento de Trump, Bannon foi consolado por fãs e discípulos de todo o mundo. Como Eduardo Bolsonaro, que o visitou e prestou homenagens ao mestre.

O reencontro de velhos inimigos jurados, assim como desavenças definitivas entre aliados de sempre, é mais ou menos uma constante na prática política de hoje em dia. Podíamos simplificar, dizendo que essa é uma das consequências do moderno embaralhamento ideológico. Ou do fim das ideologias com rigor de catecismo. Mas há outras razões, além dessas.

A BBC News revelou recentemente os termos de explosivo memorando interno da cientista de dados Sophie Zhang, ex-funcionária do Facebook. Com o título de “Tenho sangue nas mãos”, Zhang se queixava de não ter podido ou não ter tido tempo de acessar certos países, em vista de eventos antidemocráticos que neles viu acontecer. Diz ela: “Nos três anos que passei no Facebook, encontrei várias tentativas de governos nacionais de abusar da plataforma para enganar seus cidadãos e criar notícias internacionais que serviam a eles”. Aquelas famosas e genéricas fake news.

Zhang citava exemplos de manipulação política, no período em que esteve no Facebook. Como as 10,5 milhões de falsas reações de falsos seguidores, removidas de perfis de políticos de destaque no Brasil, durante a campanha presidencial e, nos EUA, durante as eleições legislativas de 2018. Além disso, o Facebook levou nove meses para agir, diante das informações sobre o uso de robôs (bots) para impulsionar o presidente de Honduras. Contas falsas e robôs também foram registrados na Bolívia e no Equador. Tudo do conhecimento do Facebook, que não fazia nada, segundo Zhang, devido à “carga excessiva de trabalho”. E Mark Zuckerberg demorou a entender a manipulação política de sua rede social.

Durante a pandemia, Zhang descobriu e removeu 672 mil contas falsas, que atuavam contra ministros da Saúde do mundo inteiro. A jornalista Carole Cadwalladr, do Reino Unido, já havia denunciado o uso manipulado de dados do Facebook pela consultoria Cambridge Analytica, pivô na eleição de Trump e na campanha do Brexit. “A velocidade e a escala de danos que o Facebook está causando às democracias em todo o mundo são verdadeiramente aterrorizantes”, escreveu. Zhang recusou perto de US$ 100 mil para não dar conhecimento público de seu memorando. Ela mesma tratou de divulgar seu conteúdo.

Quando penso na conquista do mundo pela nova cultura digital, penso logo na invenção de Gutenberg e no sucesso dela no Renascimento. As redes sociais deviam ser um instrumento de conhecimento, como a ciência e a literatura, o iluminismo e um novo humanismo, as ideias que refundaram a humanidade naquele período. Uma nova versão do mundo, pelo conhecimento e pela cultura, de como somos e de como queremos ser. Em vez disso, estamos deixando que se transformem em difusão de consumo imposto e de horror político, contra a busca da verdade e a democracia. Não podemos permitir que essa nova cultura, fruto da inteligência, da ciência e da inspiração humanas, se consolide como intervenção demoníaca em nossa civilização.

Já estava fechando este artigo, quando me ocorreram os versos de Vinícius de Moraes, citados na nova encíclica do Papa Francisco, publicada no dia de outro Francisco, o santo dos pobres: “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”.


Demétrio Magnoli: A China vota vermelho

Todos os governos têm muito em jogo nas eleições presidenciais da superpotência global

Vermelho ou azul? Nos EUA, vermelho é a cor dos republicanos; azul, dos democratas. Todos os governos do mundo têm muito em jogo nas eleições presidenciais da superpotência global — e cada um deles acalenta, secreta ou abertamente, uma preferência. Quem “vota” em Joe Biden? E em Donald Trump?

A Europa está dividida. No núcleo da União Europeia, Alemanha, França, Itália e Espanha são Biden, o candidato democrata que promete restaurar a aliança transatlântica tão desprezada por Trump. Mas o Reino Unido de Boris Johnson não segue o rumo dos vizinhos, inclinando-se pelo republicano que ergueu um brinde ao Brexit e acena com um acordo privilegiado de comércio com os britânicos.

Trump é o cara, na opinião do húngaro Viktor Orbán e do polonês Andrzej Duda, líderes nacionalistas, populistas e xenófobos da Europa Central. Recep Tayyip Erdogan, presidente autocrático da Turquia, vai na mesma direção, mas por motivos menos ideológicos. Ele aposta no isolacionismo do republicano para prosseguir sua agressiva política externa, que exige acordos com a Rússia, ataques aos curdos sírios, pressão sobre a Grécia e tensão perene com a União Europeia.

Israel e Arábia Saudita estão fechados com Trump, o promotor de um “plano de paz” baseado numa coalizão regional anti-iraniana e na negação dos direitos nacionais palestinos. O Irã oscila, o que reflete a cisão entre o Estado teocrático e o governo moderado. Ali Khamenei, Líder Supremo, “vota” Trump, uma garantia de confronto com os EUA e, portanto, de hegemonia da “linha-dura” doméstica. Por outro lado, o presidente Hassan Rouhani “vota” Biden, que recolocaria os EUA no acordo nuclear, dando fôlego à economia iraniana.

Vladimir Putin não crê em lágrimas. A Rússia entrou na campanha americana de 2016 com um objetivo principal, desestabilizar a democracia americana, e um complementar, ajudar a eleger o republicano. As metas permanecem inalteradas. Trump na Casa Branca assegura o declínio da Otan e a redução da influência dos EUA no Oriente Médio, abrindo espaço à difusão da influência externa russa.

A China é um caso muito mais complicado, pois bússolas diferentes apontam nortes opostos.

Um critério para a escolha são os interesses econômicos. A “guerra do 5G”, que envolve a rivalidade fundamental pela supremacia tecnológica, seguirá seu curso com Biden ou Trump. Mas, apesar de imitar a retórica do nacionalismo econômico do adversário, o democrata tende a colocar ênfase menor nas tarifas que deflagram inúteis ou contraproducentes guerras comerciais. Ponto azul.

Tanto Biden quanto Trump confrontarão a China no delicado campo dos direitos humanos, que abrange os crimes contra a humanidade cometidos no Xinjiang dos muçulmanos uigures e, ainda, a violação escandalosa dos direitos políticos em Hong Kong. Contudo o republicano carece de um mínimo de credibilidade moral para se pronunciar sobre tais temas. Ponto vermelho.

A China tem uma peculiar apreensão da história. Na década de 1970, durante a aproximação sino-americana, o número 2 da hierarquia chinesa, Chou En-lai, foi indagado sobre as perspectivas da democracia em seu país e os valores emanados da Revolução Francesa. Sua resposta, que ficou célebre: os eventos de 1789 são assunto jornalístico, próximos demais para propiciar um diagnóstico histórico. A infatigável paciência chinesa inclina decisivamente a balança da preferência eleitoral.

Trump, sem dúvida, explica Yan Xuetong, reitor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade Tsinghua, de Pequim: “Não porque Trump causará menos estrago aos interesses chineses que Biden, mas porque ele certamente causará danos maiores aos EUA”. A China almeja, sobretudo, o reconhecimento de seu lugar de grande potência mundial — e, mais adiante, tomar a posição de superpotência hegemônica. Nos tempos longos, régua da geopolítica, o declínio dos EUA e a consequente ascensão da China são mais bem-servidos pelo nacionalismo isolacionista trumpiano.

Xi Jinping vota vermelho. Só não conta para ninguém. É que declarar o voto é coisa de idiota.


Rubens Barbosa: As novas ameaças e o Brasil

País deve acompanhar a evolução tecnológica e geopolítica da exploração espacial.

Grande parte das facilidades da nossa vida no planeta Terra depende, para seu funcionamento diário, de objetos baseados no espaço. Sistemas de comunicação, transporte aéreo, comércio marítimo, serviços financeiros, monitoramento de clima e defesa dependem da infraestrutura espacial, incluindo satélites, estações terrestres e movimentação de dados em âmbito nacional, regional e internacional. Essa dependência apresenta sérios – e frequentemente pouco percebidos – problemas de segurança para empresas provedoras e para os governos.

Nesse cenário, começam a ser examinadas novas ameaças de ataques aos satélites em órbita que podem afetar todos os serviços e facilidades mencionados. Essas ameaças devem estar sendo avaliadas pelo governo brasileiro. Além disso, a utilização do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), no Maranhão, tornada possível depois de décadas de decisões equivocadas, representa um grande desafio para o governo e as empresas brasileiras. Não só pela necessidade de melhoria na infraestrutura da região e do próprio centro, mas também na legislação interna, sobre uma lei do espaço (que defina as atividades comerciais no espaço, como a utilização de detritos espaciais), sobre o órgão responsável pela negociação com empresas interessadas na utilização do CLA, a definição do contrato de licenciamento de lançamento, a ser assinado com a autoridade nacional e o comércio de tecnologia espacial.

Como qualquer outra infraestrutura digitalizada, satélites e outros objetos baseados no espaço são vulneráveis, em especial, a ameaças cibernéticas. As vulnerabilidades cibernéticas apresentam riscos muito sérios não só para esses objetos, mas também para infraestruturas essenciais terrestres. Se não forem contidas, essas ameaças poderão interferir no desenvolvimento econômico global e, por extensão, na segurança internacional. Cabe registrar que essas preocupações não são meramente hipotéticas. Na última década mais países e atores privados conseguiram adquirir e empregar meios para afetar esses objetos espaciais críticos com aplicações inovadoras que começam a representar uma ameaça real ao seu funcionamento.

A ideia da guerra espacial não é nova, começou com os foguetes V-2 da Alemanha. A eventual atividade bélica no espaço hoje se concentra nos instrumentos utilizados para as guerras na Terra. Os satélites são utilizados nas operações militares para identificar alvos e responder a questões estratégicas, além de localizar as forças militares e bombas e obter informações nos teatros de guerra. Isso torna os satélites alvos atrativos para mísseis terrestres. EUA, China e Índia estão desenvolvendo armamentos destrutivos de objetos no espaço, visando a impedir os sinais para a Terra dos satélites militares com lasers ou mesmo os explodindo, fazendo detritos se espalharem pelo cosmo. Estão também tornando suas Forças Armadas voltadas para o espaço. Em 2019 foi criada pelo governo dos EUA a Força Espacial, serviço militar independente cujos doutrina, treinamento e capacidade estão sendo definidos pelo Pentágono.

Para tentar evitar uma lei da selva espacial começa a ser discutido algum tipo de regime multilateral. No momento não há leis nem normas específicas para uma eventual guerra espacial. O Tratado sobre o Espaço Exterior, de 1967, proíbe a utilização de armas de destruição em massa no espaço, mas não trata de armas convencionais. Se dois satélites, por exemplo, ficam muito próximos de maneira ameaçadora, não há respostas adequadas. Em 2008 a União Europeia propôs um código de conduta voluntário para promover “comportamento responsável” nessa área. No mesmo ano, para se contrapor a essa iniciativa, China e Rússia propuseram um tratado que proibiria armas no espaço. O tratado não visava armas antissatélites, mas armas antimísseis baseadas no espaço. A oposição à iniciativa europeia, além da Rússia e da China, veio da América Latina e da África.

Apesar de apoiar a desmilitarização do espaço, os países dessas regiões não aceitaram que os países com objetos no espaço pudessem ter o direito de usar a força para defendê-los. Nenhuma das duas iniciativas prosperou, mas experimentos militares com fins ofensivos continuam a ser feitos visando à eventual destruição de satélites que poderão ter efeitos devastadores para a defesa e as comunicações globais.

O governo brasileiro não poderá perder de vista as transformações positivas que ocorrerão na área aeroespacial pela redução de custos, por novas tecnologias e, sobretudo, pelo aparecimento de uma nova geração de empresários privados operando ao lado dos governos. Turismo para os ricos e mais avançada rede de comunicações para todos, exploração mineral e transporte de massa passarão a ter um impacto nos negócios e tornarão o espaço uma verdadeira extensão da Terra. Com visão de futuro, o Brasil, que passará a ter interesses concretos nesse campo, deveria fazer o acompanhamento da evolução tecnológica e geopolítica da exploração espacial.

Sem descurar das novas ameaças que começam a ser discutidas agora e poderão afetar as facilidades terrestres de que dispomos, o Brasil deveria participar dessas conversações, quando retomadas.

*Presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen)


Mathias Alencastro: Ruptura da diplomacia dos EUA acaba com papel de xerife do mundo

Confronto com China será maior legado do mandato de Donald Trump

Para um presidente que se define como ultranacionalista, Donald Trump se mostrou sempre muito investido, e por vezes até fascinado, pelas tramas de política externa.

A sua atitude de desprezo pelas instituições internacionais, tratadas como burocracias decadentes, contrasta com a forma apaixonada com que lidou com outras agendas diplomáticas.

Aos trancos e barrancos, ele redesenhou os jogos de poder em certas regiões do mundo e redefiniu o debate da política externa nos Estados Unidos.

A forma como estabeleceu os termos do confronto entre os Estados Unidos e a China será, sem dúvida, o maior legado do seu primeiro mandato. Pouco importa que a guerra comercial seja inócua ou até contraproducente.

Feito notável, Trump deixou claro para o cidadão médio norte-americano a maneira pela qual os planos de Pequim impactam a sua existência. Daqui para a frente, a identidade dos EUA se construirá em função da China.

O Oriente Médio é outro espaço transformado pelas suas iniciativas. Washington encerrou o ciclo iniciado pela Primavera Árabe com a transferência de poder regional do Egito, transformado em prisão a céu aberto, e da Síria, arrasada pela guerra civil, para a Arábia Saudita e as petromonarquias do Golfo Pérsico.

Causa espanto o entusiasmo de alguns com o potencial transformador dessas novas lideranças, mais conhecidas por decepar jornalistas, perseguir mulheres e chacinar populações inteiras, como no Iêmen. Mas deve-se reconhecer que as relações entre Israel e seus vizinhos saíram da inércia depois de décadas.

Em outros casos, Trump destacou-se pela inconsequência ou desinteresse.

A diplomacia tela quente na Península da Coreia trouxe pouco mais do que manchetes de jornais sobre cimeiras tão bizarras como fúteis. Para a desilusão dos teóricos do imperialismo, Trump tratou a América Latina como uma terra insignificante. Até a questão da Venezuela, de alto potencial eleitoral, acabou terceirizada para o senador Marco Rubio e o secretário de Estado, Mike Pompeo.

O declínio da influência americana na Eurásia trouxe consequências inesperadas. A União Europeia acabou reforçando sua coesão interna, como se viu nas negociações pelo pacote econômico de luta contra a pandemia. Os charlatões do brexit, que viram ruir o sonho de uma grande aliança com os Estados Unidos, tentam se virar com Canadá e Austrália.

No mediterrâneo, os atores regionais já operam em modo pós-Otan, com a Turquia emergindo como a principal antagonista política e militar dos europeus depois da Rússia.

Muitos pensam que, numa eventual derrota de Donald Trump, a ordem internacional irá se reconstituir num estalar de dedos do novo presidente Joe Biden. Isso seria subestimar as consequências dos últimos quatro anos.

A ruptura da diplomacia dos Estados Unidos abriu um espaço inesperado para potências médias consolidarem a sua autoridade. A questão não é saber se os Estados Unidos conseguem retomar o protagonismo, mas se a figura de xerife do mundo, criada por Washington, voltará um dia a existir. ​

*Mathias Alencastro, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Pedro Cafardo: Brasil é o pior dos Brics e ainda brinca com fogo

Eventual vitória de Biden nos EUA acabará com o espaço para o negacionismo ambiental e pode levar o país a um bloqueio internacional capaz de asfixiar ainda mais a economia brasileira

O Brasil é, de longe, a maior decepção entre as quatro grandes países emergentes incluídos no histórico trabalho da Goldman Sachs que criou o grupo do Brics - Brasil, Rússia, Índia e China. Se você quer saber quais desses países mais corresponderam às previsões de crescimento econômico, basta ler a sigla de traz para frente. A China foi disparadamente melhor, seguindo-se Índia e Rússia, com o Brasil na lanterna.

O estudo da Goldman Sachs é normalmente atribuído a Jim O’Neill, que formulou o conceito e a sigla em 2001, mas foi assinado por Dominic Wilson e Roopa Purushothaman, com a publicação do “Dreaming With BRICs: The Path to 2050”. Embora tenha sido divulgado em outubro de 2003, esse “paper” trabalha com uma série histórica que começa no ano 2000. A previsão principal é que os quatro grandes emergentes - o texto original não inclui a África do Sul - deverão se tornar, até 2050, a maior força da economia mundial, superando em valor de PIB os países do G-6 - Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, França e Itália.

As projeções, porém, são extremamente detalhadas, a ponto de estimarem o crescimento ano a ano para cada um dos quatro Brics até 2050. Passados os primeiros 20 anos dessa projeção, já é possível fazer um balanço do acerto parcial da previsão. O economista Robinson Moraes, coordenador de Pesquisa Econômica do Valor Data, comparou os dados projetados com a expansão real dos PIBs (método convencional) e o resultado está nos gráficos ao lado, de fácil compreensão. A linha vermelha mostra o crescimento efetivo de cada país e a azul indica a projeção feita pelo estudo. Se a Goldman Sachs tivesse acertado em sua previsão, o PIB do Brasil teria crescido 101,7% nos primeiros vinte anos do século, mas deve crescer apenas 43,6%, já levando em conta as estimativas do FMI para a recessão deste ano. A Rússia também não correspondeu às expectativas e cresceu apenas 78,4% no período, bem menos que os 127,3% previstos no trabalho da Goldman Sachs. A China e a Índia superaram as projeções: cresceram respectivamente 425,4% e 229,8%, bem mais que os previstos 249,3% e 206,1%.

É incrível a semelhança das curvas das linhas do Brasil e da Rússia. Observe que ambos os países acompanharam praticamente a trajetória prevista na primeira década do século, superando razoavelmente a crise global de 2008. A partir de 2014, porém, passaram a ter crescimento sistematicamente inferior ao previsto no estudo.

Por que Brasil e Rússia ficaram para trás na corrida do Brics? As causas têm diferenças e semelhanças. No caso da Rússia, segundo analistas, houve grande impacto na economia interna das sanções aplicadas pelas potências ocidentais a partir de 2014 por causa da anexação da Crimeia. Ocorreu também uma queda dos preços do petróleo, principal produto de exportação russo. Além disso, problemas internos como a falta de reformas e a expansão do Estado são citados como inibidores de investimentos. E houve ainda, a partir de 2014, a adoção de uma severa política de restrição de gastos governamentais que desaqueceu a economia. Por tudo isso, mais de 20 milhões de russos, de uma população total de 145 milhões, vivem hoje abaixo da linha da pobreza.

No caso do Brasil, ainda vivemos uma disputa de diagnósticos. Por que o país desabou a partir de 2014? Os mais ortodoxos dirão - alias, já se cansaram de dizer - que tudo foi consequência de políticas irresponsáveis dos governos petistas, principalmente o de Dilma Rousseff, que criaram um grande problema fiscal e desestimularam investimentos. Os heterodoxos da esquerda também já se cansaram de dizer que tudo correu muito bem até 2013 - o gráfico abaixo mostra isso -, mas a economia desabou depois que passou a predominar a teoria da austeridade fiscal.

Brincar com fogo

Esse embate nunca vai terminar. Fato é que o Brasil ficou parado no tempo nos últimos seis a sete anos. E há semelhança preocupante entre o que ocorre hoje com o Brasil e a derrocada russa a partir de 2014. Lá, as sanções externas se deram por questão geopolítica, a guerra com a Ucrânia pela posse da Crimeia. Aqui, as ameaças já começaram e as possíveis sanções envolvem questões ambientais, porque a comunidade internacional não aceita a catastrófica política brasileira nessa área.

Por enquanto, com Donald Trump na Casa Branca, o Brasil ainda pode continuar com sua política irresponsável, mas, se Joe Biden vencer as eleições, poderá sofrer uma asfixia econômica semelhante à da Rússia após a anexação da Crimeia. Não haverá mais complacência global para negacionismos ambientais. Para quem já é o pior do Brics, seria um desastre. O governo brasileiro, literalmente, brinca com fogo.


José Casado: Jogo de alto risco

Na sua diplomacia errática, Bolsonaro se arrisca a terminar o mandato sem acordos comerciais relevantes

Sob intensa pressão empresarial, governos do Brasil e dos Estados Unidos correram para concluir acordos relegados há anos ao remanso da diplomacia. Estão longe do pacto “ousado”, anunciado a cada semana dos últimos 22 meses por Jair Bolsonaro e o ministro Paulo Guedes.

Notável foi a pressa para terminá-los a apenas duas semanas da eleição americana. É consequência de temores no setor privado com o duplo risco no horizonte: possível derrota de Trump combinada às dificuldades brasileiras com um eventual governo democrata, cujo potencial Bolsonaro insiste em multiplicar a cada avanço de Joe Biden.

Os papéis de ontem resumem expectativas de inversão no estado degradado das relações bilaterais. O fluxo de comércio e de investimentos caiu 25%, o mais baixo na década, atestando perdas com as ilusões bolsonaristas sobre o alinhamento a Donald Trump na guerra com a China.

Os compromissos anunciados são relevantes, porém restritos. Cria-se um canal para liberação mais rápida de mercadorias e ajusta-se uma futura revisão de leis, para cumprir velhas promessas na tributação. Novidade é um legado da Operação Lava-Jato, aquela que Bolsonaro anuncia ter liquidado: adoção no Brasil de padrões anticorrupção usuais nos EUA, com proteção jurídica a quem denuncia subornos.

Aparentam menos vantagens que a proposta chinesa já enunciada pelo embaixador Yang Wanming, para aumento dos investimentos: cooperação na economia digital a partir da tecnologia 5G e comércio aberto, com redução de emissões de carbono até 2030 e neutralidade até 2060.

Na sua diplomacia errática, Bolsonaro se arrisca a terminar o mandato sem acordos relevantes com os EUA, com a Europa e, ainda, brigando com a China por causa da tecnologia 5G, embora tenha presidido um inédito aumento da dependência de Pequim, cliente único de 40% das vendas do agronegócio brasileiro. Deveria ouvir o diplomata Thomas Shannon, que serviu aos governos Obama e Trump. Ele apareceu em São Paulo ontem, advertindo: o Brasil não deveria se meter e muito menos escolher um lado na guerra EUA-China.


Demétrio Magnoli: Juízes que fazem política fracassam duas vezes, como políticos e como magistrados

Confirmação de Barrett na Suprema Corte dos EUA descortina possível reordenamento da democracia americana e ajuda o Brasil a diagnosticar a moléstia que debilita o STF

Amy Coney Barrett, a juíza indicada à Suprema Corte dos EUA, é uma originalista. Os fundamentalistas religiosos querem que as sociedades se curvem aos textos sagrados “tal como foram escritos”.

Os juízes originalistas são fundamentalistas constitucionais: ignoram a dinâmica histórica em nome de um literalismo absoluto. Mas, paradoxalmente, a confirmação de Barrett descortina a possibilidade de um necessário reordenamento da democracia americana. Além disso, ajuda o Brasil a diagnosticar a moléstia que debilita o STF.

Na ponta oposta dos originalistas encontram-se os neoconstitucionalistas, representados no STF por Luís Roberto Barroso. A corrente jurídica acredita que a norma formal (o que está escrito) deve se subordinar à norma axiológica (os princípios morais genéricos inspiradores da Constituição).

O juiz converte-se, a partir daí, em intérprete livre do texto legal, com a prerrogativa de infundir-lhe significados que contrariam seus significados explícitos. Abre-se a autopista do ativismo judicial: o sopro purificador do juiz-ativista produz legislação, ocupando a cadeira dos parlamentares.

A maioria dos juízes situam-se em algum ponto intermediário entre os polos extremos. Ruth Bader Ginsburg, a juíza icônica que logo será substituída por Barrett, tentava equilibrar a letra da lei com os imperativos da mudança social. Ela defendeu o direito ao aborto, proclamado no célebre julgamento do caso Roe vs. Wade (1973). Contudo, anos atrás, explicou como aquela decisão da Suprema Corte provocou resultados perversos.

Na hora de Roe vs. Wade, a opinião pública americana inclinava-se para o direito ao aborto. Mas, como o impasse foi solucionado pelos juízes, não pelo Congresso, descortinou-se o terreno para uma eficaz propaganda conservadora. Os grupos antiaborto acusaram a corte de impor ao povo cristão a vontade de uma elite mundana, apóstata, sem Deus.

A campanha teve sucesso, cindindo a sociedade quase ao meio e transformando o tema em fonte de radical polarização partidária. Ginsburg teria preferido uma decisão política, pela via parlamentar, como na Itália, em 1978, e na Irlanda, em 2018.

A originalista Barrett alinha-se à proteção incondicional do direito à posse e porte de armas pois lê a Segunda Emenda “tal como foi escrita”. A emenda é de 1791, na esteira da Guerra de Independência, num país de proprietários de escravos e de colonos que se espraiavam por terras indígenas. Na época, inexistiam as armas automáticas capazes de ceifar dezenas de vidas em minutos. De fato, a juíza literalista subverte o espírito da lei ao interpretar a emenda como um direito ilimitado.

Já o ativismo do jurista iluminado submete a nação à sua vontade, circundando as dificuldades inerentes à democracia representativa. Roe vs. Wade forneceu os pretextos para uma reação populista de longo curso que intoxicou a política partidária dos EUA.

Hoje, pelas mãos de Donald Trump, emerge uma Suprema Corte fundamentalista, impermeável às demandas de reforma social. Há um lado positivo: os defensores das mudanças devem enfrentar a batalha na arena política e eleitoral, convencendo a maioria da justeza de suas teses.

A lição americana vale, de outro modo, para o Brasil. “In Fux we trust”: o ativismo judicial manifestou-se pelo alinhamento automático de ministros do mais alto tribunal à agenda política do Partido da Lava Jato.

Isso cobrou um preço institucional devastador. De um lado, semeou o chão onde nasceu o governo Bolsonaro. De outro, conduziu o STF a uma espiral entrópica que o fragmentou em 11 ilhas fortificadas engajadas em tortuosas guerras de guerrilha.

Juízes que fazem política fracassam duas vezes, como políticos e como magistrados. Ginsburg não foi grande por defender o aborto, mas por saber a diferença entre a cadeira do juiz e a tribuna do parlamentar.​​

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Merval Pereira: A direita no Supremo

A conformação do Supremo Tribunal Federal (STF) e da Corte Suprema dos Estados Unidos está sendo alterada no mesmo momento histórico de viés direitista nos dois países. Nos Estados Unidos, a morte da juíza Ruth Bader Ginsburg, um ícone dos progressistas americanos, pode dar lugar a um plenário majoritariamente conservador, marcando por décadas o entendimento da Suprema Corte.

No Brasil, a aposentadoria antecipada do ministro Celso de Mello, um exemplo de coerência e defesa da democracia, permitirá que o presidente Bolsonaro nomeie um ministro claramente conservador, embora não reverta a tendência progressista da Corte brasileira.

A tentativa de controlar as decisões da última instância do Judiciário provoca crise política nos Estados Unidos, pois a nomeação da substituta de RBG deveria ficar para o próximo presidente a ser eleito dentro de 38 dias. Quando o ministro Antonin Scalia morreu, em fevereiro de 2016, o Senado americano, dominado pelos Republicanos como agora, não permitiu que o presidente Obama nomeasse o sucessor, sob alegação de que estava em seu último ano de mandato. Hoje, os mesmos Republicanos defendem a nomeação por Trump do novo ministro da Suprema Corte.

O golpe parlamentar dos Republicanos, que fará com que a Suprema Corte fique com uma maioria de 6 conservadores contra 3 progressistas, está provocando grande discussão política, e surge a tese de que os Democratas, se ganharem a eleição para presidente com Joe Biden e o controle do Senado nas próximas eleições, aumentem o número de juízes da Corte Suprema.

O democrata Franklin Roosevelt também ameaçou aumentar o número de integrantes da Suprema Corte para conseguir aprovar medidas de seu programa New Deal, lançado para combater as consequências da Grande Depressão de 1929, que estava sendo barrado pela maioria conservadora.

Propôs ao Congresso, em 1937, lei aumentando a composição da corte para 15 juízes, e estabelecendo a nomeação de um juiz adicional, até o máximo de seis, para quem superasse a idade de 70 anos, quando o mandato, até hoje, é vitalício. A juíza Ruth Bader Ginsburg morreu no cargo aos 87 anos Em meio a uma crise institucional sem precedentes, a Suprema Corte mudou de posição devido ao juiz moderado Owen Roberts, cujo voto ficou conhecido como “the switch in time that saved nine” (“a mudança no tempo que salvou nove”, em tradução livre), e uma maioria a favor do “New Deal” foi formada.

Entre nós, no regime militar, através do Ato Institucional 2, de 1965, o presidente Castello Branco aumentou de 11 para 16 o número de ministros do STF, para controlar a maioria, considerada de esquerda pelos militares. Com o AI-5, três juízes foram aposentados – Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Victor Nunes Leal – e dois renunciaram em protesto: ministros Antônio Gonçalves de Oliveira, presidente do tribunal, e Antônio Carlos Lafayette de Andrada.

Podendo nomear cinco novos ministro, Costa e Silva restabeleceu a composição da corte com 11 ministros, número vigente até hoje. O presidente Jair Bolsonaro já defendeu o aumento de cadeiras do Supremo de 11 para 21, alegando que a atual composição da Corte é muito esquerdista. Depois de desistir de manter uma guerra aberta com o Supremo, Bolsonaro não insistiu mais no golpe parlamentar, mas pretende nomear um ministro “terrivelmente evangélico” para tentar reverter decisões como a lei do aborto, que é também um ponto central na campanha dos conservadores nos Estados Unidos.

O provável indicado é Jorge Oliveira, ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República. Há outros conservadores na disputa, como o “terrivelmente evangélico” ministro da Justiça André Mendonça, o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, que tem se esforçado para se mostrar próximo a Bolsonaro, e o ministro do Superior Tribunal de Justiça, João Noronha.

Nos Estados Unidos, o presidente Trump indicou a juíza da Corte de Apelação de Chicago Amy Coney Barret, uma professora da Universidade de Notre Dame que já tem explicitado posições conservadoras em relação a temas polêmicos como aborto, imigrantes e posse de armas.

Com 48 anos, garantirá aos conservadores uma longa supremacia na Corte Suprema dos Estados Unidos.


Maria Hermínia Tavares: Tragédia de erros

Subserviente a Trump, o Brasil não dá contribuição positiva à crise da Venezuela

Antes que o patético discurso do presidente na ONU lhe roubasse a cena, o chanceler Ernesto Araújo serviu de escada para que, na sexta (18), o secretário de Estado americano, Mike Pompeo, em visita a Roraima, despejasse pesados ataques contra o governo ditatorial da Venezuela. Em Washington, todos sabem que suas palavras tinham como verdadeiros destinatários os eleitores do sul da Flórida, onde se concentram comunidades de exilados cubanos e venezuelanos, cujos votos serão importantes para Donald Trump.

No capítulo "Venezuela libre", do livro de memórias dos seus tempos de Casa Branca —"The Room Where It Happened" (A sala onde tudo acontecia)—, John Bolton, ex-assessor de segurança nacional de Trump, acusa seu antigo chefe de ter uma política em relação a nosso vizinho "descontroladamente errática", ditada por sua agenda pessoal e obsessão pela reeleição.

Assim, o que o ministro das Relações Exteriores considera "parceria profícua e profunda" entre Brasil e Estados Unidos é pura vassalagem. Ela destrói a relação adulta que o país havia construído com a potência do Norte, em que cabiam autonomia na defesa dos interesses nacionais quando divergentes e cooperação em muitas áreas de interesse comum.

A Venezuela vive hoje sob uma ditadura que persegue, tortura e mata opositores, que destruiu a economia e produziu enorme catástrofe social, levando quase 18% da população a buscar refúgio nos países vizinhos. Com o populismo autoritário, a Venezuela é o foco de uma crise que transbordou suas fronteiras.

Da sua complexidade falam com competência Monica Hirst, Carlos Lujan, Carlos Romero e Juan Gabriel Tokatlian, autores do estudo "A Internacionalização da Crise da Venezuela", recém-publicado pela Fundação Friederich-Ebert, da Alemanha.

Ali se vê como a polarização interna, as desacertadas políticas dos EUA, a participação da China e da Rússia em apoio ao governo de Maduro, bem como o "vazio político regional", enfraqueceram qualquer solução pacífica e negociada.

O Brasil não é o único responsável pela falta de mecanismos regionais de negociação. Mas o fato de ter abandonado o pouco que havia e de ter colocado nebulosa ideologia acima da busca por uma agenda comum, por limitada que fosse, certamente contribuiu para a desarticulação presente.

Subserviente a Trump e de costas para a América do Sul, o Brasil tornou-se incapaz de dar uma contribuição positiva. A grandiloquência vazia dos discursos do governo sobre a parceria com os Estados Unidos seria cômica não estivesse contribuindo para uma tragédia.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap


Ascânio Seleme: Tirem os pés do meu pescoço

Ruth Bader Ginsburg foi uma heroína

Ícone. Foi muito apropriado o uso deste termo por jornais para designar a juíza da Suprema Corte americana Ruth Bader Ginsburg, falecida há uma semana. RBG, como era conhecida, foi uma das mais importantes figuras da Justiça americana. Mais até do que um ícone. Uma heroína que trabalhou a vida inteira para mudar a legislação nos pontos em que discriminava a mulher. “RBG transformou os papéis de homens e mulheres na sociedade”, disse a jornalista Linda Greenhouse, que cobre a Suprema Corte americana há 30 anos para o “New York Times”.

Estudante de Direito na Universidade Harvard nos anos 50, quando a escola tinha apenas nove mulheres num grupo de 500 alunos, RBG entendeu cedo que ser mulher era obstáculo para quase tudo. Seu engajamento definitivo em favor da emancipação feminina ocorreu alguns anos depois, quando, graduada, tentou obter um emprego nos escritórios de advocacia de Nova York. Foi rejeitada por todos. “Não contratamos mulheres.” Virou professora e, depois, ativista na União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU).

Se o gatilho que disparou sua obsessão foi o fato de ela própria ter sido vítima de discriminação, é verdade que um germe já havia sido introduzido pela sua mãe, de quem ouviu um conselho que repetiu inúmeras vezes. “Seja uma dama e seja independente”. Ser uma dama significava jamais abrir mão de sua condição feminina. Ser independente queria dizer lutar por condições iguais às dos homens para se emancipar.

RBG iniciou sua carreira de advogada nos anos 70, na ACLU. Suas causas foram sempre contra leis que discriminavam mulheres. Durante anos advogou diante da própria Suprema Corte. Ela entendia que “a divisão por gêneros não ajuda a manter a mulher num pedestal, mas sim numa jaula”. Ganhou quase todas as questões que levou aos tribunais e acabou se transformando numa das maiores referências do feminismo, inspiração para homens e mulheres em todo o mundo.

Ao ser indicada para a Suprema Corte pelo então presidente Bill Clinton, em 1993, RBG passou da condição de ícone para a de pop star. Sua imagem frágil, tinha 1,50m, seu rosto fino e seus óculos grandes e grossos se tornaram parte inseparável da paisagem feminista. Estava em todas. Percebia que, quanto mais se expunha, mais passava sua mensagem. Não houve questão que tratasse da condição legal da mulher de que ela não participasse e, quase sempre, ganhasse. Fez história mesmo nas causas que perdeu.

Em 2006, a Suprema Corte julgou o caso de Lilly Ledbetter contra a Goodyear, que alegava ter recebido salário menor do que funcionários homens que exerciam função igual. Como a petição foi feita depois da aposentadoria, a Corte entendeu que o prazo caducara e negou equiparação retroativa. O voto vencido de RBG mudaria a legislação. Ela disse que as mulheres “são vítimas da discriminação salarial” e exortou o Congresso a corrigir o erro cometido pela Corte Suprema. O Congresso corrigiu o erro e aprovou lei definindo que crimes de discriminação contra mulheres nunca mais vencerão por decurso de prazo.

O trabalho infatigável de RBG ajudou a dar visibilidade a questões muitas vezes ignoradas, que poderiam resultar em aumento de riquezas e renda em todo o mundo. Um estudo do Instituto McKinsey, de 2015, demonstrou que, se as mulheres fossem incorporadas ao mercado de trabalho regular, em condições iguais às dos homens, US$ 12 trilhões (R$ 66 tri) seriam acrescidos à economia global em dez anos, um aumento de 11% para o PIB planetário.

A desigualdade de gênero é quase tão limitadora e opressora quanto o racismo. Só será derrotada se for combatida por homens e mulheres indistinta e permanentemente. Ruth Bader Ginsburg gostava de repetir uma frase da primeira feminista americana, a abolicionista Sarah Grimke (1792-1873). “Não peço nenhum favor para o meu sexo. Peço apenas aos meus irmãos que tirem seus pés dos nossos pescoços”. RBG passou sua vida tratando de tirar pés de homens dos pescoços de mulheres. Ela morreu, mas sua luta continua.


Rubens Barbosa: Brasil e Venezuela, a quem possa interessar

Canal militar poderia sondar a possibilidade de iniciar conversas sobre transição pacífica

No início de setembro, em reunião do Brics, o Brasil exortou os governos da China, da Rússia e da Índia a encontrarem uma saída para a Venezuela, cujo regime se tornou, segundo se afirmou, um foco de crime organizado, terrorismo, tráfico de drogas e de ouro, além de não estar disposto a fornecer condições para eleições livres e justas. A solução demandada é a renúncia dos que detêm o poder e sua concordância com a formação de um governo de união nacional.

Na semana passada, de passagem por Roraima, o secretário de Estado americano, Mike Pompeo, com o ministro Ernesto Araújo, visitou acampamentos de refugiados venezuelanos em ato visando a favorecer a campanha para a reeleição de Donald Trump. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, com o apoio de ex-chanceleres, classificou a visita como “afronta à diplomacia brasileira”. Araújo considerou os comentários “infundados” e que “só teme a parceria (com os EUA) quem teme a democracia”.

Sem ter rompido relações com Caracas, o Brasil fechou a embaixada e os consulados na Venezuela e pediu a retirada de todos os diplomatas venezuelanos, declarando-os personae non gratae. Suspendendo a Venezuela no Mercosul, pelo descumprimento da cláusula democrática, o intercâmbio com o Brasil reduziu-se a iniciativas isoladas de empresas nacionais exportadoras de alimentos.

O Brasil trata dos assuntos com a Venezuela por meio do Grupo de Lima, alinhando-se às ações do governo dos EUA em relação às sanções unilaterais contra o regime de Nicolás Maduro. Em 8 de agosto, o governo venezuelano solicitou ajuda do governo brasileiro para o combate à pandemia, especialmente na área de fronteira com permanente fluxo de refugiados para o Brasil. Sem resposta até agora, no final de agosto o Pro-sul, órgão de coordenação sul-americana, reuniu-se para tratar de ações conjuntas para combater a pandemia e aparentemente não houve comunicação pelo Brasil da carta recebida e as recomendações feitas ignoraram a situação na Venezuela e o apelo humanitário.

Os parceiros regionais, em especial Brasil, Colômbia e EUA, na prática, suspenderam suas relações com Caracas, em função da política de sanções econômicas contra o regime de Maduro. O vazio político e econômico criado abriu espaço para que países extrarregionais, como Rússia, China, Irã e Turquia, além de Cuba, se tornassem parceiros importantes da Venezuela. Nesse contexto, a exortação brasileira foi ignorada.

Os EUA apresentaram em março proposta para a transição política do governo na Venezuela. O plano, chamado Quadro Democrático para a Venezuela, incluía a retirada das sanções econômicas caso Maduro e o presidente da Assembleia Nacional, Juan Guaidó, mandatário autoproclamado do país, abrissem mão do poder. O país passaria a ser governado por um conselho de cinco membros escolhido pela Assembleia até o fim de 2020, quando seriam realizadas eleições presidenciais e parlamentares. De seu lado, os EUA retirariam restrições sobre membros do governo e a venda do petróleo venezuelano, principal fonte de renda externa. A proposta foi apoiada pelo Brasil, mas nasceu morta por ter sido apresentada pelos EUA, e foi rejeitada de imediato pelo governo de Caracas.

O Brasil tem interesses concretos a resguardar, como a proteção da longa fronteira, combater o tráfico de armas, drogas e ouro, proteger a Floresta Amazônica, apoiar medidas para conter a pandemia e reduzir o número de refugiados, receber a dívida comercial e financeira e manter o fornecimento de energia venezuelana para o Estado de Roraima. Os interesses brasileiros estariam mais bem resguardados se o relacionamento com a Venezuela não fosse delegado a um grupo e a outros países do hemisfério ou extrarregionais.

Nenhum outro país estaria em melhor posição para tomar a iniciativa de ressuscitar uma proposta semelhante à dos EUA do que o Brasil. Cabe ressaltar que nunca foi interrompido o relacionamento entre as Forças Armadas dos dois países. A última visita de alto nível à Venezuela foi no governo Temer, quando o ministro da Defesa esteve duas vezes em território venezuelano para se encontrar com sua contraparte para examinar a questão dos refugiados e do fornecimento continuado de energia ao Brasil. Longe dos holofotes, o canal militar privilegiado e preservado, talvez com discreta ajuda de Cuba, poderia sondar a possibilidade de iniciar conversas visando a uma transição pacífica na política venezuelana.

É senso comum que em qualquer negociação, além da representatividade dos participantes, sempre se deve evitar encurralar e deixar o interlocutor sem alternativa. Há que oferecer uma saída ao outro lado. Os militares têm experiência nisso, pois negociaram a transição democrática com o elemento mais importante, a anistia – que não consta na proposta norte-americana. Por sua atuação histórica no processo de integração regional e sobretudo, no atual momento, por seus interesses concretos, o Brasil teria credibilidade para iniciar conversas nessa linha, via diplomacia militar. O governo seria insuspeito por tudo o que tem declarado a respeito do governo de Caracas, mas o interesse nacional estaria sendo posto acima de ideologias e alinhamentos.

*Presidente do IRICE