Estados Unidos

Rubens Barbosa: ‘O perigoso caso de Donald Trump’

Durante a campanha eleitoral, Jeb Bush previu corretamente que Donald Trump era o candidato do caos e, caso eleito, seria um presidente do caótico. Questões de guerra e paz, armas nucleares, imigração e previdência social, que afetam milhões de pessoas nos EUA e em outros países, são tratadas surpreendentemente de maneira pública, muitas vezes contrariando as posições de seus ministros, em tuítes matinais.

Decorridos dez meses da posse e diante das atitudes desconcertantes de Trump, aumentam as incertezas sobre as perspectivas do atual governo norte-americano. O formato e o estilo de seus pronunciamentos públicos, sem precedentes na história política de Washington, a atitude quase autoritária de impor a sua vontade contra a de seus ministros e a maneira como pauta a imprensa, atacada e desprezada por ele, causam perplexidade não só na política interna, sobretudo na relação com o Congresso, mas igualmente ao redor do mundo, em especial entre os principais aliados dos EUA na Europa e na Ásia.

As ações unilaterais de Trump, em muitos casos incoerentes, estão mudando políticas em vigor sem definições alternativas. Disputas com aliados republicanos, opositores democratas e membros de seu ministério começam a ser percebidas como ameaças à estabilidade do governo, como indicam os primeiros pedidos de impedimento apresentados ao Congresso. Em várias frentes, como saúde, imigração, na chamada guerra cultural, que se estende da briga com atletas por seus protestos contra a violência policial na hora do hino nacional à suspensão da proteção contra a discriminação a transgêneros no trabalho, Trump coleciona derrotas, embora muitos (mais de 38% da população) ainda o apoiem, pelo que entendem ser a defesa dos valores americanos, perdidos com Barack Obama.

A crescente falta de credibilidade da administração Trump entre os governos europeus, em particular o da Alemanha, começa a acarretar um gradual afastamento nas posições defendidas pelos dois lados. Em termos de segurança e defesa, de um lado, e de comércio, de outro, percebe-se uma gradual desvinculação da Europa e a busca de um caminho próprio na defesa de seus interesses.

Para justificar essa percepção, cabe mencionar o que está ocorrendo em três áreas: política interna, comércio exterior e política externa.

Em termos de política doméstica, a guerra com a imprensa (CNN, NBC) pelo que ele diz serem notícias falsas (fake news) acerca da ação da Rússia durante a eleição presidencial, que levou à designação de um promotor especial para investigar essa interferência, a tentativa de revogar todas as políticas internas e externas aprovadas por Obama e a maneira pouco solidária como tem tratado a sorte do povo de Porto Rico depois da destruição pelo furacão Maria são alguns exemplos da divisão existente na sociedade norte-americana.

Quanto ao comércio exterior, basta citar o conflito com a Organização Mundial do Comércio (OMC), severamente afetada pela recusa dos EUA de discutirem a nomeação de juízes para o órgão de apelação do mecanismo de solução de controvérsias, em Genebra, pondo em risco um dos pilares mais importantes da instituição. Também a crise com o Canadá e o México na discussão do Nafta, chamado por Trump de o pior acordo negociado pelos EUA, pode criar um clima de incerteza comercial com repercussão global e uma repercussão negativa política e econômica no México na antevéspera da eleição presidencial, que poderá beneficiar o candidato da oposição e de tendência antiamericana, Manuel Lopes Obrador. O governo de Washington apresentou sete propostas de mudanças, incluindo uma que determina que o acordo seja renovado a cada cinco anos, introduzindo uma insegurança jurídica que os governos canadense e mexicano consideram muito difíceis de aceitar (non-starters). A retirada dos EUA do acordo com a Ásia – Transpacific Partnership (TPP) – e a revisão do acordo comercial com a Coreia do Sul agregam mais um elemento de dúvida quanto à palavra de Washington nas negociações internacionais.

No capítulo da política externa, Trump conseguiu a proeza de juntar ao mesmo tempo dois desafios nucleares, com o Irã e com a Coreia do Norte. A não certificação do acordo multilateral sobre o programa nuclear iraniano não retira os EUA do acordo, mas transfere para o Congresso o exame de novas sanções econômicas pelo que ele considera descumprimento do acordo. Isso só fez aumentar a divisão com a Rússia, a China e os países europeus consideram que o Irã está cumprindo os termos do acordo. As manifestações contraditórias em relação aos programas nuclear e balístico de Pyongyang e as ameaças à China para que interrompa o comércio bilateral com Kim Jong-un, a saída da Unesco, assim como as restrições ao Banco Mundial em razão de empréstimos à China e o esvaziamento do Acordo do Clima de Paris isolaram ainda mais os EUA. A ameaça de intervenção militar na Venezuela alienou o apoio dos países latino-americanos. As marchas e contramarchas em relação à Rússia e à China (considerada o maior inimigo dos EUA) introduzem mais um elemento de incerteza em termos geopolíticos.

As seguidas manifestações de Trump – verdadeiro reality show – com sinais contraditórios não estão sendo levadas a sério e são entendidas e ignoradas como expressões de autossuficiência patológica. O comportamento do presidente norte-americano levou um grupo de 27 psiquiatras e psicanalistas a publicar o livro O Perigoso Caso de Donald Trump (The Dangerous Case of Donald Trump), de grande sucesso editorial nos EUA.

Fora o fato de estar em jogo a credibilidade da palavra do governo norte-americano, sobram razões de justificada ansiedade no mundo.

O Estado de São Paulo

* Rubens Barbosa é presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice)

 

 


José Monserrat Filho: Primeiro tratado da história que proíbe armas nucleares

“Nada é mais perigoso para a paz do que a existência de um conflito não resolvido e para cuja solução não se prescreve nenhum procedimento obrigatório.” Hans Kelsen (1881-1973), jurista austríaco que se mudou para os EUA em 1940, autor de “A Paz pelo Direito”, publicado em 1944.

O primeiro Tratado Internacional de Proibição das Armas Nucleares surge em tempos de altíssima tensão global. Foi aprovado pela Assembleia das Nações Unidas por 122 países membros da ONU, em 07 de julho deste ano, e lançado à assinatura e à ratificação dos países em 20 de setembro. O Brasil foi o primeiro a assinar. A iniciativa é inédita desde a criação da energia nuclear e a produção das primeiras bombas atômicas – lançadas em 06 e 09 de agosto de 1945 sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki, no Japão. Nos primeiros quatro meses, os ataques nucleares mataram de 90 mil a 166 mil pessoas, em Hiroshima, e de 60 mil a 80 mil, em Nagasaki. Cerca de metade das mortes em cada cidade ocorreu já no primeiro dia.

Donald Trump, presidente dos EUA, ousou usar a tribuna das Nações Unidas para ameaçar com a destruição total um país membro da organização, sem o apoio de seu Conselho de Segurança. Essa ameaça não resistiria a um julgamento imparcial e justo.

A Organização das Nações Unidas – criada em 1945 – é a primeira organização política mundial com o objetivo inédito, na história do Direito Internacional, de proibir tanto a ameaça quanto o desencadeamento de novas guerras mundiais.

A Coreia do Norte, é verdade, tem construído armas nucleares (que seriam defensivas), em ações condenadas pelo Conselho de Segurança. Mas um bombardeio nuclear sobre esse país teria consequências trágicas incalculáveis não só para a Coreia do Norte, mas também para a Coreia do Sul, o Japão, a China, a Rússia e, certamente, para ampla região da Ásia, além de causar imenso trauma global. A desproporção entre as duas hipóteses é alarmante. Essa crise toda, disse muito bem o ministro do exterior da Rússia, Serguei Lavrov, “tem de ser resolvida de forma cuidadosa.” Ou seja, com diplomacia, inteligência, espírito público, e sem loucuras.

As armas biológicas e químicas já foram proibidas, respectivamente em 1972 e 1993, por tratados internacionais. O Tratado agora criado busca proibir a terceira e última categoria das armas de destruição em massa. As armas nucleares são as mais cruéis e indiscriminadas das três.As principais razões do Tratado de Proibição das Armas Nucleares estão expostas no Preâmbulo. Seus Estados-Partes se declaram “profundamente preocupados com as consequências humanitárias catastróficas que resultariam de qualquer forma de uso de armas nucleares” e “reconhecem a necessidade decorrente de eliminar por completo tais armas, pois esse segue sendo o único caminho para garantir que as armas nucleares nunca sejam usadas novamente, sob qualquer circunstância”.

Consideram-se “conscientes dos riscos causados pelo fato de que continuem existindo armas nucleares, inclusive detonações de armas nucleares por acidente, por erro de cálculo ou de modo deliberado”, e salientam que “esses riscos afetam a segurança de toda a humanidade e que todos os Estados compartem a responsabilidade de prevenir qualquer emprego de armas nucleares”.
Sabem muito bem que “as consequências catastróficas das armas nucleares não podem ser atendidas adequadamente, transcendem as fronteiras nacionais, incidem gravemente sobre a sobrevivência humana, o meio-ambiente, o desenvolvimento social e econômico, a economia mundial, a segurança alimentar e a saúde das gerações presentes e futuras, e tem efeito desproporcional sobre mulheres e crianças, inclusive como resultado da radiação ionizante.” Frisam ainda “o impacto desproporcional das atividades com armas nucleares sobre os povos indígenas”.

Reconhecem “os imperativos éticos para o desarmamento nuclear e a urgência de criar e manter um mundo livre de armas nucleares, mundo que é um bem público mundial de primeira ordem e responde a interesses tanto nacionais quanto de segurança coletiva.

Reafirmam “a necessidade de todos os Estados de cumprirem permanentemente o Direito Internacional aplicável, inclusive o Direito Internacional Humanitário e o Direito Internacional dos Direitos Humanos”. Baseiam-se “em princípios e normas do Direito Internacional Humanitário, em especial no princípio pelo qual o direito das partes num conflito armado de eleger os métodos e meios de combate não é ilimitado, os padrões de distinção, a proibição de ataques indiscriminados, as normas sobre a proporcionalidade e as precauções a serem tomadas num ataque, a proibição do uso de armas nucleares, que, por sua natureza, podem causar sofrimentos supérfluos ou desnecessários, e as normas de proteção do meio-ambiente”.

Estão também preocupados com “a lentidão do desarmamento nuclear, a contínua dependência das armas nucleares nos conceitos, doutrinas e políticas militares e de segurança, e o desperdício de recursos econômicos e humanos em programas de produção, manutenção e modernização de armas nucleares”, sobretudo levando em conta a desigualdade hoje existente no planeta.

As proibições do Tratado Conforme o artigo 1º, cada Estado-Parte compromete-se a jamais e sob nenhuma circunstância:

a) Desenvolver, testar, produzir, fabricar, adquirir de qualquer outro modo, possuir ou armazenar armas nucleares ou dispositivos de explosão nuclear;

b) Transferir a nenhum destinatário armas nucleares e outros dispositivos de explosão nuclear, ou o controle sobre tais armas e dispositivos explosivos, direta ou indiretamente;

c) Receber a transferência ou o controle de armas nucleares e outros dispositivos de explosão nuclear, de forma direta ou indireta;

d) Usar ou ameaçar usar armas nucleares e outros dispositivos de explosão nuclear;

e) Ajudar, estimular ou induzir alguém, de qualquer modo, a realizar qualquer atividade proibida aos Estados-Partes pelo presente Tratado;

f) Solicitar ou receber ajuda de alguém, por qualquer meio, para realizar qualquer atividade proibida aos Estados-Partes pelo presente Tratado;

g) Permitir o estacionamento, a instalação e o lançamento de armas nucleares ou de outros dispositivos de explosão nuclear em seu território ou em qualquer lugar sob sua jurisdição ou controle.

A reação das grandes potências nucleares Nove são hoje os países detentores de armas nucleares: EUA, Rússia, China, França, Reino Unido, Índia, Paquistão, Israel e Coreia do Norte. Nenhum deles assinou o Tratado, e alguns dos mais poderosos dentre eles se opuseram à aprovação do Tratado, argumentando que a proposta ignora “a realidade” do mundo atual, é “idealista”. O fato novo é que, pela primeira vez na história das Nações Unidas, uma maioria de 122 países (o total de membros é de 193) conseguiu se unir e derrotar um pequeno número de grandes potências, cuja liderança tem sido marcada por ameaças de emprego de armas nucleares a quem se atrever a enfrentá-las.

Claro que há algo de irrealismo no Tratado de Proibição das Armas Nucleares. Seus Estados-Partes, obviamente, não contarão tão cedo com o apoio das grandes potências nucleares. Mas algo precisava ser feito, apesar da poderosa oposição minoritária. E foi feito. A longa e tradicional ausência de democracia nas relações internacionais já não funciona com a amplitude de antigamente. Algo parece estar mudando. Ainda bem.

* José Monserrat Filho, mestre em Direito Internacional, vice-presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), ex-Chefe da Assessoria de Cooperação Internacional do Ministério da Ciência e Tecnologia (2007-2011) e da Agência Espacial Brasileira (AEB) (2011-2015), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, e Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica. Ex-diretor da revista Ciência Hoje e editor do Jornal da Ciência, da SBPC, autor de “Política e Direito na Era Espacial – Podemos ser mais justos no Espaço do que na Terra?”, Vieira & Lent Casa Editorial, 2017. E-mail: <jose.monserrat.filho@gmail.com>.


José Roberto de Toledo: Ibope, Internet e voto

Web virou maior influência para eleger um presidente

Pela primeira vez, uma pesquisa extraiu da boca do eleitor o que urnas e ruas sugeriam mas faltavam elementos para provar: a internet virou o maior influenciador para eleger um presidente. Sondagem inédita do Ibope revela que 56% dos brasileiros aptos a votar confirmam que as mídias sociais terão algum grau de influência na escolha de seu candidato presidencial na próxima eleição. Para 36%, as redes terão muita influência.

Nenhum dos outros influenciadores testados pelo Ibope obteve taxas maiores que essas. Nem a mídia tradicional, nem a família, ou os amigos - o trio que sempre aparecia primeiro em pesquisas semelhantes. Muito menos movimentos sociais, partidos, políticos e igrejas. Artistas e celebridades ficaram por último.

TV, rádio, revistas e jornais atingiram 35% de "muita influência" e 21% de "pouca influência", somando os mesmos 56% de peso da internet. A diferença é que seus concorrentes virtuais estão em ascensão - especialmente junto aos jovens: no eleitorado de 16 a 24 anos, as mídias sociais têm 48% de "muita influência" eleitoral, contra 41% da mídia tradicional.

No total, conversa com amigos chega a 29% de "muita influência" para escolha do candidato a presidente, contra 27% das conversas com parentes. Movimentos sociais alcançaram 28%. A seguir aparecem partidos (24%), políticos influentes (23%), líderes religiosos (21%) e artistas e celebridades somados (16%).

Por que a internet tem um peso tão grande na eleição? A constatação do Ibope é importante por levantar essa questão, mas, sozinha, não é suficiente para respondê-la. Outras pesquisas baseadas em resultados eleitorais e estudos empíricos ajudam a entender o fenômeno, mesmo que indiretamente.

Lançado em 2016 nos EUA, o livro "Democracy for Realists" vem provocando polêmica por contestar o conceito popular de que, na democracia, o eleitor tem preferências claras sobre o que o governo deve fazer e elege governantes que vão transformá-las em políticas públicas. Para os autores, e dezenas de fontes que eles compilam, não é bem assim. O "do povo, pelo povo, para o povo" funciona na boca dos políticos, mas não na prática.

No mundo real, pessoas elegem representantes mesmo cujas ideias e propostas estão em desacordo com o que elas pensam. Não fosse assim, os congressistas brasileiros deveriam sepultar em vez de aprovar as reformas da Previdência e trabalhista, rejeitadas pela maioria dos que os enviaram para Brasília.

Segundo Achens e Bartel, o eleitor não vota em ideias, mas em identidades. Elege quem ele imagina que representa o seu lado contra o outro - sejam quais forem os lados. É aquela piada irlandesa. "Você é católico ou protestante? Ateu. Mas você é ateu católico ou ateu protestante?". Ou seja: de que lado está?

Nos EUA, essa linha é mais fácil de traçar porque as identidades se resumem, eleitoralmente, a duas legendas. Mesmo na disruptiva eleição de Trump, 95% tanto de republicanos quanto de democratas votaram nos candidatos de seus partidos. E no Brasil, onde dois em cada três eleitores dizem não ter preferência partidária?

Nas eleições de 2004 a 2014, a geografia separou petistas de antipetistas. Bairros, cidades e Estados mais pobres ficaram majoritariamente de um lado; enquanto moradores dos locais mais ricos, em geral, ficaram do outro. Em 2016, não mais. A internet misturou e segue confundindo essas fronteiras. A construção de identidades virtuais via Facebook e Twitter aproxima forasteiros e afasta vizinhos. Proximidade física importa, mas menos.

Quanto mais tempo ele passar online, mais a internet influenciará o eleitor. O celular bateu a TV também na urna.

* José Roberto de Toledo é jornalista

Fonte: http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,ibope-internet-e-voto,70001836115

 


Trump discurso

Monica de Bolle : Muito circo, pouco pão

Publicado no: O Estado de S. Paulo em 01 Março 2017

Orçamento do governo de Donald Trump nada tem de pão para os mais pobres

“Soltei os panos sobre os mastros no ar
Soltei os tigres e os leões nos quintais.”
Panis et Circenses, Os Mutantes

Quando este artigo for publicado na quarta-feira de cinzas, Donald Trump terá proferido seu primeiro discurso no Congresso americano. Trata-se não do tradicional “State of the Union Address” – este só ocorre depois de o presidente completar um ano na Casa Branca –, mas isso não o torna menos importante. Pela primeira vez, Trump delineará para republicanos e democratas sua agenda de governo nas áreas mais importantes, como os planos para a economia e para a política externa. Na semana passada, no evento Conferência para a Ação Política Conservadora (Conservative Political Action Conference), Trump e seu estrategista ideólogo Steve Bannon discorreram sobre as linhas gerais de seu movimento nacionalista-populista – definição deles, não minha. Curioso é que, até agora, a versão do populismo norte-americano exala tropicalismo peculiar.

O manual dos líderes populistas, bem elucidado pelo economista Sebastian Edwards em podcast imperdível para o Financial Times (ver https://ftalphaville.ft.com/2017/02/24/2184982/podcast-sebastian-edwards-on-why-economic-populism-always-disappoints/), determina que doses elevadas de pão e circo façam parte da estratégia tanto de comunicação, quanto de articulação da política econômica. Motes como “Make America Great Again”, a divisão da população entre “nós” e “eles”, os ataques à mídia independente, a identificação de inimigos (na América Latina, FMI, EUA, as elites; nos EUA, os imigrantes, os chineses, as elites) faz parte do circo. Fazem parte do circo também os tropeços de Trump – a tentativa atabalhoada de restringir a entrada nos EUA de cidadãos de alguns países muçulmanos, o escândalo que derrubou um de seus assessores diretos da área de segurança, as suspeitas de que membros de sua campanha tenham participado de conversas esquisitas com os russos, os tweets infindáveis na madrugada, os estremecimentos diplomáticos com México, China, Austrália, Suécia. Do circo também faz parte o cerco aos imigrantes que cá estão sem os documentos adequados nas operações de busca e apreensão em todo país ao alvorecer. Mas e o pão? Onde está o pão?

Escrevo antes de saber os detalhes do orçamento que Trump proporá ao Congresso. No entanto, suas linhas gerais já foram adiantadas: um aumento de 10% nos gastos com Defesa, com alguma contrapartida nos gastos discricionários e na redução do orçamento do Departamento de Estado e da Agência de Proteção Ambiental. Ou seja, a militarização estonteante – “de puro aço luminoso um punhal” – será em parte financiada por redução dos recursos para a diplomacia e para a proteção do meio ambiente. O corte de gastos discricionários inevitavelmente afetará programas sociais fora das áreas de saúde e seguridade social, por ora preservadas. Em tempo: reduzir drasticamente os programas de saúde e seguridade social existentes é plano antigo dos republicanos, o que significa que Trump terá de travar batalha dentro do Congresso com o próprio partido. As diretrizes do orçamento também preveem corte significativo de impostos para o setor corporativo, porquanto não se tenha clareza sobre o controvertido “Border Tax Adjustment”, o imposto trans-fronteiras que elevaria o custo das importações, e que possivelmente infringiria as regras da Organização Mundial do Comércio.

O orçamento de Trump, portanto, nada tem de pão para os mais pobres, de ajuda direta aos trabalhadores que ele e sua equipe prometeram defender das garras do comércio internacional. Tampouco há nele qualquer indício de que serão direcionados aos Estados que mais perderam empregos industriais recursos para reerguer a grandeza de outrora. É fato que governos populistas dão o pão, apenas para retirá-lo depois daqueles que prometeram proteger. Isso é o que permite que países com governos populistas cresçam por um tempo, antes de cair em desgraça. Nem sequer oferecer o pão, eis inovação que pode impedir a sustentação mais óbvia do populismo.

“Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer.”


Tio Sam

Monica De Bolle: Assim começa

“Desse momento em diante, será América primeiro. Todas as decisões sobre o comércio, a tributação, a imigração, assuntos externos, serão tomadas para beneficiar os trabalhadores americanos e as famílias americanas. Temos de proteger nossas fronteiras da devastação que outros países causaram ao produzir nossos produtos, roubar nossas empresas, destruir nossos empregos. Proteção trará maior prosperidade e força (…). América começará a vencer novamente, a vencer como nunca antes (…) E, sim, juntos faremos América great again.”


“Primeiramente, vocês querem empregos, certo? Esse é o único e principal objetivo (…) – trazer empregos para todos. Esse país pertence a nós e temos de lutar para mantê-lo assim. Para que a América seja great again, precisamos que a classe média revolucionária triunfe (…) Temos de purgar o país de todos os elementos e ideias que hoje infestam nosso país. América para os americanos!”


Proponho um desafio aos leitores. Como muitos devem ter acompanhado, a primeira citação é do discurso de posse de Donald Trump. Mas, e a segunda? Seria de algum de seus inúmeros rallies de campanha? Ou talvez do tour da vitória depois das eleições de novembro?

Como era de se esperar, Trump iniciou seu mandato com um discurso populista, nacionalista, protecionista. Quem imaginava que a retórica de campanha era apenas um punhado de palavras vazias enganou-se tanto quanto os que previram derrota Trumpista. Nos últimos dias, muitos comentários vi no Brasil de gente questionando qual o problema de Trump falar, e repetir, que será a América em primeiro lugar – não seria isso, afinal, o que todo líder quer para sua nação, seus interesses primeiro? Sim. E não. Não porque os EUA não são nação qualquer, mas a maior economia do planeta, o país cujo posicionamento geopolítico tem a maior influência sobre a ordem mundial.

Não à toa, todos os presidentes americanos do pós-guerra – todos – salientaram em seus discursos de posse o compromisso com seus aliados mundo afora, com a manutenção da ordem global, com a sustentação da economia mundial como algo que a todos interessa. Trump nada disse sobre a prosperidade global como algo que interessa aos EUA. Trump repudiou o mundo ao acusar a devastação causada por países que destroem empregos e roubam indústrias. Trump disse que proteção trará prosperidade.

Há muito o que dissecar sobre a integração global e seus efeitos nas economias maduras. Há tanto quanto o que dissecar sobre o advento de novas tecnologias e seus efeitos sobre a indústria tradicional, o encolhimento da economia do rust belt americano, o achatamento da classe média nos EUA. Algo, entretanto, está comprovado há tempos: o protecionismo não é o caminho nem para o resgate desses empregos, nem para a prosperidade. Os resultados do isolacionismo brasileiro estão aí para mostrar a falácia desse pensamento simplório. O protecionismo é reducionista, não expansivo. O protecionismo americano propalado por Donald Trump na melhor das hipóteses haverá de piorar as condições de vida dos “homens e mulheres esquecidos”. Na pior das hipóteses – porque o Brasil apequenado não é a América – levará à percepção de que a maior potência do planeta já era. Os vácuos serão preenchidos, aumentando as incertezas sobre os rumos da economia mundial diante da ausência de líderes com visão clara.

Os mercados, até recentemente, acreditavam, não sem alguma ingenuidade, que Trump faria bem para a economia americana, promoveria o crescimento por meio de cortes de impostos e mirabolantes planos de infraestrutura. Ignoraram o protecionismo e o nacionalismo, relegando-os à categoria de meros instrumentos retóricos de campanha. Pois foi sobre o protecionismo e o nacionalismo que Trump discursou em seu primeiro pronunciamento. Nada disse sobre o resto.

Líderes como Trump são velhos conhecidos na América Latina e na literatura. A segunda citação é de Nathanael West, em A Cool Million, romance publicado em 1934. Quem discursa é o líder populista Shagpoke Whipple em um rally de campanha. Whipple, Trump. A vida de fato imita a ficção.


FMI reduz a previsão de crescimento para o Brasil e a América Latina

Fundo confirma que a América Latina deve superar a recessão, mas diminui previsão de crescimento

O Fundo Monetário Internacional tenta ser mais otimista ao afirmar que o crescimento ganha mais vigor neste ano após um 2016 decepcionante. Segundo a última revisão dos números da economia global, a América Latina superará dessa forma a recessão, ao se expandir 1,2% nesse ano. Mas também será menor do que o esperado. São quatro décimos a menos em relação ao projetado há três meses e o órgão alerta sobre o impacto negativo da incerteza política em um cenário de baixa produtividade, investimentos frágeis e comércio internacional sem incentivo.

A saída da recessão na região é atribuída ao salto dado pela economia brasileira, a maior do subcontinente. A diminuição das tensões políticas internas e a recuperação do mercado das matérias-primas ajuda. Isso permitirá que ao invés de se contrair 3,5%, cresça um tímido 0,2% nesse ano e acelere a 1,5% no próximo. Mas a expansão é três décimos menor do que o esperado — em outubro a previsão do Fundo para o Brasil era de um crescimento de 0,5%.

As economias latino-americanas terminaram o ano com uma contração de 0,7%, um décimo pior do que o previsto no final do ano. Dessa forma, já se adiantou o pior cenário e que o índice cairia dois pontos percentuais ao longo de 2017. O de 2018 se mantém em 2,1%. O crescimento para a região nesse ano fica assim a menos da metade do caminho do 3,4% esperado para a economia global. As economias emergentes e em desenvolvimento crescerão 4,5%.

O Banco Mundial publicou a atualização de suas projeções há uma semana. O órgão calcula que a expansão da economia global irá acelerar 2,7% nesse ano. O crescimento no grupo dos países emergentes e em desenvolvimento subirá de 3,4% em 2016 a 4,2% em 2017. A América Latina crescerá 1,2%. Mas o Banco Mundial alerta que, apesar a da melhoria, a incerteza domina.

A equipe liderada por Maurice Obstfeld, o economista chefe do FMI, faz uma análise semelhante. A conjuntura global enfrenta um panorama mutável. “Os riscos são significativos e de difícil previsão”, indicam. Citam expressamente o impacto das políticas isolacionistas e protecionistas. Na América Latina, dizem, a revisão para a queda reflete uma menor expectativa de recuperação a curto prazo na Argentina e no Brasil e os problemas que o México enfrentará em relação aos EUA.

Represálias comerciais

O México, pelo contrário, estancou. A expansão passará de 2,2% em 2016 a 1,7% nesse ano. É uma diminuição de seis décimos na previsão, a segunda maior depois da Arábia Saudita. O pessimismo é atribuído à vitória de Donald Trump e ao fato das condições financeiras serem mais restritivas pelo enfraquecimento da taxa de câmbio. A previsão para 2018 também é de queda, 2%. Na espera de que as reformas estruturais comecem a dar frutos, o temor é o impacto da nova direção da política comercial nos EUA.

Os efeitos da mudança de governo em Washington vão em duas direções. Por um lado, o incremento dos investimentos em infraestrutura e o corte de impostos podem acelerar o crescimento dos EUA. Isso, a princípio, é bom para os países que fazem negócios com a maior economia do mundo. Mas o protecionismo de Donald Trump pode acabar com esse impulso e criar tensões, o que se soma a uma aceleração do aumento da taxa de juros.

O impulso do plano econômico do presidente eleito ainda demorará dois anos para ser sentido e dependerá, de qualquer forma, do que for adotado no Congresso. A maior potência do planeta crescerá 2,3% nesse ano, saindo de um anêmico 1,6% em 2016. É uma revisão com aumento de um décimo em relação ao previsto há três meses. E crescerá dois décimos em 2018, até 2,5%, quase meio ponto percentual a mais.

O FMI volta a afirmar que as reformas estruturais são a prioridade por conta do fraco ritmo de crescimento da produtividade. Na maior parte dos casos vê a possibilidade de apoiá-las com incentivos fiscais. Ao mesmo tempo, defende uma maior integração econômica pela via da formação dos empregados para assim conseguir enfrentar o desafio da globalização e da mudança tecnológica, que se intensificará no futuro.


Fonte: brasil.elpais.com


‘Trumpeconomics’, um salto no vazio

Programa econômico de Trump coloca em perigo o comércio mundial

O presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, apresentou um programa econômico contraditório, mal-alinhavado e construído fundamentalmente sobre as ideias, claramente nocivas para o crescimento econômico norte-americano e mundial, do protecionismo mais arcaico e da negação do multilateralismo. Não surpreende, pois, que hoje muitos economistas — e também mercados e investidores — queiram se proteger por trás do argumento, fraco mas plausível, de que as declarações incendiárias de campanha e as propostas desatinadas tropeçarão em breve no realismo que qualquer ação de governo impõe. A pergunta pertinente é se o isolacionismo hostil defendido pelo candidato Trump é compatível com uma economia globalizada onde o presidente Trump teria que operar.

Existem razões para um otimismo moderado. O protecionismo proposto pelo candidato, suas investidas contra a globalização e suas ameaças de tarifas e barreiras são ideias de difícil execução. Não é possível desvencilhar-se dos acordos econômicos e ambientais firmados pelos EUA, e dentro do Partido Republicano tampouco existe um acordo monolítico sobre essa neurose protecionista que afeta o presidente eleito. Isso embora seja evidente que o instrumento comercial decisivo para a Europa, o Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP), sofrerá importantes atrasos ou um congelamento quase definitivo.

O protecionismo é um grave risco para os EUA, a zona do euro e os países emergentes

A concepção protecionista de Trump multiplica o risco de uma recessão global justamente porque cerceia a raiz de qualquer possibilidade de crescimento do comércio internacional; sem o TTIP, a zona do euro perde um instrumento básico para recuperar taxas de crescimento, emprego e renda do euro. Para os países emergentes, as expectativas são ainda piores: dependendo de cada caso, o protecionismo planejado atrasará suas respectivas recuperações durante trimestres ou até mesmo anos.

Como os interesses das empresas norte-americanas no mundo vão além do fundamentalismo isolacionista do novo presidente, é provável que os lobbies intercedam para mitigar as arestas mais radicais do discurso. Convém contrastar a violenta antiglobalização de Trump com a experiência dos que tomariam as decisões econômicas reais no novo Governo. Os temores fatalistas gerados por programas incendiários talvez sejam mitigados depois, quando se leva em conta que a nova equipe econômica tende mais ao realismo. Ainda que as ameaças lançadas contra Janet Yellen, a presidente do Federal Reserve (o banco central norte-americano), não sinalizem nada positivo.

Washington não pode nem deve romper seus compromissos econômicos internacionais

Os mercados mundiais, no momento, optaram por esperar e ver o que acontece. Após uma reação inicial de temor, os investidores ponderam que as propostas do presidente eleito não são disparatadas quando se leva em conta o crescimento econômico interno, mas são contraditórias. Trump propõe ao mesmo tempo reduzir os impostos — algo que Reagan fez com maus resultados, embora a economia vudutenha atraído seguidores na Europa e, sobretudo, na Espanha — e desenvolver um ambicioso plano de investimento em infraestrutura. Gastar mais dinheiro contando com menos receita implica, de forma imediata, elevar o déficit e o endividamento do país; é muito elevada a probabilidade de que sejam necessárias novos aumentos de impostos no médio prazo. O plano estratégico carece de nuances. Uma aposta no petróleo e no carvão é simplesmente regressiva, pois solapa a criação de postos de trabalho com maior valor agregado nas novas energias.

Há outra consequência previsível: as taxas de juros terão que subir (nova pressão sobre a Fed) e também terá de haver uma apreciação do dólar. Para a Europa, o efeito pode ser uma melhora na competitividade — num mercado mundial não protecionista — e, se a expansão fiscal e monetária consolidar o crescimento americano, um incentivo poderoso para que Bruxelas, Berlim e Frankfurt aceitem finalmente a expansão fiscal.

A trumpconomics parece hoje um perigoso salto no vazio. Rompe a fraca relação do comércio mundial, cujo fortalecimento era uma das esperanças para uma recuperação mais pujante; materializa a ameaça de uma guerra comercial entre as áreas monetárias; quebra o ajuste gradual das taxas de juros dos EUA, tendência que era — e já é — um reconhecimento dos compromissos de Washington com a economia global; expõe o mundo a uma nova recessão e propõe o agravamento da desigualdade nos EUA. Washington não pode nem deve se retirar dos compromissos com o equilíbrio econômico geral e com a arquitetura das instituições multilaterais. Essa é a ameaça iminente que Trump representa.


Fonte: brasil.elpais.com


Cai um muro, ergue-se outro

Há 27 anos os alemães derrubaram o muro de Berlim com as próprias mãos. Nesta quarta, os EUA ergueram outro

Neste dia 9 se completam 27 anos que milhares de alemães derrubaram, com as próprias mãos, o muro que por mais de duas décadas dividiu Berlim entre oriental e ocidental. A marca visível de uma guerra fria que incentivou ditaduras e repressão política pelo mundo. E nesta quarta, justamente quando se comemora o aniversário da queda do muro de Berlim, é eleito nos Estados Unidos um presidente que propõe construir uma nova muralha de mais de 3 mil quilômetros de extensão na fronteira entre os Estados Unidos e o México. O objetivo de Donald Trump é conter a imigração ilegal de latino-americanos. A obra, orçada em cerca de 8 bilhões de dólares, seria paga pelo governo mexicano. Para isso, Trump planeja bloquear a transferência de dinheiro de imigrantes ilegais dos EUA para o México até que o governo do país vizinho concorde em arcar com o custo da obra.

O discurso contra os imigrantes hispânicos ocorre num momento de crise econômica e falta de empregos e rendeu muitos votos da classe média branca ao bilionário norte-americano. Mas entre o discurso radical de campanha e a realidade existe um fosso enorme. Uma distância que, se não for respeitada, colocará o mundo de volta ao seu pior passado. Um confronto não ideológico, como foi o da extinta União Soviética contra os Estados Unidos, mas da perseguição das minorias como fez Hitler com os judeus na Alemanha nazista. É bom lembrar que Trump também defendeu a proibição da entrada de muçulmanos no país, a vigilância das mesquitas pelo serviço de inteligência e o uso da tortura em suspeitos de terrorismo para arrancar confissões de supostos atentados.

Mas até onde Donald Trump está realmente disposto a investir nessa verdadeira guerra interna contra os imigrantes? Até que ponto, por exemplo, ele irá avançar na radicalização contra a colônia latina que hoje representa mais de 55 milhões de pessoas? Convenhamos: não seria prudente para um governo em início de mandato e cercado de desconfiança internacional enfiar a mão nessa cumbuca. Principalmente depois que ele obteve parte dos votos de hispânicos em estados como a Flórida, que acabaram por garantir sua vitória no país. Trata-se de um eleitorado latino conservador e religioso, que não raro é machista, homofóbico e contra o aborto. E, portanto, alinhado com o pensamento do novo presidente.

Por tudo isso, não acredito que Trump irá cumprir a promessa bizarra da construção física de um muro. Mas acho bem plausível que ele, com suas políticas públicas, amplie ainda mais o muro invisível de preconceitos e de exclusão contra os latinos na sociedade norte-americana. Daqui para frente vai ser bem mais difícil para os hispânicos tentarem a vida nos Estados Unidos. E mais difícil ainda para os ilegais permanecerem no país. Mas quem sabe essa não seja a janela que se abre para os latino-americanos começarem um novo sonho em seus próprios países. Agora, gostem ou não, o futuro é aqui nestas outras Américas, Central e do Sul.