ernesto araújo

Vera Magalhães: Nova diplomacia

Guinada dos EUA é chance de livrar Itamaraty do ranço ideológico

Os Estados Unidos contam seus votos em ritmo de tartaruga, enquanto o mundo decora seus Estados e condados e aprende sobre seu complicado sistema eleitoral. Trata-se, para os países, de uma oportunidade de projetar a nova ordem mundial, e se preparar. O Brasil deveria estar nessa fase, não estivessem os responsáveis pela nossa política externa de luto pela confirmação da derrota do amigo Donald Trump.

A troca da guarda na Casa Branca deveria ser um alerta eloquente para o Itamaraty. Não vai mais adiantar se contentar com migalhas de atenção do “primo rico” ao “primo pobre”, com a família presidencial satisfeita em ser recebida para um tapinha nas costas.

Os democratas são conhecidos por adotar políticas protecionistas quando estão no poder. Com o republicano Trump não foi diferente nessa seara, bem sabemos. Então, nos obstáculos ao aço e alumínio brasileiros e ao jogo duro com etanol e commodities agrícolas pouco deve mudar.

Mas existe uma boa chance de a relação azedar em outras plagas, seja por uma reação política dos democratas aos excessos de torcida brazuca pelo adversário, seja pela mudança de discurso dos EUA no campo da política ambiental.

Joe Biden já deixou claras as restrições à maneira como o governo de Jair Bolsonaro trata os desmates e as queimadas na Amazônia, e os recuos brasileiros no comprometimento com metas climáticas, por exemplo.

Acenou com a ideia de constituir um novo fundo para a Amazônia, desde que mediante contrapartidas do governo brasileiro com políticas de preservação da floresta e fiscalização efetiva do avanço de atividades econômicas clandestinas na região.

Ainda entregue à paixão trumpista e imbuídos da crença mística de que ele venceria, não só o Itamaraty de Ernesto Araújo como o Meio Ambiente de Ricardo Salles se apressaram em recusar o dinheiro e dizer que quem manda aqui somos nós.

O prenúncio das relações entre os dois países com esse time dos terraplanistas ideológicos à frente é o pior possível. É por isso que, se fosse minimamente prático e racional, Jair Bolsonaro deveria considerar seriamente a possibilidade de trocar as peças no Ministério das Relações Exteriores (no Meio Ambiente não há nem o que falar, dado o desastre continuado que a presença de Salles provoca).

Um breve retrospecto do “legado” de Araújo, um diplomata obscuro até ser pinçado por Bolsonaro dado a seu fervor olavista, já seria suficiente para ele levar um bilhete azul num reality-show como O Aprendiz, do ídolo Trump.

Araújo se colocou à frente da tentativa de tirar Nicolás Maduro da presidência da Venezuela, e o Brasil foi um dos primeiros a reconhecer Juan Guaidó como “presidente autoproclamado”. Quase dois anos depois, Maduro se diverte com as agruras de Trump e não arreda pé da ditadura que impôs aos venezuelanos. Sob o comando do chanceler, o Brasil também torceu nas eleições da Argentina e da Bolívia e no plebiscito do Chile, sempre levando de 7 a 1.

Na questão do Oriente Médio, o clã Bolsonaro e seu fiel representante no Itamaraty também fizeram balbúrdia à toa: Benjamin Netanyahu, outro “parça” do Jair, enfrenta contestações internas por acusações de corrupção enquanto se fia nos acordos de paz costurados com a ajuda de Trump para se manter como primeiro-ministro de Israel. Anunciamos com estardalhaço uma mudança de embaixada que nunca se efetivou e vamos ficar falando sozinhos, agora que Trump está de saída. Para quê? Absolutamente nada.

É hora de devolver Araújo à sua carreira obscura e o Itamaraty a alguma racionalidade, que é a tradição da nossa antes reputada diplomacia. Mas esperar algo assim de Bolsonaro é como acreditar que Trump fará uma transição decente e democrática para Biden: não vai rolar.


Bruno Boghossian: Ernesto cumpriu sua missão

Ernesto Araújo cumpriu sua missão com discurso vazio e agenda ultraconservadora

O ministro Ernesto Araújo finalmente reconheceu que a chancelaria bolsonarista não tem muitas credenciais para exibir pelo mundo. Ele disse que o Brasil é visto como um pária internacional por sustentar uma defesa da liberdade. “Então, que sejamos esse pária”, afirmou.

Após pavimentar uma via para o isolamento e de infiltrar o fundamentalismo na diplomacia brasileira, Ernesto posa de vítima de suas supostas virtudes. Numa formatura de diplomatas, nesta quinta (22), o chanceler comemorou sua retórica vazia e escondeu os prejuízos dessa gestão para os interesses nacionais.

O ministro se gabou do fato de que Jair Bolsonaro e Donald Trump “foram praticamente os únicos a falar em liberdade” na última Assembleia Geral da ONU. Se esse é um critério relevante para a diplomacia, o Brasil está em má companhia. O chanceler da Coreia do Norte também pediu um mundo “livre de dominações” e defendeu a soberania dos países.

Na cartilha internacional do bolsonarismo, a liberdade serve de slogan para o atraso. Ernesto usa esse argumento para agir como despachante de uma agenda religiosa, dos interesses do atual governo dos EUA e de bandeiras da ultradireita.

Às vezes, a liberdade fica esquecida. Nesta quinta, o Brasil se aliou a alguns dos países mais conservadores do mundo numa declaração em defesa da família baseada em casais heterossexuais e contra o aborto. Nesse clube está a Uganda, onde reina a discriminação sexual e de gênero.

Ernesto aproveitou a cerimônia de formatura para celebrar a intolerância que levou à perseguição do poeta João Cabral de Melo Neto, acusado de liderar uma célula comunista no Itamaraty em 1952. O chanceler disse que o autor escolheu “o lado errado do marxismo e da esquerda”.

Para justificar a posição marginal do Brasil, o ministro disse que talvez seja melhor ficar ao relento do que participar do “banquete do cinismo interesseiro dos globalistas”. Missão cumprida. Caso esteja sem companhia para jantar, Ernesto pode telefonar para seu colega norte-coreano.


Cristina Serra: Itamaraty acovardado

Governo adotou postura indigna e covarde de submissão aos senhores da guerra

O secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, usou o território brasileiro para bater os tambores da guerra, hostilizar a Venezuela e desfilar sobre o tapete vermelho da sabujice estendido pelo governo Bolsonaro.

A cruzada persistente de Trump contra nosso vizinho ecoa a de Bush filho contra o Iraque, que resultou na invasão do país, em 2003, em nome das armas de destruição em massa de Saddam Hussein, nunca encontradas. Coincidência que os dois países tenham imensas reservas de petróleo? Curiosa é a preocupação democrática seletiva dos EUA, aliados inabaláveis da Arábia Saudita, um dos regimes mais repressivos do mundo.

Felizmente, a presença de Pompeo aqui, em plena campanha de reeleição de Trump, foi contestada por lideranças das mais variadas filiações políticas e matizes ideológicos.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, a considerou uma "afronta". Seis ex-chanceleres, que serviram aos governos Collor, Itamar, FHC, Lula e Temer, lembraram que a Constituição brasileira preconiza a independência nacional, a autodeterminação dos povos, a não intervenção e a defesa da paz.

A Venezuela de Nicolás Maduro está enredada em um labirinto, com uma democracia degradada, instituições em colapso, graves violações aos direitos dos cidadãos e uma crise econômica agravada pelas sanções norte-americanas, conforme registrado seguidamente pela alta-comissária do Conselho de Direitos Humanos da ONU, Michele Bachelet. Até o fim deste ano, estima-se o êxodo de até seis milhões de venezuelanos. Uma tragédia humanitária sem precedentes na América Latina.

É imperativo encontrar mecanismos de mediação entre governo e oposição para uma plena restauração democrática no país fronteiriço. A diplomacia brasileira tem história e reputação internacional na construção da paz. Mas, sob Bolsonaro, preferiu adotar a postura indigna e covarde de submissão aos senhores da guerra.


Oliver Stuenkel: Com Salles e Araújo, imagem do Brasil no Ocidente seguirá negativa

Permanência dos ministros das Relações Exteriores e do Meio Ambiente contamina qualquer tentativa de apaziguar investidores europeus preocupados com o desmatamento

Há semanas, alguns generais e integrantes da ala liberal do Governo, apoiados por numerosos empresários brasileiros preocupados com a imagem do Brasil no exterior, estão sugerindo a Jair Bolsonaro que demita o chanceler Ernesto Araújo e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Mesmo para os padrões bastante baixos do Governo, os dois ministros se destacam e tornam praticamente impossível defender o Brasil lá fora.

Até observadores simpáticos ao presidente hoje admitem que o radicalismo de Salles e Araújo prejudica a economia brasileira, inspirando boicotes contra produtos brasileiros no exterior, aumentando o risco de fuga de investidores e tornando menos provável a ratificação de acordos comerciais. Eles sabem também que a postura ambientalista dos países europeus representa o novo normal. Além disso, se o democrata Joe Biden virar presidente, os EUA passarão a ter uma postura semelhante à europeia em relação ao Brasil. A permanência dos dois ministros, portanto, só aumentará a pressão que o Brasil já enfrenta no exterior.

O problema é que Ricardo Salles e Ernesto Araújo representam duas facções-chave de sustentação do Governo Bolsonaro. No caso de Salles, facilitar o desmatamento desmontando as estruturas de fiscalização tem sido uma das promessas da campanha do presidente, e quebrá-la pode fazer com que ele perca o apoio de uma parte importante do setor ruralista, pouco preocupado com a imagem do país no exterior. Para eles, Salles não decepciona: segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), junho foi o 14º mês seguido em que houve aumento no desmatamento, enquanto o número de multas caiu para menor nível em 24 anos.

O mesmo vale para Araújo: ele representa a faixa lunática, mas bastante barulhenta, da coalizão que sustenta Bolsonaro. O chanceler virou chacota global desde que assumiu e contribui ativamente para o crescente isolamento diplomático do país, mas não se pode negar que entregou o que prometeu: a atuação brasileira enfraqueceu o multilateralismo, inimigo do olavismo. Demitir Araújo pode fazer com que bolsonaristas radicais questionem seu compromisso com suas causas: combater o comunismo, o globalismo e o ambientalismo.

Com Bolsonaro pouco disposto a trocar o comando dos dois ministérios ou de iniciar uma mudança real da sua política ambiental, o Governo tem tentado melhorar sua imagem por meio de medidas simbólicas —uma estratégia identificada lá fora como “window dressing”—. A decisão de decretar “moratória absoluta” das queimadas na Amazônia por 120 dias, por exemplo, dificilmente surtirá efeito. De fato, em off, diplomatas e parlamentares europeus sugerem que gestos pontuais feitos por Hamilton Mourão, presidente do Conselho da Amazônia, para aplacar as preocupações internacionais, pioraram a reputação do Brasil junto aos ambientalistas no exterior. Muitos deles se perguntam como o Governo brasileiro pode levar a sério o combate contra o desmatamento se Ricardo Salles, gravado dizendo que a desregulamentação ambiental deve acelerar enquanto o público estiver distraído com a covid-19, ainda for ministro, responsável pela fiscalização ambiental. Não havia dúvida, segundo um deputado do parlamento europeu me disse em junho, de que Salles é “a raposa cuidando do galinheiro”.

Da mesma maneira, o envio do Exército brasileiro para proteger a Amazônia, iniciativa que gerou visibilidade internacional, não teve efeito tangível. Pelo contrário: como a ação não reduziu o desmatamento, mas até chegou a complicar o trabalho dos fiscais ambientais, ela levou os ambientalistas europeus a acreditarem que Bolsonaro estava tentando enganá-los com um truque barato de relações públicas.

Nesse contexto, o país que mais ganhará com o crescente isolamento do Brasil é a China. Com o Brasil cada vez mais rejeitado no Ocidente, a China já deixou claro, diversas vezes, que em hipótese alguma permitirá que assuntos ambientais afetem a relação bilateral com o Brasil, vista como estratégica por Pequim. Apesar da retórica anti-China de Bolsonaro, a péssima imagem do país na Europa e nos Estados Unidos aumentará, cada vez mais, a dependência brasileira do gigante asiático. Lá, o tema ambiental também está em ascensão, mas, por enquanto, é pouco provável que consumidores chineses se mobilizem contra a política ambiental brasileira.

Bolsonaro sabe muito bem que uma nova estratégia de comunicação, como a recentemente proposta , não apaziguará os investidores. Trata-se, na verdade, de um cálculo político. A pressão externa e um possível dano econômico representam um mal menor se comparados à perda do apoio dos antiglobalistas e dos ruralistas, considerados cruciais para a sobrevivência do Governo. Além disso, é preciso lembrar que a crescente rejeição internacional não é, necessariamente, uma má notícia para Bolsonaro. Sempre em busca de inimigos internos e externos, o presidente pode facilmente construir uma narrativa segundo a qual as críticas à sua postura ambiental nada mais seriam do que uma tentativa de questionar a soberania do Brasil —como já fez no ano passado quando Emmanuel Macron, em um tom um tanto arrogante, atacou a política ambiental brasileira—. Com a temporada dos incêndios e uma nova onda de críticas internacionais a caminho, Bolsonaro só abrirá mão de Salles e de Araújo se, por algum motivo hoje improvável, esse cálculo perder o sentido.

Oliver Stuenkel é professor adjunto de Relações Internacionais na FGV em São Paulo. É o autor de O Mundo Pós-Ocidental (Zahar) e BRICS e o Futuro da Ordem Global (Paz e Terra). Twitter: @oliverstuenkel


Jamil Chade: Cruzada ultraconservadora do Brasil na ONU

Após se aliar a Arábia Saudita contra inclusão de educação sexual em resolução, delegação brasileira veta expressão "saúde reprodutiva" em texto contra ablação, isolando país

Huba Yousef, de 28 anos, sofreu mutilação digital na infância na Somália e, por isso, tem partos dolorosos.
Huba Yousef, de 28 anos, sofreu mutilação digital na infância na Somália e, por isso, tem partos dolorosos. J. M. LÓPEZ

É um mergulho ideológico sem precedentes na diplomacia brasileira. O Governo de Jair Bolsonaro, que já havia se aliado a países ultraconservadores como a Arábia Saudita para vetar a inclusão do termo “educação sexual” em uma resolução na ONU contra a discriminação de mulheres e meninas, agora se opõe a citar “saúde sexual e reprodutiva” num texto proposto por países africanos para banir a mutilação genital feminina. Ainda que o Governo brasileiro defenda lutar contra esse flagelo que atinge cerca de 3 milhões de meninas por ano, a conduta do Itamaraty vem sendo a de pedir a exclusão de qualquer referência ao acesso das mulheres à “saúde sexual e reprodutiva”. O temor da nova ultraconservadora representação do Brasil é que, no futuro, a expressão seja usada para justificar práticas de aborto. Os autores dos textos negam qualquer relação com a interrupção da gravidez e apontam que, no caso da mutilação, tal acesso pode significar a diferença entre a vida e a morte dessas mulheres.

O posicionamento do Governo brasileiro gerou a incompreensão de diplomatas estrangeiros e foi recebido com choque pelas demais delegações. Em Brasília, na sede do Itamaraty, as orientações dadas pela cúpula do ministério também causaram indignação dos próprios funcionários na capital federal. A conduta também vem isolando o Brasil na América Latina, já que o Itamaraty agora é visto como retrógrado pelos países africanos e como bárbaro pelos Governos europeus. O Governo do esquerdista Antonio Manoel López Obrador, do México, por exemplo, chegou a propor a garantia de direitos à saúde sexual para essas meninas submetidas à ablação genital, numa direção diametralmente oposta ao que os diplomatas brasileiros vem sugerindo.

O episódio que turva o debate da resolução contra a mutilação genital, prevista para ir a voto na semana que vem no Conselho de Direitos Humanos da ONU, está longe de ser inédito. A guinada ultraconservadora do Governo brasileiro vem sendo aplicada em diversas reuniões e propostas sob debate nas Nações Unidas. O Itamaraty passou a traduzir em sua política externa uma visão em que só existe o sexo biológico e que não existiria consenso sobre o acesso à saúde sexual e reprodutiva. Termos como “gênero” e “identidade” já tinham também sido questionados.

No entanto, o que surpreendeu os demais países é que, nesse caso, todos os estudos apontam para a importância do tema da saúde sexual e reprodutiva justamente no combate à mutilação genital, que é o corte ou a remoção deliberada de parte da genitália feminina externa —frequentemente lábios vaginais e o clitóris.

Segundo a OMS, 200 milhões de meninas e mulheres vivem em países que praticam a mutilação. A maioria das vítimas tem entre zero e 15 anos de idade e a prática é considerada violação de direitos humanos. Concentrada em países africanos e do Oriente Médio, estima-se que a mutilação poderia atingir 3 milhões de meninas por ano. A agência de Saúde das Nações Unidas explica que a mutilação é “visa assegurar a virgindade pré-matrimonial e a fidelidade conjugal”. “Em muitas comunidades acredita-se que a mutilação reduz a libido de uma mulher e, portanto, ajuda a resistir a atos sexuais extraconjugais”, segue a OMS .

Para a agência e para especialistas, o acesso de mulheres à saúde sexual e reprodutiva, a que o Brasil se opõe, é um importante instrumento para garantir o direito dessas meninas. Num estudo realizado em 2017, a Escola de Medicina Tropical de Liverpool indicou que “aumentar a saúde sexual e reprodutiva de mulheres afetadas pela mutilação só será possível se tomadores de decisão colocaram isso como prioridade”. Entidades como aInternational Planned Parenthood Federation (IPPF) defendem que acesso aos serviços de saúde sexual e reprodutivos seja garantido a todas as mulheres que são submetidas a tal prática.

Contra a educação sexual

A indignação com a guinada da diplomacia brasileira já havia aparecido nos últimos dias. Numa resolução que propõe uma luta contra a discriminação contra mulheres, o Itamaraty também levantou sua placa para dizer que não estava de acordo com termos. O veto brasileiro, neste caso, foi apoiado por Governos ultraconservadores e acusados de violação aos direitos das mulheres. A mesma posição do Itamaraty foi adotada por Arábia Saudita, Catar, Bahrein, Iraque, Paquistão e Iraque. Já todos os ocidentais saíram em apoio ao projeto, proposto pelo México.

No caso da resolução sobre discriminação, o trecho sob disputa cita a garantia de acesso universal à educação sexual. Assim como nos demais casos, o Governo Bolsonaro não explicou o motivo de seu posicionamento.

O projeto toca em assuntos como a necessidade de “eliminar todas as formas de discriminação contra mulheres e meninas”. A meta é a de reforçar a luta pela igualdade de gênero como um dos objetivos das metas de 2030. O texto também deve ir à votação na semana que vem.

Não é a única mudança no projeto solicitada pelo Brasil. Um outro trecho que o Governo quer sua exclusão completa reconheceria que “a gama completa de informações e serviços de saúde sexual e reprodutiva inclui planejamento familiar, métodos seguros e eficazes de contracepção moderna, anticoncepção de emergência, programas de prevenção da gravidez adolescente, assistência à saúde materna, tais como assistência qualificada ao parto e assistência obstétrica de emergência, incluindo parteiras para serviços de maternidade, assistência perinatal, aborto seguro onde não seja contra a legislação nacional, assistência pós-aborto e prevenção e tratamento de infecções do trato reprodutivo, infecções sexualmente transmissíveis, HIV e cânceres reprodutivos”.

A pressão dos Governos islâmicos e o Brasil, porém, não convenceu os autores do projeto a aceitar sua retirada do rascunho do projeto. Ao tomar a palavra, o Governo do México afirmou que seria “difícil” excluir o parágrafo inteiro e alertou que retirar o capítulo de saúde e acesso à saúde reprodutiva minaria o centro da resolução, que é lutar contra a discriminação sofrida por mulheres e meninas.

O impasse entre o bloco ultraconservador e o restante dos Governos deve levar o projeto a ser alvo de intensas negociações nos bastidores até a semana que vem. Num outro trecho do projeto, o Governo brasileiro ainda fez um pedido para que seja reconhecido o papel de entidades religiosas na formulação de políticas públicas para a defesa das mulheres e da igualdade de gênero.

Num outro trecho, o Brasil apoiou Afeganistão e Nigéria ao questionar uma referência no texto a “outros fatores de identidade”. A postura do Itamaraty de aproximação aos Governos mais conservadores tem sido alvo de polêmicas dentro da ONU, que considerava o Brasil como um dos aliados tradicionais no avanço dos direitos das mulheres.

A atitude do governo brasileiro voltou a surpreender ativistas de direitos humanos. “O Brasil mais uma vez dá um vexame internacional e se firma no grupo de países que adotam as posturas mais retrógradas nas discussões sobre gênero nas Nações Unidas”, afirmou Camila Asano, diretora de programas da Conectas Direitos Humanos. “A postura do órgão não condiz com as políticas adotadas no Brasil há anos e com os compromissos internacionais assumidos pelo país em matéria de gênero e direitos sexuais e reprodutivos”, disse.

Durante a reunião na semana passada para apresentar seus vetos, o Governo brasileiro tomou a palavra e explicou que tais termos “geram controvérsias”. O Governo também insistiu que “rejeita a prática do aborto como um método contraceptivo. “Planejamento familiar é um assunto de liberdade do casal e o Estado é responsável por prestar recursos a esse direito, sem coerção”, completou.


Míriam Leitão: Resposta errada do governo no meio ambiente

Os primeiros movimentos de resposta do Brasil aos investidores apontam para o fracasso. Que chance tem de dar certo a estratégia de convencer que o Brasil respeita o meio ambiente com o presidente Bolsonaro afirmando que eles estão com “uma visão distorcida” dos fatos e uma carta que tem entre os signatários a dupla Ricardo Salles e Ernesto Araújo? Não há o que Salles faça que apague seus abundantes atos e palavras contra o meio ambiente neste um ano e meio. Araújo vive em órbita pelo mundo da lua capturado por teorias da conspiração. Para piorar, existe o danado do fato: o Inpe acaba de mostrar que o Brasil bateu novo recorde de queimada na Amazônia.

Do ponto de vista econômico, o que está acontecendo é uma enorme contradição. A maior recessão da história do país e o desmatamento subindo. Como pode o nível de atividade estar em queda livre, e o desmatamento e as queimadas, em alta? A resposta é: o governo Bolsonaro deu fartos incentivos à atividade ilegal. Os criminosos sabem que ficarão impunes e que, se tiverem mais sorte, verão uma Medida Provisória aprovada consolidando seu domínio sobre áreas que grilaram.

O vice-presidente Hamilton Mourão no comando do Conselho da Amazônia foi um avanço, mas o desmatamento está crescendo forte pelo segundo ano consecutivo mesmo com as ações do Exército. A entrada do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, na turma que quer demover grandes fundos de saírem do Brasil tem um ganho e dois óbices. O bom é que Roberto Campos circula fácil pelo mundo das finanças internacionais e tem boa rede de contatos. O primeiro problema é que um presidente do Banco Central não se envolve tanto com questões de governo como ele tem feito, segundo, pelo que disse até agora, ele também esposa a tese de que os outros é que estão mal informados.

Só pela carta que os 29 fundos mandaram para as embaixadas brasileiras, cobrando explicações sobre a política ambiental, já ficou claro que eles sabem exatamente o que se passa no Brasil. Citaram até a boiada pandêmica do Salles. O mundo de hoje é o da informação instantânea. A tese de que os outros países estavam desinformados a nosso respeito foi usada na época da ditadura para negar a tortura. Mesmo naquele mundo analógico, a estratégia deu errado porque contrariava os fatos.

O melhor é mudar os fatos. Essa é a forma de convencer. O vice-presidente disse à “Folha” que convidará embaixadores para sobrevoar a Amazônia. A visão do verde dos nossos bosques não convencerá porque todos podem consultar as imagens de satélite que mostram a progressão do desmatamento no Brasil. Os avanços que o governo pode relatar, como, por exemplo, a queda da taxa de desmate a partir de 2004 pertencem ao governo Lula. A tendência começou a mudar nos governos Dilma-Temer e a destruição acelerou nesta administração. Se os dados atuais forem comparados com a taxa de 2004 haverá sim uma redução, mas foi resultado de políticas ambientais e fortalecimento dos órgãos de controle, totalmente desmontados na atual gestão.

Se quiser mudar a imagem do país, o governo brasileiro tem que começar trocando os ministros do Meio Ambiente e das Relações Exteriores. Salles é um dano ambulante à imagem do Brasil. Ele faz qualquer coisa para destruir o meio ambiente, até rasgar dinheiro, como fez com o Fundo Amazônia diante da Noruega e da Alemanha. O problema de Araújo é de outra natureza. Decorre da sua falta de conexão com a realidade. Ele costuma deixar seus interlocutores constrangidos pela maneira como interpreta a conjuntura internacional e sobrevoa os eventos contemporâneos a bordo de teorias lunáticas.

O ponto central da dificuldade de melhorar a imagem ambiental do Brasil é que o presidente Jair Bolsonaro acredita em tudo o que disse e fez nesse campo. Ele acha que o bom é liberar o garimpo e perdoar grileiros. Já que não pode acabar com as terras indígenas, ele quer mineração nessas unidades de conservação. Se pudesse, fecharia órgãos como o Ibama e o ICMbio. Como não pode, ele os enfraquece e ameaça os servidores, como fez com os que destruíram tratores encontrados em desmatamentos de terras públicas. Salles segue ordens do seu chefe. A imagem do Brasil reflete o que tem infelizmente acontecido. Distorcida é a visão de Bolsonaro.


Paulo Esteves e Monica Herz: Com Ernesto Araújo, a pátria amada se rende ao temor servil

O vídeo da reunião ministerial revela que, em seus delírios, o chanceler se vê servindo a mesa em que as grandes potências desenham os contornos da ordem internacional pós-pandemia

O Brasil vê diminuir a sua capacidade de influenciar a política internacional. Pior, perde o respeito da comunidade internacional. É claro que a política doméstica e a infame resposta à covid-19 afastam os demais países. Mas o dano se torna irremediável com o soberanismo, uma orientação para a política externa que paradoxalmente combina soberania e servilismo.

Países médios, como o Brasil, optam por uma estratégia de alinhamento automático com uma grande potência para diminuir custos ou receber incentivos. Com Bolsonaro, o alinhamento aos Estados Unidos não produziu nenhum desses resultados e ainda ameaça a balança comercial brasileira. Por que, então, Bolsonaro abraçou o bordão “America first”? Por duas razões: de um lado, há uma identidade de propósitos e modos de operação entre Bolsonaro e Trump; de outro, o alinhamento sem bônus é o resultado automático da política externa soberanista, como tentaremos demonstrar. Ambos extraem legitimidade da produção de antagonismos. Instigam a fragmentação social e promovem a luta entre esses fragmentos. O inimigo é móvel e mantém sua base de apoio coesa e mobilizada (Venezuela, os marxistas culturais, ou o vírus chinês). Além de operarem de forma semelhante, têm pelo menos um projeto comum: esvaziar a esfera pública e destruir o Estado.

No caso brasileiro, esse projeto se manifesta em vários setores, inclusive na política externa soberanista. Soberanismo não é uma doutrina, mas um punhado de enunciados justapostos. Essa colcha de retalhos combina as palavras liberdade, soberania e democracia, às quais o chanceler atribui significados inesperados que, embora não façam sentido, têm como efeito mobilizar os ressentidos em defesa de um modelo inexistente de família tradicional. Parafraseando o chanceler, a nação é uma “família estendida”. Como soberanas, família e nação devem ser protegidas da interferência externa. Liberdade, no vocabulário do bolsonarismo, significa a ausência de limites para o exercício da vontade do soberano, seja o chefe da família ou o chefe supremo da nação. Em uma palavra, o chefe faz o que quiser com sua família e o presidente com sua nação (e ponto final). Não por acaso, após 18 meses de Governo, a única iniciativa de política externa, para além de desmanches institucionais, foi a cooperação com os governos da Hungria, Polônia e Estados Unidos para a proteção da família.

O problema é que o soberanismo rejeita o sistema internacional baseado em normas que, segundo seus advogados, limitariam a ação soberana. Seguindo os Estados Unidos (que acabam de se retirar da OMS) e Israel, o Brasil abandona o apoio a iniciativas junto às instituições multilaterais. Essas instituições são, contudo, fundamentais para moderar a preponderância das grandes potências e para responder a importantes questões como... pandemias. Além do abandono do quadro normativo há aqui a afirmação de uma concepção darwinista da gramática do poder: relações de poder assimétricas condicionariam o alinhamento automático, nesse caso, com os EUA. O “soberanismo” tem como consequência paradoxal o servilismo. Para garantir que Bolsonaro possa incendiar a pátria amada, Ernesto Araújo curva-se com temor servil à potência. O vídeo da reunião ministerial revela que, em seus delírios, o chanceler se vê servindo a mesa em que as grandes potências desenham os contornos da ordem internacional pós-pandemia.

Dessa forma, abandonamos qualquer proposta de construção de uma política externa autônoma e publicamente informada. Mais grave, a política externa do bolsonarismo é incapaz de articular a inserção internacional do Brasil à resolução dos enormes problemas sociais e econômicos do país. Abandona-se, também, a posição de liderança na América Latina, deixando, como no caso da Argentina, que opções políticas contingentes tenham impacto sobre a confiança construída por décadas.

Diante das transformações impostas pela pandemia, precisamos de uma política externa capaz de influenciar atores, regras e o fluxo de recursos materiais no sistema internacional. Uma política externa que expresse a complexidade de interesses da sociedade brasileira e não apenas os interesses de uma fração de sua elite. Essas tarefas exigem três movimentos: o fim da instrumentalização da política externa para a produção de antagonismos sociais, a revisão da política de alinhamento automático e a construção de alternativas que articulem a política externa aos reais problemas sociais e econômicos do país.

Paulo Esteves e Monica Herz são professores de relações internacionais da PUC-Rio.


Sergio Leo: Entre a Casa Branca e a casa arrasada, a diplomacia do tiro no pé

O ministro Ernesto Araújo, que fez analogia entre isolamento social e campos de concentração, planta obstáculos sérios ao trabalho de seus sucessores. Para alguns temas, a ordem de Brasília é consultar o Departamento de Estado americano, e acompanhar Washington

Impassível, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, postou-se ao lado do Presidente da República no pronunciamento que se seguiu à queda do ministro Sérgio Moro, um dos aliados que deram corpo à vitória eleitoral de Jair Bolsonaro. Os desencontros sobre os rumos da economia também ameaçam a imagem ― e a permanência ― de outro avalista eleitoral, Paulo Guedes, da Economia; mas Araújo continua com carta branca para destroçar as tradições diplomáticas brasileiras. E não só isso.

Alguns especialistas chegam a duvidar que o Governo Bolsonaro tenha uma política externa clara. Mas Araújo tem: seu objetivo, manifestado publicamente, é destruir condições que permitiram ao Brasil ter uma diplomacia para chamar de sua, na defesa do interesse nacional. Araújo protagoniza uma suicida diplomacia da “arminha”, de gangue, quase inteiramente voltada a agradar um público interno radicalizado que se deleita em imitar o gesto belicista de Jair Bolsonaro.

Como guia, essa política defende uma aliança acrítica com o líder do mundo cristão ocidental, os Estados Unidos, e, contraditoriamente, com governos nacionalistas radicais pelo mundo. É a política externa do tiro no pé: ela procura minimizar, obstruir ou simplesmente eliminar canais que permitem a um país como o Brasil exercer influência própria sobre a região sul-americana e no mundo.

Além de acordos de livre-comércio, que o ministério da Economia hoje comanda, deixando o Itamaraty em segundo plano, a única concessão à ação multilateral do Brasil já feita por Bolsonaro foi o elogio à atuação das forças armadas brasileiras nas missões de paz na ONU, das quais participaram alguns dos generais de seu Governo.

Em seu último ato histriônico, um artigo no qual acusou o esforço contra o novo coronavírus de abrir espaço a um suposto “comunavírus”, Araújo, a pretexto de analisar um artigo do filósofo Slavoj Zizek, argumentou que submeter políticas nacionais às orientações da OMS seria “apenas o primeiro passo na construção da solidariedade comunista planetária”. Na visão do chanceler brasileiro, “globalismo é o novo caminho do comunismo”, e a batalha mundial contra a covid-19 seria uma oportunidade “para acelerar o “projeto globalista” contra o qual ele dirige os esforços da diplomacia nacional.

No artigo, que provocou espanto nos meios diplomáticos, Araújo descreve como agiria esse “projeto globalista” incompatível com a política externa do Brasil: “por meio do climatismo ou alarmismo climático, da ideologia de gênero, do racialismo ou reorganização da sociedade pelo princípio de raça [referencia às políticas de ação afirmativa, como cotas para negros], do antinacionalismo, do cientificismo (sic)”.

A falta de cuidado com as palavras, ao arrepio da prática diplomática, levaram até a uma censura pública do Comitê Judeu Americano, que exigiu do chanceler um pedido de desculpas por uma analogia, feita por ele no polêmico artigo, entre medidas de isolamento social e campos de concentração nazistas. Araújo não se desculpou; acusou as críticas de “injustas e equivocadas” e, enjeitando sua própria analogia, culpou Zizek por trazer à baila o tema dos campos de concentração.

Mais que folclórico, o projeto diplomático de Araújo rompe e contraria uma tradição de posicionar o Brasil como protagonista global, qualificado e interessado em reforçar a cooperação e negociação internacional. Ele contraria, por exemplo, manifestações como o comunicado do G-7 em favor de “coordenação global” para o combate à pandemia da covid-19; e, pior, provoca constrangimentos reais na diplomacia internacional.

O Brasil impôs veto, nos órgãos das Nações Unidas a referencias a expressões como “gênero”, nos documentos oficiais, e votou contra referências a promoção de educação sexual. Em uma dessas votações, segundo um membro da delegação brasileira em Genebra, um diplomata brasileiro foi abordado por um colega africano, com a queixa de que a posição do Brasil aumentava suas dificuldades em convencer políticos e membros do governo conservador em seu país da necessidade de apoiar na ONU políticas modernas de proteção às mulheres e à infância em matéria sexual.

Um dos mais ativos fundadores da Organização das Nações Unidas, que lhe dá o privilégio de ser o primeiro a discursar nas assembleias anuais da ONU, o Brasil hoje é alvo de chacota na organização, por manifestações como a do chanceler e acusações levantadas por figuras próximas a Bolsonaro, de que as Nações Unidas são uma peça no complô “globalista” contra o patriotismo e os princípios cristãos. A diplomacia bolsonarista boicota iniciativas da ONU, abertamente, para reforçar suas posições em política interna, desde sua guerra contra uma suposta “ideologia de gênero” até o desdém pelas políticas globais de direitos humanos.

Quando deixar a cadeira que ganhou graças à filiação às ideias paranoicas do ideólogo Olavo de Carvalho e à proximidade com Eduardo, o filho 03 do presidente, Araújo terá plantado obstáculos sérios ao trabalho de seus sucessores; seja ao ajudar a esvaziar instâncias internacionais de política externa como a ONU, a OMS ou o Mercosul, seja ao criar precedentes desmoralizadores para o Itamaraty em temas caros à tradição do país ― como o apego a soluções diplomáticas para conflitos, a oposição a ações unilaterais, o reforço de órgãos multilaterais para decisões que afetam a todos, ou a imagem do Brasil como um mediador confiável, capaz de propostas técnicas de qualidade.

Ele terá sido coadjuvante da política de Donald Trump na paralisação dos mecanismos da Organização Mundial do Comércio que atuam contra barreiras arbitrárias nas alfândegas; terá excluído o Brasil dos esforços conjuntos ― e eventualmente, de benefícios ― no combate à covid-19 patrocinados pela Organização Mundial da Saúde; e colaborado, em papel secundário, para esvaziar a integração dos países do Mercosul e enterrar iniciativas bem sucedidas de cooperação sul-americana em Defesa, comércio e outros aspectos supranacionais que afetam o futuro da região.

Com seus ataques aos acordos ambientais internacionais, terá contribuído, também, para tirar a legitimidade alcançada pelo Brasil nas discussões relevantes sobre o combate ao aquecimento global. E, ainda, para reforçar argumentos dos ecologistas e outros ativistas, na Europa, contra o acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia, um dos poucos resultados a apresentar da política externa de Jair Bolsonaro ― acordo que diplomatas experientes afirmam estar moribundo, não só pelo crescimento das pressões protecionistas no continente europeu, após a pandemia, como pelos atritos criados por Bolsonaro e Araújo com dois dos principais Governos do bloco, Alemanha e França.

Iniciativas multilaterais, como o projeto de integração de infraestrutura das Américas (IIRSA), impulsionada pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento perderam destaque na pauta do Itamaraty “antiglobalista”. A obra mais significativa apoiada pelo Itamaraty, o corredor bioceânico que passará pelo Mato Grosso, está hoje abrigada sob a ProSul, uma iniciativa de articulação governamental entre governos à direita no espectro político, inaugurada pelos presidentes do Chile e da Colômbia e comunicada depois ao Governo brasileiro.

No que diz respeito ao BID, nos últimos meses, esteve mais empenhado em secundar os Estados Unidos na ação para substituir o representante da Venezuela no banco, demitindo o indicado por Nicolás Maduro e nomeando um escolhido pelo autoproclamado presidente Juan Guaidó.

papel subordinado às determinações da diplomacia de Donald Trump, aliás, é uma marca que Araújo conseguiu impor mundialmente aos diplomatas brasileiros. Funcionários graduados do Itamaraty ― falando anonimamente, por temor de represálias ― revelam que, em questões relativas ao Oriente Médio nas quais não se tem uma posição clara do Brasil, a ordem de Brasília é consultar o Departamento de Estado americano, e acompanhar Washington.

Nos Governos que assumiram após o fracasso do regime militar (regime, este, que deixou o país com hiperinflação, crise fiscal, dívida externa impagável, corrupção e ineficiência no setor público e miséria com violências nas grandes cidades), a política externa teve mudanças de foco ou de ênfase, mas não de substância. E a ação diplomática nas instâncias internacionais foi usada para resolver problemas e apontar soluções, muitas vezes buscando protagonismo.

Com José Sarney, o projeto que resultou no Mercosul desarmou desconfianças entre os militares de Brasil e Argentina, e, no governo seguinte, permitiu uma imprevista cooperação em matéria nuclear. Com Collor, a concretização do mercado comum permitiu superar resistências dos setores industriais nos dois países e derrubar barreiras ao comércio que alimentavam ineficiência dos parque produtivos da região.

No Governo Fernando Henrique Cardoso, o ministro da Saúde José Serra obteve vitórias na OMC e na OMS que facilitaram a produção e comercialização de medicamentos genéricos. No Governo Lula, apesar das críticas de opositores e veteranos diplomatas, houve uma dose de pragmatismo que sepultou iniciativas na Venezuela, Bolívia e outros vizinhos para caracterizar o Brasil como uma espécie de potência “subimperialista” beneficiada no comércio e na infraestrutura; e gerou-se até um insuspeito acordo Brasil-Estados Unidos, com George Bush do lado americano, em torno da popularização do etanol combustível ― boicotado pela Venezuela de Hugo Chávez.

Enquanto o Governo FHC argumentava que o Brasil, pela falta de recursos de poder (força militar e econômica, especialmente), deveria escolher iniciativas internacionais de seu interesse, já existentes, para aliar-se a elas, o Governo Lula, em sua “diplomacia ativa e altiva” avaliou que poderia influir na própria agenda global, o que gerou iniciativas criticadas como o esforço por um acordo nuclear com o Irã, mas forte influência nos debates globais e relativo êxito em alguns momentos, como na formação do G-20 da OMC, dedicado a defender interesses dos países emergentes, além do convite para participar de outro G-20, o político, que reúne chefes de Estados ricos e emergentes para discutir saídas conjuntas para temas globais.

Há um consenso, entre os analistas, de que o Governo Bolsonaro, ao hostilizar a China, França e outras potências, atacar os organismos multilaterais e orientar declarações de autoridades para objetivos de mobilização de sua base mais radical, comprometeu um esforço de décadas para dotar o Brasil do chamado poder brando, ou “soft power”, que permite a um país alcançar resultados usando recursos de persuasão e convencimento pelo exemplo.

O criador do conceito de soft powerJoseph Nye Jr., diz que o poder brando “pode parecer menos arriscado que o poder econômico ou o poder militar, mas, em geral, é mais difícil de usar, fácil de perder e difícil de restabelecer”. É fácil imaginar a influência da política “antiglobalista”, subordinada a iniciativas de parceiros ideológicos, especialmente os Estados Unidos de Donald Trump.

É urgente a necessidade de tirar o chanceler paranoico do comando da diplomacia. A pandemia levanta o risco de aumento do protecionismo e de decisões unilaterais por parte das grandes potências, e o crescimento da influência da China, primeiro país a levantar-se após o choque da quarentena, provocará respostas ainda imprevisíveis por parte dos outros grandes atores globais.

Nos próximos anos, teremos um debate em torno das estratégias para lidar com novas ameaças à saúde mundial, com a recuperação da economia e com a reorganização das cadeias globais de comércio e serviços, em meio ao aquecimento global e o aumento da influência da Ásia nos arranjos globais. O Brasil já teve papel importante dessas discussões, e, hoje, é mero espectador. Com a permanência de Ernesto Araújo ou algum equivalente genérico, corre risco pior, o de assistir a tudo como o inconveniente no fundo da sala, cujas manifestações só perturbam quem está levando a sério as negociações para enfrentar problemas que afetam a todos.

Sergio Leo é um jornalista e escritor brasileiro, especialista em relações internacionais


Hussein Kalout: A insustentável estratégia da diplomacia brasileira

Políticos, diplomatas, militares, acadêmicos e empresários imaginaram que a realidade iria servir como barreira natural para a nova doutrina das relações exteriores do País. Se enganaram 

Apesar das desconfianças e da perplexidade com a heterodoxia da nova orientação da “política exterior” do País, políticos, diplomatas, militares, acadêmicos e empresários imaginaram que a realidade iria servir como barreira natural de contenção para as descalibradas aventuras que se prenunciavam e o pragmatismo, logo acabaria, com o tempo, predominando sobre a frívola proposta que foi apresentada à Nação.

O novo corolário doutrinário das relações exteriores do País trazia consigo um equívoco de concepção: desprezar na largada os tabuleiros de fácil e imediata maximização dos interesses nacionais em troca da projeção de hipotéticas vitórias em tabuleiros mais volúveis e de alta complexidade – e isso, obviamente, sem os necessários recursos que delimitam o poder real de dissuasão de um país.

China e EUA foram transformados em dilema. O presidente, durante a campanha e após a campanha, não poupou esforços para atacar um país e louvar o outro. O inquilino da Casa Branca tornou-se referência moral e padrão estratégico a ser seguido pelo Palácio do Planalto. Até os erros, inertemente, são macaqueados.

No marco dessa difusa equação, a reafirmação de lealdade a esse alinhamento passou a estar consubstanciado no constante antagonismo com a China, na agressividade retórica na América do Sul e no abandono do equilíbrio dos temas médio orientais. 

O bolsolavismo acreditava que poderia modular duas narrativas, que, apesar de ambivalentes, poderiam funcionar sem custo diplomático. Erro crasso! Em seu torpe ideário, provocar um choque frontal com os chineses serviria a dois propósitos: 1) alimentar os ignorantes agitadores digitais de sua bolha ilusória nas redes sociais; e 2) reforçar os laços com Washington de aliado obediente e comprometido com a causa anti-China. A sua turva visão não alcançou, até o momento, a compreensão de que os EUA querem seguidores e não sócios na partilha de qualquer espólio comercial envolvendo o mercado chinês.

Irritar a China publicamente e contemporizar os danos nos bastidores – para capitalizar com americanos e aplacar a ira dos chineses – é uma estratégia falida. É como caminhar no fio da navalha com uma granada na cintura.

Os bolsolavistas não sopesaram em seus cálculos a virulência da reação chinesa. Julgaram que o pragmatismo chinês amorteceria a sua infantilidade institucional e o que prevaleceria, ao fim e ao cabo, são os negócios – puxados sempre pelos competentes adultos do Ministério da Agricultura e pela prudência dos generais.

O governo Bolsonaro criou um falso e desnecessário dilema para definir o papel do Brasil no contexto das relações do Brasil-China-EUA. Elevar as relações entre Brasília e Washington ao patamar de uma parceria estratégica – ou mesmo uma aproximação nos termos imaginados por Bolsonaro – não deveria excluir a expansão da relação política e comercial com Pequim. Uma agenda profícua com a China não deveria implicar, por outro lado, distanciamento dos EUA.

Para jogar no tabuleiro geoestratégico em meio às duas superpotências mundiais – cujos recursos de poder são superiores aos nossos –, o Brasil precisa ter clareza das consequências. Atacar Pequim, sem ter para onde escoar as suas commodities e sem saber como substituir os investimentos no setor energético e de infraestrutura do País, é de um amadorismo atroz.

Enquanto o bolsolavismo não quebrar a criptografia das regras de engajamento que regulam as relações sino-americanas, é melhor o Brasil manter uma distância segura em relação a esse embate.

A diplomacia do governo Bolsonaro não dá sinal de querer ser governada pela razão, pelo pragmatismo ou em defesa dos interesses estratégicos do País, mas, sim, monetizar em votos apoiadores fanáticos a serviço de seu projeto de poder – mesmo que isso arruíne a relação do Brasil com China, França, Alemanha, Argentina ou o inimigo fabricado da vez.

HUSSEIN KALOUT, 43, é Cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2016-2018) e atuou como consultor das Nações Unidas e do Banco Mundial. Escreve semanalmente, às segundas-feiras.


Mathias Alencastro: Ernesto, o último devoto

Caos no Itamaraty tem acobertado inoperância do governo na agenda doméstica

Semanas tensas para Ernesto Araújo.

Barrado na porta do Salão Oval da Casa Branca pela entourage do presidente, um vexame sem precedentes, e abalado pela saída do camarada Ricardo Vélez, enviado aos leões pelo próprio Olavo de Carvalho, o ministro trocou o sorriso dos deslumbrados por um ar de ressaca.

Como é habito entre os fracos, ele tem descontado o nervosismo nos seus funcionários.

Entre os alvos consta Sérgio Amaral, respeitado servidor do Estado que retornou à carreira para servir em Washington no governo Temer.

Curiosamente, o embaixador é a única testemunha sensata da circense viagem presidencial, durante a qual Ernesto Araújo teve um memorável pique de tensão emocional. Abruptamente despachado para São Paulo, Amaral terá tempo para ponderar se os dois fatos estão interligados.

Nessa mesma semana, Mario Vilalva foi fritado na cadeira da Apex. Entidade de utilidade questionada e cronicamente instrumentalizada para benefício individual, ela quase terminou nas mãos de Paulo Guedes, que pretendia acabar com a farra.

Os olavistas do segundo escalão resistiram ferozmente e depois conspiraram para derrubar Vilalva, manifestando sedenta ambição em assumir o seu comando, sabe-se lá com que objetivo.

Essas duas intrigas não se aproximam em gravidade à intervenção para impedir a homenagem dos formandos do Instituto Rio Branco ao grande patriota José Maurício Bustani.

Num ambiente de intimidação extrema por parte do governo Bush, Bustani teve a coragem de enfrentar John Bolton, na altura subsecretário para controle de armas e segurança internacional do governo americano, sobre a artimanha criminosa de falsificar provas para justificar a invasão do Iraque.

Em outras palavras, ele está sendo punido pelo simples fato de ser um desafeto do principal aliado americano do chanceler.

Volta e meia exageradas, as afirmações de que o governo Bolsonaro é subordinado aos Estados Unidos devem ser sujeitas a exame crítico. Mas Ernesto Araújo, sozinho, tem conseguido levar a definição de vassalagem a outro nível.

As brigas internas poderiam ser um sinal de que o ministro é o próximo na fila das exonerações. Vélez passou por turbulências semelhantes antes de ser removido. Mas a comparação pode ser enganosa.

Sem sindicatos, professores e estudantes nas costas, Ernesto Araújo vem cumprindo na perfeição o roteiro que lhe foi atribuído: perseguir os quadros do Itamaraty, chegar aos limites do grotesco no revisionismo histórico e siderar a comunidade internacional com o seu comportamento errático.

Essa dinâmica caótica na política externa tem acobertado a inoperância do governo na agenda doméstica. Feito notável, raramente se discutiu com tanta intensidade assuntos internacionais no Brasil.

Isso torna Ernesto, e a sua devoção despudorada a uma visão de mundo única pela repulsa que suscita, insubstituível. As mentes sãs do Itamaraty devem se preparar para continuar sofrendo em silêncio por mais tempo.

Tal como no espaço, ninguém vai ouvir gritos no Palácio.

*Mathias Alencastro, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Luiz Carlos Azedo: A embaixada em Washington

“A embaixada em Washington é uma posição estratégica, que já teve um papel muito relevante para a política interna no Brasil, sendo ocupada por grandes personalidades”

Quem será o novo embaixador em Washington? Disputam a posição o diplomata Nestor Folster e o consultor Murilo Aragão. O primeiro é o candidato do escritor Olavo de Carvalho, por ele apresentado ao presidente Jair Bolsonaro; e o segundo, dos empresários ligados à Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos. Se não fosse muito escandaloso, Bolsonaro indicaria o próprio filho, deputado Eduardo Bolsonaro(PSL-SP), eleito com 1,8 milhão de votos, única testemunha da conversa do pai com o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Mas ninguém se surpreenda se Bolsonaro decidir por um general de sua confiança.

O cargo está vago desde ontem, após a demissão do embaixador Sérgio Amaral pelo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, que o removeu para o escritório de representação do Itamaraty em São Paulo, uma espécie de geladeira semidomiciliar. A demissão foi publicada ontem no Diário Oficial da União, mas já havia sido anunciada por Bolsonaro num café da manhã com jornalistas, no Palácio do Planalto, às vésperas de viajar para seu encontro com Trump.

Na ocasião, o presidente da República alegou que a mudança era necessária porque sua imagem não estava boa no exterior. Bolsonaro queixou-se de que é apresentado fora do país como ditador, racista e homofóbico, sem a devida defesa dos diplomatas brasileiros. Sobrou para Sérgio Amaral e mais 14 embaixadores, entre os quais, o da França, Paulo César de Oliveira Campos, que pode vir a ser o próximo defenestrado.

Sérgio Amaral estava à frente da embaixada brasileira nos Estados Unidos desde 2016, indicado pelo presidente Michel Temer. Já havia ocupado o posto em 1984, no governo João Figueiredo, e em 1992, no governo Itamar Franco. Sérgio Amaral está desde 1971 no Ministério das Relações Exteriores; serviu também nas embaixadas do Reino Unido e da França, que fazem parte do circuito Elizabeth Arden (uma famosa marca de cosméticos), ao lado da de Roma. Entre 2001 e 2003, Amaral comandou o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Também foi porta-voz da Presidência, entre 1995 e 1999, ambos na gestão de Fernando Henrique Cardoso.

Antecessores
A embaixada em Washington é uma posição estratégica, que já teve um papel muito relevante para a política interna no Brasil, sendo ocupada por grandes personalidades da política, como Juracy Magalhães, Osvaldo Aranha e Amaral Peixoto; das finanças, como Roberto Campos e Walter Moreira Salles; e da Cultura, com destaque para Joaquim Nabuco. Grandes chanceleres passaram pelo posto, como Gibson Barbosa e Azeredo da Silveira.

Famoso até hoje por causa do filé-mignon de sua preferência, batizado com seu nome pelos restaurantes cariocas (bife alto, com alho picado bem dourado, batatas portuguesas, arroz e farofa de ovos), Oswaldo Aranha foi o mais notável ocupante da embaixada em Washington, por ter presidido a Assembleia Geral da ONU de 1945, que fez divisão da Palestina e criou o Estado de Israel, motivo de citação por parte de Bolsonaro na viagem a Israel.

Grande articulador da Aliança Liberal no final da Primeira República, foi um dos organizadores do levante armado que depôs Washington Luís na Revolução de 1930. Osvaldo Aranha negociou com a Junta Governativa Provisória de 1930, no Rio de Janeiro, a entrega do governo a Getúlio Vargas. Posteriormente, foi nomeado ministro da Justiça e, em 1931, ministro da Fazenda. Alijado da escolha do interventor em Minas Gerais, pediu demissão do cargo em 1934. No mesmo ano, aceitou o cargo de embaixador em Washington. Americanófilo, se tornou amigo pessoal do presidente Franklin Delano Roosevelt. Demitiu-se do cargo de embaixador por não aceitar a declaração do Estado Novo, em 1937. Entretanto, em março de 1938, foi convencido por Getúlio a assumir o Ministério das Relações Exteriores e, no cargo, lutou contra elementos germanófilos dentro do Estado Novo, em busca de maior aproximação com os EUA, no conturbado período que antecedeu a 2ª Guerra Mundial.

Presidiu a Assembleia Geral da ONU por acaso. Afastado da política desde o fim do Estado Novo, estava nos Estados Unidos em viagem de negócios, em janeiro de 1947, quando foi surpreendido por um convite para assumir o assento que caberia, por rodízio, ao Brasil no Conselho de Segurança da ONU, em razão da morte do embaixador designado para a missão.

 

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-a-embaixada-em-washington/


Luiz Gonzaga Belluzzo: Ernesto Araújo e o nazismo

O nazismo não realizou a estatização da economia e da sociedade, mas sim a privatização do Estado

O chanceler Ernesto Araújo afirma e reafirma que o nazismo é de esquerda. Diante da insistência, o governo alemão, historiadores, cientistas políticos e economistas entregaram-se ao labor de ridicularizar e massacrar tais afirmações e reafirmações.

Nosso chanceler Araújo padece de um vício intelectual que compromete gravemente a compreensão dos processos sociais, o vício do nominalismo. Resumidamente, trata-se do expediente primário de resolver controvérsias atribuindo nome às coisas: "comunista"!, "nazista"! Os conceitos naufragam nas banalidades da primeira infância: nenê viu a uva.

Vou começar com Karl Polanyi. Em sua obra-prima, "A Grande Transformação", Polanyi arriscou a pele na aventura de investigar os fundamentos sociais e econômicos do coletivismo que assolou o planeta nas três décadas inaugurais do século passado.

Na esteira das instabilidades do primeiro pós-guerra e da Grande Depressão, diz Polanyi, o instinto de autoproteção da sociedade suscitou reações que visavam conter os danos humanitários gerados pela operação dos mercados desatinados.

Na visão dos economistas liberais de hoje e de sempre, o mau funcionamento da economia ou a eclosão das crises devem ser tributadas às tentativas de interferir nas leis que governam o livre mercado. Polanyi inverte o argumento: é a utopia do mercado autorregulado que desencadeia as reações de autoproteção da sociedade, contra o desemprego, o desamparo, a falência, a bancarrota, enfim, contra a exclusão dos circuitos mercantis, o que significa, na prática, a impossibilidade de acesso aos meios necessários à sobrevivência humana.

Essas reações são essencialmente políticas: envolvem a tentativa de submeter os processos impessoais e automáticos da economia ao controle consciente da sociedade. Nos anos 30, Polanyi viveu um momento da história em que a revolta contra o desemparo e a insegurança revelou-se tão brutal quanto os males que a economia destravada impôs à sociedade. Ao estudar o avanço do coletivismo nessa quadra, Karl Polanyi concluiu que não se tratava de uma patologia ou de uma conspiração irracional de classes ou grupos, mas sim de movimentos nascidos das entranhas do mercado autorregulado.

Com o colapso da economia, a superpolitização das relações sociais tornou-se inevitável. O despotismo da mão invisível foi substituído pela tirania visível do chefe. O político e a polícia começam a invadir todas as esferas da vida social, como fossem suspeitas toda e quaisquer forma de espontaneidade.

A Grande Depressão colocou sob suspeita as pregações que exaltavam as virtudes do liberalismo econômico. Frações importantes das burguesias europeia e americana tiveram que rever seu patrocínio incondicional ao ideário do livre mercado e às políticas desastrosas de austeridade na gestão do orçamento e da moeda, diante da progressão da crise social e do desemprego. Assim que a coordenação do mercado deixou de funcionar, setores importantes das hostes conservadoras, não só na Alemanha, aderiram aos movimentos fascistas e ao controle estatal das relações econômicas, como último recurso para escapar à devastação de sua riqueza.

Hanna Arendt, no clássico "As Origens do Totalitarismo", ocupa-se, sobretudo, da emergência do nazismo e do stalinismo como fenômenos do igualitarismo totalitário que vocifera: "Se você não é igual a mim, não tem direito a existir". Esse igualitarismo de manada pressupõe paradoxalmente a superioridade de um modo de ser sobre outros e termina nas tentativas de apagar pela força as diferenças de posição social e de estilos de vida.

Diz Arendt: "O fato de que o 'pecado original' da acumulação de capital tenha requerido novos pecados para manter o sistema em funcionamento foi eficaz para persuadir a burguesia alemã a abandonar as coibições da tradição ocidental... Foi esse fato que a levou a tirar a máscara da hipocrisia e a confessar abertamente seu parentesco com a ralé".

A escória, na visão de Arendt, não tem a ver com a situação econômica e educacional dos indivíduos, "pois até os indivíduos altamente cultos se sentiam particularmente atraídos pelos movimentos da ralé". Esses indivíduos mutilados executam os processos descritos por Franz Neumann, em "Behemoth", o livro clássico sobre o nazismo: "Aquilo contra o que os indivíduos nada podem - e que os nega - é justamente aquilo em que se convertem".

O totalitarismo nasceu das entranhas da sociedade capitalista dilacerada, provocando a derrocada do Estado liberal em que o exercício da soberania e do poder deve estar submetido ao constrangimento da lei impessoal e abstrata.

Como mostra o filme de Lucchino Visconti, "Os Deuses Malditos", o nazismo não realizou a estatização da economia e da sociedade, mas sim a privatização do Estado. Os interesses de grupos privados se apoderam diretamente do Estado, suprimindo a sua independência formal em relação à sociedade civil.

Peter Gay incita os pensadores da sociedade a considerar as relações estabelecidas por Freud entre biografia e cultura na sociedade de massas: "Os estudiosos da sociedade, sem excluir os escritores imaginativos, têm certamente sabido há bastante tempo que em grupos os indivíduos podem retornar a estados primitivos da mente, sujeitar a sua vontade a líderes, desconsiderar restrições e o ceticismo sensível que a educação cultivou neles tão dolorosamente".

Seria uma descortesia dizer que desperdiço vela com defunto de segunda. Para não descumprir regras de civilidade, teimo em repetir aos ouvidos de Araújo: a sociabilidade moderna se move entre a inevitável pertinência a uma cultura produzida pela história e a pluralidade dos indivíduos "livres". A história dessas sociedades "produziu" o mercado, a sociedade civil, o Estado Moderno, suas liberdades e seus interesses.

Essa forma de sociabilidade, reivindicada pelo liberalismo político, rejeita a submissão dos indivíduos livres a transcendências religiosas, moralistas e midiáticas. As indigências do chanceler Araújo pretendem se colocar "fora" das misérias do mundo da vida, acima do penoso exercício de compartilhar a razão com os demais cidadãos livres e iguais em sua diversidade.

*Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists.