ernesto araújo

O Globo: Diplomatas criticam reação de Araújo à invasão do Capitólio

Chanceler de Bolsonaro condenou violência em ataque ao Congresso dos EUA, mas ecoou acusações infundadas de Trump sobre fraude eleitoral; nota de associação de ex e atuais integrantes do Itamaraty explicita mal-estar na diplomacia brasileira

Henrique Gomes Batista, O Globo

SÃO PAULO — A invasão do Capitólio por apoiadores do presidente Donald Trump, no dia 6, não gerou uma crise política apenas nos EUA: ela tem respingado também no Itamaraty. Dentro da diplomacia brasileira, é forte o movimento de críticas ao posicionamento do chanceler Ernesto Araújo no episódio, considerado por muitos ideológico e contraproducente para os interesses nacionais. A divulgação de um novo posicionamento da Associação e Sindicato dos Diplomatas Brasileiros (ADB), na sexta-feira, tornou público o mal-estar dentro da instituição. A percepção é que o posicionamento do chanceler pode prejudicar a relação entre Brasil e EUA no governo de Joe Biden.

— Este foi um movimento de repúdio ao ministro, feito por quem está ativo no Itamaraty. Grande parte das manifestações de ex-chanceleres ou de aposentados, no passado recente, era uma forma de suprir uma dificuldade dos diplomatas da ativa, que não podem se manifestar devido à hierarquia. Muitos têm medo de se expor. Mas a situação está chegando a um ponto inimaginável, não há precedentes na História — afirmou o embaixador e ex-chanceler Rubens Ricupero.

Ele afirma que nunca houve um ministro tão dissociado dos postulados básicos da diplomacia, o que gera essa manifestação inédita.

— Uma pessoa decente deveria apresentar sua renúncia diante disso — afirmou.

Procurados, nem o Itamaraty e nem a ADB quiseram se pronunciar sobre o caso. Mas fontes ligadas aos dois grupos, além de diversos outros diplomatas, afirmaram, sob sigilo, que o clima dentro da diplomacia brasileira nunca esteve tão ruim.

Um diplomata de carreira disse que “o clima está quente” e que “vários embaixadores aposentados declararam apoio à nota e aplaudiram a ADB reafirmar os princípios da diplomacia brasileira”. Segundo ele, a entidade externou uma posição velada entre os diplomatas da ativa, que não se pronunciam por causa da hierarquia. O diplomata indicou, também, a existência de um grupo “muito minoritário, mas estridente”, que se posiciona contra a manifestação da ADB em temas de política externa.PUBLICIDADE

A Associação — com 1.600 filiados, sendo que 75% destes diplomatas da ativa — de forma sutil, escreveu que “o exercício dos direitos à liberdade de expressão e à livre reunião e associação deve ocorrer de forma pacífica”, e que ele “não se confunde com tentativas de subversão da vontade soberana do eleitor, por meio da violência e da destruição do patrimônio público, como as vistas na sede do Legislativo norte-americano”. Tal posicionamento foi visto como uma afronta pelo grupo que defende a atuação de Ernesto Araújo.

Atuação ideológica

O chanceler de Jair Bolsonaro, apesar de afirmar que condenou a invasão, escreveu no Twitter que “há que distinguir ‘processo eleitoral’ e ‘democracia’” e que “grande parte do povo americano se sente agredida e traída por sua classe política e desconfia do processo eleitoral”, fazendo eco às alegações infundadas de fraude no processo eleitoral americano por Trump.

Fã público do presidente americano — que ele já afirmou ser um “salvador do Ocidente” — Araújo descumpriu uma regra da diplomacia brasileira, de não interferir em questões internas de outros países, e chegou a duvidar das investigações da invasão.

Para diplomatas ouvidos pelo GLOBO, este foi um estopim de insatisfações dentro do Itamaraty. Muitos afirmam que Araújo tem, cada vez mais, agido por questões ideológicas, e citam, como outro exemplo, a complicada relação com a Argentina desde a vitória de Alberto Fernández.PUBLICIDADE

Um diplomata ouvido pelo GLOBO lembrou que a Constituição estabelece que a diplomacia brasileira deve seguir princípios como independência nacional, autodeterminação dos povos e não intervenção. Para ele, “isso tem se perdido desde que o atual governo chegou ao poder”, e ele lembrou que a atual gestão tem até censurado livros e determinado apenas uma corrente de pensamento da Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), do Itamaraty.

Sem fiscalização isenta

Além de repercutir na imagem do Itamaraty, que segundo Ricupero “vai levar mais que uma troca de gestão para ser recuperada”, estes posicionamentos com bases ideológicas, segundo diplomatas e especialistas, afetam a relação do Brasil com os EUA.

— Converso com alguns membros da equipe de transição de Joe Biden, e Araújo tem uma péssima reputação entre os democratas. Há uma percepção em Washington de que não há como evitar uma ruptura na relação bilateral se Ernesto permanecer no cargo — afirmou Oliver Stuenkel, da FGV. —Não se trata do presidente americano pedindo a troca de um chanceler, mas de um chanceler que não reconhece a legitimidade da eleição de Joe Biden.

Para diplomatas, o Congresso não tem fiscalizado a diplomacia com isenção. O deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente à frente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara, passou a usar uma foto de Trump em sua conta no Twitter. (Colaborou Camila Zarur)


Sergio Lamucci: Problemas à vista na relação com os EUA

Governo brasileiro não fez nenhum gesto para se aproximar de Biden

A menos de dez dias da posse de Joe Biden como presidente dos EUA, o governo de Jair Bolsonaro segue distante da nova administração americana. Não construiu pontes com o novo líder americano, fazendo questão de reafirmar os seus laços com Donald Trump, que se recusa a reconhecer a derrota nas eleições e termina o governo apostando ainda mais na divisão do país, ao ter incitado a invasão do Congresso.

Essas atitudes de Bolsonaro vão dificultar a relação do Brasil com os EUA, por mais que Biden seja visto como um político pragmático. O Brasil ficará ainda mais isolado no cenário externo, enfrentando problemas especialmente por causa da atitude do governo Bolsonaro em relação ao ambiente, que será uma das prioridades do novo presidente americano.

Na semana passada, Bolsonaro voltou a questionar o processo eleitoral dos EUA, afirmando que a causa da crise americana é “basicamente a falta de confiança no voto”. Segundo ele, “lá, o pessoal votou e potencializaram o voto pelos correios por causa da tal da pandemia, e houve gente lá que votou três, quatro vezes, mortos que votaram. Foi uma festa lá. Ninguém pode negar isso daí.” A apoiadores, o presidente disse ainda o Brasil terá “um problema maior que os EUA” em 2022, caso não haja uma mudança no sistema eleitoral por aqui, com o voto impresso.

Bolsonaro usa o exemplo do pleito americano para mais uma vez colocar em xeque a credibilidade das eleições brasileiras, indicando que poderá repetir a estratégia de Trump no ano que vem, se o resultado for desfavorável a ele. O presidente já disse várias vezes que houve fraudes nas eleições de 2018, em que venceu Fernando Haddad (PT) com grande folga. Com essa estratégia, Bolsonaro subordina os interesses do país aos seus interesses pessoais.

Por mais que seja próximo de Trump, já passou da hora de Bolsonaro buscar uma aproximação com Biden. O brasileiro só foi cumprimentar o presidente eleito americano 38 dias após as eleições, sendo o último líder dos países que integram o G-20 a reconhecer a vitória do candidato democrata.

Em entrevista ao Valor em outubro, Thomas Shannon, ex-embaixador americano no Brasil entre 2010 e 2013, destacava que “a agenda do Partido Democrata não é favorável ao presidente Bolsonaro”, citando temas ambientais, por exemplo, embora tenha afirmado que Biden entende o valor estratégico do Brasil para os EUA.

Ex-subscretário de Estado dos EUA para Assuntos Políticos, Shannon conhece profundamente a política do Partido Democrata para a América Latina. Já em artigo para a revista “Crusoé”, publicado em 1º de janeiro, Shannon deixou claro o impacto que podem ter para as relações entre Brasil e EUA as declarações de Bolsonaro sobre o resultado das eleições americanas - e isso antes de o brasileiro repetir, na semana passada, as insinuações de fraude no pleito americano.

Shannon escreve que Biden “conhece a importância do Brasil e tem um conhecimento bem desenvolvido da trajetória histórica de nossa cooperação”, sendo ainda um político que “verá a relação com o Brasil não em termos pessoais, mas em termos dos interesses e valores que ligam nossas duas nações”.

Depois de apontar essas características de Biden, Shannon afirma que, “dito isso, o governo Bolsonaro tem feito quase todo o possível para complicar a transição na relação bilateral”, lembrando que o presidente e membros de sua administração expressaram preferência por Trump. Ele destaca ainda que Bolsonaro criticou Biden após comentários do então candidato democrata durante um debate, pedindo uma ação mais orquestrada do Brasil sobre o desmatamento”. Na ocasião, o americano disse que pretendia reunir outros países para garantir US$ 20 bilhões para preservar a Amazônia - caso contrário, o Brasil enfrentaria “consequências econômicas significativas”.

Segundo Shannon, “essa gafe, no entanto, perde relevância quando é comparada com a disposição do presidente Bolsonaro de repetir as alegações infundadas de fraude” feitas por Trump sobre as eleições dos EUA. “A preferência partidária baseada na amizade pessoal é perdoável, assim como a defesa da soberania nacional. No entanto, atacar a integridade e a credibilidade do processo eleitoral americano é um ataque à legitimidade da democracia americana e à Presidência de Joe Biden. É algo que não será facilmente perdoado e não será esquecido.”

Nesse cenário, “o tom da parceria única entre Brasil e Estados Unidos agora depende em grande parte do Brasil”. Pelo que se vê até o momento, porém, o governo Bolsonaro não está disposto a fazer gestos de boa vontade para a nova administração americana. Não foi apenas o presidente brasileiro que questionou as eleições americanas. No Twitter, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, disse na semana passada que “há que reconhecer que grande parte do povo americano se sente agredida e traída por sua classe política e desconfia do processo eleitoral”. O líder da diplomacia brasileira também levanta dúvidas sobre o pleito que levou à vitória do novo presidente americano.

Nessa toada, o Brasil não deverá ter vida fácil com o governo de Biden. Na semana passada, o novo presidente indicou Juan Gonzalez para o cargo de diretor-sênior para o Hemisfério Ocidental do Conselho de Segurança Nacional. Em outubro, Gonzalez afirmou que “qualquer um, no Brasil ou em outro lugar, que pensa que pode avançar numa relação ambiciosa com os EUA enquanto ignora assuntos importantes como mudança climática, democracia e direitos humanos claramente não está ouvindo Joe Biden em sua campanha”.

O foco do americano em políticas ambientais, atuando possivelmente em conjunto com a União Europeia (UE), colocará mais pressão sobre o Brasil nesse campo. Isso poderá afetar as exportações brasileiras, assim como atrapalhar o fluxo de investimentos estrangeiros para o país. O governo Bolsonaro, porém, não parece preocupado em ter bom um relacionamento com Biden, como já não tem com boa parte dos países da UE e com a China. Sem aliados importantes no cenário internacional, o Brasil caminha em 2021 para ficar ainda mais isolado.


Maria Hermínia Tavares: Os fantasmas do chanceler

O mal causado pela caça aos fantasmas é real e presente

Inaugurando 2021, o chanceler Ernesto Araujo divulgou no Twitter sua mensagem de Ano-Novo. Trata-se do palavroso artigo "Por um reset conservador liberal", publicado no blog onde costuma expor sua míope e bizarra visão dos problemas mundiais. Para o ministro, no ano que passou teria ficado clara a gigantesca trama de interesses contra a liberdade e a dignidade humanas.

Os agentes da urdidura seriam —vale a pena transcrever— "a grande mídia; o narcosocialismo, a corrupção; a bandidagem em geral (crime organizado); o sistema intelectual politicamente correto; o climatismo (uso da questão climática como instrumento de controle econômico); o racialismo (programa de organização da sociedade segundo o princípio da raça); o covidismo (a histeria biopolítica e sua utilização como mecanismo de controle); o terrorismo; o multilateralismo antinacional (distorção e manipulação do sistema multilateral composto pelos organismos internacionais); a ideologia de gênero; o abortismo; o trans-humanismo [sic]; o anticristianismo e a cristofobia; o esquema de alguns megabilionários ou trilionários; o elitismo transnacional; e o marxismo de mercado megatecnológico ou neomaoísmo". Ufa!

Formando uma confraria espectral, estariam ligadas por uma invisível estrutura, de tal forma que "quando você compra a biopolítica do "fique em casa" talvez esteja ajudando o narcotráfico".

Fantasias maquiavélicas, com menção frequente a forças ocultas e inimigos externos, sempre habitaram a retórica da extrema-direita. Cumprem papel importante na arregimentação dos "nossos" contra "os outros". Muitas vezes serviram para justificar, por exemplo, a ação internacional de grandes potências, da supremacia ariana do nazismo à Guerra Fria entre o Ocidente e o bloco soviético.

Mas os pesadelos que assombram Araújo geraram um caso muito raro de política externa totalmente assentada numa teoria conspiratória da cena mundial. É o que argumentam os pesquisadores Feliciano de Sá Guimarães, Davi Moreira, Irma Oliveira e Silva e Anna Carolina de Mello em artigo ainda inédito sobre o lugar da ideia de "globalismo" na política externa de Bolsonaro. Intitula-se "When Conspiracy Theories Capture Foreign Policy Narratives" (Quando teorias da conspiração capturam as narrativas de política externa)."Globalismo" é a condensação daquele rol de fictícias ameaças à nação.

Para o país, o mal causado pela caça aos fantasmas é real e presente. Manifesta-se como descrédito internacional, isolamento e desmoralização de um serviço diplomático até então conhecido por sua competência.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap. 


Oliver Stuenkel: Política antiglobalista de Bolsonaro tem um preço

Com derrota da Donald Trump, Brasil fica ainda mais isolado em sua política radical e negacionista

Desde que assumiu a presidência, Jair Bolsonaro executa uma política externa precisa e disciplinada, cujo objetivo é manter sua base mobilizada. Trata-se de uma postura internacional feita sob medida para a cozinha de casa, e não para o mundo lá fora. Atitudes como não parabenizar o novo líder argentino, alegar que Joe Biden venceu as eleições de maneira fraudulenta, atacar a ONUXi JinpingEmmanuel Macron e quem mais aparecer pela frente integram uma retórica cuidadosamente articulada para atiçar os ânimos de sua torcida. Ter se aproximado do Centrão e se afastado do discurso anticorrupção e antissistema fez com que o presidente dependesse ainda mais desses comentários bombásticos para garantir a fidelidade de seus seguidores mais radicais.

Mas a política antiglobalista tem um preço. Em dois anos de mandato, Bolsonaro deteriorou praticamente todas as relações do País. A reputação nos quatro mercados mais relevantes para a economia brasileira – o chinês, o norte-americano, o europeu e o latino-americano – é a pior em décadas. Tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, a retórica antiambientalista fortalece aqueles que se opõem a uma aproximação com o Brasil. Em círculos diplomáticos europeus, fala-se abertamente que o presidente brasileiro é o pior inimigo da ratificação do acordo comercial com o Mercosul. Fora os nacionalistas da Hungria, Polônia e Eslovênia, não há um único chefe de Estado da União Europeia que receberia uma visita oficial de Bolsonaro hoje em dia. 

Com a onda ambientalista que vem dominando a política europeia, cresce o risco de boicotes mais amplos contra os produtos daqui. Isso ocorre não só pelas escolhas problemáticas do presidente no campo interno, mas também porque Jair Bolsonaro abriu mão de uma arma poderosa da qual os governos anteriores dispunham. Ao rifar as relações externas para manter sua popularidade interna, o presidente atou as mãos de um dos Ministérios de Relações Exteriores mais sofisticados do mundo. Até poucos anos atrás, o Itamaraty servia de escudo para a reputação do País no exterior mesmo em momentos em que o governo brasileiro estava obviamente errado. Essa proteção foi crucial em crises como os massacres do Carandiru e da Candelária, em 1992 e 1993, ou quando as taxas de desmatamento tiveram uma aceleração, nos anos 1990 e 2000. Enquanto um chanceler normal mobilizaria as missões brasileiras no exterior para reagir à crise de reputação, o atual chefe do Itamaraty amplia o isolamento ao defender teorias conspiratórias, e faz tempo virou chacota mundial. 

Se antes a atuação independente do Itamaraty ajudava a reparar os danos de catástrofes nacionais, hoje o órgão encontra-se escanteado por um governo que ofusca até o que deveria capitalizar. Avanços com a reforma da Previdência de 2019 foi o grande exemplo disso. Em vez de ficar calado e deixar que uma medida celebrada pelos mercados ganhasse visibilidade na imprensa especializada, Bolsonaro lançou uma bomba que deixou o assunto em segundo plano: a tentativa de emplacar seu filho como embaixador nos EUA. 

Com a vitória de Biden, o risco econômico da política bolsonarista tende a aumentar ainda mais. As nomeações do democrata sugerem que o tema ambiental será um pilar de seu mandato tanto no âmbito interno quanto no externo. A futura secretária do Interior, Deb Haaland, tem sido uma das críticas mais ferrenhas da política ambiental do presidente brasileiro. O desmatamento da Amazônia foi citado por Biden ainda em campanha. Na ocasião, Bolsonaro foi ao Twitter dizer que a soberania nacional não seria negociada. O atrito dá uma amostra do que vem pela frente na relação com os EUA. Para piorar a situação, é provável que o governo Biden coordene sua política ambiental com a União Europeia

A derrota de Trump deixa o Brasil ainda mais isolado em sua política radical e negacionista. Antes ofuscadas pela atuação do colega americano, as patacoadas de Bolsonaro devem ganhar ainda mais atenção negativa dos observadores internacionais. Tivemos uma prévia disso logo em dezembro, quando ele virou notícia internacional por ser o último líder de um país democrático a parabenizar Joe Biden pela vitória.

Em 2021, cada aparição de Bolsonaro no noticiário internacional será um risco para a já combalida economia brasileira. O mesmo se estende ao ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e ao Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. No caso desses dois, sua mera permanência no cargo já contamina qualquer tentativa de apaziguar investidores europeus e americanos preocupados com o desmatamento.

Se em 2019 Hamilton Mourão e Tereza Cristina foram a Pequim tentando desfazer o mal-estar causado pela retórica anti-China, em 2021 já não existe campanha publicitária ou iniciativa de quadros mais moderados que possa consertar a imagem tóxica da ala radical do governo. 

A substituição de Salles e Araújo reduziria o risco de boicotes, fugas de investidores estrangeiros e complicações na ratificação de acordos comerciais. O problema é que eles representam dois grupos-chave de sustentação do governo: ruralistas e antiglobalistas. Sobretudo no caso de Salles, a facilitação do desmatamento e o desmonte das estruturas de fiscalização estão no cerne do programa bolsonarista. Desistir disso complicaria as relações do governo com uma parte obtusa, porém importante, do setor ruralista. 

Em meio a essa confusão, avanços diplomáticos como a entrada do Brasil na OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) já são improváveis, e os riscos de reputação do País inevitavelmente entrarão na conta de qualquer investidor. O País está aprendendo de um jeito doloroso que a imagem externa é uma abstração com consequências bastante reais, e que doem no bolso.

* COORDENADOR DA PÓS-GRADUAÇÃO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA FGV-SP

Conteúdo Completo:

A vida de milhões de pessoas vai piorar em 2021

Os desafios da economia em 2021

Nunca estivemos tão perto e tão longe da reforma tributária

Política ambiental é entrave ao crescimento

Privatização mesmo  só veremos nos governos estaduais

Reforma administrativa é a agenda que precisa caminhar

O governo Bolsonaro precisaria se reinventar, mas isso é muito improvável

O grande risco para o Brasil este ano é interno, e não externo

Política antiglobalista de Bolsonaro tem um preço

O que é bom para os EUA nem sempre é bom para o Brasil


Sergio Amaral: Cena internacional mudou, política externa terá de se ajustar

O Brasil precisa estar presente nas negociações que definirão as regras de convívio internacional

As relações entre os Estados Unidos e a China, de cooperação ou de conflito, serão, na visão de Henry Kissinger, o eixo central da nova ordem internacional. Barack Obama optou pela cooperação. Donald Trump, pela adoção de sanções unilaterais. Sua estratégia, no entanto, alcançou resultados modestos.

Após as sanções da guerra comercial, o déficit com a China permanece no mesmo patamar de antes, ou seja, cerca de US$ 350 bilhões, na média, por ano. As restrições à transferência de tecnologia abalaram a Huawei, mas também prejudicaram empresas e consumidores norte-americanos. A rejeição da Parceria Transpacífica (TPP, na sigla em inglês), que reunia 12 países sob a liderança dos Estados Unidos, mas sem a presença da China, mostrou-se um erro estratégico de Trump, ao ensejar a formação da Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP em inglês) na Ásia, assinada em novembro passado, entre 15 países asiáticos, que representam um terço da população e do produto mundiais, sob a liderança de Beijing, sem a presença dos Estados Unidos. Por fim, a China saiu fortalecida da covid-19 e da crise econômica mundial, pela capacidade de conter a expansão do vírus e de recuperar mais rapidamente a sua economia.

Joe Biden propõe-se a reverter várias das políticas de seu antecessor. No plano interno, deverá promover a volta da política e a caminhada para o centro, em vez do populismo nacionalista e da radicalização. Na diplomacia, as mudanças serão substanciais. Em lugar das sanções unilaterais, a prioridade do presidente eleito estará na retomada das alianças com parceiros tradicionais, como a Europa, para a negociação de um modus vivendi com a China, na retomada do Acordo de Paris sobre o Clima, na renegociação das salvaguardas nucleares com o Irã e no fortalecimento do multilateralismo.

Os Estados Unidos de Biden e a Europa pós-crise coincidirão na agenda climática, inspirada por um green new deal que encontra adeptos fervorosos em ambos os lados do Atlântico. É preciso ter presente que ambientalismo, mais do que uma decisão de governo, é um compromisso da sociedade. É a utopia do século 21, que como uma mancha verde influencia os consumidores, espalha-se pela economia, pela política e pela cultura.

Não há razão para que Biden tome a iniciativa de hostilizar o Brasil. Mas fortes correntes políticas tanto em Washington quanto em Bruxelas farão pressão para a imposição de restrições comerciais se o Brasil não mostrar determinação em reduzir a taxa de desflorestamento na Amazônia. União Europeia e Estados Unidos, juntos, representam quase 50% das exportações brasileiras. Se a esse grupo adicionarmos a China, quase 70% das exportações poderão ser postas numa zona de risco, seja por motivações ambientais, seja pelas provocações contra Beijing.

O mundo mudou. É hora de mudar a política externa, em consonância com as opções da sociedade, com os interesses da economia, especialmente do agronegócio, e a necessidade de recuperar a imagem do Brasil entre os importadores e investidores.

A esse respeito valeria considerar quatro temas de uma nova agenda:

1) Revisão da política sobre o clima, de modo a considerar a Amazônia não como um passivo, mas como um valioso ativo e fator de uma liderança natural que o País já exerceu e pode voltar a exercer. A região precisa ser vista não como um problema recorrente ou hipotético objeto de cobiça externa, mas como um patrimônio a ser explorado de modo sustentável, mediante o engajamento da sociedade, particularmente do setor privado e da comunidade científica.

2) Preservação de espaços de autonomia ante a disputa hegemônica entre as duas grandes potencias. Em artigo recente para a revista Foreign Affairs, um grupo de influentes militares norte-americanos, entre os quais Jim Mattis, ex-secretário de Defesa, condenou a pressão de Trump sobre aliados para o seu alinhamento a interesses norte americanos, por serem contraproducentes. Destacados intelectuais, como Joe Nye, e diplomatas como o embaixador Tom Shannon reconheceram publicamente o direito soberano do Brasil de tomar decisões no seu interesse nacional.

3) Revalorização das alianças com parceiros tradicionais, como a Europa, o Mercosul e a Aliança para o Pacífico, de modo a fortalecer a presença externa do País.

4) Reafirmação do multilateralismo como instrumento tradicional da diplomacia e um caminho para sair do isolamento em que o Brasil se colocou, seja em foros internacionais, como a OMS, o BID e a Ompi, seja em suas relações bilaterais, por vezes na insólita companhia da Polônia e da Hungria.

No momento em que os principais atores mundiais estão engajados em redefinir as bases da economia, forjar uma nova configuração geopolítica e promover a revisão das instituições internacionais, o Brasil não se pode isolar nem deixar de estar presente às mesas de negociação em que serão definidas as novas regras do convívio internacional.

*Conselheiro de Felsberg e advogados, foi secretário executivo do ministério do Meio Ambiente e da Amazônia


Submissão aos EUA não combina com nação do tamanho do Brasil, diz Hussein Kalout

Em artigo na revista da FAP de dezembro, pesquisador de Harvard critica política externa do Estado brasileiro

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O pesquisador da Universidade de Harvard e ex-secretário especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República Hussein Kalout critica a subserviência do Brasil em relação aos Estados Unidos, no governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). “Uma relação equilibrada e produtiva com os EUA é desejável e sempre foi o objetivo do Estado brasileiro. Mas o recurso à submissão não se coaduna com a vocação de uma nação da envergadura do Brasil”, afirma ele, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de dezembro.

Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de dezembro!

Todos os conteúdos da publicação, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), são disponibilizados, gratuitamente, no site da entidade. A submissão, segundo o pesquisador, é “francamente contrária à vocação universalista da política externa brasileira e sua capacidade de dialogar e estender pontes com diferentes países, tanto desenvolvidos como em desenvolvimento, em benefício de nossos próprios interesses”.

Na avaliação de Kalout, o que está sendo legado ao Brasil, desde o início da administração Bolsonaro, é uma política da destruição que substitui a racionalidade pela ideologia, o senso de realidade pela fantasmagoria, a luta por uma ordem baseada em regras por um desprezo do direito que flerta perigosamente com o caos. “O discurso fala em valores conservadores, liberdade e nacionalismo, mas a substância nos aproxima do precipício, isola o país e o condena à irrelevância”, afirma. “Essa diplomacia do caos e seus tentáculos obscurantistas cedo ou tarde tem encontro marcado com história”, diz.  

Kalout, que também é professor de Relações Internacionais e cientista político, também analisa os ataques do Brasil contra a China. “A desnecessária agressividade contra o nosso maior parceiro comercial, que é a China, revela o nível obtuso dessa diplomacia”, critica. “Atacar os chineses, em um momento em que nossa economia precisa preservar o escoamento de sua produção e garantir a renda de muitos brasileiros, revela, enfim, o grau de irresponsabilidade dos formuladores dessa ‘política externa’. O atrito com Pequim não serve aos interesses nacionais do Brasil”, alerta.

O cientista político também diz que, sem abandonar a ideologia, as fantasias e as alegorias fantasmagóricas que atualmente animam a “política externa” brasileira de corte fundamentalista, não será possível voltar a enxergar a realidade tal como ela é. “Devemos trazer a política externa a seu leito tradicional, de Rio Branco a San Tiago Dantas, cujos elementos centrais foram consagrados pela Constituição Federal”, lembra.

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O Globo: Diplomatas afirmam que contato com equipe de Biden deveria ter começado ainda na campanha

Chanceler disse que momento certo para iniciar relação é depois da posse, mas esta não foi a experiência da diplomacia brasileira em transições anteriores de governo

Camila Zarur, O Globo

RIO — Apesar de o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, ter afirmado que “ainda não é o momento” de se aproximar do futuro presidente americano, Joe Biden, pois ele ainda não tomou posse, a história das relações entre Brasil e Estados Unidos mostra o oposto. Em outros períodos de transição de poder em Washington, o contato com a gestão seguinte se dava antes mesmo da definição de quem assumiria a Presidência, segundo contaram ao GLOBO diplomatas que trabalharam na capital americana e especialistas em relações internacionais. Para eles, a demora em estabelecer uma relação com Biden pode dificultar o trato entre os dois países.

Segundo explica o ex-embaixador em Washington Rubens Ricupero, a aproximação é feita durante a corrida eleitoral com ambos os partidos. Além de estabelecer e estreitar os contatos, esta é também uma forma de se manter a par dos acontecimentos e informá-los ao governo brasileiro. Ricupero vivenciou isso em dois momentos: na eleição de Bill Clinton, em 1992, quando foi embaixador na capital americana; e em 1976, quando era chefe do setor político da embaixada e alertava o governo do general Ernesto Geisel de que o democrata Jimmy Carter venceria o pleito daquele ano. 

— Nos Estados Unidos é considerado normal ter relação com os dois partidos, ninguém acha esquisito. Pelo contrário, todo embaixador e todo bom diplomata cultiva contatos com todos os lados políticos, sobretudo num posto em Washington, onde o Congresso tem uma influência grande sobre a política externa — explica Ricupero, que completa: — Em qualquer país no mundo é assim. Aqui no Brasil, não só o embaixador americano, como os cônsules de São Paulo e Rio convivem com pessoas de ambos os lados políticos. O normal é ter um contato permanente, não ficar esperando por uma oficialização.

Assim como Ricupero,  Rubens Barbosa, que também foi embaixador em Washington, acredita que o período de transição é o momento para estreitar a relação com o futuro governo, que já deveria ter sido estabelecida durante a corrida presidencial. Foi o que diplomata fez em 2000, na conturbada eleição de George W. Bush, cujo resultado foi decidido após o julgamento da Suprema Corte sobre a votação na Flórida. Barbosa escreveu sobre isso em seu livro “O Dissenso de Washington”:

“Quando Bush tomou posse, esses contatos estabelecidos ainda no período eleitoral fizeram com que a embaixada brasileira já fosse interlocutora do novo governo e facilitaram muito o acesso à nova administração”, relata o embaixador no livro publicado em 2011.

Imagem negativa

Para Roberto Abdenur, também ex-embaixador nos EUA, durante a campanha americana o presidente Jair Bolsonaro e seu governo só mantiveram contato com o lado republicano, se posicionando explicitamente a favor da reeleição de Donald Trump. Isso, segundo ele, gerou uma imagem negativa do brasileiro entre os democratas, que foi agravada com a postura que Bolsonaro teve após a eleição. 

O presidente só reconheceu a vitória de Biden após o Colégio Eleitoral confirmá-la, no último dia 14, mais de um mês após o resultado ter sido projetado. Ele também endossou a narrativa de Trump de que houve uma suposta fraude na votação, embora o republicano não tenha apresentado evidências que comprovassem isso e nenhuma das mais de 50 ações impetradas tenha sido bem-sucedida em reverter ou anular votos.

— Entre os democratas, é terrivelmente negativa a imagem de Bolsonaro, seja como pessoa ou de seu governo em geral. Devemos agora correr atrás do prejuízo, procurando abrir pontes com congressistas e com os membros do governo que vêm sendo indicados pelo novo presidente americano. Não faz sentido só entrar em campo depois da posse. Não há tempo a perder — afirma o diplomata. 

Abdenur acrescenta ainda que a demora para estabelecer esse contato não ajuda a melhorar os ânimos com os democratas e pode piorar o estado de espírito em relação ao Brasil por parte da equipe de Biden.

Essa percepção ruim em relação ao presidente brasileiro pode ser um obstáculo ainda maior para a aproximação entre os dois governos, salienta o cientista político e pesquisador de Harvard Hussein Kalout, que foi secretário de Assuntos Estratégicos no governo de Michel Temer.

— Não depende apenas de o Brasil querer se aproximar. Depende se Biden vai querer abrir as portas para o governo Bolsonaro. O governo fez uma grande e única aposta em Trump, queimando todas as pontes com os democratas já na largada. Faltou à política externa brasileira maturidade, realismo e pragmatismo para entender a complexidade dessa eleição. A equipe de Biden pode não querer se aproximar de um governo que questionou o resultado que o elegeu presidente. 

Segundo fontes em Washington, diferentemente do que Araújo afirma, integrantes do governo brasileiro já teriam tentado o contato com a equipe de transição do democrata, mas não foram recebidos. A repórter na Casa Branca da GloboNews, Rachel Krähenbühl, já havia noticiado essa tentativa de aproximação antes da votação, em 3 de novembro. No entanto, o próprio presidente Bolsonaro negou que isso tivesse acontecido.

Posição defensiva

Segundo o embaixador Celso Amorim, que foi chanceler no governo de Itamar Franco e nos dois mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva, a retórica do atual ministro das Relações Exteriores indica uma posição defensiva do governo brasileiro diante de eventual resistência da equipe de Biden, que já apresenta uma série de divergências com a gestão Bolsonaro em temas como meio ambiente, direitos humanos e questões relativas aos direitos indígenas e quilombolas.

— Eles parecem estar assustados em tentar uma aproximação e receber uma negativa por parte de Biden. Então, para eles não terem esse dissabor, adotam essa narrativa de que não é o momento de ter esse contato — diz o ex-ministro, que vê nesse início um indício de como será difícil a relação entre os dois líderes — Dificilmente Bolsonaro se tornará amigo de Biden. Isso demandaria um esforço que acredito que não será feito. O governo Bolsonaro já tem um compromisso com a extrema direita no Brasil, que é ligada à extrema direita americana. 

Amorim explica também que Biden, por sua vez, terá que fazer concessões em seu mandato para tentar unir um país e o próprio partido divididos e, por isso, deverá adotar uma postura mais dura com Bolsonaro nas questões em que os dois divergem. 


O Estado de S. Paulo: Derrota no Senado expõe pressão por saída de Araújo

Rejeição de indicação do embaixador Fabio Marzano mostra senadores alinhados a integrantes da ala militar do governo e do agronegócio, que pedem substituição de ministro

Felipe Frazão e Jussara Soares, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - A pressão para que o presidente Jair Bolsonaro substitua o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e adote uma política externa menos ideológica aumentou anteontem, quando o Senado rejeitou a indicação do embaixador Fabio Mendes Marzano para o cargo de delegado permanente do Brasil nas Nações Unidas em Genebra, na Suíça. Com o revés, senadores se juntam a integrantes da ala militar e representantes do agronegócio, que apontam o estilo ideológico do chanceler como um entrave para o avanço em acordos internacionais, além de uma ameaça ao comércio exterior.

O placar que derrubou o embaixador (37 votos contra e 9 a favor) surpreendeu o Itamaraty e integrantes do governo. No total, 47 senadores participaram da votação, mas um se absteve. No plenário, Marzano recebeu menos votos do que os 13 conquistados após sabatina na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional.

A mudança ocorreu após o senador Major Olímpio (PSL-SP) conclamar seus colegas a mandar o chanceler “para o inferno”. “Peço aos senadores, em nome da altivez do Senado, que não votem nessa indicação. Se o Senado votar com esse cara – é cara –, estamos negando nossa própria existência, o respeito a cada um de nós. Vamos votar contra, o Senado todo. Que se faça outra indicação no começo do ano. “'Ah, mas eu sou do time do chanceler’. Para o inferno o chanceler!” , bradou Olímpio.

Na véspera, Marzano havia se recusado a responder a uma pergunta da senadora Kátia Abreu (Progressistas-TO), durante sua sabatina, passo prévio para a votação em plenário. Ex-ministra da Agricultura, Kátia queria ouvir as impressões do embaixador sobre a tese corrente entre diplomatas e ruralistas de que o desmatamento na Amazônia é usado como pretexto pelo agronegócio estrangeiro para barrar o Acordo Mercosul-União Europeia.

Marzano alegou que o tema não era de sua alçada. Kátia protestou. A senadora, que também presidiu a Confederação Nacional da Agricultura (CNA), disse que o Itamaraty virou uma “casa de terrores”, onde os diplomatas não podem mais opinar. Os demais senadores tomaram a negativa como sinal de desprezo aos congressistas.

Em conversas reservadas, auxiliares do presidente Jair Bolsonaro debitaram a derrota na conta do ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, que comanda a articulação política do Planalto com o Congresso e teria feito corpo mole. O vice-presidente Hamilton Mourão, o ministro da Casa Civil, Walter Braga Neto, e o secretário de Assuntos Estratégicos, Flávio Rocha, também seriam responsáveis pela fritura de Araújo. Todos são militares.

Diplomatas avaliaram que a expressiva votação contra Marzano, secretário de Assuntos de Soberania Nacional e Cidadania, não foi só uma retaliação deliberada a Araújo como um recado a Bolsonaro de que o chanceler precisa ser substituído.

Além de ter seu indicado barrado, Araújo viu outro aliado sob desgaste: o embaixador em Washington, Nestor Forster. O Estadão revelou que Forster municiou Bolsonaro com análises e notícias falsas que questionavam a lisura da eleição nos EUA, vencida por Joe Biden. Telegramas obtidos pelo jornal por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) mostram a atuação de Foster na missão de orientar o governo, demonstrando sintonia com o discurso de fraude entoado pelo presidente americano, Donald Trump.

Atualmente, dois grupos fazem lobby pela demissão de Araújo: o agronegócio e os militares. Ambos, por sinal, pilares da eleição de Bolsonaro. A seu favor, o chanceler conta o apoio da ala ideológica do governo, da militância virtual e do deputado Eduardo, filho ‘03’ do presidente.

Na avaliação de diplomatas ouvidos pelo Estadão, Marzano chegou ao Senado “marcado”. O posto de delegado permanente em Genebra trata de temas sensíveis na agenda bolsonarista, como direitos humanos, direitos da mulher e indígenas, entre outros. É uma pauta que perdeu prestígio e se alinhou a países não democráticos.

“O recado foi dado ao Bolsonaro de que eles (senadores) não estão gostando e querem colocar o Ernesto contra a parede. Há uma conjuntura favorável para acertarem o Ernesto, como os telegramas do Nestor sobre a eleição americana. Estão insatisfeitos com as topadas na China. Foi mais um prego naquilo que querem que se torne o caixão do Ernesto”, disse a embaixadora Maria Celina de Azevedo Rodrigues, presidente da Associação dos Diplomatas Brasileiros.

‘Página virada’

Presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado, o senador Nelsinho Trad (PSD/MS), atribuiu o resultado da votação a um erro coletivo. “Um avião não cai sozinho por um razão só. Nessa situação houve vários erros cometidos tanto pelo presidente da comissão, tanto por quem fez a pergunta, tanto por quem respondeu”, disse Trad ao Estadão. “Agora é página virada. É aguardar e mandar outra indicação em outro momento”, completou. / COLABOROU RICARDO GALHARDO

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RPD || Hussein Kalout: A diplomacia do caos

Política externa sob Bolsonaro se destaca pela irracionalidade, sem responder a interesses concretos do país, se pautando pelo combate frívolo a ameaças imaginárias, além de não refletir interesses ou valores nacionais, avalia Hussein Kalout

Desde a fundação da República, a política exterior do Estado brasileiro tem sido reflexo de consensos nacionais, balizada nos ditames do Direito e executada em conformidade com a dinâmica da ordem internacional. Pela primeira vez em nossa vida republicana, contudo, uma política externa destrutiva e irracional passou a ser implementada por meio de uma antidiplomacia, que, no lugar de buscar soluções, gera conflitos e tensões desnecessários.

Apesar da dissonância de visões ou de ênfases, ao largo dos diferentes governos republicanos, mínimos denominadores comuns uniam aqueles que assumiram a responsabilidade de formular os rumos da política externa nacional. O princípio da não-intervenção, o respeito à soberania do Estados, a defesa da autodeterminação dos povos e o respeito ao Direito Internacional compuseram as linhas mestras do processo decisório de nossa política exterior e guiaram a perseguição do interesse nacional desde pelo menos o Barão do Rio Branco.  

Hoje se assiste a uma ruptura com essa linha de continuidade. Não se trata de uma política externa simplesmente diferente. Trata-se, antes, da irracionalidade erigida como política de governo, uma vez que não responde a interesses concretos do país, mas se pauta pelo combate frívolo a ameaças imaginárias. Ao contrário do que apregoa, não reflete interesses ou valores nacionais, mas generaliza como visão nacional o que não passa de uma linha de pensamento marginal, cujo principal traço distintivo é a crença em teorias conspiratórias.

Essa política levou à destruição da reputação internacional do Brasil por meio da implementação de uma “estratégia” única: contra os perigos ilusórios do globalismo, supostamente refletidos nas instituições multilaterais e na aliança improvável de financistas, progressistas e grande mídia, que seriam os responsáveis últimos pela decadência do Ocidente, só restaria a alternativa da aliança subserviente com o governo Donald Trump. Trata-se de um equívoco monumental que seria risível se não fosse trágico.

Uma relação equilibrada e produtiva com os EUA é desejável e sempre foi o objetivo do Estado brasileiro. Mas o recurso à submissão não coaduna com a vocação de uma nação da envergadura do Brasil. É, na realidade, francamente contrária à vocação universalista da política externa brasileira e sua capacidade de dialogar e estender pontes com diferentes países, tanto desenvolvidos quanto em desenvolvimento, em benefício de nossos próprios interesses.

"Não reflete interesses ou valores nacionais, mas generaliza como visão nacional o que não passa de uma linha de pensamento marginal, cujo principal traço distintivo é a crença em teorias conspiratórias"
Hussein Kalout

Essa subserviência está por trás das posições, ações e omissões desastrosas de nossa política externa, em contradição com os dispositivos da Constituição. Alguns dos exemplos vergonhosos são o apoio a medidas coercitivas em países vizinhos, o voto na ONU pela aplicação de embargo unilateral em desrespeito às normas do direito internacional, o endosso ao uso da força contra Estados soberanos sem autorização do Conselho de Segurança das Nações Unidas, a compra por valor de face da narrativa norte-americana sobre o Oriente Médio.  

O projeto em curso, além de violar flagrantemente a Constituição Federal e seus ditames, impinge ao país custos irreparáveis como o desmoronamento de nossa credibilidade, perdas econômicas e fuga de investimentos.

Na área ambiental, o Brasil que era visto, desde Rio-92, como líder natural no tema do desenvolvimento sustentável, agora é tratado com “pária ambiental”. A medíocre participação na COP-25, em Madri, foi o mais puro retrato da imposição de um auto fracasso diplomático –– e de custos irreparáveis ao nosso país.  

No sistema multilateral, éramos reconhecidos como ícones do respeito a uma ordem internacional baseada em regras, mas hoje somos vistos como um Estado “rejeitado”. Em vez de reformar e fortalecer o multilateralismo, para aprimorar sua capacidade de encontrar soluções comuns para problemas compartilhados, preferimos tecer loas ao unilateralismo, em detrimento de nossos próprios interesses, uma vez que o Brasil, embora seja país grande, conta com o poder suave da persuasão e não com o poder duro da força para influenciar processos decisórios internacionais.

Na América do Sul, de indutores do processo de integração, passamos a apoiar aventuras intervencionistas e antidemocráticas. A relação entre Brasil e Argentina levou duas décadas para que as mútuas desconfianças fossem eliminadas, e a relação, estabilizada. Graças a uma diplomacia presidencial consciente de sua responsabilidade histórica, José Sarney e Raul Alfonsín, ainda nos anos 1980, puseram fim às fricções entre os dois países. A rivalidade deu ligar à cooperação. Como resultado, nasceu o Mercosul. Contudo, a abordagem ideológica e a tensão desnecessária com Buenos Aires podem arruinar as conquistas de uma diplomacia construtiva entre os dois países.

Prevalece, atualmente, o ceticismo em relação à integração regional, além do desprezo a qualquer iniciativa que não seja empreendida por governos afins ideologicamente. Com isso, o Brasil cede terreno a potências extrarregionais e abre mão da capacidade de defender seus interesses, como demonstra a retirada de todo o pessoal diplomático e consular brasileiro da Venezuela, um verdadeiro tiro no pé motivado pelo sectarismo.  

Na Europa ocidental, o Brasil perdeu seu peso gravitacional. Qual é o ganho em confrontar parceiros estratégicos e tradicionais como França e Alemanha? O acordo Mercosul-União Europeia e o projeto de ingresso na OCDE dependem, em boa medida, de amplo consenso entre os países europeus. A antidiplomacia atual somente afasta o país de seus objetivos estratégicos, ao hostilizar países essenciais para a própria implementação da agenda econômica do atual governo.

O papelão de nossa diplomacia diante da maior crise mundial de saúde é estarrecedor. A ausência de liderança, o desrespeito à ciência e às instituições de pesquisa científica e a desnecessária agressividade contra o nosso maior parceiro comercial que é a China, revelam o nível de degradação institucional. Atacar os chineses em um momento em que a nossa economia precisa preservar o escoamento de sua produção e garantir acesso a produto hospitalares é um crime lesa-pátria. O atrito com Pequim somente irá gerar desinvestimentos, declínio da produtividade e aprofundar o fosso do desemprego. É difícil encontrar uma justificava racional mínima para explicar tamanho despautério.  

A reconstrução da política exterior brasileira é urgente e necessária. Não há mais tempo a perder. O resgate dos princípios constitucionais das relações internacionais do Brasil não requer a reinvenção da roda, apenas o retorno à racionalidade e à nossa tradição diplomática, para que deixemos de lado a subserviência e a importação de conflitos que não nos pertencem. E para que o foco volte a ser no que interessa: a segurança, o bem-estar e a prosperidade do Brasil.

Sem os ingredientes do realismo e do pragmatismo não será possível construir qualquer projeto de política externa minimante defensável. Sem abandonar a ideologia, as fantasias e as alegorias fantasmagóricas que atualmente animam nossa “política externa” de corte fundamentalista, não será possível voltar a enxergar a realidade tal como ela é e não através de lentes psicodélicas. É preciso trabalhar para restaurar o corolário doutrinário da política externa. Devemos trazer a política externa ao seu leito tradicional, de Rio Branco a San Tiago Dantas, cujos elementos centrais foram consagrados pela Constituição Federal.  

Homens públicos de diferentes estirpes e crenças legaram ao país, por gerações e gerações, resultados tangíveis e amparados na melhor feição do patriotismo e da decência republicana. Para implementar uma política externa da destruição, ao arrepio dos princípios constitucionais, é preciso que se instale a amnésia diplomática, é imperativo que se desaprenda a fazer diplomacia, entendida como um método racional, implementada com base em memória histórica e institucional, enriquecida por uma tradição consolidada de maneira laboriosa por um corpo diplomático profissional.

Enfim, o que está sendo legado ao Brasil, desde o início da administração Bolsonaro, é a promoção de rupturas paradigmáticas nos cânones da política externa e, consequentemente, a tentativa de fundar um novo corolário doutrinário para expressar o interesse nacional sob o falso trinômio de liberdade, democracia e nacionalismo. Tudo para combater, em suma, o que se erigiu, fantasmagoricamente, de males que ameaçam o Brasil: comunismo, globalismo e autoritarismo. Essa diplomacia do caos e seus tentáculos obscurantistas cedo ou tarde têm encontro marcado com história.  

(*) Cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard.  Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2016-2018).  


O Globo: Ernesto Araújo evoca teoria da conspiração sobre Covid após conferência da ONU

Chanceler se refere a teoria infundada que alega que a pandemia foi baseada em um complô de elites com o objetivo de dominar as massas

André Duchiade, O Globo

O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, evocou nesta sexta-feira uma teoria da conspiração popular em sites de extrema direita, ao se referir à sua participação  na véspera em uma conferência da ONU sobre a pandemia de coronavírus. Ao difundir em redes sociais a sua fala na ONU, Ernesto citou “o grande recomeço” (“great reset”), teoria conspiratória infundada que alega que a pandemia originou-se em função de um complô de elites, com o objetivo de impor o seu controle econômico e social às massas.

Infográfico: Números do coronavírus no Brasil e no mundo

“A pandemia não pode ser pretexto p/ controle social totalitário violando inclusive os princípios das Nações Unidas. As liberdades fundamentais não podem ser vítima da Covid. Liberdade não é ideologia. Nada de Great Reset. Minha fala em sessão ONU s/ Covid”, escreveu no Twitter, em mensagens em português e em inglês.

Embora tenha citado a teoria da conspiração na rede social, Araújo não usou a expressão durante a conferência extraordinária da ONU, que contou com a participação de mais de 90 presidentes e primeiros-ministros com o objetivo de alcançar um compromisso global para responder à crise. No encerramento de sua participação, não obstante, o chanceler insinuou haver um complô que se aproveita da emergência sanitária para suprimir liberdades:

— Aqueles que não gostam da liberdade sempre tentam se beneficiar dos momentos de crise para pregar o cerceamento da liberdade. Não caiamos nessa armadilha. O controle social totalitário não é o remédio para nenhuma crise. Não façamos da democracia e da liberdade mais uma vítima da Covid-19 — afirmou, sem detalhar quem seriam os agentes supressores da liberdade, ou quais são suas ações.

A teoria do “grande recomeço” ganhou força no final de maio, quando o príncipe Charles e Klaus Schwab, presidente-executivo do Fórum Econômico Mundial, anunciaram planos para reunir líderes mundiais e discutir as mudanças climáticas e a reconstrução de economias prejudicadas pela pandemia. A reunião foi chamada de “Grande Recomeço”, dando início a uma onda de rumores falsos sobre um grupo de elite que manipularia a economia e a sociedade mundiais, atuando para abolir liberdades individuais e instaurar um regime totalitário. 

Em meados de novembro, um vídeo do primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, também usando a expressão "grande recomeço" em uma reunião das Nações Unidas em setembro, ganhou centenas de milhares de visualizações on-line. Pouco depois, comentaristas de extrema direita da internet conhecidos por difundirem desinformação começaram a usar a expressão. Paul Joseph Watson, um ex-colaborador do site de teorias da conspiração Infowars, e Steven Crowder, que falsamente afirmou que o número de mortes por coronavírus está inflado, estavam entre os propagadores da teoria. A expressão chegou aos assuntos mais comentados do Twitter.

Na videoconferência da ONU, Araújo também citou planos para avançar uma “agenda” que subtrairia poder dos Estados nacionais. Araújo não especificou quem busca adotar esta agenda, nem como:

— A Covid-19 não pode servir como pretexto para avançar agendas que extrapolam a estrutura constitucional das Nações Unidas — disse no começo de sua fala, quando atacava o multilateralismo. — O Brasil reafirma a responsabilidade primária dos governos de adotar e implementar respostas à Covid-19 específicas aos contextos nacionais. Não existe uma solução única para todos. Não devemos transferir nenhuma responsabilidade do nível nacional para o internacional.

O presidente Jair Bolsonaro escolheu não participar da conferência. Pelo protocolo, Araújo foi um dos últimos a falar, e o fez quando já anoitecia em Nova York.

Na sua fala, Araújo disse que os institutos Biomanguinhos/Fiocruz e Butantã podem, juntos, produzir entre 600 e 800 milhões de doses de vacina contra Covid-19 até junho de 2021. Não está claro qual foi a conta feita pelo ministro para alcançar estes números. Araújo também mencionou que a Fiocruz tem um acordo com Oxford e com a farmacêutica Astrazeneca para a produção de vacinas, mas omitiu o acordo entre o Butantã e o laboratório chinês SinoVac para a produção da Coronavac.


Sergio Lamucci: Um país cada vez mais isolado

Com a derrota de Trump nas eleições americanas, o Brasil fica distante de todas as principais potências globais

Novembro foi mais um mês em que o presidente Jair Bolsonaro se esforçou ao máximo para criar incidentes diplomáticos com parceiros comerciais importantes do Brasil, contando ainda com a ajuda de seu filho Eduardo Bolsonaro para a tarefa. Como resultado desse empenho, o país está cada vez mais isolado no cenário externo, especialmente por causa da política ambiental. Para Matias Spektor, professor da Escola de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV), é o momento em que as relações exteriores do Brasil “estão mais deterioradas” desde a transição para a democracia.

Há pouco menos de 20 dias, Bolsonaro ironizou Joe Biden, o vencedor das eleições nos EUA. Ao comentar declarações do americano sobre eventuais sanções ao Brasil por causa do desmatamento da Amazônia, o brasileiro lançou uma bravata, dizendo que “apenas pela diplomacia não dá” e que “depois que acabar a saliva, tem que ter pólvora - não precisa nem usar a pólvora, tem que saber que tem”. Na semana seguinte, ameaçou divulgar o nome de países que comprariam madeira ilegal do Brasil. Ele voltou atrás, mas já havia causado outro mal estar com países europeus.

Por fim, Eduardo Bolsonaro provocou mais um ruído nas relações com a China na semana passada. Presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados, o filho do presidente escreveu que o governo apoiou a aliança “Clean Network”, lançada por Donald Trump, por ser uma frente global para um “5G seguro, sem espionagem da China”. Eduardo apagou a publicação, que recebeu resposta agressiva da embaixada chinesa, advertindo para “consequências negativas” dessa retórica.

Com a derrota de Trump nas eleições americanas, o Brasil fica distante de todas as principais potências globais. Até o momento, Bolsonaro não fez nenhum gesto em direção a Biden. O brasileiro é um dos poucos chefes de Estado ou de governo a não ter cumprimentado o americano pela vitória. Ontem, Bolsonaro disse ainda que tinha informações de que houve “muita fraude” nas eleições americanas.

Spektor diz que a “relação interpessoal entre Bolsonaro e Biden será difícil, tendo em vista a “reação visceral” que o brasileiro “provoca no Partido Democrata de modo específico, mas também “na classe política americana de modo mais geral”. Segundo ele, não se trata apenas do meio ambiente, mas também dos valores que o brasileiro representa, vistos no contexto americano não só “como antiquados, mas como politicamente incorretos”.

O mal estar em relação ao Brasil não se resume à política ambiental, mas esse será o terreno em que o país tende a enfrentar maiores problemas com os EUA. A nomeação do ex-secretário de Estado John Kerry como czar do ambiente mostra a importância central que o tema terá no governo Biden, diz Spektor. “O meio ambiente será para Biden o que a reforma do sistema de saúde foi para Barack Obama no primeiro mandato” avalia ele, observando que isso coloca o Brasil numa situação muito difícil, num momento em que se consagrou a ideia e a imagem do país como um “vilão do clima”. Para Spektor, reverter essa tendência demandaria um esforço muito forte do Brasil, algo que até o momento o governo Bolsonaro não parece disposto a fazer.

Para Spektor, há “um risco enorme” para as exportações brasileiras por causa desse tema. “O mundo está avançando numa direção na qual as normas internacionais de preservação ambiental não serão implementadas pelo Conselho de Segurança da ONU, pela Otan, por um país invadindo o outro. O processo de implementação será feito via regras comerciais. É nos acordos comerciais que os países vão sentir a pressão para se adequarem”, afirma ele, para quem já parece “contratada” essa crise do comércio exterior brasileiro. Ou o Brasil se adapta a essas normas e dá uma sinalização clara de que está em conformidade com elas ou o setor exportador brasileiro arcará com esse custo, diz Spektor. Segundo ele, para todos os efeitos, os países europeus não vão ratificar neste momento o acordo entre a União Europeia (UE) e o Mercosul.

O governo Bolsonaro também tem se especializado em criar ruídos com a China, o principal destino das exportações brasileiras. Spektor diz que, nesse front, “o que está em jogo agora, para além da briga pública entre a embaixada chinesa e o deputado Eduardo Bolsonaro, é o papel do Brasil diante da presença econômica chinesa na América Latina”. É o país da região no qual a China enfrenta mais dificuldades, nota ele. “Um exemplo disso é o processo licitatório do 5G. Para onde o Brasil vai avançar deve depender da relação com os EUA, de quanto pressão os americanos colocarão”, diz Spektor. “O Brasil é a principal economia que ainda não tomou a decisão para que lado penderá. A Argentina não tem muita opção, a não ser pender para a China, idem o Chile, idem a Colômbia. No caso do Brasil, ainda há incerteza.”

Dada a orientação do governo Bolsonaro para a política externa e a política ambiental, o isolamento do Brasil se acentua. Para Spektor, é uma tendência que vem de antes de Bolsonaro. “A operação Lava-Jato aumentou muito o isolamento brasileiro na América do Sul, por causa dos efeitos deletérios que teve para a classe política, sobretudo da Argentina, Peru, Colômbia e México”, diz ele. O ponto é que, com Bolsonaro, a tendência de um Brasil isolado se reforçou, afirma Spektor, observando que o brasileiro não foi capaz nem sequer de montar uma coalizão com os governos de direita da região, como Iván Duque na Colômbia ou Sebastián Piñera no Chile. “O nosso isolamento já está contratado, e pelo menos hoje não parece haver um sinal de que essa tendência será revertida. À medida que o tema ambiental ganhar força, essa tendência deve se acirrar”, diz Spektor. Para ele, o Brasil começa a se colocar numa posição um “pouco análoga” a que o país tinha em meados dos anos 1980, quando estava assolado por uma crise ambiental (por fatores como o desmatamento na Amazônia, a poluição em Cubatão e o assassinato de Chico Mendes), uma imagem muito negativa da classe política e uma crise fiscal com implicações inflacionárias.

Para ele, este é o momento em que o país se encontra mais isolado desde a época da transição para a democracia, há mais de 30 anos. “É uma notícia muito negativa para a qualidade de vida dos brasileiros, porque boa parte do bem-estar da população depende ativamente do sistema internacional, da economia internacional, do comércio internacional, da taxa de juros internacional, da capacidade de cooperação em áreas como saúde global no contexto da pandemia”, lamenta Spektor.


Bruno Boghossian: Diplomacia da extrema direita aproxima o país de prejuízos reais

Diplomacia da extrema direita aproxima o país de prejuízos reais

A diplomacia brasileira conseguiu cometer uma barbeiragem dupla. Nas últimas semanas, o governo desprezou o próximo presidente dos EUA e enviou sinais hostis para a China. Amarrado a Donald Trump e às bandeiras da direita radical, o país pode sofrer prejuízos concretos na relação com seus dois principais parceiros comerciais.

Na terça (24), a embaixada chinesa ameaçou o Brasil com “consequências negativas” depois que Eduardo Bolsonaro publicou uma mensagem que ligava a tecnologia de 5G do país asiático com atos de espionagem.

“Essa talvez seja a mais enfática advertência para os danos que Eduardo e seus cúmplices podem causar às relações com a China”, diz Roberto Abdenur, que foi embaixador brasileiro em Pequim e Washington. Para ele, o silêncio de Jair Bolsonaro sobre a declaração do filho “endossa essa barbaridade”.

O diplomata vê uma escalada nas manifestações do governo chinês, com uma ameaça real de retaliação nos investimentos e no comércio. “O Brasil se ilude ao achar que teremos eternamente a posição privilegiada de grandes exportadores de soja, carne, minério de ferro e açúcar”, diz.

Ainda que existam questionamentos sobre a segurança da tecnologia chinesa de 5G, o governo brasileiro usa uma retórica infantil para satisfazer sua base ideológica. Abdenur afirma que o país enfrentará tempos difíceis se não souber manter uma equidistância entre China e EUA.

O desafio pode ser ainda maior porque Bolsonaro escolheu “uma posição de subserviência” em relação a Trump, segundo Abdenur –o que criou uma política externa baseada em “alucinações, fantasias e teorias conspiratórias”.

Para o ex-embaixador em Pequim e Washington, a atuação de Eduardo e do ministro Ernesto Araújo na diplomacia funciona como elo entre a extrema direita americana e a extrema direita brasileira, “que é uma sucursal da extrema direita americana”. “A não ser que haja uma guinada nessa postura, o que eu não acredito, nós vamos ter problemas”, avalia.