ernesto araújo

Roberto Abdenur: Retrocesso na política externa

Em seus escritos e no discurso de posse, o novo chanceler, Ernesto Araújo, expressou uma posição de extrema direita. Sustenta que o Ocidente está em decadência e que só os EUA podem salvá-lo, sob a liderança de Trump. Pinta a ordem internacional como adversa ao Brasil e à sua soberania. Essa ordem “globalista” visa a desfazer as nações e impor um mundo avesso a Deus. Cita como governos verdadeiramente nacionalistas, além dos EUA, Israel, Itália, Polônia e Hungria —regimes onde, observo, a democracia está sendo substituída por duras autocracias. Nada que sirva de modelo para o Brasil. Com a adesão agora do Brasil de Bolsonaro, parece estar se formando uma espécie de “Internacional” da extrema direita.

Em outro plano, Ernesto Araújo fez tábula rasa de gerações de diplomatas, ao expressar duras críticas aos colegas, que descreveu como narcisistas, elitistas e alienados do país, afastados do povo. Enganou-se o chanceler. O Itamaraty é hoje composto por gente proveniente das mais variadas regiões e extratos sociais. É também racialmente diverso. E o ministério é ativo, através da diplomacia pública, no sentido de abrir-se à sociedade com o objetivo de atender aos anseios da população e fazer da política externa algo inclusivo, transparente e participativo, com prestação de contas à sociedade e recepção de comentários, críticas e sugestões.

Uma coisa é o Itamaraty integrar a elite do serviço público. Outra seria ter os diplomatas a comportarem-se como uma elite social afastada do povo, o que não é o caso.

Com o ideário apresentado pelo chanceler, a política externa sofrerá processo de retração, de encolhimento. Importantes postulados dessa política serão erodidos ou abandonados: o multilateralismo, os direitos humanos, a sustentabilidade, o apoio às Nações Unidas e aos organismos a ela vinculados. E o Brasil adotará posição defensiva em relação ao sistema internacional. O país até agora não tem sido passivo perante a ordem internacional. Ao contrário, atua intensamente para ajudar a configurar essa ordem através de mecanismos como o G-20, a Organização Mundial do Comércio, o Brics e outros foros regionais e multilaterais.

Ernesto Araújo critica o fato de os colegas acompanharem o noticiário da imprensa internacional, como, entre outros, a CNN, o “New York Times”, a revista “Foreign Affairs”. Ora, os diplomatas assim agem por estrita necessidade funcional. Na velocidade em que hoje se desdobram os acontecimentos internacionais, é importante seguir as notícias a cada momento. Isso não implica alheamento em relação ao que ocorre no Brasil.

Além do encolhimento da política externa, o Itamaraty será diminuído em seu status, devido à movimentação informal que paralelamente conduzem os filhos e outros colaboradores do presidente em seus esforços de aproximação com outros governos, partidos políticos e entidades ativas no ideário da extrema direita. O próprio Brasil terá reduzida sua presença internacional, devido a uma política de subserviência aos Estados Unidos.

O chanceler fala em “libertar” o Itamaraty das amarras da ideologia de esquerda, mas não percebe que está a embarcar numa política altamente ideológica pelo lado da direita.

Nisso tudo, é pena que o presidente da República, tão cioso da hierarquia militar, tenha optado por romper com a hierarquia do Itamaraty. A esse gesto inicial se seguirão outras instâncias de subversão da hierarquia do ministério —com o resultado de debilitar a instituição e desestimular seu corpo de diplomatas.

*Roberto Abdenur é embaixador aposentado e foi secretário-geral do Itamaraty


William Waack: Valentia e resultados

O grande risco internacional é a instabilidade, agravada pelo comportamento de dirigentes

Tirar o Brasil do Pacto Global para Migração é o tipo da valentia que não custa grande coragem, rende muitas frases de efeito e tem pouquíssimo – ou nenhum – efeito prático. Na raiz desse gesto do novo presidente brasileiro está a convicção de que uma grande conspiração internacional trabalha para retirar a soberania, a capacidade de decisão ou até mesmo a vontade de se defender de Estados nacionais. E que grandes instituições multilaterais (como a ONU, onde se tramitou o tal do inócuo pacto de migração) foram aparelhadas pelos tais globalistas.

O cenário que preocupa de verdade um grande número de analistas internacionais, incluindo as grandes consultorias de risco, é outro. É o que chamam quase em uníssono de agravamento da instabilidade nas relações entre os países. “Nada urgente”, escreve uma dessas consultorias, a Eurásia, “ciclos geopolíticos são lentos e leva-se anos, até décadas, para destruir uma ordem, mas a erosão (da atual ordem) está ocorrendo”.

Neste tipo de cenário abre-se ainda mais o espaço para que indivíduos – tais como dirigentes de alguns países – consigam estragar coisas ainda mais depressa. Mas aqui vai uma nota tranquilizadora: a mesma Eurásia, quando olha para os riscos nestas partes do mundo, está preocupada com o México e seu novo presidente populista de esquerda, e muito pouco com o Brasil (em outras palavras, nossa capacidade de causar estragos internacionais no momento é considerada pequena).

Assim, a guerra comercial entre as duas maiores economias do mundo é descrita como consequência, e não causa, do que se considera como quase inevitável ruptura da ordem internacional descrita como “liberal”. Da mesma maneira, o estado da economia mundial preocupa muitos comentaristas estrangeiros não tanto pela dificuldade de se prever o comportamento dos mercados, mas, sobretudo, por aquilo que se assume com grande dose de convicção: mesmo um pequeno ciclo recessivo (que se dá como favas contadas) encontrará os principais governos menos afinados e capazes de respostas, como aconteceu na grande crise financeira de 2008.

Aqui o foco vai diretamente para os Estados Unidos, e a rara combinação de difícil situação política doméstica com o fato de Washington ser um dos principais fatores que contribuem para virar a ordem internacional de cabeça para baixo – fato exemplificado num presidente que fala tão mal de adversários quanto de aliados. Donald Trump perdeu o controle do Congresso e a atual paralisação do governo é apenas o início de uma áspera batalha política interna.

Nesse sentido, desenha-se um curioso cenário de combates também em relação à política externa americana. O “consenso” entre democratas e republicanos sobre a necessidade de reduzir o papel internacional dos Estados Unidos está sendo quebrado na luta política contra Trump, ou seja, seus adversários começam a falar na necessidade de “reconstruir” valores como a liderança americana e refazer alianças (a belicosidade em relação a China, porém, une nos Estados Unidos forças políticas antagônicas).

Ser “contra” ou “a favor” de Trump é uma dessas bobagens que só tornam ainda mais precária a compreensão do que está em jogo. O problema não está em atacar o “globalismo”, mas em saber qual a capacidade de liderança de Trump no momento em que uma crise econômica transborde para se transformar numa crise geopolítica. E ela vem.


Fernando Gabeira: Salvação e salvadores

Política externa do PT foi desvio voluntarista. Ao delírio da esquerda, não se pode responder com o delírio da direita

Outro dia, li uma nota levemente crítica ao ministro Ernesto Araújo, das Relações Exteriores. Ele escrevera um artigo afirmando que Deus estava na diplomacia, na política, em todos os lugares.

Embora não seja propriamente um teólogo, considero bastante previsível a crença na onipresença divina. Algumas religiões estendem o dom da ubiquidade a todos os espíritos. Para dizer a verdade, alguns deuses, como o hindu Shiva, têm poderes muito mais ecléticos: dança, destrói, faz um carnaval.

Não temos o dom divino da onipresença porque somos humanos e não toleraríamos a presença na vastidão. No meu caso, dispensaria Bruxelas sob chuva e as noites de Codó, no Maranhão.

O que me intriga no pensamento do ministro Araújo é sua crença na salvação do Ocidente, liderado por Donald Trump. Essa história de salvação, creio que surgiu, pela primeira vez, com Zoroastro, perpassou o cristianismo, reaparece na religião laica que é o marxismo e sobrevive em alguns setores da ecologia que acreditam poder salvar o planeta.

Se a salvação para mim é um conceito duvidoso, o que diria do salvador? De que podemos ser salvos por alguém como Trump, que diz às crianças que Papai Noel não existe e contrata advogados para silenciar mulheres com quem transou?

Se pelo menos Trump usasse o que se diz sempre — errar é humano, a carne é fraca, atire a primeira pedra —, os valores ocidentais estariam em melhores mãos. O problema central é a relação com os Estados Unidos. Ela precisa de equilíbrio, e há quem trabalhe nesse tema desde o século passado.

Afonso Arinos, em 1952, quando ainda esboçava suas ideias sobre uma política externa independente, defendeu o Acordo Militar Brasil-EUA. O governo Vargas queria isso, mas não teve coragem de dar as caras. Resultado, Arinos apanhou sozinho da esquerda.

Acontece que no acordo havia um só tópico que não interessava ao Brasil. Arinos ofereceu uma fórmula diplomática para contornar a dificuldade. Apanhou da direita.

Mesmo nos primórdios do que mais tarde seria uma política externa independente, a proximidade com os Estados Unidos representava um fato decisivo. Mas também era bastante claro que a proximidade não significava uma adesão acrítica a todas as propostas americanas.

No momento, esta questão vai aparecer com muita delicadeza, entre outras, nas relações com a China. Trump espera apoio na sua guerra comercial. Mas tem negociado intensamente com Xi Jiping.

Não está muito claro o papel que teremos nesse triângulo. Por enquanto, estamos ainda em discussões teológicas, ave-maria em tupi, José de Alencar e arroubos nacionalistas.

Tudo isso, para mim, anima um pouco o morno universo político brasileiro. Mas existem algumas contradições. Um forte tom nacionalista quando se trata de organismo multilateral. Uma duvidosa escolha do salvador, quando se trata das ameaças ao Ocidente.

Não imagino que o olhar severo do ministro Araújo esteja voltado contra os jogadores de I Ching ou leitores do Tao. Ele se preocupa com o marxismo chinês, com os grupos islâmicos, com a desaparição de traços culturais do país num mundo globalizado.

Mas é um exagero supor que nossa política externa seja uma medíocre omissão baseada em interesses comerciais. O desejo de defender a paz e solução negociada para os conflitos é um dado da cultura brasileira.

No século passado, o Peru inaugurou uma avenida com o nome de Afrânio Mello Franco, pai de Afonso Arinos. Os peruanos acham que o velho contribuiu para evitar uma guerra com a Colômbia.

Se isso não basta, lancemos um olhar para o próprio governo Bolsonaro. Dois dos seus ministros são generais destacados na manutenção da paz no mundo: Augusto Heleno, no Haiti; Carlos Alberto dos Santos Cruz, no Congo.

O Brasil não é uma invenção intelectual. A política externa do PT foi um desvio voluntarista. Ao delírio da esquerda, não se pode responder com o delírio da direita.

Política externa é fruto de um consenso nacional. Não adianta forçar a barra. Sofremos com isso, e o preço político que os vencedores do momento pagarão é bem maior que os equívocos domésticos, num país em que nem todos os meninos se vestem de azul, nem todas as meninas de rosa.


Luiz Antonio Simas: Um medalhão em Saramandaia

Versos, citações em latim, adjetivos em profusão, citações históricas: a teoria do medalhão, de Machado de Assis, estava toda ali no discurso de posse de Ernesto Araújo. Lembranças também dos professores Aristóbulo Camargo e Astromar Junqueira, de Dias Gomes

O escritor carioca Machado de Assis publicou o conto Teoria do Medalhão em 1881, no jornal Gazeta de Notícias . A trama é simples: Janjão está completando 21 anos, a maioridade naquela época. Logo depois do jantar de comemoração do aniversário, o jovem é chamado pelo pai para uma daquelas conversas definitivas sobre o futuro.

Em resumo, o pai aconselha o filho a ser o que ele mesmo não conseguira: um medalhão. O que seria isso? Basicamente, o medalhão é “grande e ilustre, ou pelo menos notável”. Para chegar ao auge entre os 45 e os 50 anos, período em que o medalhão geralmente desabrocha, Janjão deveria se preparar desde cedo, aparelhando o espírito para evitar o perigo das ideias próprias.

Dentre diversas dicas para que o status de medalhão seja alcançado, o pai de Janjão ressalta a importância da linguagem. Cito: “podes empregar umas quantas figuras expressivas, a hidra de Lerna, por exemplo, a cabeça de Medusa, o tonel das Danaides, as asas de Ícaro, e outras, que românticos, clássicos e realistas empregam sem desar, quando precisam delas. Sentenças latinas, ditos históricos, versos célebres, brocardos jurídicos, máximas, é de bom aviso trazê-los contigo para os discursos de sobremesa, de felicitação, ou de agradecimento. Caveant consules é um excelente fecho de artigo político; o mesmo direi do Si vis pacem para bellum ”.

Por fim o pai sugere que o medalhão não chegue a nenhuma conclusão que já não tenha sido chegada por outros, mas faça isso de forma aparentemente original, e evite os riscos da ironia, coisa de “céticos e desabusados”.

A nova onda da internacionalização de Machado de Assis
Ao escrever o conto Machado satirizava uma turma da sociedade aristocrática e bacharelesca que misturava, nas mesmas proporções, mediocridade e pedantismo. Os medalhões difundiam ideias rasteiras recheadas de citações, tentavam impressionar os populares com demonstrações de conhecimento das coisas do povo e, ao mesmo tempo, comover os eruditos com axiomas clássicos, enfiando três ou quatro máximas em outras línguas para arrematar.

A Teoria do Medalhão me veio à memória quando escutei o discurso de posse do novo chanceler brasileiro, Ernesto Araújo. A linguagem do medalhão estava toda ali: citação em grego de versículo do Evangelho de São João, citação da banda Legião Urbana em música com versos de Camões, citação em latim do brasão da Ordem de Rio Branco, referências a Tarcísio Meira, Raul Seixas e José de Alencar, menção a uma série de ficção científica e, para arrematar, a Ave Maria em Tupi, de acordo com a tradução do padre José de Anchieta. No meio do sarapatel, ataques ao globalismo, exortações ao caráter libertador de Bolsonaro e saudações aos governos conservadores de direita da Europa.

Confesso que, até me recordar da Teoria do Medalhão, comecei a considerar o arrazoado do ministro similar aos discursos que dois personagens de Dias Gomes faziam nas novelas Saramandaia e Roque Santeiro : os professores Aristóbulo Camargo e Astromar Junqueira. Versos, citações em latim, adjetivos em profusão, citações históricas eram comuns aos homens das letras, sempre vestidos de preto, criados por Dias. Registre-se que Aristóbulo e Astromar, nos intervalos entre um discurso e outro, viravam lobisomens.

Outro detalhe chama atenção no discurso do chanceler. Em alguma medida, ele parece ir em direção oposta à comunicação do governo. Enquanto o presidente e outros assessores buscam construir imagens populares de pessoas comuns, com sucesso, o chanceler aparece com fumos de erudição, saca do colete dezenas de autores, arremata tudo isso com sentenças bíblicas em línguas clássicas e, dando uma de Policarpo Quaresma, enfia no meio um tupi-guarani suspeito.

O discurso do chanceler, digno de um medalhão bem sucedido, sugere duas possibilidades: uma delas é a da confirmação da atemporalidade da obra de Machado de Assis. O Bruxo do Cosme Velho, ao diagnosticar a sua época, permanece atual. O que escreveu em 1881 continua irretocável em 2019; coisa que só faz afirmar o preto do Morro do Livramento como um gigante das letras. A outra possibilidade é a de que o chanceler de 2019 seja um exemplo bem acabado de brasileiro de 1881.

A minha impressão é a de que elas não se excluem: o escritor do século XIX continua vivendo no século XXI. O chanceler do século XXI continua vivendo no século XIX.

*Luiz Antonio Simas é historiador, autor de 15 livros, ganhador de dois prêmios Jabuti – entre eles o de Livro do Ano de Não Ficção de 2016, com Nei Lopes


Dawisson Belém Lopes: Deus e o diabo na terra da política externa

Chanceler promete diplomacia que reflita religiosidade popular, mas será que brasileiros são contra o secularismo?

Há algo de farsesco, ainda que bastante engenhoso, no modo como a política externa do governo Bolsonaro vem buscando legitimar-se publicamente. O principal impulso ao processo é dado pelo chanceler Ernesto Araújo, homem de fortes convicções morais, admirador dos nacionalismos românticos e da herança ocidental. Trata-se, ademais, de um fiel devoto de Donald Trump.

Araújo vem se aproximando, nas manifestações feitas em seu blog pessoal e nas peças que publica na imprensa, do apelo popular de Jair Bolsonaro à religiosidade do povo brasileiro. A fórmula da nova política externa, segundo o chanceler, terá de alinhar-se a essas circunstâncias.

Se a gente brasileira é religiosa, logo a política externa, praticada por um presidente com mandato democrático, também deverá sê-lo. O Brasil, entende Bolsonaro, necessita pautar-se nas suas relações internas e internacionais por valores judaico-cristãos, pois é isso que o povo reivindica na atualidade.

Do raciocínio deriva o receituário da política externa bolsonarista: o país precisa rejeitar o “globalismo” e o “marxismo cultural”, tendências emanadas de foros diplomáticos e editoriais internacionais, desprovidas do empuxo popular e, alegadamente, corruptoras da soberania nacional e do patriotismo. Eis o bilhete para a “libertação do Itamaraty” – na expressão carregada de Araújo.

Para tanto, devem-se recusar peremptoriamente as resoluções das entidades multilaterais e juntar-se à liga dos regimes fortes e cultores das tradições ocidentais. Estados Unidos, Itália, Polônia e Hungria, nações cristãs, credenciam-se como parceiras preferenciais. Israel, o Estado judaico, candidata-se a aliado incondicional.

Percebe-se, todavia, que a equivalência “voz do povo, voz de Deus”, proposta pelos bolsonaristas como o verdadeiro elo perdido da autoridade, resulta logicamente falaciosa. Se é bem verdade que a sociedade brasileira preza a dimensão religiosa, não se extrai daí que os cidadãos sejamos refratários ao secularismo como princípio organizador da vida política.

Mero estereótipo
De resto, a experiência religiosa dos brasileiros, como já amplamente difundido pelos antropólogos, é de um tipo sincrético, não acomodando no cotidiano os rigores da ortodoxia. Somos o país dos milhões de cristãos “não praticantes”, das infusões e dos intercâmbios entre as variadas denominações de fé.

Ao substituir as máximas mundanas do realismo político por princípios idealistas e metafísicos, Araújo e colaboradores recriam o ciclo de produção da política externa brasileira. Tira-se o povo da conversa, reduzindo-o a mero estereótipo de uma expressão religiosa. Habilmente, o chanceler e seu grupo promovem jogos filosóficos e de linguagem cujo saldo é a elitização decisória em política externa.

Explica-se: quando o mote da política externa democrática era anteriormente evocado, imaginava-se uma tensão constitutiva entre os aristocráticos homens de Estado e a plebe. A democratização poderia até avançar, lenta e dialeticamente, por meio de choques de interesses. Por um truque retórico, contudo, essa tensão dissipou-se no discurso corrente, dado que os novos mandatários imaginam falar pelo e para o povo, interpretando de maneira peculiar os sentidos da sua fé.

Os diplomatas profissionais, integrantes da comunidade cosmopolita global, tradicionalmente autorizados a pronunciar-se sobre as relações exteriores do Brasil, dão lugar a teocratas e nativistas. Dentro desse esquema de coisas, saber técnico, trajetória institucional e acúmulo acadêmico não se tornam, necessariamente, alavancas de poder. Afinidade ideológica e proximidade com a chefia do Poder Executivo, sim.

Existe, ainda, um inesperado problema empírico com a narrativa diplomática em construção: segundo levantamento do instituto Datafolha, divulgado em 27 de dezembro último, 66% dos brasileiros não querem ver o país associado aos Estados Unidos nos assuntos estrangeiros. É um rechaço popular emitido em alto e bom som aos caminhos vislumbrados pelo novo governo federal.

* Professor de política internacional da UFMG, é o autor de “Política Externa e Democracia no Brasil: Ensaio de Interpretação Histórica” (Ed. Unesp, 2013) e “Política Externa na Nova República: Os Primeiros 30 Anos” (Ed. UFMG, 2017).


Miguel Reale Júnior: Contra o pacto e contra os brasileiros

Isolamento do País no concerto internacional deixa os brasileiros no exterior desassistidos

A migração tem se tornado problema em todos os continentes, com significativas populações se deslocando para habitar outras terras, trazendo problemas sociais, mas, ao mesmo tempo, contribuindo para o desenvolvimento dos locais de destino. Hoje, mais de 250 milhões de pessoas estão em outros países como imigrantes regulares ou irregulares, essa é uma questão a ser enfrentada pelo conjunto das nações, como reconhecem os 160 signatários do Pacto Global da Migração, firmado dia 10 de dezembro em Marrakesh, no 70.º aniversário da Declaração dos Direitos Humanos da ONU.

O Brasil e a América Latina tiveram intensa participação na elaboração do Pacto Global da Migração, fruto do trabalho de anos, como explicou Alicia Bárcena, diretora da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal). As cinco comissões econômicas regionais das Nações Unidas ajudaram a compreender as causas e o tamanho das migrações, bem como a característica das pessoas: seus idiomas, habilidades, necessidades de saúde, nutrição e educação.

Assim, foi possível perceber, como se assinala no pacto, a importância da união, do espírito de cooperação, no qual todos ganham, ao se criar uma estrutura juridicamente não vinculativa, fruto do reconhecimento de que nenhum Estado pode abordar a migração por conta própria, dada a natureza intrinsecamente transnacional desse fenômeno.

Conforme António Guterres, secretário-geral da ONU, o Pacto Global de Migração, além de não ser juridicamente vinculativo, tem a natureza de uma cooperação internacional, enraizada num processo intergovernamental de negociação de boa-fé. Dessa maneira, há proteção da soberania de cada nação, preservando-se o direito soberano dos Estados de determinar sua política nacional de migração e a prerrogativa de, dentro de sua jurisdição, distinguir entre o status de migração regular e irregular, levando em consideração diferentes realidades, políticas, prioridades nacionais para entrada, residência e trabalho.

O pacto global, todavia, acentua dever-se respeito ao Estado de Direito, ao devido processo legal e à garantia de acesso à Justiça como elementos fundamentais para impedir discriminações e permitir a concessão de serviços básicos e a viabilidade de inclusão e coesão social. A inclusão começa pela possibilidade de obtenção de prova de identidade legal e documentação adequada, para em seguida poder haver um recrutamento justo e ético de modo a salvaguardar condições de trabalho decente, não similar ao trabalho escravo.

Dois segmentos merecem especial atenção no Pacto Global de Migração: as crianças e as mulheres. Quanto às mulheres, recomenda-se que suas necessidades específicas sejam devidamente compreendidas e abordadas e seja fortalecida a igualdade de gênero. Com relação às crianças, acentua o pacto ser prioritário o atendimento de suas exigências primárias, mormente de meninos e meninas desacompanhados e separados da família.

Em vez da prisão e do envio forçado para o país de origem, propõem-se medidas para facilitar o regresso e a readmissão seguros e dignos.

Mas para buscar promover a migração regular e controlada o pacto sugere prevenir, combater e erradicar, com cooperação, o tráfico de pessoas no contexto internacional, além de gerenciar as fronteiras de forma integrada com os países vizinhos. Em suma, deve haver uma política de governo, pois importa em integrar diversos setores da administração, em linhas vertical e horizontal.

Dois aspectos merecem destaque com referência ao Brasil: primeiramente, a absoluta convergência do texto do Pacto Global de Migração com o teor da nossa legislação, a recente Lei n.º 13.445/17, e a relevante circunstância de sermos hoje tanto um país de imigração como de emigração.

Com efeito, há atualmente cerca de 2 milhões de estrangeiros no Brasil como imigrantes, definidos como pessoa nacional de outro país que trabalha ou reside e se estabelece temporária ou definitivamente no Brasil, aqui estando de forma regular ou irregular. Sucede, todavia, conforme números do Ministério das Relações Exteriores, que há número maior de brasileiros instalados no exterior, ou seja, emigrantes brasileiros estabelecidos temporária ou definitivamente no exterior. Há cerca de 3 milhões de brasileiros nessa condição.

Assim, é de grande interesse para nossos compatriotas, residentes de forma regular ou irregular no estrangeiro, que o Brasil seja signatário do pacto, para os brasileiros receberem, lá fora, os benefícios concedidos pela nossa lei aos imigrantes.

A recente lei, a ser respeitada, consagra, por exemplo, os seguintes princípios em favor dos imigrantes: promoção de entrada regular e de regularização documental, acolhida humanitária, garantia do direito à reunião familiar, inclusão social e laboral para o migrante e seus familiares.

Tais princípios estão em consonância com o proposto pelo Pacto Global de Migração, que, no entanto, tão logo assinado pelo nosso então ministro das Relações Exteriores, Aloysio Nunes Ferreira, foi, precipitadamente, anunciado pelo então chanceler indicado do novo governo, pelo Twitter, como a ser denunciado pelo Brasil: “O governo Bolsonaro se desassociará do Pacto Global de Migração por ser um instrumento inadequado para lidar com o problema, pois a imigração não deve ser tratada como questão global, mas sim de acordo com a realidade e a soberania de cada país”.

Importante conclusão do pacto foi no sentido de a questão só poder ser enfrentada em conjunto pelas nações, em cooperação, com boa-fé, sendo esse instrumento não vinculativo e respeitador da soberania dos países. O novel chanceler, curiosamente, diz exatamente o inverso, isolando nosso país no concerto internacional e deixando, no exterior, os brasileiros desassistidos, enquanto nossa lei, aqui, protege os estrangeiros.

*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça


Demétrio Magnoli: O Deus deles e o de todos

Nenhuma autoridade menciona Deus em vão, mas para iludir, enganar, trapacear

“Não usarás o nome de Deus em vão” (Êxodo 20:7). Bolsonaro mencionou Deus abundantemente nos seus dois discursos de posse —e sempre em vão.

O Deus que autoriza ou sacraliza escolhas políticas nasce quando o poder se apropria da fé, para separar os filhos de Deus segundo a fidelidade a uma autoridade terrena.

Na Roma imperial, a fé exprimiu a aspiração ancestral de igualdade política. O cristianismo difundiu-se entre o povo pois a proclamação de que “somos todos filhos de Deus” erguia uma muralha lógica contra a discriminação.

Constantino curvou-se a ela e, para conservar o Império, instituiu a tolerância religiosa (313). Daí, seguiu-se o Concílio de Nicea (325), a conversão do imperador em seu leito de morte (337) e o Edito de Tessalônica (380), de Teodósio, que elevou o cristianismo à condição de religião de Estado. No fim do percurso, completou-se a inversão: o poder terreno adquiria o direito de discriminar invocando
o nome de Deus.

A ideia original dos “filhos de Deus” é inclusiva. São “filhos de Deus” todos os seres humanos, mesmo os infiéis ou pecadores. O rebanho abrange os que cultuam deuses pagãos e os que clamam contra a autoridade.

Nesse sentido, a fé cristã mantém coerência com o princípio iluminista da igualdade política. “Nós não tratamos de Deus” —a advertência de Alastair Campbell, assessor de Tony Blair, evitou que o primeiro-ministro britânico concluísse seu discurso à nação, no início das hostilidades no Iraque (2003), com a frase “Deus nos abençoe”.

O veredicto sobre a principal decisão de Blair, de seguir George W. Bush na campanha militar, não caberia a Deus, mas exclusivamente aos cidadãos.

“Agora, nós tratamos de Deus”, escreveu o ministro Ernesto Araújo, das Relações Exteriores, num artigo para a revista The New Criterion, referindo-se ao Brasil do governo Bolsonaro.

A frase quase protocolar ensaiada por Blair seria uma súplica e a desejada bênção divina, uma mera hipótese. O Deus de Blair não dirige os eventos humanos, ainda que possa eventualmente aprovar, a posteriori, certas escolhas políticas.

Já o “Deus de Trump” invocado por Araújo move meticulosamente os pauzinhos da política. No caso brasileiro, segundo o artigo, Deus concatenou as ações de Bolsonaro, Olavo de Carvalho e da Lava Jato com a finalidade de restaurar uma pátria que se tinha perdido. Esse Deus pervertido, um despachante de interesses terrenos, é o que o governo de turno quer que seja.

No discurso político, há um Deus para cada gosto. O Deus da Igreja Católica medieval mandava queimar bruxas e dirigia exércitos de cruzados.

O dos partidos religiosos israelenses exige a continuidade da ocupação de territórios conquistados. O das teocracias islâmicas impõe códigos restritivos de costumes que rebaixam as mulheres a uma cidadania de segunda classe. Aí, em todos esses casos, a palavra divina emana das autoridades políticas e o nome de Deus serve para matar, conquistar, oprimir.

Araújo fala sem parar na “tradição judaico-cristã” que seria a nossa, sem se dar conta de que essa é uma tradição diversa, heterogênea e, sobretudo, aberta à mudança. Dela, faz parte a laicidade estatal —isto é, o “não tratamos de Deus” de Campbell.

No seu pronunciamento de posse no Itamaraty, perante diplomatas frios de vergonha (e também de um cordão de puxa-sacos, como foi Araújo até ontem), ele denunciou um “ódio contra Deus” que estaria inscrito na “agenda global” e alinhou o Brasil aos governos populistas dos EUA, da Itália, da Hungria e da Polônia.

O Deus dele é um ídolo: Steve Bannon, o arauto da alt-right americana que tenta construir uma “Internacional dos nacionalistas”.

Campbell tinha razão. Nenhuma autoridade menciona Deus em vão. O nome é usado para iludir, enganar, trapacear. Para evitar que suas políticas sejam submetidas ao escrutínio da razão.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Matias Spektor: Ernesto Araújo enfrenta primeiro teste em Lima

Resultado da jornada do novo chanceler terá três impactos fundamentais

Está marcada para amanhã a estreia do chanceler Ernesto Araújo, quando ele participa da reunião do Grupo de Lima, o clube de países interessados em coordenar uma resposta à ditadura venezuelana.

Trata-se de encontro importante porque Nicolás Maduro está prestes a assumir um novo mandato presidencial e, pela primeira vez em muito tempo, devido à crise econômica galopante, dissidentes e opositores conseguem oferecer uma perspectiva de mudança.

Em Lima todos os holofotes estarão sobre o chanceler brasileiro. Bolsonaro alimentou a expectativa de que o Brasil jogará seu peso contra o chavismo, e a pergunta que todos farão é se Araújo consegue liderar a costura de um consenso regional ou se ele tropeçará nos obstáculos que, há tempos, inviabilizam um front comum.

Ao pousar em Lima, o ministro terá somente apoio líquido e certo da Colômbia. O México lhe fará oposição. Argentina, Chile e Peru terão alguma simpatia, mas precisarão ser convencidos.
O resultado da jornada terá três impactos fundamentais.

O primeiro é sobre a Venezuela. Se houver consenso em Lima, os opositores do regime em Caracas e no exílio farão novos movimentos. Se a região ficar dividida, tudo fica como está.

O segundo impacto é sobre Bolsonaro. O presidente terá sua primeira vitória diplomática se o grupo publicar uma declaração com medidas duras, tais como a negação de vistos a representantes do regime venezuelano, a imposição de sanções, uma denúncia ao Tribunal Penal Internacional ou uma crítica à China e à Rússia, as duas potências que ainda ajudam a manter o chavismo no poder.

Ao contrário, Bolsonaro terá amargado um fracasso se a declaração de Lima for murcha, com decisões inócuas, tais como uma mera retirada de embaixadores de Caracas ou um palavreado vazio sobre o não-reconhecimento da legitimidade de Maduro.

O terceiro impacto da reunião de Lima será sobre a posição do próprioErnesto Araújo no governo. Devido às escolhas que fez para alcançar o cargo, ele ainda tem muito chão pela frente antes de consolidar seu nome na Esplanada dos Ministérios.

Enquanto sua força for derivada do deputado Eduardo Bolsonaro, sua permanência no cargo estará sempre por um fio. Para sobreviver no lugar que ocupa, reassegurar quem duvida dele e isolar opositores, ele precisa selar o apoio inconteste do presidente.

Uma vitória em Lima faria isso. Não só devido à Venezuela, cujo desfecho é incerto. Mais pelo efeito de entregar uma região unida contra o chavismo: a garantia de que Bolsonaro encontrará portas abertas por toda a Washington, muito além da Casa Branca.

* Matias Spektor é professor de relações internacionais na FGV.


G1: Não mergulhemos nessa piscina sem água que é a ordem global', diz novo chanceler

Ernesto Araújo assumiu como novo ministro das Relações Exteriores em lugar de Aloysio Nunes em cerimônia no Itamaraty. 'O Itamaraty existe para o Brasil e não para ordem global', afirmou

Por Gustavo Garcia, do G1 — Brasília

O novo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, atacou o "globalismo" ao assumir o cargo nesta quarta-feira (2). "Não mergulhemos nessa piscina sem água que é a ordem global", afirmou emn discurso o novo chanceler. Segundo ele, o Itamaraty "existe para o Brasil e não para a ordem global".

Araújo discursou por cerca de 30 minutos em cerimônia de transmissão do cargo na sede do ministério. Ele sucede Aloysio Nunes, que ocupou o posto no governo Michel Temer. Entre os presentes à cerimônia, estavam o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, o senador eleito Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), alguns ministros, chefes de missões diplomáticas, embaixadores, servidores e o senador e ex-presidente da República Fernando Collor, presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado.

“Não mergulhemos nesta piscina sem água que é a ordem global. O Itamaraty existe para o Brasil, não existe para a ordem global”, afirmou o chanceler.

Ele disse também que o Brasil não pedirá permissão à ordem global.

'Não estamos aqui para trabalhar pela ordem global, estamos aqui pelo Brasil', diz Araújo

“Por muito tempo, o Brasil dizia o que achava que devia dizer. Era um país que falava para agradar aos administradores da ordem global. Queríamos ser bom aluno na escola do globalismo e achávamos que isso era tudo. Éramos um país inferior. Mas o Brasil volta a dizer o que sente e a sentir o que é”, acrescentou.

Araújo já manifestava a crítica ao globalismo antes mesmo de ser escolhido ministro. Em um blog pessoal, escreveu: “Globalismo é a globalização econômica que passou a ser pilotada pelo marxismo cultural”. Segundo o texto, “é um sistema anti-humano e anticristão. A fé em Cristo significa, hoje, lutar contra o globalismo”.

“Algumas pessoas dirão que o Brasil não é isso tudo. Dirão que o Brasil não tem capacidade de influir nos destinos do mundo, de defender os valores maiores da humanidade, que devemos apenas exportar produtos e atrair investimentos, pois afinal somos apenas um país quieto e pacífico, mas não temos poder para nada [...]. Mas o Brasil responderá: ‘Eu sei quem eu sou’”, disse.

“Somos um país universalista, é certo, e, a partir desse universalismo, iremos construir algo bom e produtivo com cada parceiro. Mas universalismo não significa não ter opiniões, não significa que devemos agradar a todos. Queremos ser escutados, mas não por repetir alguns dogmas insignificantes e algumas frases assépticas. Queremos ser escutados por ter algo a dizer”, completou.

Escolhido por Jair Bolsonaro para comandar o ministério, ele disse que o novo presidente "libertará" o Brasil por meio da "verdade". "O presidente Jair Bolsonaro chegou até aqui porque diz o que sente, porque diz a verdade", declarou.

Diplomata, Araújo iniciou a carreira no Itamaraty em 1991 e, no ano passado, chegou ao posto de embaixador. Ele já atuou nas embaixadas do Brasil em Washington (Estados Unidos) e em Ottawa (Canadá).

Segundo Araújo, a política externa do Brasil "vem se atrofiando com medo de ser criticada". "Não tenham medo de ser criticados", afirmou.

No discurso – com trechos em grego e tupi, e citações a Renato Russo e Raul Seixas – Araújo também disse que o Itamaraty terá, a partir de agora, “um perfil mais engajado” na promoção do agronegócio, do comércio, dos investimentos e da tecnologia.

“O Itamaraty havia se distanciado do setor produtivo nacional. Mas agora estaremos juntos com o setor produtivo nacional como nunca estivemos”, afirmou.

Em outro momento, Araújo teceu críticas ao Ministério das Relações Exteriores. “Nós nos apegamos muito à nossa autoimagem e fizemos dela uma espécie de mito. Nós nos olhamos no espelho, dizendo que somos o máximo, dizendo que os governos não nos entendem, mas que o Itamaraty está acima dos governos. Nós nos tornamos diplomatas que fazem coisas que só são importantes para outros diplomatas. E isso precisa acabar”, afirmou.

No discurso, Ernesto Araújo citou Israel, disse que admira o país porque nunca deixou de ser uma nação, mesmo quando não tinha solo.

Disse também que admira os Estados Unidos, que cultuam os seus heróis, e os países latino-americanos que “se libertaram dos regimes do Foro de São Paulo”.

Nesta quarta-feira (2), um trecho de uma medida provisória editada pelo presidente Jair Bolsonaro abriu brecha, na avaliação de técnicos do Ministério das Relações Exteriores, para que não diplomatas possam ocupar cargos de chefia na pasta.

Segundo técnicos ouvidos pelo colunista do G1 Matheus Leitão, com a MP, a pasta terá a possibilidade de nomear pessoas de fora da carreira para cargos como os de subsecretário, diretores de departamento, chefes de divisão e cargos de assessoria mais altos dentro do ministério.

Pelo Twitter, Araújo negou flexibilização das regras e afirmou que as hipóteses de nomeação para cargos em comissão e funções de chefia do MRE "são rigorosamente idênticas àquelas anteriormente vigentes".

Na cerimônia desta quarta, ele voltou a tocar no assunto.

“Não precisamos e não vamos abrir os cargos do Itamaraty para pessoas de fora da carreira [...]. O presidente Bolsonaro confia na capacidade desta Casa, dessa carreira [...]. Nós simplesmente tomamos uma medida de flexibilizar a ocupação de cargos do Itamaraty por funcionários da carreira”, declarou.

Em 2018, já indicado por Bolsonaro, Araújo afirmou, em uma rede social, que o Brasil sairá do pacto da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre migração.

“O governo Bolsonaro se desassociará do pacto global de migração, um instrumento inadequado para lidar com o problema. A imigração não deve ser tratada como questão global, mas sim de acordo com a realidade e a soberania de cada país”, disse em dezembro de 2018.

“O pacto é bom, é positivo e eu espero a reflexão do próximo presidente, de sua equipe, que possa afastar algumas alegações que, no meu entender, não se sustentam como, por exemplo, a alegação de que o pacto se sobrepõe à soberania nacional”, afirmou à época.

Crítico do PT e de governos de esquerda, Araújo já demonstrou alinhamento ao presidente dos Estados Unidos, o republicano Donald Trump. Para o novo chanceler, o presidente norte-americano “desafia a maneira usual de pensar”. “Aceitamos esse desafio”, afirmou.


El País: “Deus uniu ideias de Olavo de Carvalho ao patriotismo do presidente”, diz chanceler de Bolsonaro

Ernesto Araújo publica texto na edição de janeiro da publicação conservadora dos EUA ‘The New Criterion’. "Meus detratores me chamaram de louco por acreditar em Deus e por acreditar que Deus atua na história, mas eu não me importo"

Avesso a entrevistas, o futuro chanceler do Brasil, Ernesto Araújo, assina um artigo na revista norte-americana The New Criterion no qual diz que a "Divina Providência (em maiúsculas) uniu as ideias de Olavo de Carvalho à determinação e ao patriotismo do presidente eleito, Jair Bolsonaro". O texto, de três páginas, consta na edição de janeiro da publicação de tendência conservadora. Trata-se de uma pouco usual manifestação de Araújo, diplomata que foi indicado ministro das Relações Exteriores de Bolsonaro por recomendação do filósofo Olavo de Carvalho, maior ícone intelectual da nova direita brasileira.

A nomeação de Araújo, um diplomata considerado por muitos inexperiente demais para o posto e defensor de uma guinada radical em alinhamento às ideias defendidas pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, gerou fortes reações dentro do Itamaraty — uma das pastas com maior tradição na Esplanada e que sempre cultuou posições de moderação na área de política externa. O futuro chanceler aproveitou o espaço no The New Criterion para defender-se, redobrando sua aposta em posições polêmicas. "Meus detratores me chamaram de louco por acreditar em Deus e por acreditar que Deus atua na história — mas eu não me importo. Deus está de volta e a nação está de volta. Uma nação com Deus; Deus através da nação. No Brasil (ao menos), o nacionalismo se transformou no veículo da fé, a fé se tornou o catalisador do nacionalismo, e ambos acenderam uma empolgante onda de liberdade e de novas possibilidades".

Defesa da ditadura
Araújo faz uma reinterpretação do processo político vivido pelo Brasil desde o fim da ditadura militar que vigorou entre 1964 e 1985 — "erroneamente chamada de regime militar", anota o diplomata — e afirma que a vitória de Bolsonaro nas urnas faz parte de "uma onda de mudança que está limpando o Brasil". Para Araújo, desde a redemocratização se instaurou no Brasil um sistema corrupto "que sufocou a economia", no qual três partidos (MDB, PSDB e PT) agiam de forma coordenada.

"Um sistema tão estabelecido nunca reformaria a si mesmo. Apenas encontraria novas máscaras para estender seu poder [...] Uma mudança de verdade apenas poderia vir de fora, dos domínios intelectuais e espirituais", escreve Araújo, para em seguida arremeter: "Então o que quebrou esse sistema? Olavo de Carvalho, a Operação Lava Jato e Jair Bolsonaro."

Ernesto Araújo define Carvalho como "a única pessoa no Brasil, durante muitos anos, a usar a palavra comunismo para descrever a estratégia do PT". Além do mais, segundo o novo chanceler o filósofo "talvez tenha sido a primeira pessoa no mundo a ver o globalismo como um resultado da globalização, a entender seus propósitos horríveis e a começar a pensar sobre como derrubá-lo".

"Graças ao boom da Internet, e especialmente à revolução das mídias sociais, de repente as ideias de Olavo de Carvalho começaram a penetrar todo o País, alcançando a milhares de pessoas que até então tinham se alimentado apenas dos mantras oficiais", escreve Araújo. "Essas ideias romperam todas as barreiras e convergiram com as posições corajosas do único político brasileiro verdadeiramente nacionalista dos últimos cem anos, Jair Bolsonaro, dando-lhe um apoio de base sem precedentes."

Stuenkel aposta que, nos bastidores, os chineses convencerão à futura gestão brasileira a agir de forma pragmática. Já um diplomata brasileiro, que preferiu não de identificar, avalia que há diferenças internas da equipe bolsonarista que vão se refletir na política externa: de um lado, há o receituário liberal do Paulo Guedes, que será o superministro de economia, e, de outro, a postura mais soberanista que o próprio Bolsonaro costumava defender. "As relações com a China darão a senha para compreendermos qual dessas visões prevalecerá", diz o funcionário


Míriam Leitão: ‘Nova’ diplomacia é velha e ruim

Depois de nomeado ministro, Ernesto Araújo poderia ter encontrado o equilíbrio para exercer o cargo. Mas continua sem nexo e histriônico

O futuro ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, continua se esforçando muito para produzir mais desatinos do que os governos petistas naquela pasta. E tem conseguido. O principal erro da diplomacia é quando ela se dispõe a representar uma parcela do país, desprezando ou ofendendo o resto. Agora ele diz que representará o agronegócio, porque o PT o fez com o MST. Talvez fosse bom ele entender que a Casa de Rio Branco deve espelhar o país e não um grupo, por mais importante que seja para a economia.

Durante os dois anos e meio do governo Temer, tentou-se corrigir as inclinações indevidas e a paralisia decisória do período anterior. Houve desde a mudança em relação ao governo chavista até a redução de pendências burocráticas. Só o atual chanceler, Aloísio Nunes Ferreira, aprovou quase mil remoções que estavam pendentes. O custo da política externa do PT pode ser quantificada pelos calotes no BNDES que o Tesouro terá de cobrir. Aconteceram também os vexames, como instalar o então presidente Lula numa tenda para ter aulas de geopolítica de Muamar Kadafi ou a imposição aos diplomatas de leitura obrigatória de textos de esquerda. A grande virtude no governo Temer foi a busca da normalidade.

Agora volta-se o pêndulo para o sentido oposto, com igual equívoco. Como se parecem. A diferença é que o embaixador Celso Amorim, apesar dos erros que cometeu, era um diplomata com carreira consolidada. O embaixador Ernesto Araújo é o equivalente a um general de divisão chamado a comandar o Exército.

Uma das decisões acertadas no período Temer foi a iniciativa de suspender a Venezuela do Mercosul, com base na cláusula democrática. O governo Maduro não é democrático, portanto, não cumpre o pré-requisito. Qualquer histrionismo em relação a ele só vai municiá-lo. O mais sábio com relação ao governo da Venezuela é não dar a Nicolás Maduro o que ele quer: um “inimigo” externo. Quando Maduro faz ameaças de armar as milícias, é bom ignorar. Algumas pessoas sabem disso no novo governo brasileiro, mas entre elas não está o nosso esbravejante chanceler com seus tuítes voadores.

Araújo soltou várias notas definindo o que ele chama de “nova política externa”. Disse que o Brasil vai exportar soja, frango, carne e açúcar, mas “também esperança e liberdade”. Segundo o novo chanceler, “a velha política e a velha mídia” querem “usar o agro como pretexto para reduzir o Brasil a um país insignificante”. A palavra “ridícula” é a mais apropriada para definir essas e outras manifestações do futuro ministro.

Os textos que ele assinava em seu blog sempre foram rasos. Mas naquele tempo ele era apenas uma pessoa se esforçando para ganhar espaço no futuro governo. Depois que atingiu o objetivo almejado, ser nomeado ministro, Ernesto Araújo poderia ter encontrado a centralidade necessária para o exercício eficiente do cargo. Contudo, permanece histriônico e sem nexo.

Sua mistura inusitada de despropósito político, fundamentalismo religioso, palavras intempestivas podem provocar um estrago grande nas relações do Brasil com o mundo. O clima de revolta entre diplomatas se espalha. Não por discordarem do futuro governo. Há pessoas com convicções políticas diferentes entre si e a mesma preocupação porque sabem que o futuro ministro tem ferido um a um os princípios de uma boa diplomacia.

A sua “nova” política externa será, na verdade, a diplomacia errada. Na economia, os governos do PT criaram a “nova matriz econômica”. Não era nova, estava equivocada e levou o país à recessão. Proclamar a adoração ao governo Trump vincula o país a uma administração, que é passageira, em vez de ser ao país, que é permanente. Além disso, representa um retrocesso de meio século na política externa, ao tempo do alinhamento automático.

As várias espetadas em diversos parceiros comerciais, cometidas por ele e por outros do futuro governo, têm o mesmo componente. São gratuitas. O Brasil nada ganha com isso e pode perder. Os perdedores são os mesmos que Ernesto Araújo alega que defenderá porque são, segundo ele, “a essência da brasilidade”, os empresários do agronegócio. Sendo o Brasil um dos mais eficientes produtores de alimentos do mundo, a militância fervorosa e maniqueísta do novo chanceler pode fechar portas que hoje estão abertas.


Demétrio Magnoli: A folia do Ernesto

O Brasil de Bolsonaro oferece a Maduro um conveniente inimigo externo

Bolsonaro e Ernesto Araújo, o ministro indicado de Relações Exteriores, justificaram os "desconvites" a Díaz-Canel e a Maduro para a posse presidencial sob o argumento de que Cuba e Venezuela não realizam eleições livres.

A lógica empregada exigiria "desconvites" a dezenas de países autoritários com quem o Brasil mantém relações diplomáticas. A política externa bolsonarista começa no registro da pantomima. Nesse caso, a comemoração explícita emana dos grupelhos ideológicos que orbitam em torno do presidente eleito —mas a vitória é do ditador venezuelano.

Maduro mente todos os dias, obsessivamente. Agora, acusa Bolsonaro e o vice, Mourão, de participarem de um "complô preparado na Casa Branca para me assassinar" e "invadir a Venezuela", num plano que se iniciaria com "provocações na fronteira".

Nada evitará que ele minta, mas os "desconvites" conferem uma sombra de verossimilhança às suas palavras. O chavismo terminal precisa do espantalho ameaçador do inimigo externo para conservar um mínimo de coesão interna. A folia ideológica brasileira ajuda a prolongar o epílogo do falido regime venezuelano.

Ernesto Araújo é um homem de firmes convicções. Poucos anos atrás, defendia sem corar as políticas econômica e externa de Dilma Rousseff. Nos últimos meses, em pirueta olímpica, passou a repercutir o discurso místico do olavismo e as senhas doutrinárias da Breitbart News.

O folião do Itamaraty pretende operar como peão de Trump na América do Sul. A lógica dos "desconvites" ultrapassa o limite dos gestos simbólicos, apontando para a ruptura de relações diplomáticas com Cuba e Venezuela. Maduro torce por isso, que implicaria a voluntária retirada brasileira do terreno onde se decidirá o futuro da Venezuela.

O chavismo, que nunca foi homogêneo, cinde-se em correntes diversas que encaram o horizonte do abismo. O componente militar do regime, que controla as chaves da repressão, também está dividido.

A cola que ainda prende os chavistas a Maduro é o medo do futuro —isto é, o temor da retaliação e da vingança. Uma transição política sem sangue, ou com pouco sangue, depende de negociações com as alas do regime dispostas a abandonar o barco que naufraga. Para isso, são necessários mediadores. Ernesto, o folião, suprime as credenciais que fazem do Brasil um mediador eficiente.

Sem uma embaixada em Caracas, o Brasil exclui a si mesmo do jogo político. A embaixada deveria servir para municiar o governo brasileiro com informações confiáveis, estabelecer pontes de diálogo com a oposição e explorar rumos de superação da crise com dissidentes chavistas civis e militares. A denúncia permanente da violência do regime é uma obrigação moral e política.

Mas, além disso, o Brasil precisaria ajudar os atores venezuelanos a encontrar fórmulas capazes de conjurar o medo que impede a ruptura. Fora da transição negociada, só existe a guerra civil.

A sobrevivência agônica de Maduro seria impossível sem o amparo da China e da Rússia. Uma solução pacífica para a Venezuela passa pela ativação de canais diplomáticos regionais e globais. John Bolton, o conselheiro de Segurança Nacional de Trump, investe no caos. Já o interesse dos países sul-americanos, especialmente os que compartilham fronteiras com a Venezuela, repousa na perspectiva de uma transição negociada.

O Brasil, atuando ao lado de Colômbia, Equador, Peru e Argentina, teria os meios para persuadir chineses e russos a cortar o cabo que mantém o governo de Maduro à tona. Mas Ernesto, o folião, prefere a pantomima —isto é, a irrelevância.

O Brasil de Lula e Dilma serviu ao chavismo, propiciando-lhe apoio diplomático e um verniz de legitimidade democrática. O Brasil de Bolsonaro prossegue o trabalho do lulismo, oferecendo a Maduro a imagem perfeita de um conveniente inimigo externo. O Ernesto tem custos.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.