ernesto araújo

Monica De Bolle: Relações alucinadas

Na próxima reunião do G-20, em Buenos Aires, estará exposta a rivalidade entre a China e os Estados Unidos

Às vésperas da reunião de cúpula do G-20 na próxima sexta-feira, o novo chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, escreveu para a Gazeta do Povo artigo em que explica a importância de ser Ernesto no atual momento. Dentre as razões listadas, diz ele que “algumas pessoas gostariam que o presidente eleito Jair Bolsonaro tivesse escolhido um chanceler que saísse pelo mundo pedindo desculpas”.

“Queriam uma espécie de ministro das Relações Envergonhadas”, diz ele, que pedisse desculpas a todos pela eleição de Bolsonaro. Alucinações exteriores à parte – que o dito artigo contém de sobra – o que me fez parar nesse parágrafo foi a incrível percepção distorcida da importância do Brasil no mundo. Sim, o noticiário internacional cobriu a eleição de Bolsonaro. Sim, a imprensa externa ficou abestalhada com as falas do ex-capitão sobre a democracia, a tortura, Augusto Pinochet, e tantas outras coisas mais. Mas daí a achar que o Brasil tem relevância geopolítica global a ponto de desculpas serem necessárias aos supostos parceiros é salto quântico do futuro ministro das Relações Exteriores.

O Brasil é uma das economias mais fechadas do planeta, está atrasadíssimo nos temas de convergência regulatória para o comércio e o investimento, não tem grande presença nos fóruns mundiais, o que ficará mais uma vez em evidência na reunião de Buenos Aires no dia 30 de novembro. Contudo, o novo chanceler julgou premente escrever um artigo cujo principal objetivo foi atacar de modo pueril os comentaristas da imprensa – aqueles que são “nutridos pela convivência com diplomatas pretensiosos”, ofendendo seus colegas de Itamaraty – e a ONU, deixando entrever o complexo de vira-lata que ainda está entranhado em algumas cabeças brasileiras. Afinal, se Trump ataca a ONU, o Brasil tem de atacar também. Se Trump ataca o New York Times, o Brasil tem de atacar também. Se Trump ataca a China...Sobre isso o futuro ministro resolveu não falar, por enquanto. As bravatas contra o jornal americano e a organização internacional são apenas isso – nem o New York Times, nem a ONU darão ouvidos à sinceridade de Ernesto. Mas a China, bem a China é diferente.

Na próxima reunião do G-20, estará exposta a rivalidade entre a China e os Estados Unidos. A América Latina como anfitriã do encontro, estará entre a cruz e a espada. Não têm condições os países latino americanos de escolher lado – os Estados Unidos têm grande importância para a região, mas hoje a China tem relevância maior.

Após quase duas décadas de ausência de uma política externa que priorizasse a região, a China ocupou o vácuo com investimentos e parcerias crescentes para tudo que é lado. Quando Bolsonaro ensaiou retórica trumpista em relação à China, o Brasil levou um chega-pra-lá imediato. A deduzir da admiração intensa que têm Ernesto Araújo e Eduardo Bolsonaro – que por ora, passeia aqui por Washington a discorrer sobre a política externa do novo governo para variadas audiências – pelo governo Trump, é provável que o discurso anti-China volte com alguma força. Assim como é bastante possível que o governo Bolsonaro queira adotar o estilo linha-dura do assessor de Trump para assuntos de segurança nacional, John Bolton, com Cuba e Venezuela.

Em tempo: o estilo linha-dura nada mais é do que um tanto de retórica inflamada misturada com ameaças de mais sanções financeiras na Venezuela e medidas semelhantes em relação a Cuba. Até o momento, as sanções tiveram pouca ou nenhuma eficácia no enfraquecimento do regime ditatorial de Maduro, que enxerga na beligerância a sua própria sobrevivência ao atacar os “imperialistas”. Se algum efeito tiveram as sanções, esse foi o de agravar a crise migratória venezuelana que atinge a Colômbia, o Brasil, o Peru, entre outros países latino americanos. Por fim, a China tem interesses econômicos tanto em Cuba, quanto na Venezuela. Difícil imaginar que ficarão quietos ante tentativas do governo Bolsonaro de comprar a briga ineficaz dos norte-americanos.

É difícil exagerar a importância de Ernesto ficar calado nesse momento tão delicado. Mas o novo chanceler, assim como o filho do presidente eleito que o entrevistou, tem sonhos de grandeza sincera. “Em matérias de grave importância, estilo, não sinceridade, é o que é vital”. Já dizia Oscar Wilde. Preparem-se para grandes alucinações externas e relações externas bastante alucinadas.

*Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


O Globo: Chanceler de Bolsonaro diz que combaterá adesão da diplomacia a 'pautas abortistas' e 'anticristãs'

Em artigo para jornal, Ernesto Araújo defende nomeação de 'quem entende de ideologia' para extirpar marxismo e seus 'disfarces' no Itamaraty

RIO — Anunciado como ministro das Relações Exteriores do próximo governo, Ernesto Araújo descreve, em artigo publicado na segunda-feira no jornal "Gazeta do Povo", de Curitiba, como pretende levar adiante a missão de "libertar o Itamaraty" que lhe foi confiada pelo presidente eleito Jair Bolsonaro. Aráujo afirma que pautará sua atuação pelo combate a políticas que, no próprio Ministério das Relações Exteriores, compactuam com o "alarmismo climático", as "pautas abortistas e anticristãs em foros multilaterais" e a "destruição da identidade dos povos por meio da imigração ilimitada".

Segundo o futuro chanceler, a meta é extipar das relações internacionais brasileiras a "ideologia do PT", que segundo ele nada mais é do que o "marxismo cultural", aquele que busca controlar não mais os meios de produção material, mas de produção intelectual na imprensa e na academia. "Quando me posiciono, por exemplo, contra a ideologia de gênero, contra o materialismo, contra o cerceamento da liberdade de pensar e falar, você me chama de maluco. Mas se isso não é o marxismo, com estes e outros de seus muitos desdobramentos, então qual é a ideologia que você quer extirpar da política externa?"

No início do texto, Araújo aponta que parte da imprensa e dos colegas diplomatas esperava ver Bolsonaro escolher um chanceler "que saísse pelo mundo pedindo desculpas". "Um Ministro das Relações Envergonhadas", ironizou. Essa pessoa seria responsável por "frear o ímpeto de regeneração nacional" e garantir aos pares que nada mudaria no posicionamento global do país.

Contra esse ideia, o futuro chanceler defende uma política externa que traduza a "sagrada voz do povo", entendida como a voz do presidente eleito. Essa voz, segundo Araújo, deve ser autêntica e não "dublada no idioma da ONU", "pois no idioma da ONU é impossível traduzir palavras como amor, fé e patriotismo".

"Isso é um gigantesco equívoco. Em uma democracia, a vontade do povo deve penetrar em todas as políticas. Mas as pessoas daquele sistema midiático-burocrático, que gostam tanto de falar em democracia, não sabem disso. Perguntam-se, assustadas: 'O que vão pensar de mim os funcionários da ONU, o que vai dizer de mim o 'New York Times', o que vai dizer 'The Guardian', 'Le Monde?'", escreveu o embaixador.

No artigo da "Gazeta do Povo", Araújo indica que, quando fala em povo brasileiro, fala da parcela da população que se identifica com as propostas e a ideologia bolsonarista — embora, em seu blog, Metapolítica 17, o futuro chanceler já tenha dito que quem tem ideologia são os outros, já que ele só tem "ideias". Segundo ele, o Itamaraty deve se preocupar com o que esse povo pensa e se relacionar com "o sofrimento, a paixão e a fibra dessas pessoas".

"Alguns jornalistas estão escandalizados, alguns colegas diplomatas estão revoltados. Revoltados por quê? Porque pela primeira vez terão de olhar o seu próprio povo na cara e escutar a sua voz?", arrematou.

O futuro ministro defende que o país precisa de "alguém que entenda de ideologia" para acabar com ela no Itamaraty, ao conhecer suas "causas, manifestações, estratégias e disfarces"."Vencida na economia, a ideologia marxista, nas últimas décadas, penetrou inscidiosamente na cultura e no comportamento, nas relações internacionais, na família e em toda parte", afirma.

Além das propostas de controle do aquecimento climático, de descriminalização do aborto e das que chama genericamente de "anticristãs", Ernesto Araújo inclui entre as pautas a combater dentro do Itamaraty "o terceiro-mundismo automático e outros arranjos falsamente hegemônicos", a "transferência brutal de poder econômico em favor de países não democráticos e marxistas" (supostamente uma referência à China) e "a suavização do tratamento dado à ditadura venezuelana".

Nelson Ernesto Araújo foi confirmado para o cargo ministerial em 14 de novembro. Até então, era diretor do Departamento de Estados Unidos, Canadá e Assuntos Interamericanos e nunca havia chefiado uma missão no exterior. O "brilhante intelectual", como classificou o presidente eleito, se aproximou do bolsonarismo por meio do guru da direita Olavo de Carvalho, radicado nos Estados Unidos. Carvalho elogiou um artigo de Araújo publicado no ano passado na revista do centro de estudos do Itamaraty, intitulado "Trump e o Ocidente". No texto, o embaixador diz que o ocupante da Casa Branca assumiu a missão de resgatar a civilização ocidental, sua fé cristã e suas tradições nacionais forjadas "pela cruz e pela espada" do "marxismo cultural globalista", cujo marco inicial seria a Revolução Francesa, anterior a Karl Marx.