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William Waack: O vírus pegou Bolsonaro

Espalhou-se como um vírus a noção de que o governo corre atrás dos fatos

O vírus atingiu o coração do governo. A expressão é literal, considerando a situação do general Augusto Heleno e do almirante Bento Albuquerque, mas seu sentido é político. Um caso clássico de como a realidade dos fatos se impõe de forma arrasadora a quem se recusa a enxergá-la.

Ou o faz – enxergar os fatos – sob uma perspectiva completamente equivocada. Foi o que aconteceu com Jair Bolsonaro e alguns de seus conselheiros mais próximos, especialmente os filhos. Presos à versão, estapafúrdia e maluca, como agora se vê, de que o coronavírus seria uma conspiração chinesa aqui utilizada por “elites políticas” para isolar e depor o presidente.

As forças políticas que entendem melhor a realidade (como o “Centrão”) ocuparam rapidamente o espaço que Bolsonaro vem deixando livre desde que assumiu a Presidência. Como já se disse aqui, o presidente acha que sua força vem da caneta que assina cheques e nomeações quando, na verdade, está na sua imensa capacidade de ditar a agenda política. À qual ele pouco se dedicou.

Pode-se até falar de um autoimposto isolamento diante de um “sistema” que, por um lado, de vez em quando, servia ao presidente e a cujas regras obedecia. Por outro, era pelo presidente mencionado como alvo a ser destruído – o mandato que ele afirma ter recebido das urnas.

O isolamento ganhou contornos nítidos e de claro perigo para a autoridade presidencial quando Judiciário e Legislativo, com a participação de órgãos de controle e investigação (TCU e PGR), montaram por dois dias um “gabinete paralelo de crise” que incluía, pelo Executivo, um competente ministro da Saúde cujo destaque causa no presidente ciúmes em vez de orgulho.

É essa perda de autoridade, mesmo entre grupos favoráveis ao presidente, que causou consternação entre alguns de seus ministros mais importantes, que duvidavam da tática determinada por Bolsonaro de ir às ruas para pressionar Congresso e STF. Há ministros militares preocupados com o que chamam de “belicosidade” do presidente. “Ele apanhou muito, quer revidar”, diz um deles, que dá expediente no Planalto, “e ninguém consegue segurar”.

O corrosivo processo se acentua diante de uma percepção generalizada de que o governo está correndo atrás dos fatos. Essa noção se intensificou por dois fatores: a reação inicial do presidente de minimizar a gravidade da doença (erro que Trump se apressou mais rapidamente a corrigir) e a intensidade e vigor com que as principais economias lançaram medidas para enfrentar uma previsível recessão, enquanto no Brasil a conversa inicial foi “aprovem as reformas e a gente segura o tranco”.

A crise do coronavírus apanha o Brasil num momento vulnerável. Se é verdade, como reitera Paulo Guedes, que o País estava decolando e foi surpreendido pela crise, também não se pode ignorar que a lição de casa em termos fiscais mal tinha começado a ser feita. O Brasil, como país emergente, será sempre julgado pela sua saúde fiscal, e a nossa não é boa de forma alguma. E vamos ter de enfiar a mão fundo nos cofres públicos já encrencados em todos os níveis.

As consequências para a economia consegue-se antever, e não são das mais róseas. As consequências do vírus para a política indicam que o inimigo impessoal, como o vírus, pode servir de justificativa até aceitável para resultados pobres num setor definidor de simpatias políticas, como o bem-estar econômico geral da população, mas é mais difícil de ser combatido no habitual esquema bolsonarista de “nós” contra “eles”.

Há paralelos entre a propagação de um vírus e a criação de um “momento” na política. Começa com pouca gente notando, mas, a partir de certo ponto, a propagação do vírus do descontentamento ou aberta antipatia com um governo e sua figura de proa foge ao controle. O coronavírus é uma ameaça grave para Jair Bolsonaro.


Como ser um líder de sucesso? Veja nova aula multimídia da Jornada da Cidadania

Time de especialistas no assunto dá dicas valiosas sobre liderança e estratégias de mobilização

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

A busca por grandes líderes tem aumentado cada vez mais na sociedade, principalmente no meio político e no mercado de trabalho. De olho nessa demanda crescente, o curso de formação política Jornada da Cidadania, realizado pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), abordará, a partir desta quarta-feira (11), o tema liderança e estratégias de mobilização. É a quinta aula multimídia disponibilizada aos alunos cadastrados na plataforma de educação a distância.

Com acesso gratuito, online e totalmente interativo, a Jornada da Cidadania vai explicar, nesta semana, as premissas teóricas da abordagem comportamental da liderança e quais são os comportamentos a serem praticados e desenvolvidos para ser um líder de sucesso. O curso é coordenado pelo professor Marco Aurélio Marrafon.

Liderança pode ser aprendida?
Na principal videoaula, o professor Renato Diniz, diretor de treino e desenvolvimento da empresa Ideias Radicais, mostra como a liderança pode ser aprendida, praticada e desenvolvida. Ele também observa, ao longo de sua aula, como e porque o perfil do liderado deve ser considerado.

O estudo acadêmico de liderança, de acordo com Diniz, começou entre os anos 1910 e 1920. No início, um postulado atribuía a ideia de ser líder a um conjunto de características pessoais. No entanto, de lá para cá, muito estudos foram desenvolvidos e chegaram a diferentes conclusões.

O pacote de conteúdos da quinta aula também mostra, em outro vídeo, uma análise sobre como lidar com fake News. A explicação é do historiador Antonio Barbosa, professor de História Contemporânea da UnB (Universidade de Brasília) há quase 50 anos em sala de aula. Além disso, a deputada federal Paula Belmonte (Cidadania-DF) dá detalhes importantes sobre fiscalização e controle social. Já o dirigente nacional do Cidadania Regis Cavalcante explica as atribuições e competências dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

Para finalizar a aula, os alunos terão de ouvir um podcast e ler o artigo “Revisitando a perspectiva de James MacGregor Burns: qual é a ideia por trás do conceito de liderança transformacional?”, produzido pelo mestre em administração Pedro Alessandro Calaça e pelo doutor em administração de empresas Fabio Vizeu. Os alunos também deverão assistir a um filme relacionado ao tema da aula, antes de responderem ao questionário sobre o conteúdo e à pesquisa de satisfação.

Didática do curso
No total, o curso tem 36 horas de duração, distribuídas ao longo de 14 semanas. De acordo com o coordenador, o objetivo é formar e capacitar cidadãos acerca de conteúdos relevantes à política, além de fornecer bases fundamentais para possíveis candidatos que pretendem disputar as eleições municipais deste ano.

O conteúdo programático da Jornada da Cidadania está dividido em cinco pilares: ética e integridade na ação política; comunicação eficaz; fundamentos de teoria política e democracia; comunicação eficaz e casos de sucesso. Sempre às quartas-feiras, a plataforma vai disponibilizar nova aula com novo tema. Dessa forma, o aluno poderá se organizar ao longo da semana para aproveitar todos os conteúdos de cada aula.


Eliane Brum: Por que Bolsonaro tem problemas com furos

Para compreender a brutal misoginia do antipresidente é necessário falar de Cassia e de Dilma

Em 18 de fevereiro, o antipresidente Jair Bolsonaro precisava tirar o foco da morte do miliciano Adriano da Nóbrega, pessoa-chave para esclarecer o esquema de “rachadinhas” no gabinete de Flávio Bolsonaro, a relação da família Bolsonaro com as milícias que atuam no Rio de Janeiro e também quem mandou matar Marielle Franco – e por quê. A eliminação de Nóbrega, com vários indícios de execução, voltava a colocar em destaque as relações dos Bolsonaros com as milícias. Era preciso desviar a atenção. Como de hábito, Bolsonaro usou o velho truque: criou um novo fato ao atacar a jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha de S. Paulo. A repórter, uma das mais competentes da sua geração, estava entre os jornalistas que denunciaram o uso fraudulento de nomes e CPFs para disparos de mensagens no WhatsApp em benefício de Bolsonaro. Uma de suas fontes, Hans River, ao depor na CPMI das Fake News do Congresso, disse que Patrícia teria tentado obter informações “a troco de sexo”, embora as trocas de mensagens entre os dois provem exatamente o contrário. Em sua coletiva informal diante do Alvorada, a mesma em que costuma mostrar bananas para os jornalistas, Bolsonaro atacou: “Ela [Patrícia] queria um furo. Ela queria dar o furo [pausa para risos] a qualquer preço contra mim”.

Este episódio, amplamente divulgado, revela mais do que o truque do manual dos novos fascistas para desviar a atenção do público. Bolsonaro tem problemas com furos. Em vários sentidos. Sua obsessão com o que cada um faz com seu ânus é notória. Está sempre tentando regular onde cada um coloca o próprio pênis. Volta e meia dá um jeito de falar de cocô, como fazem as crianças pequenas. Para ele, a vagina é um furo, visão bastante surpreendente para um homem com mais de 60 anos que já deveria, para o próprio bem, ter conhecido um pouco mais sobre o órgão sexual das mulheres. Chegou a dizer que a Amazônia “era uma virgem que todo tarado de fora quer”. Só um/a psicanalista que um dia recebesse Bolsonaro no seu divã poderia encontrar pistas para o que essa redução da sexualidade a uma coleção de furos – uns feitos para o estupro, outros proibidos para o sexo – significa. Nós, os governados por tal homem, só conseguimos entender que ele tem obsessão por furos, por cocô e por pênis. E que isso determina seu Governo.

Bolsonaro tem obsessão também por furos no sentido jornalístico da palavra, a notícia dada em primeira mão, a revelação do repórter sobre o que ninguém sabia. Patrícia, ao revelar junto com seu colega Artur Rodrigues o uso ilegal do Whatsapp na campanha, deu um furo que incomodou muito Bolsonaro e sua corte. E foi isso que a tornou um alvo. Essa história, a dos furos jornalísticos e da conflituosa relação de Bolsonaro com mulheres jornalistas é, porém, muito mais antiga. Ela funda a própria relação de Bolsonaro com a imprensa mais de 30 anos atrás, quando ele ainda era capitão do Exército. A história da misoginia (ódio às mulheres) da parcela dos brasileiros que Bolsonaro representa e também de parcelas dos brasileiros que não representa é, porém, ainda mais perigosa, porque não começa nem termina com Bolsonaro. A misoginia determinou os acontecimentos que culminaram na sua eleição.

Na semana em que o mundo comemorou o dia da mulher (8 de março) e que terão passados dois anos do assassinato de Marielle Franco (14 de março) sem sabermos quem a mandou matar e o porquê vale a pena olhar com toda a atenção para o que os fatos contam de Bolsonaro e também para o que os fatos contam da sociedade brasileira. Bolsonaro só se tornou o primeiro antipresidente da história porque parte da sociedade brasileira quer que as mulheres voltem a ser “belas, recatadas e do lar”. E não são apenas os toscos como Bolsonaro que querem isso, embora só estes saiam por aí contando orgulhosamente para o mundo.

1) A jornalista que denunciou Bolsonaro por planejar explodir bombas nos quartéis

A relação de Jair Bolsonaro, então capitão do Exército, com a imprensa iniciou em setembro de 1986, com a revista Veja. Naquele tempo, a Veja era a principal revista semanal do país e ser a principal revista semanal do país era algo muito importante. A tiragem chegava perto de um milhão de exemplares, o que é muito para um país de não leitores. Todas as pessoas que tinham qualquer poder, em diferentes áreas e níveis, liam a Veja já no sábado pela manhã. Na segunda-feira ou ainda no domingo, os principais jornais do país com frequência repercutiam algum furo da Veja. Foi neste palco midiático que Bolsonaro fez sua estreia muito bem sucedida na política: em artigo intitulado “O salário está baixo”, o jovem capitão reclamava da política salarial para os militares de José Sarney, o primeiro presidente civil depois da ditadura que oprimira o país de 1964 a 1985.

Após a publicação, Bolsonaro foi punido com 15 dias de prisão disciplinar, mas tornou-se muito popular entre soldados, oficiais e até mesmo entre generais de pijama. Bolsonaro gostou tanto de seus 15 minutos de fama que foi pessoalmente agradecer ao chefe da sucursal da revista no Rio de Janeiro. Naquele momento, ele via na imprensa a possibilidade de ganhar a importância que achava que merecia e talvez “ficar rico”, o que mais de uma vez afirmou desejar.

Um ano depois, porém, Bolsonaro odiaria a Veja. A “culpa” era de uma mulher: a jornalista Cassia Maria Rodrigues. Ela revelou o plano “Beco Sem Saída”, feito por Bolsonaro e um colega conhecido como “Xerife” (Fábio Passos), que consistia em botar bombas nos quartéis, mas sem ferir ninguém, para chamar a atenção para os baixos salários dos militares. Esta história está minuciosamente contada no livro O Cadete e o Capitão (Todavia, 2019), do jornalista Luiz Maklouf Carvalho, cuja leitura recomendo.

A cúpula do Exército, que havia criticado duramente Bolsonaro pelo artigo um ano antes, desta vez fechou-se para supostamente proteger a corporação. Ter dois oficiais ensandecidos e fora do controle planejando botar bombas bem na cara dos generais, e tudo isso na delicada transição para a democracia após uma ditadura militar que formalmente tinha acabado apenas dois anos antes, era uma notícia que os militares não queriam.

Cassia e a Veja foram acusadas de inventarem toda a história. Bolsonaro negou ter falado com a jornalista. Anos mais tarde, já deputado federal, a chamaria de “maluca”. A Veja então publicou na edição seguinte dois croquis feitos a mão por Bolsonaro quando deu a entrevista à repórter, mostrando o funcionamento do plano: em um deles, segundo a revista, viam-se as tubulações do que seria a adutora do Guandu, responsável pelo abastecimento de água no Rio de Janeiro e, junto delas, o desenho de uma carga de dinamite (“petardo de TNT”). Bolsonaro e Passos seguiram negando as informações da revista. Veja jamais recuou.

Para escrever o livro, Luiz Maklouf Carvalho destrinchou a gravação de todo o julgamento do caso no Superior Tribunal Militar, em 1988. Dois dos três laudos periciais grafotécnicos concluíram que Bolsonaro era o autor dos croquis. Cinco meses antes, um conselho de justificação do Exército já considerara o capitão culpado por 3 a 0 por ter tido “conduta irregular e praticado atos que afetam a honra pessoal, o pundonor militar e o decoro de classe”.

Quando esperava ser chamada para dar seu depoimento à corte, Cassia foi ameaçada por Bolsonaro. O então capitão fez com os dedos o sinal que se tornaria sua marca registrada na presidência: a arma apontada. Ela então teria lhe perguntado se era uma ameaça de morte. Bolsonaro teria respondido que não, mas que ela “poderia se dar mal se continuasse com essa história”.

O ministro relator do caso, general Sérgio de Ary Pires, não hesitou em atacar a repórter de forma muito semelhante a que Bolsonaro usaria contra Patrícia Campos Mello e outras jornalistas quando na presidência, guardadas as diferenças de linguagem, de época e de referências. “A mentira está presente em todas as declarações e afirmações dessa famigerada repórter Cassia Maria”, afirmou. “Essa moça não deixa de ser uma vivandeira, sendo que as vivandeiras prestam serviços, lavam roupa dos soldados, e essa quer lavar a roupa suja dos quartéis”. Em uma de suas acepções, “vivandeiras” são as prostitutas que acompanhavam as tropas nos períodos de guerra. Como se vê, nunca faltou inspiração para Bolsonaro nas Forças Armadas do Brasil.

A forma como o julgamento foi manipulado para que Bolsonaro fosse liberado é flagrante. Tudo indica que Bolsonaro foi absolvido com o acordo de que deixasse o Exército. Seis meses depois do julgamento, já eleito vereador pelo Rio de Janeiro, Bolsonaro passou para a reserva. Começava então sua exitosa carreira como político profissional que converteria três de seus filhos homens também em políticos profissionais. Carreira exitosa no sentido fisiológico, já que, em seus quase 30 anos como deputado federal, Bolsonaro conseguiu aprovar apenas dois projetos – fato que não impediu os eleitores de elegerem-no presidente da República em 2018.

O germe de tudo o que Bolsonaro se tornaria estava lá, no episódio das bombas. Seu ódio à imprensa que não come na sua mão. Seu ódio à jornalista mulher que denunciou o seu plano e, por pouco, não abortou sua carreira política iniciante e suas grandes esperanças para si mesmo, o que poderia ter acontecido em caso de uma condenação pelo Superior Tribunal Militar. O gesto da arminha para ameaçar seus desafetos, hoje uma parte da população brasileira.

Naquele momento, Bolsonaro absorveu profundamente dois aprendizados que norteariam sua vida como político profissional: 1) é legítimo manipular a verdade e a justiça para proteger seus interesses, como a cúpula do Exército fez ao absolvê-lo apesar de todas as provas; 2) é possível planejar até mesmo um atentado terrorista, desmentir o que fez e o que efetivamente disse e sair não apenas ileso, mas eleito.

Hoje, na presidência, Bolsonaro chegou ao ponto de constantemente desmentir inclusive a si mesmo. Nenhum outro político corrompeu a verdade como ele, ao tornar-se o principal expoente da autoverdade: o conceito de que a verdade é uma escolha pessoal, do indivíduo, desconectada dos fatos.

Em 1993, em entrevista aos pesquisadores Maria Celina D’Araújo e Celso Castro, o general Ernesto Geisel, quarto militar a presidir o Brasil durante a ditadura, afirmou: “Bolsonaro é um caso completamente fora do normal, inclusive um mau militar”. Quando uma parte dos generais apoiou a candidatura de Bolsonaro, em 2018, não importava que fosse um “mau militar”. Sabiam quem era Bolsonaro e queriam Bolsonaro. Não há um grupo de militares de alta patente responsável que de repente se surpreendeu com o descontrole de Bolsonaro – ou um grupo de militares responsáveis e outros tresloucados, os bons e os maus, os ideológicos e os não ideológicos. Tudo isso é narrativa para criar oposição sem oposição.

Na mesma linha, quando uma parte dos generais apoiou a candidatura de Bolsonaro, em 2018, era exatamente Bolsonaro quem queriam. Não há um grupo de militares de alta patente responsável que de repente se surpreendeu com o descontrole de Bolsonaro – ou um grupo de militares responsáveis e outros tresloucados, os bons e os maus, os ideológicos e os não ideológicos. Tudo isso é narrativa para criar oposição sem oposição.

O descontrole de Bolsonaro é útil. É possível que alguns generais tenham a ilusão de que, na hora certa, poderão controlá-lo. No momento, porém, Bolsonaro está fazendo exatamente o que se esperava que fizesse. Os militares voltaram ao Planalto, o que parecia impensável apenas alguns anos atrás, e parte deles visto como poços de temperança diante do “Cavalão” que ocupa o cargo máximo da República. O roteiro segue seu curso. Um exagero ali, um acidente aqui, mas tal qual como previsto no essencial.

Bolsonaro é, por vários caminhos, produto de uma parcela influente do Exército brasileiro – e não uma anomalia deste mesmo Exército. Passou da hora de compreender isso.

2) Precisamos falar sobre Dilma Rousseff

Se Jair Bolsonaro fosse apenas uma aberração na trajetória do Brasil, uma espécie de pesadelo distópico que pudesse ser superado em quatro anos, como acreditam alguns, a situação do país seria muito mais tranquilizadora. A questão é tanto que o bolsonarismo vai muito além de Bolsonaro quanto que Bolsonaro não foi eleito por acaso. Há um Brasil que ele representa. Por um lado, há os tais 30% que as pesquisas mostram permanecerem com ele de forma incondicional, ou seja, independentemente do que ele faça (ou não faça). E 30% não é pouca coisa. Por outro, Bolsonaro não inventou o Brasil que ele representa, embora tenha ajudado a criá-lo e siga lhe dando forma. Esta é a parte mais complicada. E por isso será mais difícil enfrentá-la do que enfrentar o homem que a encarna.

Não é possível analisar a última década do Brasil sem olhar com muita atenção para a resistência das mulheres e a resistência às mulheres. A misoginia e o machismo não foram as causas diretas do impeachment de Dilma Rousseff. Mas foi a primeira mulher presidenta da história que sofreu um impeachment sem nenhuma base legal. A misoginia, o machismo, o racismo e a homofobia não foram as causas diretas do assassinato de Marielle Franco. Mas foi uma mulher negra, lésbica e criada na favela que foi assassinada no crime político mais marcante dos últimos anos. A maior manifestação organizada por mulheres da história do Brasil foi contra Bolsonaro. O “Ele Não” foi também o maior movimento de resistência à eleição de Bolsonaro. Assim como o grupo que mais rechaçou Bolsonaro como candidato foi o das mulheres negras e pobres.

Não há coincidências. Bolsonaro canaliza várias forças, entre elas esse homem que teme perder seu lugar e que bota toda a precarização da sua vida na conta de um mundo cujos signos já não reconhece. Um homem que acha que tudo pode se resolver se os meninos voltarem a vestir azul e as meninas, rosa. Um homem que acha uma ótima piada falar do furo da jornalista porque enxergar a vagina como um buraco aplaca o seu medo de fracassar.

Não é por acaso que a economia é um reduto de machos liderado por Paulo Guedes, o ilustrado da “Escola de Chicago” que comete uma violência verbal atrás da outra, muito mais parecido com Bolsonaro do que com qualquer outro. Os neoliberais da economia e os defensores do patriarcado pertencem ao mesmo mundo. Não é por acaso que estão no mesmo governo. Essa mania de compartimentalizar as coisas entorna qualquer análise séria.

Quando parte da sociedade brasileira se choca com a violência de Bolsonaro contra as jornalistas mulheres, é necessário voltar os olhos para a ex-presidenta Dilma Rousseff (PT). Perguntar-se o porquê de tanto ódio contra Dilma, o que é muito diferente de divergir de suas ideias e de seu governo. Ódio é de outra ordem, movido por outras ordens de circunstâncias.

Jair Bolsonaro tornou-se presidenciável no dia em que cometeu uma violência contra Dilma Rousseff e, mais uma vez, não foi punido. Ao votar pela destituição de Dilma homenageando o torturador, coronel Carlos Alberto Brilhante UstraBolsonaro converteu o impeachment em uma nova tortura contra a então presidenta que foi uma das mulheres torturadas pela ditadura. Era 17 de abril de 2016, data em que o Brasil se envergonhou diante de si mesmo e do mundo. Bolsonaro, então deputado federal, fez ainda o aposto nojento: “Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”. Simbolicamente, aquele momento foi tanto o último dia de Dilma no governo como o primeiro dia da campanha de Bolsonaro.

Bolsonaro só chegou neste ponto, porém, porque podia. E só ultrapassa todos os limites hoje porque segue podendo. Bolsonaro descobriu, nos anos 1980, que a justiça não o barraria, fosse a militar, fosse a civil. Até hoje ele não teve motivo para duvidar desta certeza.

E por que podia contra Dilma? Porque uma parcela significativa da sociedade chamava Dilma de “vaca” e de “vagabunda” nas janelas e sacadas enquanto espancava suas panelas, sem que houvesse grande revolta por essa brutalidade. Parte da imprensa, que hoje acertadamente denuncia a violência de Bolsonaro contra as mulheres jornalistas, no máximo lamentava a deselegância e a má escolha dos termos, mas tratava as agressões misóginas, machistas e violentas contra Dilma como liberdade de expressão.

Afirmo e seguirei repetindo que Dilma Rousseff foi uma má governante e que cometeu vários atos autoritários, em especial na Amazônia. Mas esse debate é no plano dos fatos e das ideias. O que se viu no Brasil, em especial no segundo mandato, foi um ataque misógino contra Dilma. Não por discordar de suas ideias e atos, mas por ser mulher. Algumas vezes esse ataque, como apontou a jornalista Cynara Menezes em seu site, partiu de jornalistas mulheres que hoje acusam as agressões de Bolsonaro. Não se trata de justificar uma agressão com a outra. Todas elas são terríveis e há que se lamentar uma por uma. Além disso, a violência contra as mulheres praticadas por um presidente da República será sempre a de maior consequência porque não há maior responsabilidade do que a de quem ocupa o cargo máximo de um país pelo voto da maioria. Mas isso não exime a imprensa de refletir sobre o seu papel na escalada dos últimos anos. O desrespeito contra Dilma, mesmo quando ela ainda permanecia no cargo, foi tratado como “natural”.

Um dos ataques mais vergonhosos foi a imagem do estupro recorrente da presidenta. No segundo semestre de 2015, um adesivo apareceu no tanque de gasolina de carros pelo país. Representava a figura de uma Dilma sorridente, de pernas abertas. Quando o carro era abastecido, a bomba de gasolina penetrava sexualmente a presidenta do país. Quem usava o adesivo justificava a montagem criminosa como um protesto contra o aumento da gasolina, mas a mensagem era tão explícita quanto o ato. A presidenta era estuprada a cada vez que o tanque era abastecido.

Imagens semelhantes são hoje disseminadas para agredir jornalistas e intelectuais mulheres. E não só pela extrema direita. Também pela extrema esquerda. O fato precursor foi a violência contra Dilma Rousseff. Se todas as vítimas de violência devem ser lamentadas, também é evidente que a violência contra a mulher que ocupa o cargo máximo da nação, ao ser tolerada, tem um outro nível de consequência e de mensagem para a população do país que ela governa. A maior parte da sociedade e também uma parcela significativa da imprensa se indignou muito menos do que deveria com o estupro coletivo e em série de Dilma pelas bombas de gasolina espalhadas pelo país. Com Dilma, aparentemente, tudo podia.

Em abril de 2016, pouco antes da votação pela abertura do impeachment, a revista IstoÉ deu a seguinte manchete: “As explosões nervosas da presidente”. Na foto de capa, Dilma aparecia gritando. A fotografia documentava o momento em que a presidenta comemorava um gol da seleção brasileira na Copa de 2014. Mas foi tirada do seu contexto e, junto com o título, usada para dar a ideia de que Dilma estava fora do controle, logo precisava ser tirada do poder. No texto, era dito literalmente que ela teria perdido “as condições emocionais para conduzir o governo”. A matéria relatava os calmantes que a presidenta estaria tomando, usando o preconceito persistente contra os distúrbios mentais para desqualificá-la. Dilma era apresentada como o clichê clássico da mulher histérica.

Antes de arrancarem-na do governo para o qual fora eleita, por meio de um impeachment sem fatos que o justificassem, Dilma Rousseff foi tratada com os dois estereótipos costumeiramente usados contra as mulheres. No tanque de gasolina dos “cidadãos de bem” era a puta; na revista era a louca. A primeira “merecia” ser estuprada, a segunda deveria ser alienada de seus direitos, como o eram os loucos na lógica manicomial que voltava com toda a força. E ela de fato seria alienada do direito de governar que seus eleitores haviam lhe garantido pelo voto.

O que se escolhe para desqualificar aquele ou aquela que se busca destruir não é um dado secundário. Quando as paixões emergiram e o cálculo dos que calculam as instrumentalizaram para derrubar uma presidenta eleita, as subjetividades irromperam para arrancar Dilma Rousseff do lugar máximo de poder no país e recolocá-la no lugar tradicional reservado às mulheres que ousam reivindicar igualdade. A facilidade com que um Congresso de maioria comprovadamente corrupta anulou o voto da população com o apoio de parte da sociedade e da imprensa é indissociável da tolerância, estímulo e muitas vezes protagonismo desta mesma sociedade e imprensa em atos de violência contra a primeira mulher que alcançou o posto. Ninguém tem o direito de se iludir: escolhas como estas têm custo.

Vale ainda um destaque que costuma causar incômodo em leitores que até então vinham gostando do texto. Muitos minimizam o papel da equiparação dos direitos das empregadas domésticas ao dos demais trabalhadores, a chamada “PEC das Domésticas”, que ficou associada ao nome de Dilma Rousseff. Na minha opinião, foi determinante para o ódio que parte da classe média passou a sentir pela presidenta. As empregadas domésticas, a maioria delas negras, eram consideradas um direito adquirido da classe média. A emancipação feminina no Brasil não foi feita com políticas públicas, como creches para os filhos e escola integral, ou com divisão do trabalho doméstico entre homens e mulheres. Foi a exploração das mulheres mais pobres, que deixavam suas próprias casas e filhos para cuidar da casa e dos filhos dos mais ricos, em troca de uma jornada extenuante e um salário que garantia apenas a reprodução da miséria, que garantiu uma carreira para as mulheres de classe média.

Me refiro à classe média porque os mais ricos não tiveram a renda familiar abalada pelo aumento do custo de manter uma empregada doméstica, ainda que parte deles também tenha reclamado muito – “Onde esse mundo vai parar?!!! Daqui a pouco vão querer ir pra Disney”. Igualar essas domésticas, seguidamente com trabalho análogo à escravidão, à precariedade dos demais trabalhadores foi algo que muitos – e muitas – não perdoaram à Dilma Rousseff. Ela teria se metido onde não devia: no quartinho sem janela dos fundos da casa e dos apartamentos da classe média brasileira.

Quem acha que esta não foi uma das questões determinantes para o que era ódio – e não discordância de ideias – deve lembrar do recente episódio de Paulo Guedes, reclamando dos tempos da “festa” do dólar baixo, em que “até empregada doméstica ia pra Disneylândia”. Mais uma vez, não há compartimentos. Desigualdade racial e social, patriarcado e política econômica sempre estiveram visceralmente ligados no Brasil.

O ano em que a “nova direita” liderou as manifestações de rua contra a primeira mulher na presidência também foi o ano do que seria chamado “primavera feminista” no Brasil. Milhares de mulheres foram às ruas denunciar o machismo e lutar contra a ameaça de retrocessos em curso no Congresso de Eduardo Cunha. A campanha #PrimeiroAssedio, lançada pelo site feminista Think Olga, em que as mulheres contavam os abusos que sofreram, causou enorme impacto.

A nova geração de feministas se movia com desenvoltura nas redes sociais e deu enorme potência aos movimentos iniciados por suas mães e avós. Era ainda fortalecida pelo protagonismo crescente das mulheres negras, muitas delas as primeiras de sua família a chegar à universidade. Mesmo homens que se consideravam feministas se assustaram com o que consideravam “excessos” e “radicalidade” e lidaram mal com os questionamentos persistentes. Assim como havia acontecido com os negros e o racismo no debate das cotas, a confrontação dos privilégios de gênero atingiu fortemente aqueles que nunca antes haviam se percebido como machistas – ou nunca antes haviam sido acusados de serem machistas.

O privilégio de se considerar “um cara bacana” é, assim como o de se considerar “um branco bacana”, muito mais enraizado do que parece. Intelectuais de esquerda bateram forte nas mulheres em artigos e nas redes sociais, já que não podiam bater nelas fisicamente. Espremendo toda a retórica e o usual name-dropping, vários artigos foram escritos apenas para dizer, com muito ódio e ressentimento, que as mulheres não são capazes de pensar bem e não deveriam estar ocupando o espaço que alguns homens queriam continuar mantendo como uma reserva de mercado natural. Como em colunas de opinião publicadas na imprensa, por exemplo. Mulheres deveriam apenas fazer crônicas sentimentais, não analisar política. É claro que esses sentimentos pouco sofisticados não eram confessados, mas sim disfarçados pelo linguajar acadêmico e protegido por teses intelectualizadas. Ainda assim, para quem se dedica a escutar, eram explícitos.

O impeachment de Dilma Rousseff e a crescente ocupação das ruas pelas mulheres não foi uma coincidência de datas. A força dos novos feminismos e a violenta reação a eles, expressa tanto na política, por meio de projetos de lei, quanto no aumento do número de estupros e de feminicídios, podem estar intimamente conectadas. O que aconteceu e está em curso no Brasil se expressa numa teia intrincada. A pressão das novas mulheres – e o deslocamento do lugar do homem provocado por elas – são um dos fios dessa trama.

Não é obra do acaso que quem substituiu a primeira mulher na presidência, aquela que foi empossada trazendo com ela uma filha e não um marido, foi um vice como Michel Temer (MDB). Levou com ele ao Planalto a imagem de uma primeira-dama rodrigueana, “bela, recatada e do lar”, como titulou a revista Veja. Quem é, de fato, Marcela Temer, nunca soubemos, o que já diz bastante. Talvez ela nos surpreendesse. O retrato naftalínico do primeiro ministério de Temer foi apenas a transição para o meme colorido e explicitamente violento de Bolsonaro, apimentando as velhas elites que o apoiam com fardas e neopentecostalismo evangélico.

Entre as tantas perdas promovidas por um governo autoritário está a da anulação das diferenças das posturas, dos caráteres e das ideias. Quando há democracia, quando não é necessário escrever sobre um presidente que cria factoides como forma de manter o país em guerra, o debate avança, se torna sofisticado e mais amplo. E o país avança com ele. Lamentavelmente, esse processo costuma ser interrompido no Brasil, como acontece hoje. A função do autoritarismo é também a de interditar o debate.

Hoje, mais uma vez, é preciso fazer alianças com pessoas que até ontem cometiam violências semelhantes as que hoje denunciam porque o bolsonarismo é uma ameaça não apenas à democracia, esta que já se desfaz, mas à civilização, na falta de palavra melhor. O bolsonarismo é uma ameaça ao planeta, já que está destruindo a Amazônia numa velocidade sem precedentes. Quando uma ameaça da proporção do bolsonarismo se realiza e avança, é necessário suspender as dores mais do que justas e costurar as alianças possíveis para impedir a destruição dos valores fundamentais. Jamais, porém, devemos abdicar da memória. Alianças, sim. Apagamentos, não. Que ninguém se esqueça: seguiremos lembrando.

Quando Bolsonaro ataca a jornalista Patrícia Campos Mello, ele revela o quanto teme o bom jornalismo, o mesmo que décadas atrás denunciou seu plano de explodir bombas em quartéis. Bolsonaro também está desesperadamente tentando se esquivar de uma outra mulher. Quem assombra o seu Governo, a sua família e o seu futuro político é uma mulher negra: Marielle Franco. Enquanto a execução da vereadora do PSol não for desvendada, ela seguirá assombrando Bolsonaro. É este o furo que Bolsonaro mais teme.

Pelo bom senso, o presidente deveria ser o mais interessado em elucidar o crime. Infelizmente, por razões que a razão possivelmente não desconheça, ele não parece especialmente empenhado. Dois anos neste sábado, 14 de março, desde os tiros que arrebentaram a cabeça de uma mulher brilhante e continuamos sem saber quem mandou matar Marielle. Teremos, portanto, que seguir perguntando, e cada vez mais alto: Quem mandou matar Marielle? E por quê?

Bolsonaro, é necessário afirmar mais uma vez, não é um produto da ditadura. Bolsonaro é um produto da democracia deformada que se seguiu à ditadura. Foi essa democracia tantas vezes covarde e acovardada – conivente tanto com a impunidade dos crimes do regime de exceção quanto com a tortura e a morte dos mais pobres – que garantiu a sua impunidade desde o plano terrorista de 1987. O antipresidente que hoje governa o Brasil é o principal exemplo de toda a corrupção do sistema que finge denunciar. Só as instituições que até hoje falharam, deliberadamente ou não, em responsabilizá-lo pelos seus atos e falas podem impedir Bolsonaro de seguir produzindo violências contra as mulheres, contra os negros, contra os indígenas, contra a Amazônia, contra o planeta que depende da Amazônia. Contra o Brasil. Só a democracia efetiva pode barrar Bolsonaro.

Os golpes do século 21, vale repetir, não acontecem mais de repente, como era no século 20. No Brasil, assim como aconteceu e acontece em outros países neste momento, a democracia está sendo devorada ao modo dos parasitas: desde dentro, um pouco mais a cada dia. As chances desse corpo enfraquecido resistir diminuem com as horas. Não há milagre nem mágica. Só com o que ainda resta de democracia, e isso enquanto restar, é possível impedir os violentos de exercerem sua violência, os golpistas de completarem o golpe.

Termino com o desejo de que, inspiradas por Marielle Franco, as mulheres brasileiras e os homens feministas – porque feminismo é posição política, não depende de sexo e gênero – se coloquem em movimento. Que, junt@s, sejamos capazes de resistir e obrigar as instituições brasileiras a se reencontrarem com a vergonha enquanto ainda é possível. O tempo se esgota.

* Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: desacontecimentos.com | Email: elianebrum.coluna@gmail.com | Twitter: @brumelianebrum | Facebook: @brumelianebrum | Instagram: brumelianebrum


El País: Coronavírus acende alerta sobre preparo de hospitais no Brasil para tratar infectados graves

Governo Federal orienta Estados a reverem suas redes hospitalares diante do provável crescimento de pacientes gravemente afetados no país. Declaração de pandemia provoca medidas mais enérgicas de enfrentamento em várias esferas

No mesmo dia em que a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que o coronavírus é uma pandemia global, o Brasil dobrou o número de casos confirmados da doença ―aos 52 infectados contabilizados pelo Ministério da Saúde somam-se outros 16 confirmados pelo hospital paulista Albert Einstein, em São Paulo, e outro na Bahia, todos divulgados após a atualização do balanço federal. O país ―que até então trabalhava no sentido de evitar a propagação do vírus e apostava no tratamento de casos leves na Atenção Básica― entra em um novo patamar de enfrentamento da doença. Na fase atual, já não é possível identificar quem transmitiu o vírus. E tanto especialistas quanto autoridades de saúde avaliam que a disseminação da doença pode acontecer rapidamente e que, embora tenha uma letalidade relativamente baixa, é preciso preparar as redes hospitalares para receber uma alta demanda de pacientes em estado grave. As ações, apontam, são cruciais para evitar que o Brasil reproduza um colapso no sistema de saúde semelhante ao da Itália. Em três semanas, o país passou de três para 10.000 infectados e tem enfrentado um caos na assistência diante da escassez de insumos e da infecção de profissionais de saúde.

“Temos que estar preparados caso soframos um ataque como o que a Itália viveu”, defendeu o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, durante audiência pública no Congresso. Enquanto pedia mais recursos para ações emergenciais relacionadas ao coronavírus —o ministro falou, depois, em 5 bilhões de reais—, Mandetta afirmou que o Governo Federal voltará a prover médicos para capitais e regiões metropolitanas por meio do Mais Médicos e ampliará o número de postos de saúde com funcionamento em horário extendido para reforçar a Atenção Básica, onde os casos leves deverão ser tratados. Pediu, porém, que todos os Estados reorganizem suas redes hospitalares, inclusive remarcando cirurgias eletivas (ou seja, as que não são urgentes, como intervenções plásticas) e rediscutindo os critérios de permanência em leitos de CTI como medidas de antecipação para o caso de o quadro se agravar no país. "Esses leitos são preciosos e temos que estar preparados”, defendeu.

Gatilho para medidas de restrição
O aumento agudo da doença no Brasil tem levado autoridades públicas a adotarem medidas mais enérgicas, e até controversas, com relação ao enfrentamento da doença. O Rio de Janeiro, que tem 13 casos confirmados, publicou um decreto que permite a internação compulsória de casos graves da Covid-19. O Congresso Nacional anunciou que estão suspensas as visitações públicas na Câmara e no Senado e que os servidores com histórico de viagem ao exterior entrarão em quarentena. O ministro da Educação, Abraham Weintraub, publicou um vídeo em suas redes sociais no qual sugere que instituições de ensino se preparem para realizar atividades escolares a distância por causa do coronavírus. Também avalia a possibilidade de antecipar as férias escolares. Algumas universidades começaram a testar plataformas de ensino à distância, e o Distrito Federal já decidiu suspender aulas em escolas públicas e particulares nos próximos cinco dias. Não há unanimidade sobre esse tipo de medida. O próprio ministro Mandetta pondera que a suspensão de aulas pode agravar riscos para avós das crianças, que integram o grupo de risco mais alto da doença por conta da idade. “O maior grupo de risco são nossos idosos e doentes crônicos. Este é o grupo que nós queremos superproteger”, argumenta.

Ainda não há muitas respostas sobre a performance do novo coronavírus em clima tropical, e o Governo Federal diz trabalhar com o comportamento apresentado até agora no hemisfério norte. Com a caracterização de pandemia pela OMS, o Brasil não terá mais uma lista de países suspeitos e passará a monitorar qualquer pessoa que venha do exterior e apresente sintomas. Não considera, porém, restringir o trânsito de pessoas, como Donald Trump acaba de fazer suspendendo voos para os EUA vindos da Europa, ou impor quarentenas. “Nós estamos na fase de recomendações. Podemos passar para determinação. Vamos andando de acordo com o que vai acontecendo aqui”, disse Mandetta a parlamentares nesta quarta-feira.

Na semana passada, o Ministério da Saúde já havia mudado a metodologia para testagem do coronavírus. A nova orientação tirou a exclusividade de testes para pessoas com histórico de viagem ao exterior para incluir também os que apresentam quadro respiratório grave, o que permite a identificação de possíveis casos transmitidos no Brasil e oferece maior precisão ao monitoramento de circulação da doença no país. Um sistema robusto de testagem tem mostrado êxito no enfrentamento do novo coronavírus em países como a Inglaterra, por exemplo. Lá, o paciente que apresentar sintomas pode ser testado em casa. No Brasil, o caminho neste sentido ainda é longo. Atualmente, nem todos os Estados conseguem fazer os testes em seu próprio território, e a previsão é de que ainda demorem uma semana para estarem aptos a fazê-lo. “A previsão é de que todas as unidades da federação estejam aptas, até dia 18 de março, com equipamento, com kit pronto para fazer o teste dentro do seu estado”, informa Mandetta. O ministro prevê que as próximas semanas serão duras e que, num país continental como o Brasil, é difícil mensurar o nível de preparação de cada Estado para o aumento da demanda. “Vamos viver umas 20 semanas duras”, disse o ministro ao Estadão.

O vice-presidente do Conselho Federal de Medicina, Alexandre de Menezes Rodrigues, chama atenção para a necessidade de pensar não apenas na prevenção, mas no tratamento da Covid-19. “Grande parte das mortes no mundo foi por despreparo do suporte”, destaca. Ele defende, por exemplo, a necessidade de rediscutir as regras sobre a quantidade de médicos por leitos de UTI. E que o país precisa se preparar para um aumento da demanda de pacientes, já que a permanência de infectados por coronavírus nos hospitais costuma ser prolongada. Para proteger seu corpo médico, hospitais particulares começaram a orientar seus profissionais que evitem viagens. Na esfera pública, ainda não há orientações nesse sentido. Por enquanto, o Governo Federal afirma ter conseguido comprar material de proteção, como máscaras e outros insumos, e orienta que os próprios Estados se organizem para reforçar suas redes hospitalares.

Na ponta, as mudanças ainda começam a ser desenhadas de forma pontual num contexto em que nem o sistema público nem o privado têm grandes margens em relação à disponibilidade de leitos de UTI, onde poderão ser tratados casos graves da doença. “Isso porque esses leitos são caros, e você precisa racionalizar para as necessidades. Os Estados têm que se adequar para essa demanda que virá. São modificações que temos que fazer hoje porque não dá pra esperar o número de casos aumentar para começar”, diz o infectologista da Diretoria de Vigilância Epidemiológica do Estado da Bahia, Antônio Carlos Bandeira. O médico diz que a Bahia tem reativado UTIs pediátricas para receber pacientes graves por conta do coronavírus e que o Estado está hierarquizando o sistema para transferir pacientes a hospitais de referência. “Estamos preparando uma rede com gestores para que possa haver esse fluxo rápido”, explica.

No Hospital das Clínicas, em São Paulo, há um protocolo estabelecido para tratar casos de Covid-19, e profissionais que antes se reuniam semanalmente passaram a discutir diariamente estratégias. Mas não há ainda implementação de medidas antecipando uma fase mais aguda da doença. “A gente prevê a possibilidade de realocar profissionais, adiar eletivas, bloquear uma UTI só para isso. Está previsto, mas ainda está longe de ser implementado”, diz Izabel Marcilio, médica epidemiologista do núcleo de vigilância epidemiológica do hospital. Nesta quinta-feira, o Governo de São Paulo, Estado que mais concentra os casos no Brasil, informará novas ações para enfrentamento da doença. A grande questão será a partir de que momento estabelecer medidas de restrição de circulação.

O fato é que o Brasil tem redes hospitalares muito distintas em cada Estado, o que dificulta prever o limite de atendimento do SUS, conforme ressaltou o próprio ministro Mandetta em entrevista ao Estadão. “O Rio de Janeiro aguenta muito pouco. São Paulo aguenta um pouco mais. O Paraná é nosso melhor sistema, a melhor rede de distribuição. O Acre não tem nenhum caso. O Brasil é um continente”, declarou.


José Roberto Batochio: Dois Poderes da República sob ataque

Convocar manifestação contra o Congresso e o STF constitui atentado à democracia

“Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais que têm sido experimentadas de tempos em tempos” - Winston Churchill, discurso na Câmara dos Comuns em 1947.

Quando pronunciou a frase que se tornaria o mantra da democracia através dos tempos, Churchill era um deputado que acabara de experimentar as agruras desse sistema político, baseado no voto popular. Dois anos antes, a 2.ª Guerra Mundial ainda nem havia acabado, mas o gigante que conduzira a Inglaterra na vitória dos Aliados contra o nazi-fascismo foi derrotado nas eleições e deixou o cargo de primeiro-ministro. Muitos se revoltaram contra o que entenderam ingratidão dos ingleses, porém o estadista não se abalou: “Eles têm o direito perfeito de nos enxotar. Isso é democracia. É por isso que estamos lutando”.

Noutras circunstâncias, quando os inimigos da democracia insistem em atacá-la, os democratas é que devemos arrogar não só o direito, mas o dever de defendê-la. Nossos tempos talvez sejam, desde a grande corrente libertária forjada pelo pós-guerra dos anos 1940, os mais adversos a esse sistema de governo em que o povo detém, pelo voto igualitário, o controle de seu destino político. A democracia representativa, em especial, é submetida a um descrédito que no fundo alveja a política como instrumental de administração e solução institucional dos conflitos na sociedade. A todo instante se escreve o epitáfio da representação política e são, de fato, visíveis os sinais de insatisfação dos eleitores com seus representantes. A pesquisa Barômetro das Américas, realizada de dois em dois anos pela Universidade Vanderbilt, dos Estados Unidos, com apoio no Brasil da Fundação Getúlio Vargas, revelou em sua última rodada, em 2019, que 58% dos brasileiros não estão satisfeitos com o funcionamento da democracia no País, mas, dando razão a Churchill, um porcentual maior, 60%, acha que ela ainda é a melhor forma de governo. Um hiato autoritário imposto por um golpe antidemocrático conta com a simpatia de 35% dos brasileiros, mas a maioria de 65% rejeita a ideia.

Os dados permitem a ilação de que, por maior que seja o desalento com a democracia, é majoritária a preferência nacional por mantê-la como a melhor forma de governo. Trata-se, portanto, de aperfeiçoá-la, extirpar-lhe os defeitos, que mais se devem aos que estão no topo da representação do que às vicissitudes dos representados. Constitui truísmo observar que as instituições democráticas são maiores do que os homens que as conduzem.

Fundamento básico da democracia é uma Constituição que avalize a isonomia republicana, assim como a clássica separação e independência harmônica dos Poderes, os quais, desempenhando papéis específicos, atuam como contrapesos recíprocos. Como no preceito bíblico, a democracia dá a César e a Deus o quinhão que lhes compete. Daí ser inadmissível que integrantes de um dos três Poderes do Estado, extrapolando suas funções discricionárias, embarque na temeridade de limitar a atuação de outro. Quando disputam a preferência do eleitor, os membros do Parlamento e do Executivo podem até apresentar programas eleitorais contendo tais limitações, mas para aplicá-las, já investidos no cargo, devem observar a liturgia constitucional. E na maioria das vezes, como regra do processo democrático, carecem do concurso do Poder em questão para alcançar seus objetivos reformadores. O que não podem é apelar para as “vozes das ruas” com o fim de se fortalecer e intimidar o Poder que, em avaliação autoritária, lhe nega um quinhão maior do que aquele que lhe está atribuído, invocando a fúria dos 35% que apoiam o hiato autoritário.

Divergências de governança entre os Poderes são naturais, mas cabe ao Executivo, embora igualmente eleito pelo povo, reconhecer que o Legislativo é o poder popular por excelência, porquanto diverso, plural, reunião eclética e sincrética das correntes que pulsam na sociedade, formando um mosaico que a contradição democrática tende a transformar em síntese da vontade nacional. Todo ato que emana do Parlamento, obviamente chancelado pela maioria, é um ato federativo que as minorias são obrigadas a respeitar - e o axioma vale para os demais Poderes, cabendo apenas ao Judiciário escrutinar a conformidade constitucional das decisões.

Quando o Executivo exorta seus acólitos em busca de apoio não propriamente à sua linha política, mas para intimidar os demais Poderes, expõe de forma condenável sua incapacidade de governar segundo a ordem democrática. Tal procedimento é típico de governos que não lograram cumprir promessas de campanha, frustraram eleitores e deram razão à oposição, buscando responsabilizar um “inimigo externo” por seu fracasso. Se a regra era culpar a imprensa, agora agitam as redes sociais. No andar dessa carruagem, a convocação do presidente da República para que seus correligionários venham às ruas, em manifestações contrárias à independência e autonomia do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, constitui um atentado à democracia que faria Churchill novamente ir à luta, como o fez contra o Terceiro Reich.

*Criminalista, ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), foi deputado federal (PDT-SP).


Luiz Carlos Azedo: Barafunda

“Bolsonaro articula com aliados a derrubada das emendas impositivas, acenando com a possibilidade de “desconvocar” a manifestação de domingo, contra o Congresso”

Grande quantidade de pessoas que se movimentam descontrolada e desordenadamente; confusão, desordem. Junção desorganizada de objetos, de coisas; desarrumação. Esse é o significado da palavra que melhor ilustra a relação do governo com o Congresso: barafunda. O governo não sabe qual é sua prioridade no Congresso. Tramitam, simultaneamente, o pacote de medidas emergenciais, que começou a ser mitigado pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado, e três projetos relativos ao Orçamento Impositivo, em apreciação na Comissão Mista do Orçamento, enquanto o presidente da República segura as reformas administrativa e tributária anunciadas pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, aguardadas pelo Congresso.

Ontem, a Comissão Mista de Orçamento (CMO), integrada por deputados e senadores, suspendeu os trabalhos sem finalizar a votação dos três projetos enviados por Bolsonaro, em meio a negociações entre Executivo e Legislativo pelo controle de uma fatia do Orçamento de 2020. Aprovou apenas o texto que regulamenta a execução do Orçamento Impositivo. O senador Marcelo Castro (MDB-PI) suspendeu os trabalhos por falta de quórum. Uma parte da oposição e outra dos governistas querem devolver os recursos das emendas impositivas do relator ao Executivo e esvaziaram a sessão. As outras duas matérias devem ser analisadas hoje. Tratam da transferência de R$ 9,6 bilhões para o Executivo e de regras para a ordem de prioridade dos parlamentares na execução de parte das emendas. Os três textos, porém, precisam ser apreciados em sessão do Congresso Nacional.

Bolsonaro chega hoje ao Brasil. Na sua passagem pelos Estados Unidos, assinou um acordo na área de Defesa com Donald Trump, que deve facilitar os negócios do setor para ambos os países, deu uma declaração colocando em dúvida o resultado da votação no primeiro turno das eleições presidenciais de 2018, prontamente rechaçada pela presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministra Rosa Weber, e minimizou a epidemia de coronavírus, que chamou de fantasia criada pela mídia. Também classificou como “pequena crise” a turbulência provocada pela redução do preço do petróleo. Por muito pouco, não a comemorou, ao dizer que era melhor do que subir 30%. Para completar: articula com aliados a derrubada dos projetos de emendas impositivas, acenando com a possibilidade de “desconvocar” a manifestação prevista para o próximo domingo, contra o Congresso.

Ontem, as bolsas voltaram a operar em alta, com aumento de mais de 2% no EUA e ao redor de 3% na Europa. No Brasil, a Bovespa recuperou parte das perdas e subiu 7,14%. O dólar fechou em queda e voltou a ficar abaixo de R$ 4,70. Na segunda-feira, bolsas em todo o mundo haviam sofrido fortes quedas em meio à disseminação do vírus e ao aumento de temores de uma recessão global com a disputa pelo preço do petróleo entre Rússia e Arábia Saudita. Houve quedas de mais de 7% em bolsas dos EUA, pior dia desde a crise de 2008. O fantasma de uma pandemia assombra o mundo.Todos os 27 países da União Europeia (UE) tiveram ao menos um caso confirmado de Covid-19, a infecção causada pelo novo coronavírus. Em todo o mundo, pelo menos 107 países confirmaram casos do vírus.

Epidemia
Dentro do bloco europeu, a Itália é o país que mais registrou casos da doença, com ao menos 7.375, segundo o Centro Europeu de Controle e Prevenção de Doenças (ECDC). Na segunda-feira, registrou 168 mortes, o maior número em um dia até agora, contabilizando um total de 631 mortes, o que levou o governo italiano a pôr todo o país de quarentena. O Covid-19, infecção provocada pelo novo coronavírus, já causou mais de 4 mil mortes, 77% das quais (3.140 pessoas) eram oriundas da China, país onde se iniciou o surto.

No Brasil, o Ministério da Saúde registrou 893 casos suspeitos (eram 930 na segunda-feira), 34 confirmados (eram 25 no balanço anterior), 780 descartados e cinco pacientes estão hospitalizados, sendo a de Brasília em estado grave. Ao todo, são 19 casos em São Paulo, oito no Rio de Janeiro e dois na Bahia. Distrito Federal, Rio Grande do Sul, Espírito Santo, Alagoas e Minas Gerais têm um cada. Já são cinco casos por transmissão local, por contato próximo com pessoas que foram infectadas no exterior, porém, não há registro de “transmissão comunitária”, quando as autoridades de saúde não conseguem rastrear de onde veio a contaminação.

Em Miami, com base nesses números, Bolsonaro concluiu que a “questão do coronavírus” é mais uma “fantasia” propagada pela mídia no mundo todo. Repete o mesmo equívoco de Donald Trump, que subestimou a epidemia e agora corre contra o prejuízo, pois a pisada de bola pode pôr em risco a sua reeleição. Trump tratou o surto como uma disputa política, subestimou as medidas de prevenção e demorou a reagir. A epidemia se espalhou rapidamente por 34 estados, com mais de 550 casos. Oito estados declararam emergência. O Estado de Nova York isolou uma comunidade inteira, New Rochelle, um subúrbio da cidade de Nova York.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-barafunda/


El País: 50 anos depois, Brasil volta a ser alvo sistemático de denúncias internacionais por violações de direitos humanos

País vive pressão inédita desde o fim da ditadura com relatores da ONU, ONGs e ativistas se sucedendo em críticas ao desmonte dos mecanismos de proteção a direitos fundamentais. Ofensiva ocorre ao mesmo tempo em que governos e parlamentares europeus questionam acordo UE Mercosul

Jamil Chade, El País

O Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas se transformou em uma plataforma de ataques contra o governo de Jair Bolsonaro, denunciado por diversas violações ao meio ambiente, a mulheres e a indígenas, e pelo desmonte dos mecanismos de proteção aos direitos humanos. O encontro, que acontece desde o final de fevereiro e é considerado como a principal sessão do ano, vem colocando o Itamaraty em uma posição defensiva.

A ofensiva da sociedade civil e de alguns dos principais relatores da ONU coincide com outro momento complicado para o governo de Bolsonaro. Pela Europa, governos e parlamentares têm questionado o acordo comercial entre a União Europeia e Mercosul. Câmaras Legislativas de regiões da Bélgica e Áustria já promoveram votações para bloquear o tratado, alegando que não aceitariam uma aproximação num momento em que o governo brasileiro não se compromete em questões ambientais.

Na Suíça, que assinou um tratado em separado com o Mercosul, grupos políticos insistem que tal acordo precisa ser submetido a um referendo popular, apostando numa reação contrária da opinião pública diante da atual imagem internacional do Brasil. Mas a pressão internacional não se limita à Amazônia e as últimas reuniões na ONU escancararam como o Brasil já perdeu a confiança pelas inúmeras queixas recebidas sobre práticas incompatíveis com os diretos humanos.

Em janeiro deste ano, uma reunião privada dentro da missão diplomática do Canadá, em Genebra, fazia um exercício: como a comunidade internacional e da ONU deveriam reagir em termos legais diante de governos ditatoriais e com comprovadas violações graves de direitos humanos. O encontro, mantido em total sigilo, era organizado por entidades internacionais e ONGs, com o convite feito a governos europeus e de delegações de outras regiões do mundo. Ottawa havia cedido uma sala em sua missão diplomática para o debate. Oficialmente, tratava-se apenas de um exercício e uma simulação de cenários políticos. Mas altamente simbólico.

Entre os países com sérias violações de direitos humanos escolhidos para o debate confidencial estava o Brasil, ao lado do regime autoritário da China e da repressão no Egito. A realidade é que, 50 anos depois de o país ser alvo de denúncias nos antigos órgãos da ONU diante da tortura e desaparecimentos durante a ditadura, o Brasil volta a preocupar a comunidade internacional de uma forma sistemática.

Nos últimos 30 anos, denúncias e críticas foram apresentadas contra os diferentes governos brasileiros. Mas jamais colocando em questão a própria democracia e a existência do espaço cívico. Nos corredores da ONU e salas de reuniões, o governo brasileiro vive uma pressão inédita em seu período democrático, com relatores da entidade, ONGs brasileiras e estrangeiras, ativistas e líderes indígenas se sucedendo em críticas ao desmonte dos mecanismos de proteção aos direitos humanos no país.

Apenas em 2019, mais de 35 denuncias foram apresentadas contra o Brasil e, em 2020, essa tendência ganhou um novo ritmo. Desde que a sessão oficial do Conselho começou, dia após dia entidades e representantes de mecanismos especiais das Nações Unidas tomam o microfone na solene sala da ONU para acumular denuncias contra o Brasil. São bispos de Brumadinho ou defensores de direitos humanos que chegam para suplicar pelo apoio internacional contra um governo que, na visão de muitos, faz questão de menosprezar seus compromissos internacionais.

Um dos questionamentos veio da relatora da ONU para o direito à alimentação, Hilal Elver. Na quarta-feira passada, ela apresentou seu informe em que criticou abertamente o Brasil. Segundo o texto, o país era um “grande exemplo” de como instituições para o combate à fome estavam sendo financiadas, no marco do Fome Zero. “Infelizmente, esta boa prática foi quase perdida em 2019, quando o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional foi desmantelado”, lamentou. Os ataques levaram o governo brasileiro a tomar a palavra na ONU para questionar o informe. A delegação do Itamaraty afirmou ter ficado “desapontada” com algumas “informações enganosas” do documento. De acordo com o governo, a reestruturação das instituições de combate à fome teve como objetivo “modernizar” a administração.I

Indígenas
Outra área de atrito é a produção agrícola brasileira. Segundo o mesmo informe de Elver, é “particularmente preocupante o aumento significativo das queimadas na Amazônia brasileira, seguindo as promessas feitas pelo novo governo de abrir terras indígenas para a agricultura e mineração”. Bolsonaro e seus aliados fomentam reiteradas vezes essa postura, insistindo em projetos que abram as reservas. “O governo passou a chamar os povos indígenas que se opõem à sua política como anti-desenvolvimentistas”, criticou.

Nesse ponto, uma vez mais o governo rebateu, alegando que os incêndios foram devidamente gerenciados e que a escala do problema era “consistente” com a média histórica. Elver não se deu por satisfeita e voltou a questionar. “A Amazônia é patrimônio de toda a humanidade”, insistiu, lembrando como os incêndios em 2019 foram mais severos. Segundo ela, existem “interesses” para abrir a região para a pecuária. “É uma situação importante e delicada o uso de floresta para a Humanidade no futuro. Não podemos destruir apenas para produzir mais alimentos. Isso não seria argumento aceitável”, disse.

Lembrando do impacto dessas ações para grupos indígenas, a relatora ainda defendeu que haja algum tipo de investigação internacional sobre a relação das grandes corporações e a situação da floresta, um cenário de pesadelo para a diplomacia nacional. “Talvez com algum comitê especial da ONU”, sugeriu.

Mineração
Durante a sessão, um tema que colocou pressão sobre o governo foi a legalização da mineração em terras indígenas. O caso levou Davi Kopenawa Yanomami a viajar até Genebra para alertar a comunidade internacional sobre a situação dos povos indígenas. Há um mês, Bolsonaro assinou um projeto de lei para regulamentar a mineração e a geração de energia elétrica em reservas indígenas. O projeto de lei será analisado pelo Congresso Nacional. Mas, em sua assinatura numa cerimônia no Palácio do Planalto, Bolsonaro declarou ser um “sonho” a abertura de reservas indígenas para a mineração.

O projeto passou a ser alvo de duros ataques nas Nações Unidas. O relator da ONU para o meio ambiente, David Knox, foi um dos que pediu que o projeto seja barrado. Para ele, a medida de Bolsonaro é “profundamente preocupante” e alerta que a situação dos indígenas seria “fortemente afetada”. “Esse é um retrocesso no reconhecimento dos direitos indígenas”, insistiu. Na mesma sessão, a pressão também veio do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Em nome da entidade, o jurista Paulo Lugon Arantes afirmou que “o arcabouço legislativo criado pelo Brasil desde sua redemocratização está sendo desmontado em uma velocidade impressionante”. De acordo com o CIMI, no Congresso há mais de 800 projetos que atentam contra o arcabouço legislativo criado no Brasil nos últimos anos.

Uma vez mais, o governo tomou uma postura defensiva. No debate, a embaixadora do Brasil na ONU, Maria Nazareth Farani Azevedo, tratou o assunto como se fossem “falácias” que estariam sendo ditas sobre a situação de meio ambiente no país e indicou que “correções” seriam necessárias. Ao longo dos dias, a embaixadora fez reuniões com o segundo escalão da cúpula da ONU para pressionar por uma revisão da posição do organismo sobre a situação no Brasil. Em vão.

Mulheres e religião
A pressão do Itamaraty não impediu que a situação das mulheres também fosse denunciada, num gesto que gerou desconforto no Palácio do Planalto que, por sua vez, exigiu uma ação do Itamaraty. O Brasil havia sido citado em um relatório submetido ao Conselho, ao lado de países onde a religião é usada como justificativa para impedir que meninas e mulheres tenham acesso à educação sexual, assim como direitos reprodutivos e acesso à saúde sexual. Desde o início do governo Bolsonaro, o país modificou sua política externa e de direitos humanos para levar em conta valores religiosos. De acordo com o informe, consultas realizadas na América Latina em 2019 chegaram à constatação de que programas de educação sexual e saúde reprodutivas foram cortados no Brasil. Isso, segundo as pessoas ouvidas nas consultas, teria uma relação direta com a “pressão de grupos religiosos”.

O relator da ONU para Liberdade Religiosa, Ahmed Shaheed, confirmou sua preocupação e indicou que recebeu relatos de como as ameaças aos direitos de meninas e mulheres são realidades em diversos locais. Segundo ele, os estados da região continuam com leis seculares. “Mas as pessoas me relatam que existe uma visibilidade cada vez maior de grupos religiosos em espaços públicos que argumentam que alguns direitos de mulheres podem ser limitados com uma justificativa religiosa”, disse. “Meninas e mulheres têm tido dificuldades em ter acesso a direitos reprodutivos, com a consequência para a saúde e muito mais que isso”, alertou.

Ao longo dos últimos meses, o Itamaraty tem adotado uma postura que vem causando choque entre delegações estrangeiras. Em projetos de resolução na ONU, o governo tem alertado que não aceitaria referências a termos como educação sexual ou direitos reprodutivos. Em Nova York em setembro de 2019, o governo ainda se somou a uma declaração liderada pelos EUA em que países insistiam sobre a necessidade de se evitar a “criação” de novos direitos. Entre eles, mais uma vez estavam os direitos reprodutivos e sexuais. O argumento é de que tais referências poderiam abrir caminhos legais para o aborto.

Bachelet
A onda de críticas e cobranças contra o Brasil não ocorreram de forma isolada. No início do encontro da ONU, no final de fevereiro, o tom foi dado pela própria alta comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet. Num encontro fechado com a ministra de Direitos Humanos, Damares Alves, ela levantou a questão das violações contra indígenas e defensores de direitos humanos. O governo jamais revelou o conteúdo do encontro. Dias depois, num discurso oficial, Bachelet incluiu o Brasil na lista dos cerca de 30 países que vivem uma situação especialmente preocupante em temas de direitos humanos. Damares Alves, porém, já não estava mais em Genebra para escutá-la.

“No Brasil, ataques contra defensores dos direitos humanos, incluindo assassinatos - muitos deles dirigidos a líderes indígenas - estão ocorrendo em um contexto de retrocessos significativos das políticas de proteção ao meio ambiente e aos direitos dos povos indígenas”, alertou Bachelet. “Também estão aumentando as tomadas de terras indígenas e afrodescendentes”, disse. Outro temor da representante da ONU se refere ao trabalho dos movimentos sociais e dos ataques sofridos por ongs. Segundo ela, também estão aumentando os “esforços para deslegitimar o trabalho da sociedade civil e do movimento social”. No ano passado, ela já havia alertado sobre o encolhimento do espaço cívico no Brasil, o que gerou duras reações por parte do governo brasileiro. Desta vez, o governo optou por um ataque violento.

A embaixadora do Brasil na ONU, Maria Nazareth Farani Azevedo, pediu a palavra para descrever o questionamento de Bachelet de “lamentável” e alertando que a chilena teria sido aconselhada de forma errada. Uma análise da situação, segundo ela, não estaria sendo feita com bases em dados e evidências atualizados. “Propomos uma conversa com base em fatos”, disse. Ela ainda sugeriu que deva haver um fim para um embate entre “narrativas politicamente motivadas”.

Ela ainda se recusou a aceitar as denúncias de Bachelet. “Não há recuou para proteger o meio ambiente, muito menos na proteção dos direitos indígenas”, declarou. “Pelo contrário”, disse a embaixadora, lembrando que Bolsonaro criou o Conselho da Amazônia. Segundo ela, a demarcação de terras indígenas é uma realidade e a proteção é conduzida de forma séria. “Existe um amplo espaço cívico no Brasil”, completou a diplomata aplaudida pelo bolsonarismo mais radical, lembrando que 900 entidades apoiaram a candidatura do governo para o Conselho da ONU. Muitos desses apoios vinham de organizações religiosas e a lista contava até mesmo com agências imobiliárias no México, algo jamais explicado pelo governo.


O Estado de S. Paulo: Economistas apostam em agenda de reformas para atenuar efeitos do coronavírus no Brasil

Segundo economistas, parceria entre Executivo e Legislativo para dar andamento às reformas pode reduzir incertezas e atrair investimentos

Medidas que possam reduzir a exposição do Brasil ao caos verificado na segunda-feira, 9, em todo o mundo passam por entendimento entre Executivo e Legislativo para iniciar, de imediato, as reformas urgentes como a administrativa, a tributária e a PEC emergencial, segundo vários economistas ouvidos pelo ‘Estado’.

Mas há também quem defenda a continuidade da redução de juros, liberação de compulsórios e até a suspensão do teto de gastos por dois anos.

“Se tivermos clareza sobre as reformas, como elas vão andar, se virmos um clima de parceria entre Executivo e Congresso em volta de uma agenda que permita reduzir a incerteza doméstica, melhoraria o ambiente de negócios e tornaria o Brasil muito mais interessante do ponto de vista do investimento”, diz Armando Castelar, coordenador da área de Economia Aplicada do Ibre/FGV.

Para José Roberto Mendonça de Barros, economista e sócio da MB Associados, a área de infraestrutura é a que mais precisa de investimentos no momento. “A lei do saneamento, por exemplo, geraria grandes obras públicas e teria efeito social enorme, como a geração de empregos.”

Já Bráulio Borges, pesquisador do Ibre, acredita que a agenda da infraestrutura teria enorme potencial não só para dinamizar a atividade no curto prazo, como aumentar a produtividade brasileira no médio e longo prazo. “Mas essas coisas não saem do papel do dia para a noite.”

De imediato, Borges defende o uso da política monetária para atenuar o impacto do turbilhão externo provocado pelo coronavírus e acentuado pela guerra do petróleo. Ele lembra que, assim como na crise de 2008, hoje o efeito líquido da alta do câmbio e da queda das commodities é desinflacionário. “Por isso há espaço para o Banco Central cortar juros e tentar reativar a economia como já fez no passado.”

Teto de gastos
Sérgio Vale, da MB Associados, também acredita que há espaço para o BC continuar cortando juros, que, para ele, ainda são muito elevados no Brasil na comparação com o resto do mundo. Ele lembra que a regra do teto de gastos impede o aumento dos investimentos públicos e acredita que o mercado faria uma leitura ruim se as regras fossem mudadas, mesma opinião de Borges, para quem não se deve mudar regras “no olho do furacão”.

“Mexer no teto de gastos é suicídio”, concorda Castelar. O professor da Universidade de Brasília, José Luís Oreiro, pensa de forma diferente. “É preciso mudar a política econômica e suspender o teto de gastos por dois anos para aumentar investimentos públicos. Para ele, se o ministro da Economia, Paulo Guedes, não mudar a política econômica, “então que se mude o ministro”.

Para enfrentar o choque externo, Samuel Pessoa, professor da FGV, também defende urgência na aprovação das reformas para arrumar o desequilíbrio fiscal. Isso abriria espaço para uma política fiscal contracíclica, com estímulo à demanda. Ele admite, porém, que o desentendimento entre Executivo e Legislativo impede o processo.

“O governo já estava meio perdido antes da semana trágica”, afirma Mendonça de Barros. O melhor seria o ministro Guedes parar de falar em dólar e se concentrar nas reformas.”

» O que fazer para enfrentar a crise?

José Roberto M. de Barros, economista e sócio da MB Associados
‘País precisa de mais investimento’

“A melhor coisa a ser feita é um trabalho construtivo entre Executivo e Legislativo para acelerar a aprovação da PEC emergencial, que significaria inequívoca melhora na questão fiscal. São necessárias medidas que permitam mais investimentos, como a lei do saneamento básico, que geraria obras públicas e teria enorme efeito social. Outro ponto é a reforma administrativa. De resto, é manter a calma. Não podemos controlar o que vem de fora, mas quem opera câmbio é o Banco Central. Não é papel de ministro falar sobre isso.”

Samuel Pessoa, economista e professor da FGV
‘Reformas trariam equilíbrio fiscal’

“A prioridade é aprovar as reformas emergencial e administrativa. O efeito imediato da aprovação seria arrumar o equilíbrio fiscal estrutural. Essa arrumação abriria espaço para uma política fiscal contracíclica, mas só se criarmos instituições que sinalizem esse equilíbrio lá na frente. As dificuldades do Executivo e Legislativo em fazer política dificultam a aprovação de reformas e a construção do estabelecimento de instrumentos para uma política fiscal. Sem isso, há menor capacidade de enfrentar o choque externo.”

Bráulio Borges, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia
‘Há espaço para a política monetária’

“O efeito líquido de tudo isso que está acontecendo é desinflacionário. Por isso, há espaço para a política monetária reagir a isso, mas talvez não seja suficiente, pois a atividade vem decepcionando, mesmo com os juros num patamar bastante baixo. Talvez seja preciso outros estímulos. O governo já fala em mais uma rodada de liberação de FGTS. Liberação de compulsório tem o potencial de ajudar, mas o feito não é garantido. No entanto, mudar a regra do teto no meio desse turbilhão todo pode gerar muito ruído.”

José Luís Oreiro, professor da Universidade de Brasília (UnB)
‘Suspender teto por dois anos’

“É preciso parar as reformas que estão em transição e focar em garantir a segurança da população e compensar os efeitos recessivos. Só ter um remédio para doenças diferentes é coisa de maluco. É preciso mudar a política econômica, suspender o teto de gastos por dois anos para aumentar os investimentos públicos. Se investir em infraestrutura, o efeito aparece em três meses. Dificilmente o ministro da Economia, Paulo Guedes fará isso. Se o ministro não mudar a política econômica, então, que se mude o ministro.”

Armando Castelar, coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV
‘Mexer no teto de gastos é suicídio’

“O que o governo pode fazer é reduzir a incerteza. Fazer parceria com o Congresso com uma agenda clara para o andamento das reformas. Isso diminuiria a incerteza doméstica e melhoraria o ambiente de negócios. Desta forma, o País ficaria mais interessante para atrair o investimento. Cortar juros, fazer política parafiscal e mexer no teto de gasto vão na direção errada. Mexer no teto de gasto é suicídio, pois vai introduzir incertezas sobre a situação fiscal. É preciso dar uma parada e tirar o Banco Central de cena.”

Sérgio Vale, economista-chefe da consultoria MB Associados
‘Governo está de mãos atadas’

“O governo está sem opções, com as mãos atadas, como o resto do mundo. A regra do teto de gastos impede o aumento de investimentos públicos e o mercado faria uma leitura ruim se as regras forem mudadas. O jeito seria continuar cortando juros, que ainda estão elevados no Brasil na comparação com o resto do mundo. O País deve fazer um esforço para que a reforma tributária ande o mais rápido possível, o que sinalizaria uma recuperação mais acelerada, sem jogar fora o esforço fiscal que foi feito até agora.”

 


Luiz Carlos Azedo: Um conto árabe

”Com a nova crise do petróleo, a conjuntura mudou completamente, mas parece que o presidente Jair Bolsonaro ainda não percebeu a verdadeira dimensão do problema”

“Aquele que não sabe se adaptar às realidades do mundo sucumbe infalivelmente aos perigos que não soube evitar (…) Aquele que não prevê as consequências de seus atos não pode conservar os favores do século” (As Mil e Uma Noites). Desde a década de 1970, a Arábia Saudita manipula o fato de que o petróleo não tem uma fonte renovável, virando a mesa na relação com as grandes potências. O desenvolvimento da economia do carbono, com a industrializaçao e a ampliação do consumo, somente aumentou seu poder de barganha, liderando a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep). Foi-se o tempo em que as chamadas “Sete Irmãs” (Standart Oil, Royal Dutch, Shell, Móbil, Gulf, BP e Standart Oil da Califórnia) controlavam os preços do mercado.

A primeira crise do petróleo ocorreu em 1956, quando o Egito nacionalizou o Canal de Suez, que era de propriedade anglo-francesa. A medida fez com que o abastecimento de produtos nos países ocidentais fosse interrompido, o que causou aumento dos preços do petróleo. O segundo momento foi em 1973, em protesto ao apoio que os Estados Unidos deram a Israel durante a Guerra do Yom Kipur: os países-membros da Opep novamente supervalorizaram o preço do petróleo. Entre outubro daquele ano e março de 1974, ou seja, em cinco meses, aumentou 400%, com reflexos nos Estados Unidos e na Europa, e desestabilizou a economia mundial.

Essa crise foi um fator decisivo para o colapso do chamado “milagre brasileiro”, durante o governo de Ernesto Geisel, o que colocou em xeque o regime militar. A resposta do governo foi criar o programa do álcool e iniciar a busca de petróleo no mar, para reduzir a dependência. Só recentemente o Brasil passou a ser autossuficiente na produção de petróleo. Nova crise ocorreu após a Revolução do Irã, cuja guerra com Iraque reduziu a produção de petróleo, eram os dois maiores produtores, e a oferta do petróleo foi bastante reduzida no mercado mundial. Em 1991, a Guerra do Golfo gerou outra crise. O Kuwait foi invadido pelo Iraque, os Estados Unidos intervieram no conflito e expulsaram os iraquianos do Kuwait, que, ao sair, incendiaram poços de petróleo.

Na crise financeira de 2008, iniciada no mercado imobiliário dos Estados Unidos, movimentos especulativos de escala global fizeram com que o preço do petróleo subisse 100% entre os seis primeiros meses do ano. Agora, estamos diante de nova crise, provocada pela Arábia Saudita, num cenário em que os preços do petróleo já estavam em baixa, por causa da epidemia de coronavírus, que desacelerou a economia global e afetou a demanda por energia. Os membros da Opep ainda são os maiores produtores de petróleo do mundo, juntos somam 27,13% da produção mundial.

Desabando
Na sexta-feira, a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) sugeriu a diminuição da produção, estabilizando os preços da commodity. Mas a Arábia Saudita, maior exportador de petróleo do mundo, condicionou o corte à colaboração da Rússia, que não faz parte da Opep e rejeitou a medida. No domingo, a Arábia Saudita, em retaliação, anunciou uma redução no preço de venda e um aumento na produção a partir de abril, o que provocou uma nova crise. Ontem, os preços do petróleo desabaram cerca de 25%, para perto de US$ 30, na maior queda diária desde a Guerra do Golfo. As bolsas de valores derreteram, inclusive a de Nova York.

No Brasil, a Bovespa desabou 12,16%, sua maior queda em mais de 20 anos. Voltou ao patamar de 27 de dezembro de 2018, quando marcou 85.460 pontos. Logo na abertura da sessão, o índice despencou 10%, atingindo mínimas em mais de um ano, o que provocou a interrupção das negociações (circuit breaker). Às 10h32, o índice registrou queda de 10,02%, recuando a 88.178 pontos, quando as negociações foram interrompidas por 30 minutos. O Banco Central (BC) teve de intervir no câmbio, vendendo dólar, torrando R$ 3 bilhões em reservas. A Petrobras perdeu R$ 91 bilhões em valor de mercado, avaliada em R$ 215,8 bilhões, contra um valor de R$ 306,9 bilhões no fechamento dos mercados na sexta-feira.

Com o PIB de 1,1% de 2019, o Brasil já estava em marcha lenta, correndo risco de desaceleração, por causa do impacto no coronavírus na economia mundial, principalmente a chinesa. Com a nova crise do petróleo, a conjuntura econômica mudou completamente, mas parece que o presidente Jair Bolsonaro ainda não percebeu a verdadeira dimensão do problema. Briga com aqueles com os quais precisa contar para enfrentar o cenário mundial, sobretudo o Congresso. Precisa se dar conta das mudanças em curso e da gravidade do momento que o país atravessa. Os principais problemas do país são de ordem objetiva, ou seja, não se resolvem com narrativas ideológicas, num jogo de perde-perde.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-as-mil-e-uma-noites/

 


El País: Trump troca afagos com Bolsonaro e reforça imagem de aliança entre os dois países

Presidentes reiteram apoio a Guaidó e a eleições na Bolívia, e sinalizam ampliar relação comercial. Governo cortou a Folha de S. Paulo da cobertura do jantar, repetindo gesto de Trump com CNN 

Esta é a quarta visita de Bolsonaro aos Estados Unidos desde que assumiu em janeiro de 2019 com a promessa de que iria estreitar laços com Trump, fonte de inspiração na área econômica, no discurso verborrágico e nos ataques à imprensa. Na Flórida, o Palácio do Planato decidiu excluir a Folha de S. Paulo da cobertura do jantar, repetindo o ataque que Trump já havia promovido contra a rede CNN em 2018, quando lhe cortou a credencial de cobertura da Casa Branca – depois restaurada.

Na campo diplomático, os dois países reiteraram o apoio ao papel de Juan Guaidó como presidente da Venezuela, além do apoio “aos esforços da Bolívia para a realização de eleições livres e justas”, diz comunicado conjunto dos dois países. “O Presidente Bolsonaro e o Presidente Trump reiteraram o apoio de seus países à democracia na região, incluindo apoio ao presidente interino da Venezuela, Juan Guaidó, e à Assembleia Nacional da Venezuela democraticamente eleita”, afirma o comunicado.

A crise na Venezuela é uma prioridade da Administração Trump na América Latina. O Brasil está alinhado à estratégia de Washington de isolamento total ao regime de Nicolás Maduro, e nesta mesma semana o Governo do Brasil ordenou a retirada de todos os seus diplomatas ligados ao chavismo que se encontravam na Venezuela.

Os dois assumiram compromisso com a paz no Oriente Médio também, muito embora os dois tenham promovido fissuras na região. Bolsonaro ao insisitr que pretende transferir a embaixada brasileira de Telaviv para Jerusalém, ponto sensível para os países árabes, e Trump que liderou um conflito com o Irã ao ordenar um bombardeio que matou o principal general do país, Qassem Soleimani. Agora Trump trabalha num acordo de paz entre Israel e Palestina, mas seu acordo vem sendo rebatido pela Liga Árabe.

Alumínio, comércio e OCDE

Esta é a primeira reunião entre os dois líderes populistas de direita desde que Trump desconcertou Bolsonaro com o anúncio, em dezembro do ano passado, de novos impostos ao aço e alumínio brasileiros. O líder brasileiro afirmou que Trump não levará adiante sua ameaça, mas o norte-americano ainda não a retirou formalmente e nem falou do assunto publicamente durante o encontro.

O comunicado da Casa Branca que detalhava a pauta do encontro antes do jantar, não mencionava esses tarifas. Em comunicado conjunto, anunciaram que ”trabalham por um pacote bilateral de comércio este ano, visando à intensificação da parceria econômica entre os seus dois países”, e especialmente, a reiteração de apio dos Estados Unidos ao início de processo de entrada do Brasil na Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). “O Presidente Trump reiterou o apoio dos Estados Unidos ao início do processo de acessão do Brasil à Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) e exorta seus parceiros na OCDE a trabalhar em conjunto com os Estados Unidos para esse objetivo, que ajudará o crescimento da economia brasileira e o aumento de sua competitividade.”

A agenda de Bolsonaro que deve ficar nos Estados Unidos até terça, inclui uma visita neste domingo, na cidade de Doral, ao Comando Sul dos Estados Unidos, que coordena as operações militares no Caribe, Centro e América do Sul. Bolsonaro vai assinar lá um “acordo de projetos de pesquisa” para “compartilhar informação no desenvolvimento de novas capacidades de defesa”. Na segunda-feira terá um encontro com empresários dos dois países, e na terça-feira, depois de um encontro com o senador republicano da Flórida, Mark Rubio, visitará em Jacksonville a fábrica da empresa brasileira de aviões Embraer. O Governo brasileiro informou que o presidente Bolsonaro se reunirá com membros da comunidade brasileira da Flórida, formada por 400.000 pessoas.

Para Bolsonaro, a viagem também será uma oportunidade de se reunir com empresários à procura de investimentos. O PIB de 2019 de 1,1% (contra 1,3% em 2018 e 2017) anunciado na última quarta (4) pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) , e a ameaça de uma queda global provocada pela crise do coronavírus, pode nublar ainda mais o horizonte de uma economia que não consegue se recuperar após a grave recessão de 2015 e 2016. Na sexta-feira, a Associação Nacional de Fabricantes de Veículos (Anfavea) já anunciou o risco de paralisar a produção de carros em função do coronavírus que afeta a China, seu principal fornecedor de autopeças.

O presidente vai testar seu talento para convencer empresários a investir num momento de incerteza na economia, estimulada por ele mesmo, como afirmou o presidente da Câmara do Brasil, Rodrigo Maia. “O governo gera uma insegurança grande para a sociedade e para os investidores. As pessoas estão deixando de investir pela questão do meio ambiente e pela questão democrática”, disse Maia em evento em São Paulo, nesta sexta.

No comunicado conjunto, Bolsonaro e Trump anunciaram discutir o projeto Um Trilhão de Árvores, de replantio até 2050, o que soa irônico para o Brasil diante do avanço do desmatamento e do avançø sobre reservas ambientais estimuladas por um discurso de desprezo do presidente brasileiro com o meio ambiente.

O encontro entre os dois presidentes ocorre um ano depois de Trump receber Bolsonaro na Casa Branca. Os dois políticos têm o mesmo estilo de conservadorismo populista, e Bolsonaro baseou sua bem-sucedida campanha de 2018 na que levou Trump à Casa Branca em 2016. Para o mandatário brasileiro, o encontro gerou imagens que fortalece o apoio da sua base num momento em que reforça o clima bélico com outros poderes e incentiva o ataque à imprensa. Em seu twitter, partilhou a notícia de que havia cortado a Folha de São Paulo da cobertura do jantar.