destaque

Jamil Chade: As veias abertas do mundo

Três décadas depois do ápice da crise da Aids, o planeta comete os mesmos erros e ameaça deixar bilhões de pessoas sem acesso a tratamentos e vacinas contra a covid-19

Em meados dos anos noventa, um tratamento contra o vírus HIV já existia, permitindo ampliar a sobrevivência daqueles que tinham sido infectados. Mas esse benefício da ciência praticamente só era uma realidade para aqueles que viviam em países ricos. O tratamento custava em média 10.000 dólares por ano e, assim, um paciente na África precisaria do equivalente a 20 anos de salários para pagar por apenas alguns meses do coquetel de remédios que deveria tomar para o resto de sua vida.

Na prática, o tratamento não existia para uma enorme porção da população mundial.

De acordo com a entidade Médicos Sem Fronteiras, até que os remédios fossem disponibilizados em sua versão genérica e sem patentes para essas populações mais pobres a um custo de 1 dólar por dia, 11 milhões de pessoas morreram apenas no continente africano.

Nem todos eles teriam sido salvos se os remédios chegassem antes. Mas certamente milhões de famílias poderiam ter evitado o pior e prolongado a vida —inclusive produtiva— de seus entes queridos.

Trinta anos depois, o mundo caminha para repetir uma história similar e revelar que a humanidade sofre de uma amnésia aguda quando o tema é salvar vidas.

Diante da pandemia da covid-19, vacinas começam a chegar ao mercado e a ciência revela todo seu esplendor em promover um resultado em tempo recorde. No Reino Unido, uma senhora de 90 anos, Margaret Keenan, entrará para a história como a primeira a receber a vacina num país ocidental, nesta terça. Para muitos, a esperança é de que aquela dose represente o começo do fim de um pesadelo.

Mas nem essa ciência é para todos nem esse recorde é universal. Como já foi dito antes, se na primeira vez a história ocorreu como uma tragédia, ela se repete como uma farsa.

Atualmente, mais de 50% da capacidade de produção de vacinas no mundo já está reservada ou compradapor um grupo pequeno de países que, juntos, representam apenas 13% da população mundial. Levantamentos da Universidade Duke, nos EUA, revelam que Canadá, EUA e UE já garantiram doses que seriam suficientes para vacinar várias vezes toda sua população. Já dezenas de Governos simplesmente não contam com nem sequer uma dose.

Na esperança de garantir maior acesso e um melhor equilíbrio na distribuição, cem países em desenvolvimento apresentaram um projeto ambicioso: suspender patentes de produtos relacionados com a covid-19 e, assim, garantir sua produção genérica para permitir uma queda acentuada de preços e uma maior fabricação pelo mundo. Mas nem todos estão de acordo.

Nesta quinta-feira, uma reunião na Organização Mundial do Comércio (OMC) pode começar a definir qual o caminho que será tomado. Fundamental para a inovação, as patentes também são monopólios estabelecidos para recompensar o inventor pelos riscos que assumiu. Mas a qual preço para a humanidade?

Em salas elegantes em Genebra, negociadores de países desenvolvidos e detentores dessas patentes circulam na OMC com argumentos eloquentes, aparentemente sofisticados e repletos de diplomacia para justificar uma recusa ao projeto.

Para esse grupo, basta seguir a lei internacional de propriedade intelectual para assegurar um abastecimento. Por essas normas, um país pode solicitar a importação de um produto genérico caso uma situação de emergência exija. Na teoria, isso pode fazer sentido. Mas a realidade é que, em alguns casos, tal autorização poderia levar até três anos para ser concedida. Quantos morrerão até lá?

Alguns desses negociadores usam ainda de argumentos reais: de que vale quebrar uma patente para um remédio, tratamento ou vacina se a estrada até chegar a um certo povoado não existe?

Ao mencionar fragilidades dos países pobres, eles parecem ignorar como, no caso da Aids, os remédios genéricos transformaram a realidade de dezenas de países.

Eles tampouco citam dados da ONU que revelam que, durante a atual pandemia, a importação per capita de produtos médicos destinados a mitigar o impacto da covid-19 foi 100 vezes maior nos países ricos, em comparação às economias mais pobres do mundo.

Tampouco é mencionado como, na Itália, dois engenheiros resolveram usar uma impressora 3D para fabricar válvulas para respiradores de um hospital foram processados por violar regras de patentes. Quantas vidas aquela impressora teria salvo?

Uma vez mais, a crise sanitária de 2020 escancara a falácia de que o avanço da ciência funciona para todos. Por décadas, empresas abandonaram pesquisas sobre doenças que afetavam os mais pobres e que, portanto, não renderiam dividendo aos investidores. Elas foram chamadas de “doenças negligenciadas”, um nome hipócrita para falar, no fundo, de povos negligenciados.

Outro argumento que se desfaz na atual pandemia é de que empresas privadas precisam ser devidamente recompensadas por suas apostas na pesquisa de uma nova vacina, que poderia não funcionar. Elas têm razão. Mas, antes, precisariam revelar como, apenas no caso da covid-19, receberam o equivalente a 12 bilhões de dólares em recursos públicos de Governos para garantir suas inovações.

A equação é clara: o risco é coletivo. Se uma aposta numa vacina não funcionar, a empresa tem a segurança de ser resgatada por dinheiro público. Mas, em caso de vitória, a patente é sua recompensa e o lucro, obviamente, é privado.

A longo da atual pandemia, empresas têm alegado que precisam de 1 bilhão de dólares para desenvolver uma vacina e, portanto, querem a proteção de suas invenções. Esse mesmo setor privado, porém, não revela quanto recebem em isenções fiscais, em apoio de instituições públicas de inovação e nem qual será a margem de lucro de seu novo produto.

Na atual crise, há ainda um casamento silencioso sendo estabelecido. Nas negociações internacionais, Governos de países ricos garantem a proteção a suas multinacionais e indicam que não vão aceitar a ideia da quebra de patentes de produtos relacionados com a covid-19 na OMC. Em troca, recebem garantias de que serão os primeiros a serem abastecidos pelas vacinas.

Para preencher o vácuo, a Organização Mundial da Saúde (OMS) se apressou para criar um sistema que permita que uma parcela dessa inovação chegue aos países mais pobres e que essas populações não sejam pisoteadas na corrida pela salvação. Assim, a aliança mundial de vacinas —a Covax— foi estabelecida.

Mas a iniciativa vive uma falta crônica de recursos e simplesmente, com o que tem em caixa, não conseguirá atingir seu objetivo de chegar a 1 bilhão de pessoas até o final de 2021 em mais de 90 países.

Em eventos na ONU, na OMS, no G20 ou em outros fóruns internacionais, não são poucos os líderes que fazem discursos garantindo que a vacina precisa ser um bem público internacional.

Mas não aceitam a quebra de patentes nem abrem seus bolsos para garantir que a inovação chegue aos países mais pobres. Promessas vazias e uma fraude à humanidade.

Uma vez mais, os ricos vão ser os primeiros a serem imunizados. Enquanto isso, o restante —frequentemente mais escuro, mais exausto, mais distante de seus sonhos e mais desprotegido— faz uma fila interminável de esperança na forma de uma dose da vacina.

Em 2020, existe a cura para muitas doenças que matam. Existem alimentos para abastecer três planetas. E existem pessoas dispostas a ir ao socorro dessas populações. O que nem sempre existe é o compromisso politico para que isso se transforme em realidade.

O que existe hoje no mundo é um sistema que serve para estancar o sangue de uma ferida mais profunda, sem que a estrutura de poder seja modificada e sem que o monopólio seja desfeito. Para as veias abertas do mundo, o que temos no momento são curativos improvisados e insuficientes, prestes a definhar.

Assim como nos anos noventa, fica mais uma vez claro em 2020 que a vida ou a morte não dependem apenas do avanço da ciência. Mas de quem você é e onde, por acidente, nasceu.


Ligia Bahia: A PPP pró-pobres e pretos

Instituições de saúde onde pobres e negros só entram como serviçais não devem ser financiadas com dinheiro público

Falso positivo é o registro de um fenômeno que parece ser, mas não é. Quando se trata de testes, refere-se a uma alteração ou doença que não existe. Na política, indica relações causais errôneas, das quais derivam ações supostamente favoráveis. Falsos positivos não são mentiras, expressam limites na coincidência entre essência e aparência. Resultado laboratorial positivo não é necessariamente diagnóstico, depende. Para que um teste seja bom, seu valor preditivo deve ser alto, não basta detectar os positivos; é necessário discernir os negativos.

Atos governamentais são falsos positivos quando proposições supostamente favoráveis à maioria iludem. Como convicções, interesses, crenças e vontades se misturam nas formulações de programas públicos, a identificação de políticas falsas nem sempre é imediata. Enquanto as descaradamente espúrias, como a ameaça de trocar ministro da Saúde quando o número de casos e óbitos aumenta, são perceptíveis, as retóricas do tipo “não tem outra saída” passam como verídicas.

Esse é o caso das Parcerias Público-Privadas (PPPs), anunciadas como solução para reorganizar o SUS. Seus defensores consideram que a substituição de instituições públicas — morosas e vazadas por más práticas — por organizações privadas produtivas e incorruptíveis pouparia os orçamentos governamentais e modernizaria o SUS. PPP é uma denominação propositalmente vaga. Ficam na terra, os contratos do público com o privado, o repasse regular de recursos financeiros do primeiro para o segundo. Vão para o ar, os nunca atingidos choque de gestão, eficiência e probidade.

Como se trata do que já é (nunca faltou no Brasil transferência do fundo público da saúde para o setor privado), a parceria refere-se a um plus, uma ajeitadinha para incluir novos itens nos acordos vigentes. A verificação da veracidade dos efeitos benéficos das PPPs comprovaria uma proporção elevada de falsos positivos. A transferência de verbas e atribuições públicas para o setor privado, sob premissas equivocadas sobre a origem dos problemas de saúde, não reduz desigualdades, embora pareça promissora à expansão do empresariamento.

A Covid-19 revelou com nitidez que a privação e o racismo abreviam a vida. Portanto, o país precisa de uma outra PPP, a Pró-Pobres e Pretos, que compreenda quais são os riscos à saúde e expresse objetivamente a destinação dos recursos públicos para poupar vidas e assegurar longevidade. Instituições de saúde em que pobres e negros mal põem os pés, só entram como serviçais, não devem ser financiadas com orçamentos públicos diretos ou indiretos.

Atender com dignidade, realizar diagnósticos precoces e tratamentos adequados para os segmentos populacionais que moram em favelas e periferias — sem a segregação do hospital para rico ou do SUS — é parâmetro obrigatório para qualquer PPP civilizada. Em 2019, a presença de estudantes de Medicina pretos e pardos ou de famílias de baixa renda era muito maior nas faculdades públicas (36%) do que nas privadas (23%). As cotas sociais e raciais no ensino superior público, isoladamente, são insuficientes para alterar o padrão desigual no acesso à formação médica.

Muitos prefeitos eleitos incluíram PPPs em suas plataformas. O recrudescimento do número de casos e mortes pelo novo coronavírus tem sido encarado como janela de oportunidades. Empresários passaram a falar em “digitalização do SUS” e telemedicina, misturando cartão, prontuário, pacote de informações eletrônicas e consultas remotas. O combo de produtos promete tirar o SUS da indigência analógica. Mas a PPP verdadeira, duradoura e sustentável seria a vinculação do SUS a centros computacionais universitários, financiados por entes públicos e empresas privadas inovadoras.

Sem abordar a redução das disparidades sociais estruturais, as PPPs não se coadunam com o SUS. Trabalhar junto, com a participação ativa dos segmentos populacionais vulneráveis, é desejável, desde que a meta seja a prevenção de sofrimentos evitáveis. Muito difícil dar certo, mas conta a favor ser uma política autêntica. Prioridades imediatas para a saúde são um Natal sem fome e sem mais perdas de familiares e amigos. Uma PPP verdadeiro positivo tem como tarefas a ampliação do auxílio de renda, o apoio, sem vacilação, ao controle da transmissão da pandemia e a reorganização de serviços de saúde para salvar os vivos.


Jamil Chade: Em 2021, crise humanitária no planeta será a maior desde a 2ª Guerra Mundial

ONU prevê que 235 milhões de pessoas no mundo serão afetadas por uma crise humanitária. Entidade vai precisar de pelo menos US$ 35 bi para sair ao socorro de milhões de pessoas diante da covid-19, conflitos e mudanças climáticas. Cenário na América do Sul é de tensão social, perda de renda e instabilidade política. Recuperação prevista para economia mundial não será suficiente para impedir que mundo tenha número inédito de pessoas em situação de vulnerabilidade

Se 2020 foi o ano da pandemia, 2021 será o momento de descobrir a dimensão de seu impacto social. De acordo com a ONU (Organização das Nações Unidas), há um risco real de que a vacina contra a covid-19 chegue apenas para uma parcela rica do planeta e que milhões de pessoas ainda tenham de esperar meses ou anos para serem imunizados. Enquanto isso, a crise humanitária deve se aprofundar e vai atingir um número recorde de 235 milhões de pessoas, exigindo um esforço inédito na história da organização.

A operação de resgate vai precisar de US$ 35 bilhões para sair ao socorro de um verdadeiro exército de famintos, destituídos e abandonados em locais como Síria, Venezuela, Paquistão, Haiti, Afeganistão, Iêmen, Colômbia, Ucrânia e outros países.

Se projeções do FMI, Banco Mundial e de outras instituições apontam para o início da recuperação da economia mundial em 2021, a ONU relembra que a crise de 2020 terá seu impacto prolongado entre os grupos mais vulneráveis e populações que já viviam em uma situação delicada.

"Conflitos, mudanças climáticas e a covid-19 geraram o maior desafio humanitário desde a Segunda Guerra Mundial", alertou o secretário-geral da ONU, Antônio Guterres.

Os dados apontam que o número de pessoas afetadas por crises humanitárias é 40% superior aos dados de 2020. O total é quase três vezes maior que em 2015. No total, 56 países precisarão de ajuda internacional, inclusive o Brasil, para lidar com os venezuelanos na região norte do país.

"Se todos aqueles que precisarem de ajuda humanitária no próximo ano vivessem num país, seria a quinta maior nação do mundo, com uma população de 235 milhões de habitantes", diz a ONU, que espera implementar uma operação para alimentar e dar abrigo para 160 milhões de pessoas em 2021.</p><p>

Num raio-X do planeta publicado nesta terça-feira, a entidade aponta que a vida das pessoas em todos os cantos do mundo foi abalada pelo impacto da pandemia. "Aqueles que já vivem no fio da navalha estão sendo atingidos de forma desproporcionalmente dura pelo aumento dos preços dos alimentos, queda dos rendimentos, programas de vacinação interrompidos e fechamento de escolas", diz.

América do Sul e maior tensão sociopolítica

Um dos focos da atenção internacional é a situação na América do Sul onde, segundo a ONU, "a pandemia secou as economias informais, diminuindo os meios de subsistência e o acesso aos alimentos e aumentando os riscos de proteção".

Para ONU, 2021 "irá sem dúvida exigir uma concentração ainda maior de esforços de resposta humanitária adaptáveis, dados os efeitos a longo prazo da pandemia sobre as várias crises na região".

Citando a Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e Caribe, o informe prevê que 231 milhões dos 656 milhões de habitantes da região estarão em situação de pobreza no início de 2021. Esse será o pior patamar desde 2005.

"O impacto generalizado das economias deprimidas conduzirá a mais migração, insegurança alimentar e preocupações de saúde e proteção no meio de elevadas vulnerabilidades a riscos naturais, redes de segurança governamentais em tesão e potenciais agravamentos de tensões sócio-políticas profundamente enraizadas", alertou.

Décadas de progressos sociais sob ameaça

"O mundo rico pode agora ver a luz ao fundo do túnel", disse o chefe humanitário da ONU, Mark Lowcock. "O mesmo não se passa nos países mais pobres. A crise da covid-19 mergulhou milhões de pessoas na pobreza e fez disparar as necessidades humanitárias", alertou. "No próximo ano precisaremos de US$ 35 bilhões de dólares para evitar a fome, combater a pobreza, e manter as crianças vacinadas e na escola", disse. "Temos uma escolha clara diante de nós. Podemos deixar que 2021 seja o ano em que 40 anos de progressos sociais serão desfeitos; ou podemos trabalhar em conjunto para garantir que todos encontraremos uma saída para esta pandemia", disse. Para ele, "seria cruel e insensato" da parte dos países ricos "desviar o olhar" diante dessa realidade. "Os problemas locais tornam-se problemas globais, se os deixarmos", disse.

Fome e pobreza em alta

Pelo mundo, um dos aspectos que mais preocupa é a volta do aumento dos índices de fome e de pobreza. "A covid-19 desencadeou a recessão global mais profunda desde a década de 1930", indicou o informe. "A pobreza extrema aumentou pela primeira vez em 22 anos, e o desemprego aumentou dramaticamente. As mulheres e os jovens entre os 15 e os 29 anos que trabalham no setor informal estão sendo os mais atingidos. O fechamento das escolas afetou 91 por cento dos estudantes em todo o mundo", apontou.

Outra constatação é que os conflitos políticos são mais intensos e estão causando um impacto pesado à população civil. "A última década assistiu ao maior número de pessoas deslocadas internamente pelo conflito e pela violência, com muitas presas nesta situação por um período prolongado", diz. "Estima-se que haja 51 milhões de deslocados internos novos e existentes, e o número de refugiados duplicou para 20 milhões", alerta.

Um dos pontos mais preocupantes se refere à fome aguda, que atinge 77 milhões de pessoas em 22 países. "Até ao final de 2020, o número de pessoas em situação de insegurança alimentar aguda poderá ser de 270 milhões", indica. "Os impactos da pandemia e das alterações climáticas estão afetando seriamente os sistemas alimentares em todo o mundo", diz a ONU. Apenas para lidar com essa realidade, a entidade faz um apelo por US$ 9 bilhões, quase o dobro do que era necessário em 2015.

Mudanças climáticas e pandemia

A avaliação da ONU é de que, uma vez mais, as mudanças climáticas terão um impacto real na vida de milhões de pessoas. Segundo a entidade, os últimos 10 anos foram os mais quentes desde que os registros começaram a ser feitos e, ao mesmo tempo, catástrofes naturais estão exacerbando as vulnerabilidades crônicas em diferentes partes do mundo. Para 2021, esperam-se alterações climáticas adicionais por conta do fenômeno La Niña. Se a situação internacional já não era das mais fáceis, a pandemia da covid-19 ampliou a crise de maneira inédita. "Os surtos de doenças estão aumentando e a pandemia tem dificultado os serviços de saúde essenciais em quase todos os países", diz o raio-x do planeta.

Para a entidade, a realidade é que os avanços sociais conquistados durante décadas estão ameaçados. "Mais de 5 milhões de crianças com menos de 5 anos de idade enfrentam as ameaças da cólera e da diarreia aguda", diz. "A pandemia pode acabar com 20 anos de progresso na luta contra o HIV, tuberculose e malária, duplicando potencialmente o número de mortes anuais", indica. Cerca de 24 milhões de crianças, adolescentes e jovens estão em risco de não regressar à escola em 2020, incluindo 11 milhões de meninas e mulheres jovens.

Falta de dinheiro

O dilema, segundo a ONU, é como lidar com a crise sanitária e seus desdobramentos diante da falta de recursos. "A crise está longe de ter terminado", diz o secretário-geral da ONU, Antônio Guterres. "Os orçamentos para a ajuda humanitária enfrentam déficits terríveis à medida que o impacto da pandemia global continua a agravar-se", reconhece. Ele pede, porém, que governos mobilizem recursos e e que sejam solidários com as pessoas "na sua hora mais negra de necessidade".

Em 2020, os doadores internacionais deram um montante recorde de US$ 17 bilhões. Mas, como as necessidades estão aumentando, o financiamento continua a ser menos de metade do que a ONU e organizações parceiras pediram.


George Gurgel: Friedrich Engels, o marxismo e a sociedade contemporânea

Estamos comemorando o bicentenário de nascimento de Friedrich Engels, um dos maiores pensadores do século XIX, junto com seu amigo e irmão siamês Karl Marx

Engels nasceu em Barmen, na Alemanha, em 28 de novembro de 1820. Teve uma formação cosmopolita. Fez o serviço militar em Berlim, em 1841, quando passou a conhecer as ideias de Hegel, e integrou-se ao grupo dos Jovens Hegelianos, sob a liderança de Bruno Bauer. Após o serviço militar, retornou a Barmen e, por imposição paterna, foi para a Inglaterra, em 1842, para a cidade de Manchester, berço da Revolução Industrial.

A paixão revolucionária tomou conta dele, desde jovem. Quando chegou à Inglaterra, sob a influência de Moses Hess, que conheceu em Berlin, suas ideias já eram socialistas. Em Manchester, foi trabalhar na indústria têxtil, em uma fábrica que o pai tinha em sociedade com ingleses. Sua permanência em território britânico, o contato permanente com trabalhadores industriais, com o próprio movimento Owenista e Cartista e os seus próprios estudos sobre a situação dos operários naquele país, levaram à análise e à publicação, em 1845, do seu primeiro livro: A Condição da Classe Trabalhadora na Inglaterra, quando tinha 24 anos incompletos. Trata-se de um clássico sobre a situação precária das atividades laborais nas fábricas inglesas, no século XIX, envolvendo também o trabalho infantil, da mulher e das desumanas jornadas laborais.

Foi quando conheceu a operária irlandesa Mary Burns, que se tornou sua companheira e muito lhe ajudou no conhecimento da realidade dos trabalhadores ingleses, irlandeses e do movimento operário na Inglaterra. Assim, além da atividade fabril, viveu plenamente o mundo dos trabalhadores, o que foi fundamental para seu trabalho intelectual e revolucionário.

Então, Engels chegou à conclusão que a classe operária, surgida com a Revolução Industrial, era o ator decisivo para a construção da Sociedade Futura, a Sociedade Comunista.

Depois de Manchester, viveu na Bélgica e na França, onde teve o primeiro efetivo encontro com Karl Marx, no outono de 1944, no Café La Regence, em Paris. Desde então, iniciou uma parceria intelectual e uma amizade que se estenderam por toda a vida, tendo participado ativamente do processo político-revolucionário de construção dos fundamentos, na maioria das vezes em parceria com o próprio Marx, do que, a partir da morte deste e dele próprio, passou a ser conhecido como Marxismo.

A Sagrada Família foi o primeiro livro escrito junto por eles e publicado ainda em 1845. Nesse período, afastaram-se do materialismo de Feuerbach e dos Jovens Hegelianos, construindo uma original concepção materialista, dialética, da história. Na Ideologia Alemã, trabalho realizado no período 1845-1847, eles fazem uma síntese desta concepção. Ainda desse período são os trabalhos de Engels sobre economia política e a relação entre a Revolução Industrial e o desenvolvimento de uma consciência dos trabalhadores como classe na Inglaterra, contribuição que foi muito valorizada por Marx.

Desafiados pela internacionalização do movimento dos trabalhadores, os dois começaram a participar da Liga dos Justos, na seção alemã posteriormente Liga dos Comunistas. No ano em que lançaram O Manifesto Comunista, ocorreu a Revolução de 1848, na França, que se estendeu por uma boa parte da Europa. Eles retornaram à Alemanha, onde participaram do movimento revolucionário até à vitória da contrarrevolução. Trabalharam no jornal Nova Gazeta Renana, período em que Engels começou a se interessar pela questão militar, objeto de pesquisa dele por toda a vida. Suas impressões sobre a revolução e a contra-revolução na Alemanha estão registradas em artigos para o New York Daily Tribune (1851-1852), assinados por Marx.

Depois da derrota da Revolução de 1848, sairam da Alemanha, viveram na Suíça e, posteriormente, foram para a Inglaterra. Engels, em 1850, voltou a viver em Manchester, retornando a trabalhar na fábrica de copropriedade da família, durante 20 anos. Alem do trabalho fabril, deu continuidade ao trabalho intelectual e político, na divulgação das suas ideias, sempre em parceria com Marx. Desta época, registre-se o interesse de Engels em relação às Ciências Naturais. Começou a fazer uma conexão entre a dialética e a concepção materialista da natureza, aprofundando seus estudos sobre as ciências naturais. Este trabalho inacabado, “A Dialética da Natureza”, foi publicado posteriormente em Moscou, em 1925.

Neste período, Marx e Engels já divulgavam seus trabalhos e suas ideias nas organizações e nos movimentos dos trabalhadores, nos jornais e periódicos revolucionários na Europa e nos Estados Unidos. A luta política se intensificava. O Fantasma do Comunismo rondava a Europa, materializado em Marx e Engels, cujas ideias já eram criticadas e proibidas de circular nos grandes jornais da época.

Após 20 anos de trabalho, em Manchester, e acumular um razoável patrimônio, Engels, em 1870, foi finalmente viver em Londres, muito próximo à casa de Marx. Desde então, com a saúde de Marx ficando cada vez mais debilitada, Engels foi assumindo a liderança do movimento revolucionário, passando a ser uma das principais lideranças da Internacional, influenciando o trabalho político e de organização dos trabalhadores na Europa e nos EUA.

Então, fez um enfrentamento político e ideológico contra as correntes positivistas do Partido Social-Democrata da Alemanha. São importantes contribuições desta época o Anti-Dühring, publicado em 1878, considerado a primeira tentativa de uma exposição geral das ideias de Marx, reafirmando os princípios do materialismo histórico dialético frente à luta interna travada contra o positivismo da socialdemocracia alemã, e Do Socialismo Utópico ao Socialismo Cientifico.

A esta altura, Engels foi se tornando a principal liderança da Internacional junto aos novos movimentos socialistas, surgidos a partir de 1880, inclusive já com a participação dos revolucionários russos exilados. Publicou, em 1884, A Origem da Família, da Propriedade e do Estado e Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, em 1886. Após a morte de Marx, em 1883, Engels dedicou-se à organização e à publicação do segundo e terceiro volumes de O Capital, ocorridos nos anos de 1885 e 1894. Foi um trabalho fundamental para o conhecimento e a publicação da obra seminal de Marx. Há um reconhecimento muito grande deste trabalho realizado por Engels, inclusive o volume 3, por muitos reconhecido como uma coautoria.

Participou também ativamente da formação da Segunda Internacional, considerando o melhor caminho dos trabalhadores, de forma a evitar uma guerra entre a Alemanha e a França. Vislumbrara a tragédia que aconteceria com a I Guerra Mundial!

Finalmente, nos últimos anos de sua vida, Engels identificou importantes mudanças no capitalismo do final do século XIX, inclusive o papel que o Parlamento já desempenhava na sociedade europeia. Na Introdução, feita para a publicação do livro de Marx, As Lutas de Classe na França, ele chama a atenção para a possibilidade de outras maneiras dos trabalhadores chegarem ao poder. Considerava que não deveriam mais pensar na vitória da Revolução como uma única batalha e sim, que deveriam progredir, de posição em posição, com uma luta dura e tenaz. Apontava, assim, outras alternativas de chegada dos trabalhadores ao poder, sinalizando novas possíveis formas de hegemonia a serem conquistadas pelo proletariado no caminho de superação da sociedade capitalista.

Trabalhava na edição do volume 4 de O Capital, quando morreu no ano de 1895.

Ideias excepcionais

Foi desta forma que Marx e Engels construíram um método de análise - o do materialismo histórico dialético -, para se compreender as relações políticas, econômicas e sociais da Sociedade, nas relações entre si e com a própria natureza, a segunda natureza, segundo Marx, transformada pela própria Humanidade.

A partir desta perspectiva, construíram uma interpretação materialista e dialética dos fenômenos políticos, econômicos e sociais, particularmente do capitalismo industrial e agrário do século XIX, fazendo uma crítica contundente ao funcionamento deste sistema na sua totalidade, dos seus meios de produção, do seu processo de acumulação, da natureza e da origem do trabalho, do capital e dos conflitos e contradições inerentes à sociedade capitalista.

Uma das características principais do pensamento, tanto de Engels, quanto de Marx, é a indissociabilidade entre a teoria e a prática. Precisavam da Filosofia e das Ciências em geral não apenas para conhecer melhor a realidade e, sim, principalmente, para transformá-la. Na sociedade capitalista, identificaram nos trabalhadores assalariados, particularmente no proletariado industrial e na sua organização, os agentes de realização da revolução mundial, que deveria começar nos países capitalistas da Europa Industrial, no caminho da construção de uma nova sociedade, a Sociedade Comunista.

A Sociedade Futura, a ser construída, teria a hegemonia e a valorização dos que trabalham, o trabalho liberto, em cooperação, sem exploradores e explorados. Desde então, as derivações e as tendências as mais diversas, originadas do pensamento e da atuação revolucionária de Marx e de Engels, construíram, ainda no século XIX, durante suas vidas, uma hegemonia no movimento político e de organização dos trabalhadores a nível mundial. Nos séculos XIX e XX, as ideias dos dois construíram, nas mentes e nos corações de trabalhadores do mundo inteiro, a possibilidade da Revolução Socialista.

A partir da vitória, em 1917, da Revolução de Outubro, liderada por Lênin, legatária das concepções de Marx e de Engels, as ideias e as obras destes dois excepcionais pensadores e ativistas alemães passaram a ter uma ampla divulgação, em todo o planeta. Após a morte de Lênin, como “marxismo-leninismo”, eram ideias e obras apropriadas de acordo com a conveniência oficial, inclusive no próprio movimento comunista internacional, que tinha uma forte subordinação à União Soviética.

A revolução russa abriu o caminho das Revoluções Socialistas vitoriosas. Posteriormente, a China, os países do Leste europeu e Cuba herdaram este mesmo modelo soviético que se esgotou como referência, com a queda do Muro de Berlim, em 1989, e o término da URSS, em 1991.

Ainda no século XX, tais ideias foram apropriadas por muitos movimentos de luta contra o colonialismo e de independência dos povos da África, da Ásia e da América Latina. Fora do “marxismo-leninismo”, nos países da Europa Ocidental e, particularmente na Itália, com a contribuição original de Gramsci, buscou-se um caminho original para a revolução no Ocidente, diferente do modelo soviético.

Assim, as ideias de Marx e Engels foram e continuam sendo discutidas na atualidade, principalmente nos períodos das crises recorrentes do capitalismo. Os mundos da Cultura e do Trabalho continuam desafiados à construção de um humanismo que incorpore os novos desafios e a complexidade da Sociedade atual, funcionando em rede e, sob a pressão permanente das ruas, dos movimentos políticos, econômicos, sociais, ambientais, religiosos, feminista e LGBT+, respeitando a diversidade humana e a natureza, na perspectiva de construção de uma outra formação histórica com a hegemonia dos que trabalham e produzem a riqueza material e cultural da Humanidade.

Por fim, queremos falar do ser humano Engels. Ele tinha, na sua vida cotidiana, a generosidade da proposta revolucionária que vislumbrava para a Humanidade. O humanismo de Engels era categórico. Além da ajuda muito conhecida de apoiar financeiramente a família de Marx, por muitos anos, até e depois da morte do amigo, fez muito mais: deixou no seu testamento a determinação de que os seus bens materiais e financeiros deveriam ser divididos em três partes: a primeira, para as filhas de Marx; a segunda, para os velhos companheiros de luta; e a terceira e última, para o Partido Social-Democrata da Alemanha, do qual foi fundador, junto com Marx. Ainda, com destaque, observava: quando todos recebessem os recursos do testamento tomassem um bom vinho branco, que gostava muito, de preferência um Chateau Margot, safra de 1848.

Assim, Engels viveu plenamente a vida: revolucionário nas mudanças que queria para a construção de um mundo melhor; revolucionário na vida cotidiana, nas relações políticas, econômicas, sociais e afetivas, com um senso refinado de bom humor que tinha e bons vinhos!

Por tudo isso, precisamos lembrar e comemorar os 200 anos de nascimento de Friedrich Engels.

Salve Engels!

Humanista do século XIX, da Sociedade presente e futura.

*George Gurgel de Oliveira, professor da UFBA e da Oficina da Cátedra da UNESCO-Sustentabilidade


William Waack: A onda acabou

Jair Bolsonaro é, agora, a perfeita expressão do ‘sistema’

A causa do fracasso eleitoral de Jair Bolsonaro nas eleições municipais é simples de ser resumida. Ele interpretou de maneira equivocada a onda disruptiva que o levou ao Palácio do Planalto em 2018. Achou que tinha sido o criador desse fenômeno político quando, na verdade, apenas surfava a onda.

O fato é que essa onda, depois de arrebentar o alvo primordial (as forças políticas ao redor do PT), se espraiou, perdeu sentido e direção, dividiu-se entre seus vários componentes antagônicos. Esvaziou-se, com Bolsonaro achando que apenas falando, apenas no gogó, manteria o ímpeto de uma onda dessas – um fenômeno político raro.

Na verdade, a principal lição oferecida a Bolsonaro pelas eleições do último domingo é a do primado da organização, capilaridade e peso das agremiações partidárias no horizonte político mais extenso. Pode-se adjetivar como se quiser o conjunto de partidos que elegeu o maior número de prefeitos e vereadores ou colocá-los onde se preferir no espectro político. O denominador comum entre eles é a existência de estruturas profissionais voltadas para a política.

É exatamente o que Bolsonaro desprezou logo que assumiu. Trata-se de um dos aspectos mais relevantes para ilustrar o fato de o presidente eleito com 57 milhões de votos há apenas dois anos ter um desempenho tão pífio como cabo eleitoral. Todo dirigente populista, não importa a coloração política, cuida de criar um movimento para chamar de seu – com seus emblemas, palavras de ordem (ou “narrativa”), mitos e, sobretudo, uma estrutura razoavelmente hierárquica e definida, com sede e endereço.

Embora tivesse à disposição da noite para o dia um grande número de deputados federais e seus correspondentes recursos públicos, o surfista da onda política atuou para implodir o partido pelo qual se elegeu e não conseguiu colocar de pé nada parecido a uma agremiação consolidada com um mínimo de coesão. É bem provável que Bolsonaro tenha sido vítima do mito que criou para si mesmo (e dá provas quase diárias de acreditar nisso piamente): a de ter sido escolhido por Deus e beneficiado por um milagre (sobreviver à facada) para conduzir o povo do Brasil.

Com tal ajuda “de cima”, é só esperar as coisas acontecerem. Ocorre que mesmo os homens tornados mitos por desígnio divino precisam, como dizem os alemães, do “Wasserträger”, aquele que vai trazer a água. E isto não se consegue apenas com redes sociais. Foi outro aspecto interessante das eleições de domingo: a demonstração dos limites de atuação das ferramentas digitais, que adquiriram relevância permanente como instrumentos de mobilização, sem serem capazes por si só de garantir predominância na luta política.

Passada a onda disruptiva (alívio para alguns, desperdício de oportunidade histórica para outros), o que se pode prever para as próximas eleições, em relação às quais Bolsonaro sacrificou qualquer outro plano? Se ele foi capaz, em 2018, de vencer o “establishment” e o jeito convencional de fazer política, ainda por cima dispondo de menos recursos que seus adversários “tradicionais”, em 2022 Bolsonaro só tem chances dentro do que ele mesmo chamou de “sistema”.

Do qual, ironicamente, o “outsider” acabou se tornando uma perfeita expressão: vivendo para o próximo ciclo frenético de manchetes, sem um plano ou estratégia de longo prazo, cuidando em primeiro lugar de seus interesses familiares e paroquiais, cultivando popularidade com programas assistenciais e preocupado acima de tudo em ficar onde está. É onde a onda nos deixou.


Cristovam Buarque: Apagão invisível

Certos apagões são mais visíveis que outros. Quem sobrevoa, à noite, ou caminha, de dia, pelas cidades do Amapá, percebe o apagão de energia elétrica, mas quem anda pelas ruas brasileiras não enxerga o apagão educacional que amarra o progresso econômico e a justiça social no Brasil inteiro ao impedir o desenvolvimento e o uso da energia potencial que há em cada cérebro. O apagão educacional é invisível, porque ele impede tanto sua percepção, quanto a identificação de suas causas. No Amapá, foi um raio, no resto do Brasil foi desprezo histórico à educação.

Recentemente, um trabalho acadêmico mostrou como a cor da pele vai escurecendo na medida em que se segue da Zona Sul para a periferia no Rio de Janeiro. Mas o estudo não diz que o número de anos de escolaridade vai diminuindo quando se caminha dos bairros nobres para os bairros pobres. Não é apenas a cor que escurece, é também o apagão educacional que vai se intensificando. Não deve haver analfabeto entre jovens de Ipanema e a maior parte deles estuda ou já concluiu algum curso superior. Na periferia, ainda é grande o número de analfabetos plenos ou funcionais, e são raros os que fazem cursos universitários, especialmente os mais demandados. A perversa geografia do racismo se sobrepõe e decorre da geografia e do apagão educacional. As pessoas veem a geografia do racismo sem perceberem que ela deriva do nível educacional a que as populações pobres foram condenadas. Além dos resquícios da escravidão, a geografia das raças é consequência da geografia da educação.

O apagão educacional é a causa do atraso econômico e da desigualdade social. Isso não é percebido porque o apagão educacional provoca o analfabetismo político, que esconde a causa de nossos problemas nacionais. Por não perceberem isso, alguns bem intencionados propõem superar a desigualdade educacional apenas com incentivos para ingresso no ensino superior, sem cuidar da educação de base para todos. Não percebem, ou não dizem, que isso beneficiará raríssimos e mesmo estes não entrarão nos cursos mais procurados e de maior prestígio. E mesmo estes raríssimos não conseguem acompanhar as exigências de seus cursos, se não tiveram boa educação de base.

Em reportagem para o programa Fantástico, da TV Globo, a jornalista Sônia Bridi apresentou, de forma enfática, a discriminação educacional no Brasil, mostrando que cada brasileiro, desde cedo, tem acesso a uma das três escadas sociais: uma tradicional de cimento, que permite a poucos gênios ascenderem com muito esforço; outra moderna rolante, que leva para cima com pouco esforço; e uma terceira, moderna rolante, mas que roda no sentido contrário ao propósito da subida.

A primeira é a escola sem qualidade em uma cidade tranquila para filhos de pais com alguma motivação para o estudo dos filhos; a segunda é a escola de qualidade em bairros protegidos e casas com pais educados; a terceira é aquela que atende aos meninos e meninas em quase-escolas com pais sem educação, em bairros sem serviços públicos e com violência.

Estas três escadas, em funcionamento há décadas, não vão eliminar o apagão. Nem mesmo um Ministério temos ao qual recorrer, porque nosso Ministério da Educação cuida do Ensino Superior e do Ensino Profissionalizante, deixando as 200 mil escolas por conta e responsabilidade dos municípios pobres e desiguais.

Diante do apagão visível no Amapá, o Brasil inteiro se mobilizou, mas não se mobiliza para superar o apagão invisível da educação.

A solução conhecida é deixar uma só escada moderna para todos os brasileiros, independentemente da renda, do endereço, da cor: um só sistema educacional ao qual tenham acesso ricos ou pobres, brancos ou negros, habitantes de bairros nobres ou da periferia, com todas suas escolas com a máxima qualidade, todos seus professores muito bem remunerados, bem formados e com dedicação exclusiva ao magistério, contando com edificações completas e equipamentos modernos, em horário integral.

A perversa geografia da desigualdade só será vencida quando acabar a mais brutal das geografias, da desigualdade educacional, a mãe de todas as desigualdades. Mas isso não ocorrerá enquanto nossos dirigentes, eleitos e eleitores, não perceberem o apagão educacional que faz do Brasil um buraco negro, que não mostra sua falta de luz, mantendo o apagão invisível e escondendo as causas que o apaga.

*Cristovam Buarque, professor Emérito da Universidade de Brasília (UnB)


Cristovam Buarque: Olhando para o umbigo do passado

Os erros dos progressistas

Os conservadores olham para trás, por isto é importante conhecer os erros dos progressistas que devem acenar para a construção do futuro.

O primeiro erro é não perceberem que nos, tempos atuais, Confiança é um fator determinante para o avanço de qualquer economia. Ela não funciona satisfatoriamente sem estabilidade monetária, ética na política, instituições sólidas com regras permanentes, participação no mundo global, capacidade de poupança, distribuição de renda, paz nas ruas, todos os ingredientes para dar confiança ao mercado, consumidores e investidores.

O segundo erro foi não perceberem que no longo prazo o vetor do progresso está na educação de base com qualidade para todos, tanto para aumentar a produtividade, criar tecnologia e inovação, além de ser o caminho para distribuir renda.

Os progressistas, especialmente aqueles mais à esquerda, não perceberam que “estatal” não é sinônimo de “público”. Este foi o terceiro erro. Uma empresa pode ser do governo, seus trabalhadores empregados públicos, mas seu serviço não servir à população, pela má qualidade, pela ineficiência e custo elevado. Este erro levou-os a preferir apoiar as reivindicações dos sindicatos de servidores do Estado, do que atender às necessidades da população. No lugar de sociais, os progressistas ficaram corporativos.

A base destes erros é que os progressistas não perceberam que os esquemas do passado para explicar e orientar o processo político-social não se aplicam aos novos tempos da globalização, da inteligência artificial, da robotização, das comunicações de massa personalizadas e instantâneas. Por isto, os esquemas de organização partidária baseada na divisão binária, “a favor” ou “contra”, capital versus trabalho, estatal contra privado já não servem para orientar o progresso do país em busca de coesão social e rumo histórico. Isto já aconteceu no passado, quando muitos progressistas republicanos se opuseram à Abolição da Escravidão, porque ela chegava pelas mãos de governo conservador e pelas mãos do Imperador. Eles ficaram prisioneiros dos esquemas políticos tradicionais, monarquia versus república, sem entender que o progresso não estava no regime político, mas no trabalho livre e na abertura do país ao comércio internacional.

Os progressistas de hoje não respondem ao povo e para o futuro, mas aos eleitores do momento emperrando a marcha ao futuro. Não é por acaso que depois de 26 anos no poder, nós progressistas deixamos o quadro social trágico que as estastíscas divulgadas ontem mostram. Os progressistas também não se livraram da tradição sociológica de explicar pobreza como falta de renda e não como falta de acesso aos bens e serviços essenciais, nem todos comprados no mercado.

O maior erro é ficar preso às ideias do passado e ficarem tão reacionários quanto os conservadores. Estes olhando para o passado e nós, progressistas, presos ao presente, olhando para o umbigo.

*Cristovam Buarque foi senador e governador


Eliane Brum: Vote em Marielle

Mais viva do que nunca, a vereadora executada há quase mil dias é a principal antagonista de Bolsonaro e de seu projeto de poder

As eleições municipais de 15 de novembro são, para o Brasil, o que a eleição presidencial dos Estados Unidos foi para o mundo. Vão mostrar para onde está indo o país, desde que o governo foi ocupado e pervertido por um mentiroso com intenções genocidas. É claro que 2022 será o momento decisivo, pela possibilidade de tirar não apenas Jair Bolsonaro do centro do poder, mas também tudo o que ele representa. A resistência, porém, se expressa no miúdo dos dias e é exercida no chão das cidades ―em cada comunidade, em cada favela, em cada rio. A política, para muito além dos partidos, é tecida no cotidiano. As eleições do próximo domingo vão mostrar qual é a temperatura do movimento de brasileiros anônimos na soma destas pequenas ações e reações. Vão expor o quanto uma parcela da população é capaz de enfrentar o autoritarismo de Bolsonaro também no campo da política institucional e manter a luta mesmo no luto. Vão apontar, principalmente, o quanto o legado de Marielle Franco vive e resiste e avança.

Bolsonaro e o bolsonarismo, a criatura mais importante e possivelmente mais longeva do que o criador que lhe empresta o nome, são fenômenos complexos. Além de tudo o que representam e revelam do Brasil, são também a resposta violenta de uma parcela assustada da população por um lado, de uma elite com medo de perder seus privilégios de classe e de raça, por outro. Em comum, os eleitores de Bolsonaro parecem temer tudo o que a figura de Marielle Franco representa em seu gesto de ocupar o centro político: a pressão de mulheres, negros e pessoas LGBTQIA+ por participação no poder e pelo reconhecimento de sua centralidade. É também esse embate que se fará presente nas eleições em que a participação de candidatos negros é a maior já registrada: 49,9% negros, superando os 48,1% que se autodeclaram brancos.

A eleição acontecerá num momento de forte simbolismo: a proximidade dos mil dias da execução da vereadora do PSol no Rio de Janeiro sem que o Brasil conheça o mandante ―ou os mandantes― e sua motivação. Enquanto quem ordenou a morte, seus motivos e suas conexões não forem apontados, cada dia a mais sem solução é uma denúncia do momento limite vivido pelo Brasil. E uma acusação do enorme déficit de justiça do país. A cada dia a mais sem solução faz também aumentar a densidade das sombras sobre Bolsonaro e sua família, às voltas com indícios de sua ligação com as milícias acusadas de envolvimento com a morte de Marielle.

O assassinato de Marielle Franco e de Anderson Gomes, o motorista que morreu mas não era alvo, não é mais um crime em um país atravessado pela violência. A investigação que se estende além do mais flexível conceito de razoável já expõe a crescente infiltração das milícias no Estado brasileiro. Expõe também o cotidiano de um país em que tanto a democracia quanto o ordenamento jurídico são uma pele cada vez mais fina envolvendo estranhas cada vez mais podres, cujos vermes já não se contentam em se manter no lado de dentro. Quando os criminosos começam a gostar dos holofotes é porque acreditam não mais precisar se esconder. O que aqueles que vivem na Amazônia de grileiros e pistoleiros testemunham há muito tempo, e que também na região da floresta se torna cada vez mais explícito, se alastra por todo o Brasil desde que Bolsonaro assumiu e perverteu o poder.

A execução da vereadora do PSol precisa ser solucionada por todas as razões e também para que a população brasileira possa saber se Bolsonaro e seus filhos têm apenas amigos chefiando as milícias que aterrorizam o Rio de Janeiro, alguns deles matadores profissionais, ou se também têm envolvimento com a morte de Marielle. Até este momento, as provas de intimidade e de relações suspeitas do clã Bolsonaro com milicianos matadores são vastas, mas não apareceu nenhuma prova de envolvimento concreto da família presidencial com o crime. Pelo menos, nenhuma foi divulgada até hoje.

Ao denunciar o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos), filho mais velho do presidente, pelo esquema criminoso das “rachadinhas” na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, o Ministério Público mostrou que o filho zeroum teria recebido pelo menos 400.000 reais do ex-PM Adriano da Nóbrega. Acusado de chefiar um grupo de extermínio, Adriano foi morto em fevereiro em controversa operação policial na Bahia. A mãe e a mulher de Adriano eram funcionárias do gabinete de Flávio Bolsonaro quando deputado e só foram desligadas pouco antes de estourarem as primeiras denúncias. Segundo a investigação do MP do Rio, Adriano repassava o dinheiro a Fabrício Queiroz, então braço direito de Flávio e operador do esquema criminoso.

Bolsonaro e sua família deveriam ser os brasileiros mais interessados em solucionar a execução de Marielle Franco. Não são. Até este momento, estão presos apenas os acusados de executar o crime, o policial militar reformado Ronnie Lessa, vizinho de Bolsonaro no condomínio Vivendas da Barra, no Rio de Janeiro, e o ex-PM Élcio Queiroz. Ainda não há notícias dos mandantes.

A necessidade de fazer perguntas difíceis envolvendo aquele que ocupa o cargo máximo do país é uma evidência do momento perigosíssimo que vive o Brasil. O “novo normal” de que tanto falam ―e que está muito mais para novo anormal― é assimilar como uma possibilidade de normalidade as relações íntimas do presidente com milicianos e matadores. Também neste sentido o dia da eleição provoca expectativa.

A corrosão da democracia brasileira é cada vez mais trágica, mas ainda há um pequeno espaço para a retomada do que foi velozmente destruído. A escolha dos vereadores e prefeitos que vão tocar a política dos municípios, em geral a que mais interessa aos cidadãos no seu cotidiano, vai mostrar se cresce a parcela da população brasileira que tem consciência do abismo que, como cantava Cartola, escava com seus pés. As eleições de 15 de novembro não contêm a possibilidade de redenção, mas podem sinalizar se o avanço das periferias que reivindicam seu legítimo lugar de centro persiste mesmo com todos os ataques e, principalmente, se têm conseguido aumentar sua ressonância junto ao conjunto da população nestes anos de autoritarismo de ódio produzido pelo bolsonarismo.

O primeiro ministério de Michel Temer (MDB) ―inteiramente branco e masculino, patriarcal e heterossexual em todos os seus signos― depois de quatro anos ainda é o melhor retrato de como a manobra das forças de direita refletia um profundo incômodo com o avanço daqueles tratados como subalternos, manobra que em 2018 resultou na eleição de um homem como Jair Bolsonaro. O fato de que Temer foi o vice que traiu Dilma Rousseff (PT), a primeira mulher a se tornar presidente na história do Brasil, ao minar seu poder desde dentro e apoiar seu impeachment, não é um detalhe. Tampouco é um detalhe o fato de que, das duas únicas ministras mulheres de Bolsonaro, uma é declaradamente antifeminista, Damares Alves, e a outra, Tereza Cristina, se dedica a liberar agrotóxicos e “destravar” a agenda do agronegócio que destrói a Amazônia, o Cerrado e outros biomas, envenenando a comida e a terra e condenando as novas gerações.

A execução de Marielle Franco, em 14 de março de 2018 ―negra, bissexual, publicamente casada com outra mulher, nascida e criada nas favelas da Maré, que ocupa o centro ao se tornar vereadora no legislativo do Rio de Janeiro e levar para dentro da política institucional a luta contra a violência policial na favelas, contra a grilagem de terras nas periferias, parte delas controlada pelas milícias, e pelos direitos das pessoas LGBTQIA+― simboliza a radicalidade do gesto de barrar esse movimento à bala porque ele começa a ameaçar interesses e hegemonias. Para além da solução concreta do crime, seu simbolismo é assim e acertadamente interpretado pela parcela progressista da sociedade, que mantém presente e persistente tanto a memória de Marielle quanto a pressão pela solução de seu assassinato.

Marielle Franco é, iconicamente, mais viva do que nunca e a maior antagonista do atual presidente. E por essa razão, a memória de Marielle resiste e produz Marielles. Nesta eleição, em número inédito: em São Paulo, as candidatas negras são quase o dobro da disputa anterior. Segundo levantamento da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), há pelo menos 300 quilombolas disputando uma vaga no legislativo em todo o país. Entre eles, a ativista Socorro de Burajuba, líder da luta contra a destruição socioambiental produzida pela mineradora norueguesa Hydro Alunorte, poluidora dos rios da região de Barcarena, na Amazônia paraense. Nunca se discutiu tanto a participação política de negros como hoje, mas mais do que negros, o que se fortalece em 2020 é a potência crescente das mulheres pretas.

Historicamente mais subjugadas entre os subjugados, elas foram mantidas por décadas periféricas também no feminismo dominado por mulheres brancas e nos partidos de esquerda, majoritariamente liderados por homens e por brancos que sempre deram ênfase à luta de classes em seu diagnóstico e em suas propostas, em detrimento do racismo estrutural como recorte central de análise. Como afirma a socióloga negra Vilma Reis, “são as mulheres negras que empurram a esquerda para a esquerda”.

Mesmo dentro do PSol ―o partido com mais ressonância na esquerda, pelo menos para quem, como eu, considera o PT um partido de centro― Marielle também enfrentava a hegemonia da branquitude e um ranço machista cuidadosamente disfarçado. Depois que Marielle se tornou o maior ícone das mulheres negras (e também de uma parcela das brancas), alguns tentam reduzi-la a uma “cria” do deputado federal Marcelo Freixo (PSol). É justo reconhecer a influência do principal nome do PSol do Rio de Janeiro na trajetória política de Marielle Franco, mas Marielle é muito maior do que isso e foi fortemente marcada pelas mulheres negras que também encontrou no seu caminho.

A força crescente representada por ela, esta que o bolsonarismo não conseguiu parar apesar de toda a violência contra os corpos das mulheres, dos negros e dos LGBTQIA+, pode ser decisiva em 2022. É evidente que o Brasil tem enormes diferenças com relação aos Estados Unidos, assim como também é evidente que Jair Bolsonaro é ainda pior do que Donald Trump. Mas as afinidades também existem e são grandes ―e ambos fazem parte do mesmo fenômeno global. Tanto Trump quanto Bolsonaro souberam encarnar o medo de uma parcela significativa de brancos assustados, perdendo poder aquisitivo pelos efeitos da crise global do capitalismo de 2008 e sentindo-se perdidos pela ameaça ao lugar identitário em que ainda se sentiam superiores: o de raça, o de gênero e o de orientação sexual.

Talvez a melhor forma de explicar esse mecanismo, no caso dos brancos pobres e dos brancos de classe média que perderam renda nos últimos anos, seja com a formulação do intelectual afroamericano W.E.B. Du Bois (1868-1963), cujo pensamento só fui conhecer ao assistir a uma entrevista do intelectual afrobrasileiro Silvio Almeida. Du Bois criou o conceito que apresenta a branquitude como um “salário público e psicológico”. Sugiro ler diretamente na fonte, para alcançar a profundidade da proposição, mas, resumindo em uma linha, seria mais ou menos isso: o branco ferrado se consola com o salário psicológico de saber que há um outro, o negro ferrado, que é mais ferrado do que ele. Para manter esse privilégio psicológico, de um ferrado mais ferrado do que ele, o que o faz superior pelo menos a alguém, ele vota até em perversos como Bolsonaro que o ferram muito mais todo dia. No meu ponto de vista, esse salário psicológico ajuda a explicar também a resistência feroz ao protagonismo das mulheres, o único ponto de privilégio de uma parcela dos homens, sejam eles brancos ou pretos.

Como se sabe, Bolsonaro “liberou” esses machos brancos assustados ao expressar publicamente todo o seu racismo, homofobia e misoginia (ódio às mulheres), sem ser responsabilizado pelo sistema judiciário, e enalteceu em seu discurso de posse a “libertação” do politicamente correto. Representou também a angústia de uma classe média que se via perdendo privilégios que considerava direitos ao mesmo tempo em que, pela primeira vez na história, era obrigada a lidar com empregadas domésticas, majoritariamente pretas, que haviam conquistado a (quase) equiparação aos direitos dos demais trabalhadores.

A escandalosamente atrasada conquista de direitos trabalhistas básicos pelas empregadas domésticas, como já escrevi várias vezes, é essencial na análise da última década. No Brasil, a emancipação feminina se deu não por políticas públicas como ensino integral e creche para as crianças, nem tampouco pela divisão real de trabalho dentro de casa. Ao contrário. As mulheres brancas só conquistaram sua emancipação e conseguiram construir carreiras profissionais ao seguirem subjugando mulheres negras, em sua maioria, e também brancas pobres. Essas mulheres deixavam suas próprias casas e filhos para realizar o trabalho doméstico e o cuidado dos filhos das brancas por salários irrisórios, jornadas extenuantes, condições de trabalho precárias e direitos escassos. A chamada “PEC das Domésticas” (quase) equiparou os direitos das domésticas aos demais trabalhadores, numa conquista histórica, balançando a herança mais persistente da escravidão e ampliando o medo de uma classe média perdendo renda e privilégios.

As mulheres pretas que hoje avançam sobre os espaços formais da política institucional são, muitas delas, filhas dessas mulheres que chefiam suas famílias e seguram o tranco dos dias há décadas. Muitas delas puderam chegar à universidade graças às medidas de ampliação do acesso ao ensino superior para os mais pobres e graças às cotas raciais, política de inclusão atrasada em mais de um século que provocou violenta reação dos brancos durante os governos petistas. Ainda que as candidatas pretas não se elejam, só o fato de disputarem a eleição aponta que, apesar de toda a violência, o bolsonarismo não conseguiu parar essa força. As quatro balas que arrebentaram a cabeça de Marielle Franco arrancaram-na da sua vida, de suas lutas, de seus afetos e de seus amores, mas tornaram-na imortal no cotidiano de milhões de mulheres pretas que encontram nela a inspiração para seguir adiante sem recuar.

Formalmente, o Instituto Marielle Franco criou nesta eleição a Agenda Marielle Franco, uma iniciativa suprapartidária que reuniu 745 candidatos, espalhados por 270 cidades brasileiras, comprometidos a levar adiante o legado da vereadora executada: justiça racial e defesa da vida; gênero e sexualidade; direito à favela; justiça econômica; saúde pública, gratuita e de qualidade; educação pública gratuita e transformadora; cultura, lazer e esporte. O esforço busca garantir significado a essas candidaturas, na medida em que a ampliação da presença negra no poder legislativo é um grande passo, mas só pode assegurar avanço na luta por igualdade racial se os eleitos defenderem projetos comprometidos com essa pauta e forem representativos de suas comunidades e não apenas de si mesmos.

O acordo é também o de honrar as práticas de Marielle: diversificar, não uniformizar; ampliar, não limitar; honrar, não apagar; coletivizar, não individualizar; puxar, não soltar; escancarar, não se encastelar; cuidar, não abandonar. Guilherme Boulos (PSol), candidato a prefeito de São Paulo com chances de alcançar o segundo turno, é um dos candidatos na lista dos comprometidos em honrar e multiplicar o legado de Marielle Franco.

Em 2005, ao executarem com seis tiros a missionária Dorothy Stang, os grileiros da região de Anapu aprenderam uma lição: algumas pessoas vivem mais intensamente depois de mortas. Nos dez anos seguintes, a atenção internacional provocada pelo crime e a presença de instituições que antes não davam as caras por ali atrapalharam muito os negócios dos destruidores da Amazônia. Dorothy Stang também se tornou uma mártir que tem inspirado movimentos de camponeses, em especial os ligados à Pastoral da Terra, da Igreja Católica. O assassinato de Marielle Franco, independentemente da intenção explícita do mandante ou mandantes do crime, produziu uma força de resistência infinitamente maior e mais significativa para o Brasil. Que os avanços se deem pela destruição dos corpos dos mais pobres e daqueles que resistem à opressão é resultado da democracia seletiva e deformada, jamais completada, do Brasil pós-ditadura civil-militar.

Tanto Trump quanto Bolsonaro se elegeram vendendo passados que nunca existiram, passados tão falsos quanto tudo o que sai de suas bocas. Pregam a volta a uma época em que aqueles historicamente tratados como subalternos ―mulheres, negros, indígenas― aceitavam passiva e pacificamente o seu lugar. Como se sabe, esse passado nunca existiu. O que existiu e persiste é o silenciamento dos que se rebelam, seguidamente calados pelo extermínio. Como Trump e Bolsonaro não têm futuro a oferecer, disseminam mentiras e tentam reescrever a história com elas. Não são apenas negacionistas, mas sim mentirosos com método e intenção.

Apoie nosso jornalismo. Assine o EL PAÍS clicando aqui

Inspiradas pelo exemplo da eleição estadunidense, a centro-direita e a direita brasileiras que já não querem mais dividir o palanque com Bolsonaro ―o homem que, como seu próprio chanceler definiu, transformou o Brasil num “pária” internacional― já começaram a fazer suas articulações para 2022. A questão é que, mais importante do que a vitória de Joe Biden, um homem branco do sistema, é como e por que Biden venceu Trump. As mulheres e os negros foram determinantes para tirar o déspota de topete laranja do poder. Como símbolo deste movimento desponta uma ativista negra chamada Stacey Abrams, cuja atuação está diretamente ligada aos 800.000 novos votantes da Geórgia, metade deles afroamericanos entre 30 e 45 anos. Estado sulista de raízes escravocratas, um democrata não vencia na Geórgia desde Bill Clinton. É fundamental não esquecer: Biden venceu também porque tinha ao seu lado Kamala Harris. Primeira mulher a assumir a vice-presidência dos Estados Unidos, ela é negra de ascendência indiana. Biden é mainstream, mas quem venceu Trump não foi o mainstream.

O que é chamado de periferia, tanto em países como Estados Unidos quanto no Brasil, têm sido os centros de criação de pensamento, de cultura e de inovação. Diante de fenômenos de ultradireita como Trump e Bolsonaro, são também produtores de resistência que avançam para o centro da política institucional. No Brasil, movimentos majoritariamente brancos e de classe média publicaram em 2020 manifestos em defesa da democracia nos principais jornais do país. Não citavam o racismo estrutural em seus textos. De imediato, a Coalizão Negra por Direitos, que reúne mais de cem organizações e coletivos, publicou nos mesmos espaços o manifesto Enquanto houver racismo, não haverá democracia. Sinalizava ali que, desta vez, nenhum rearranjo das forças políticas, da direita à esquerda, teria legitimidade se não enfrentasse o racismo estrutural do país. O manifesto antirracista pode ter sido o ato político mais importante dos últimos anos.

O necessário deslocamento do que é centro e do que é periferia é fundamental para determinar o destino do Brasil. Aqueles que são tratados como periféricos, como a floresta e a favela, têm no horizonte uma aliança a tecer, fundamental para a criação de futuros capazes de dar respostas de possibilidade ao momento limite da emergência climática. Neste sentido, nos Estados Unidos, a esquerda do Partido Democrata, onde essas novas forças estão estrategicamente alojadas, está mais à frente ao perceber e sublinhar publicamente que, hoje, enfrentar o racismo é enfrentar a emergência climática. Já não existe a possibilidade de uma luta sem a outra luta.

O apartheid tenebroso que já se anuncia e se aprofunda em ritmo acelerado é o que a própria ONU chama de “apartheid climático”. E, mais uma vez, atinge principalmente as mulheres, os negros e os indígenas. No Brasil, a aliança entre os ativistas das favelas e os ativistas da floresta precisa avançar com mais rapidez, dada a emergência do momento. Os ativistas da floresta são principalmente indígenas, mas também quilombolas e beiradeiros ou ribeirinhos. E são também as mulheres negras das periferias de cidades amazônicas. Em Altamira, epicentro da destruição da floresta, jovens ativistas como Daniela Silva têm levantado a voz para lembrar que as mulheres negras das periferias urbanas também fazem parte da Amazônia.

A luta está só começando. Homens como Trump e Bolsonaro, o brasileiro ainda com chances de se reeleger em 2022, são apenas um capítulo e não necessariamente o mais difícil. Como afirma a estrela da nova esquerda do Partido Democrata, a estadunidense de origem latina Alexandria Ocasio-Cortez, ao comentar a derrota de Trump: “Não estamos mais em queda livre para o inferno. Mas, se vamos nos levantar ou não, é uma questão. Fizemos uma pausa nessa descida precipitada. A questão é se e como iremos nos reconstruir”.

Apesar do atoleiro vivido pelo Brasil sob o Governo de ódio de Bolsonaro, o país tem, talvez como nenhum outro, um grande trunfo para voltar a criar futuro no presente: a enorme força de vida dos negros e dos indígenas que têm resistido contra todas as formas de morte por quatro séculos, caso dos descendentes dos africanos escravizados, por cinco séculos, caso dos indígenas. Grande parte das forças progressistas do planeta já compreenderam que a batalha pela Amazônia é a grande batalha deste momento ―e não apenas no sentido dos limites geográficos da floresta que regula o clima, mas no sentido de amazonizar o pensamento para a criação de uma sociedade humana capaz de viver sem destruir nem a casa onde vive nem as espécies com quem divide a casa.

A crise climática e a sexta extinção em massa de espécies, ambas comprovadamente provocadas por ação da minoria dominante dos humanos, tornaram este momento o mais desafiador de nossa trajetória no planeta. Trump e Bolsonaro são apenas sintomas. Com todos os limites evidentes de uma eleição numa democracia que nunca chegou para todos, assim como os limites da própria democracia como sistema, o voto deste 15 de novembro é muito mais importante do que parece à primeira vista. Países vizinhos como a Bolívia e o Chile já deram o exemplo e mostraram que é possível enfrentar o autoritarismo da direita e da extrema direita e avançar. O Chile decidiu pela primeira Constituição construída de forma igualitária entre homens e mulheres e, na Bolívia, as mulheres conquistaram 20 das 36 cadeiras do Senado (56%) e 62 das 130 da Câmara Baixa (48%) nas eleições de outubro, com forte presença dos povos originários. O Brasil, que costuma ver a si mesmo como vanguarda política e criativa, já está atrás no mapa da América Latina na luta contra o autoritarismo de direita.

A polarização política tem sido vendida como um problema e uma distorção nos últimos anos. Não é assim que eu vejo. Não é possível e nem desejável superar a polarização num país estruturado sobre o racismo e com uma desigualdade abissal. O problema é a distorção da polarização, situada propositalmente nos polos falsos. O discurso contra a polarização, aliás, será cada vez mais usado pela centro-direita e pela direita que hoje se anunciam como não bolsonarista para se apresentar como uma alternativa de “pacificação do país” em 2022. Michel Temer já usou esse discurso antes e agora ele se insinua nas negociações entre o governador de São Paulo, João Doria Jr (PSDB), o ex-ministro de Bolsonaro Sergio Moro e o apresentador da Globo Luciano Huck para a próxima eleição presidencial. A paz da centro direita e da direita aponta para um rearranjo cosmético, com algumas concessões aqui e ali, de modo que a desigualdade racial e social do Brasil se mantenha inalterada na essência. Prefiro ficar com a frase antológica da atriz e escritora negra Roberta Estrela D’Alva: “se a paz não for para todos, ela não será para ninguém”.

A eleição de 15 de novembro não é uma prévia para 2022. É muito mais do que isso. É a recolocação dos polos que foram deslocados. É uma sinalização de que a polarização já não se dá entre Bolsonaro e Lula, mas entre Bolsonaro e Marielle Franco. Esta sempre foi a polarização real dos Brasis, em alguns momentos representada pelo PT do passado, há muitos anos não mais. Quase mil dias depois da sua execução, o grito se fortalece e avança: Marielle, Presente.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago).

Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


William Waack: Trump não é o culpado

Presidente é muito mais a expressão do que a causa de isolacionismo, divisão social (e polarização política) e a perda de apetite por ser a potência líder do planeta

As incertezas em torno do que acontece com uma quase segura vitória de Joe Biden são de curto prazo. Têm a ver com possível grau de violência e até que distância no drama pessoal um narcisista como Donald Trump pretende caminhar. Dito de outra maneira: de que forma ele será obrigado a conceder. A grande certeza em relação a um presidente Joe Biden é a de que os EUA, tal como conhecemos até aqui, não voltam a existir. Trump é muito mais a expressão do que a causa de isolacionismo, divisão social (e polarização política) e a perda de apetite por ser a potência líder do planeta.

Note-se que não há diferenças entre como democratas e republicanos – nem entre Biden e Trump – pensam que é o papel histórico da ascensão da China e como enfrentá-la. Há muito que Washington considera a adversária na Ásia como seu mais importante desafio. Demoraram para chegar ao consenso de que é necessário contê-la, mas essa convicção prevalece.

Como todo longo período na história, a da hegemonia moral (e tecnológica e, ao que tudo indica, militar também) dos EUA como a nação “da luz na cidade no topo da colina” está terminando. Uma definição cruel, porém muito apropriada para se visualizar o que aconteceu nos EUA, é a de que houve uma ruptura na costura. É um processo de mais de 30 anos, pelo qual as diferenças entre grupos sociais aumentaram devido ao acesso à educação. “Elites” e “não elites” perderam o sentido de entender ou “sentir” o que o outro grupo pensa.

Trump contribuiu para incendiar um estado de coisas no qual trabalhadores brancos sem formação superior se sentem “deixados para trás” e percebem que todos os fatores trabalham contra eles, a começar pelo demográfico. O que surge de forma tão clara, no mundo tribalizado das redes sociais, é a perda do espírito de comunidade e de nação, um lento e amplo processo que não se iniciou com a vitória de Trump em 2016.

Do ponto de vista do papel dos EUA nas relações internacionais, há um curioso paradoxo. Aos períodos de “isolacionismo” se contrapunham os períodos de “engajamento” na solução de qualquer conflito, militar ou não. O grande pêndulo do “isolacionismo” se acentuou – aí está o paradoxo – com a vitória na Guerra Fria. Que deixou nas elites dirigentes americanas a noção de que não havia muito mais para se fazer. Olhar para a Ásia como grande desafio estratégico já havia sido formulado sob Obama; retirar-se de guerras, também. O que Trump acelerou brutalmente foi o desmonte do substrato “psicológico” do apoio em alianças duradouras com gente que pensa em linhas gerais a mesma coisa (a tal ordem liberal internacional).

Talvez não fosse difícil de se corrigir, assumindo que os outros participantes do jogo internacional estejam dispostos a ver de volta os EUA no seu papel “tradicional” desde o fim da 2.ª Guerra. A resposta se evidencia como um “não”. Trump foi a expressão de males muito mais profundos e antigos e hoje o mundo para o qual todos se preparam é o de um sistema multipolar mais perigoso. E, mesmo sem Trump, muito menos previsível.

*É JORNALISTA E APRESENTADOR DO JORNAL DA CNN


Rubens Ricupero: Maré antidemocrática está em jogo

Nenhum país possui a capacidade de pautar a agenda mundial como os Estados Unidos. A última vez em que isso aconteceu de maneira brutal e instantânea foi em 2016, com a eleição de Donald Trump. Antes, ao menos em duas ocasiões sucedera algo parecido: em 1932, com a eleição de Franklin Roosevelt, e em 1980, com a de Ronald Reagan. O que existe em comum entre personalidades tão contrastantes?

Todos foram homens de ruptura com o que se vinha fazendo até então, todos chegaram ao poder em meio a crises graves, todos tinham total autoconfiança na capacidade de mudar os acontecimentos. Os outros presidentes, mesmo Barack Obama, não foram homens de ruptura, não inauguraram novas eras, não mudaram o mundo.

Roosevelt encontrou um país prostrado pela Grande Depressão e o capitalismo em crise profunda. Reformou com o New Deal o sistema capitalista, inaugurou o Estado do bem-estar e o ativismo do governo em matéria social e econômica. Liderou os aliados na derrota do nazifascismo na Segunda Guerra Mundial.

Sua influência só foi superada com Reagan, que abandonou o keynesianismo, sustentou que o governo era o problema, não a solução, desregulamentou as finanças, acelerou a globalização. Peitou Moscou na corrida armamentista, contribuindo para o fim da Guerra Fria e da União Soviética.

Esse poder americano de definir a agenda não depende só da riqueza ou da força militar. Tem muito a ver com o fato de que, há mais de 100 anos, os americanos fazem a cabeça do mundo com o cinema, a música, a TV, as histórias em quadrinho, o streaming, a internet, as mídias sociais. É um poder para o bem e para o mal, para construir e destruir.

No caso de Trump, tem sido para botar abaixo, destruir tudo, para começar virando pelo avesso as realizações de Obama. De um dia para o outro, a política internacional sofreu um terremoto.

Os EUA saíram do Acordo do Clima de Paris, repudiaram o acordo com o Irã, voltaram atrás no relacionamento com Cuba, atropelaram as regras da Organização Mundial de Comércio. A relação com a China virou confronto permanente, a Organização Mundial de Saúde foi abandonada. A maré populista antidemocrática, antiliberal, atingiu o apogeu.

Uma derrota de Trump agora truncaria a obra de demolição pela metade. Permitiria não voltar a 2016, mas reconstruir o mundo em novas bases com economia verde, mais igualdade, mais cooperação e menos confronto, prevenção de epidemias, avanço em direitos humanos, política de gênero, superação da guerra cultural fomentada pelo fanatismo religioso.

Está em jogo, como se vê, a própria possibilidade de futuro, pois quatro anos mais de negativismo de Trump talvez tornem irreversível a catástrofe do aquecimento global. Sairemos todos perdendo se Trump ganhar. Como não podemos votar nas eleições de 3 de novembro, resta-nos esperar que os americanos tenham sabedoria para salvar seu país e devolver ao mundo um mínimo de esperança.

*Rubens Ricupero é diplomata aposentado, jurista e historiador da política externa brasileira. Foi ministro da Fazenda durante o governo de Fernando Henrique Cardoso.


Luiz Carlos Azedo: A pandemia e o luto

No Dia de Finados, todos os mortos serão lembrados, mas as vítimas da pandemia são como corpos insepultos ou enterrados em cova rasa, cujo luto é diferenciado

Uma das singularidades da pandemia do novo coronavírus no Brasil — que chega aos 160 mil mortos e 5,5 milhões de infectados — é a sua naturalização pelo presidente Jair Bolsonaro, que sempre combateu as medidas de isolamento social adotadas por prefeitos e governadores e tratou-a como uma “gripezinha”. A aposta do presidente da República era de que ambos arcariam com as consequências negativas do impacto econômico da crise sanitária e ele, desafiando o vírus mortífero, se beneficiaria do auxilio emergencial aprovado pelo Congresso — cinco parcelas de R$ 600, de abril a agosto, e quatro de R$ 300, de setembro até dezembro e que o governo distribuiu à mais de 60 milhões de pessoa. O governo gastou até setembro R$ 411 bilhões com a pandemia, dos quais R$ 213 bilhões com o auxílio.

Acontece que essas despesas foram feitas como quem faz uma grande compra de consumo imediato com cartão de crédito, ou seja, a conta um dia vai chegar. E está chegando com a dívida pública já equivalente a 90% do PIB e uma taxa de desemprego de 14,4 %, que deve aumentar, porque a procura por emprego, com a redução do auxílio emergencial, também aumentará. Os reflexos políticos do agravamento da crise social são imediatos. Da mesma forma como a popularidade de Bolsonaro subiu com o auxílio emergencial, agora ameaça declinar nos grandes centros, com impacto eleitoral nos candidatos que o presidente da República apoia em São Paulo, onde Celso Russomano (Republicanos) está derretendo, e no Rio de Janeiro, cujo prefeito, Marcelo Crivela (Republicanos), candidato à reeleição, é amplamente rejeitado pelos eleitores. Bolsonaro já começa a se distanciar de ambos.

Nosso presidente da República é um personagem complexo da política brasileira — embora adote soluções simples e erradas para problemas complicados —, foge aos paradigmas do politicamente correto e desenvolve vínculos com parcelas da população que somente a antropologia explica. Mas não tem como fugir de uma realidade social impactada pelos efeitos psicológicos da pandemia na vida das pessoas, em particular o luto dos amigos e familiares das vítimas de COVID-19, que não tem nenhum paralelo com o de outras causas mortis, inclusive porque o rito de passagem de seus funerais foi profundamente afetado pela ausência de velórios e os caixões fechados.

Negação e resiliência
Após naturalizar a pandemia, em algum momento, Bolsonaro haverá de pedir desculpas por esse comportamento, quiça na campanha leitoral de 2022, mas até agora não manifestou um sincero pesar pela escalada da pandemia. Seus lamentos foram sempre preâmbulos de alguma firmação que estabelecia como prioridade manter as atividades econômicas a qualquer preço. Acontece que essa prioridade é apenas retórica, na verdade, há um cada um por si, porque o governo abandonou as reformas, não tem prioridades, se digladia internamente e está prisioneiro das corporações e grupos econômicos que o apoiam. São inúmeros exemplos, os mais recente são os cancelamentos do projeto da BR do Mar — nova Lei da navegação de cabotagem —, por exigência dos caminhoneiros, e o decreto para privatização de 4 mil postos de atendimento básico do SUS, uma proposta inopinada e marota, que transforma a rede pública num grande negócio privado de tecnologia para empresas do setor de saúde.

Entretanto, Bolsonaro está subestimando o luto das pessoas que perderam seus entes queridos. Não são apenas os impactos econômico, social e cultural, em termos de perdas de força de trabalho, conhecimento e liderança social, que devem ser considerados; existe um lado afetivo e psicológico na crise sanitária, que se manifesta de forma duradoura, por etapas, difícil de ser mensurada. Amanhã, no Dia de Finados, todos os mortos serão lembrados, mas as vítimas da pandemia são como corpos insepultos ou enterrados em cova rasa, cujo luto é diferenciado.

O luto ocorre porque a perda física do ente querido não elimina o afeto. É uma ausência de difícil aceitação no tempo em que ocorre, porque o amor sobrevive. Isso gera uma negação, que se manifesta de forma silenciosa, muitas vezes, como fuga da realidade; num segundo momento, vem a revolta, muitas vezes inconsciente e inexplicável. Leva tempo para que as pessoas superem a depressão subsequentemente e aceitem a perda, para que a vida plena se restabeleça. Mas não existe esquecimento. Aceitar não é deixar de sentir. O luto se torna essencial, um marco na vida pessoal. A resiliência diante da morte também gera simpatia ou engajamento em movimentos que sejam antítese do sua causa. É o caso dos familiares de vítimas de balas perdidas ou violência policial. Na pandemia, a naturalização das mortes pode ser apenas a primeira fase de um luto coletivo. Muito mais amplo e profundo.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-a-pandemia-e-o-luto/

Ivan Alves Filho: Relembrando os 130 anos de Astrojildo Pereira

O que mais impressiona na trajetória de Astrojildo Pereira, a meu juízo, é a união que ele soube cimentar entre o homem de pensamento e o homem de ação. Uma combinação rara. Talvez por isso, o escritor e homem público Afonso Arinos de Mello Franco tenha se referido a ele como “a maior aventura intelectual” do Brasil, em seu tempo.

Vamos tentar entender melhor o motivo disso. Nascido em 1890, em Rio dos Índios, localidade de Rio Bonito, na velha província fluminense, Astrojildo vivenciou, em 1908, um episódio que o marcaria para o resto da vida. Foi assim. Ao ler nos jornais que o romancista Machado de Assis agonizava, ele pegou, imediatamente, uma barca em Niterói, atravessou a Baía de Guanabara e desceu na Praça Quinze, no centro do Rio de Janeiro. Lá chegando, se enfiou em um bonde e foi bater com os costados, no Cosme Velho, aprazível bairro onde vivia o autor de Memórias póstumas de Brás Cubas.

Profundo admirador da obra machadiana, o rapaz, de apenas 17 anos, queria se despedir do velho mestre. Expôs sua intenção às pessoas que se encontravam na casa e foi autorizado a entrar, no quarto do escritor. Ajoelhou-se, beijou-lhe então as mãos e logo depois se retirou. Na belíssima crônica “A última visita”, Euclides da Cunha, que presenciara a cena, escreveu: “Naquele momento, o seu coração bateu sozinho pela alma de uma nacionalidade. Naquele meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis, aquele menino foi o maior homem de sua terra”.

Dois anos após esse acontecimento, civilista convicto e já começando a se impregnar de ideias anarquistas, Astrojildo Pereira desembarcou no cais da Praça Mauá, no Rio, e foi conhecer algumas das principais capitais europeias. Perambulou seis meses pelo Velho Continente e retornou ao Brasil. No ano de 1911, ele já colaborava com o órgão anarquista Guerra Social, trabalhava como gráfico e linotipista e militava no movimento anarquista. Em 1913, integrou, com um grupo de aguerridos companheiros, a primeira central operária brasileira, a COB, da qual se tornaria o secretário geral. Em 1917 e 1918, liderou uma série de greves operárias que abalaram o Rio de Janeiro. Foi preso e barbaramente espancado pela Polícia, no final de 1917, e novamente preso, no ano seguinte. Não esmoreceu. Em 1922, sob inspiração direta da revolução bolchevique na Rússia, fez a opção definitiva pelo marxismo e ajudou a formar o Partido Comunista no Brasil. Em 1924, viajou para Moscou, já investido na condição de secretário geral do PCB. Nesse mesmo ano, assistiu, na Praça Vermelha, aos funerais de Vladimir I. Lênin – o arquiteto da revolução bolchevique e também do Estado soviético. Ainda em Moscou, por essa época, dividiu alojamento com um líder comunista que seria considerado um dos grandes estadistas do século XX: Ho Chi Minh.

De volta ao Brasil, viveu como um revolucionário profissional. Com efeito, ele não parava. Dedicou-se a organizar o PCB clandestino e se internou, em seguida, na Bolívia, em 1927. Sua missão? Contactar Luiz Carlos Prestes, o chefe da Coluna Invicta, em nome do Partido. Entregou a Prestes uma mala com livros marxistas e tentou convencê-lo da necessidade de revolucionar as estruturas da sociedade – e não apenas derrubar este ou aquele governo. Conseguiu atrair Prestes para as fileiras do PCB.

Uma vez acertado o ingresso do Partido na Internacional Comunista, Astrojildo Pereira passou a compor sua Comissão Executiva, a instância máxima da organização, em 1929, quando parte novamente para a capital soviética. Com menos de 40 anos de idade, ele já se apresentava como uma das grandes lideranças da revolução mundial.

Mas não tardaria muito e ele passou a ter sérias divergências políticas com o Partido no Brasil. Assim, foi afastado da organização, em 1932, sob a acusação de tentar barrar a linha dita de “proletarização” de sua política e de simpatizar, ainda, com as ideias de Nikolai Bukharin, opositor de Josef Stalin na direção do Partido Comunista da União Soviética.

Reintegrado ao PCB, no bojo da redemocratização do país, em 1945, Astrojildo colaborou, nesse meio tempo, com o jornal carioca Diário de Notícias e escreveu ensaios primorosos sobre Machado de Assis. Sua reputação como crítico se consolidou. Tampouco abandonou a reflexão política, debruçando-se sobre a análise do fascismo e sua influência no Brasil. Mais: foi o primeiro a apontar para a grandeza épica dos Quilombos dos Palmares, chamando Zumbi de “o nosso Spartacus negro”. Começou a publicar, então, seus vários livros de ensaios. E ainda se dedicou, de corpo e alma, à organização do I Congresso Brasileiro de Escritores, realizado em 1945. O Congresso lançaria, praticamente, a pá de cal sobre o Estado Novo de Vargas. Dele participaram Jorge Amado, Caio Prado Júnior, Graciliano Ramos, Aníbal Machado e outros nomes de primeiríssima linha da literatura, da historiografia e da ensaística brasileira.

Durante o Estado Novo, Astrojildo Pereira sobreviveu vendendo frutas em um depósito em Niterói, o que motivou Manoel Bandeira a escrever um poema sobre ele:

Bananeiras – Astrojildo esbofa-se

Plantai-a às centenas, às mil

Musa paradisíaca

Que dá dinheiro neste Brasil.

E de 1945 até o dia do Golpe de 1964, realizou pesquisas sobre a obra de Machado de Assis e a trajetória do PCB. Ao lado de sua companheira Inez, estas são as grandes paixões de sua vida, desde a juventude. Daí ter escrito, certa vez, que seu ideal de vida abarcava “um doce amor de mulher em meio a uma bravia luta política”. Seja como for, Astrojildo editou, nessas duas décadas, publicações da importância de Literatura e Estudos Sociais. Trabalhou na célebre Editorial Vitória, do PCB, e passou a ditar, na prática, a política cultural do Partido. Intelectual refinado, ele contribuiu para revelar alguns valores que brilhariam na cultura e na política, como Armênio Guedes e Leandro Konder. Por essa época, já estava publicando Machado de Assis, novelista do Segundo reinado (1942), Interpretações (1944) e Machado de Assis (1949). Formação do PCB sairia em 1962.

Astrojildo conviveu com figuras altamente representativas da cultura brasileira, como Oscar Niemeyer, Di Cavalcanti, Monteiro Lobato, Alberto Passos Guimarães e Nelson Werneck Sodré – pelo lado comunista – e Otto Maria Carpeaux e Hélio Silva, intelectuais católicos. Hélio Silva, inclusive, era um querido companheiro desde os tempos do anarquismo. Mais de uma vez, eu o ouvi – fascinado – discorrendo sobre isso, em meados da década de 80, quando tive oportunidade de trabalhar com ele, no Rio de Janeiro. O saudoso historiador narrava as andanças que Astrojildo e ele promoviam pelas ruas do Rio de Janeiro, o que não excluía uma certa boemia.

A explicação para esse trânsito junto a personalidades dos mais diferentes horizontes políticos e filosóficos reside no fato de que Astrojildo Pereira defendia seus pontos de vista sem qualquer traço de sectarismo. É bem verdade que, nos momentos mais duros dos embates ideológicos travados pelo PCB, o velho revolucionário se alinhou, daqui e dali, com posições que, a rigor, contrariavam sua própria visão de mundo. É que, por formação, jamais iria contra uma diretriz do Partido. Mesmo assim, era, basicamente, um homem avançado em relação à sua época. Escrevendo de Moscou, em 1925, por exemplo, reconheceu que “a Democracia, ainda que burguesa, é vista como um bem pelas massas”.

Era, de fato, um homem raro, desses que aparecem a cada meio século. Sua primeira prisão política, que eu saiba, se deu em 1917; a última, em 1964. Em 1965, devido aos rigores da prisão, onde sofreu um infarto e teve tuberculose nos dois pulmões, morreu Astrojildo Pereira.

Foi perseguido durante a vida inteira, mas nunca perseguiu ninguém. Lutou todos os combates possíveis pela liberdade. Afonso Arinos tinha razão: Astrojildo Pereira levou uma existência que honra a inteligência brasileira. Sua vida é um desafio permanente lançado à imaginação dos melhores romancistas.

Eu o conheci em nossa casa, no Rio de Janeiro, quando estava fazendo 13 anos. Foi logo após sua saída da prisão. Meu pai tinha por ele um grande respeito. Guardo até hoje, na memória, sua semelhança física com meu avô paterno. Em ambos, eu percebia a mesma candura nos gestos, a mesma doçura no olhar, a mesma calma ao lidar com as pessoas. Como Astrojildo, vovô era um admirador do camarada Prestes, o Cavaleiro da Esperança. Como ele, vovô nascera na velha província. Ao conhecer Astrojildo Pereira, foi como se eu passasse a ter mais um avô só para mim.

A bem da verdade histórica, é preciso dizer que o ex-governador da antiga Guanabara, Carlos Lacerda, apesar de ser um dos principais protagonistas do movimento político-militar de 1964, intercedeu junto às autoridades militares para que ele fosse solto. Meu pai nunca me disse, mas, pela ligação pessoal dele com Carlos Lacerda – trabalharam juntos, inclusive, em jornais – eu fiquei com a impressão de que ele pediu ao então governador da Guanabara para que interviesse para soltar Astrojildo. Aliás, em depoimento que me concedeu para o filme que fiz sobre o velho fundador do PCB, “A casa de Astrojildo”, Norma Dias, sua sobrinha, garantiu que o próprio tio lhe confidenciou, na prisão, que só não foi assassinado por interferência de Lacerda. A história bateu.

Pouco depois, soube de sua morte. Seu enterro foi uma corajosa manifestação pública de repúdio à ditadura militar então instalada no Brasil. Inez Dias, desafiando os esbirros do regime, gritou, à beira do seu túmulo: Viva Astrojildo Pereira! Da mesma forma que Gregório Bezerra, Astrojildo era de ferro e flor. Naturalmente, fiquei abalado com tudo o que estava acontecendo. No país do final da minha infância, prendiam e maltratavam homens com mais de 70 anos de idade. Seu pecado? Ter permanecido fiel às suas ideias de juventude. Era mesmo assustador.

O velho Astrojildo Pereira foi o primeiro herói da minha vida.

*Ivan Alves Filho, historiador, autor de mais de uma dezena de excepcionais livros, dos quais o último é “A saída pela democracia (2020)”