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Alberto Aggio: O fim da guerra e a antecipação da batalha por 2022

No início do mandato, movido pela euforia, Bolsonaro optou por uma “guerra de movimento” cujo objetivo era o estabelecimento de um regime iliberal autoritário. Confrontou o STF, o Congresso e um conjunto de instituições. Sem uma milícia realmente atuante nos padrões do fascismo, exagerou e teve que mudar de estratégia: adotou gradativamente a “guerra de posições”.

A mudança necessitava novos arranjos. Mas veio a pandemia e o cenário se complicou. Uma ruinosa gestão sanitária o impediu de ganhar posições significativas, vieram as fraturas no governo e a queda na popularidade. A derrota nas eleições municipais sinalizou que só havia uma saída: aprofundar suas relações com os partidos do Centrão para garantir uma blindagem contra o impeachment, mantendo ainda o discurso reacionário para assegurar suas bases originais.

Bolsonaro versus Doria, um dos embates em torno da eleição presidencial de 2022

A “guerra de posições” dá agora seus primeiros resultados positivos: a vitória nas eleições para as presidências da Câmara dos deputados e do Senado. Na Câmara, venceu com candidato próprio e no Senado com quem não o fustiga diretamente. Mas, o mais importante é que derrotou em campo aberto tanto Rodrigo Maia, ex-presidente da Casa, quanto João Doria Jr., governador de São Paulo, visto por Bolsonaro como seu principal antagonista na corrida presidencial de 2022.

Apesar de ir em sentido contrário à queda na popularidade denotada nas pesquisas, a vitória no Legislativo altera muita coisa. A “aliança” com o Centrão relativiza o discurso bolsonarista como a única voz do poder. Apesar de ensaios, a bolsonarização de políticos do Centrão não parece ter estofo para se manter. Mas a reviravolta dá claros poderes a um grupo político que vive de recursos e cargos. Para se blindar, Bolsonaro cede poder e sua metamorfose ganha nova figuração.

Tudo parece indicar que, com a conquista da Câmara e a neutralização do Senado, a guerra cede lugar à política, a uma política pragmática que pode ir do conluio dos negócios privados à retomada de um discurso da “tradição republicana brasileira” (Werneck Vianna) de elogio à modernização e ao moderantismo. A partir de agora, o poder terá que buscar o equilíbrio entre os atores que dão sustentação ao governo: o Centrão, com sua imensa diferenciação de personagens; os militares governistas, deslizando para uma posição coadjuvante; e o bolsonarismo raiz, em posição secundária. Não à toa projeta-se uma reorganização ministerial que poderá mudar inteiramente a cara do governo, embora não se saiba ainda o que irá prevalecer: se Bolsonaro será capaz de comandar o Centrão ou se o Centrão subordinará Bolsonaro ou mesmo o anulará.

Uma mirada mais ampla, que ultrapasse a conjuntura, poderia apresentar avaliações curiosas. Uma delas diz que Bolsonaro poderia ter estabelecido um “governo militar sem AI5” e que a “alternativa Centrão” salvou o país de um “ensaio fascista”. Assim, o Bolsonaro que deve se apresentar em 2022 carregará as ambiguidades das metamorfoses que sofreu e não tem como ser idêntico ao de 2018.

A crise nas oposições repercute diretamente no PSDB

Desnecessário dizer que o cenário se alterou também para as forças que se mostravam contrarias a Bolsonaro. O comportamento divisionista do Democratas, especialmente na Câmara, quebrou a espinha dorsal do bloco oposicionista que deveria agregar MDB, PSDB além de parte da esquerda. A derrota acarreta duras repercussões às forças do campo democrático, ampliando suas dificuldades de coesão. O Senado escapou da debacle porque o candidato eleito mostrou-se distinto do bolsonarismo e maleabilidade suficiente para não confrontá-lo.

A resultante é de aprofundamento das divisões no interior do “centro político” e entre este e a esquerda, além das discrepâncias internas em cada força política, o que faz emergir um conjunto de novos atritos e dificuldades, tardando a que se encontre um novo rumo. Nesse cenário, se a sedução por um oposicionismo frouxo a Bolsonaro aumenta, a fórmula salvadora da “frente democrática” se mostra de difícil efetivação.

Num contexto de “democracia de audiência” e de aberta competição eleitoral, a ideia de frente democrática só tem sentido se for ressignificada. Sabendo que não partirá do PT – ele nunca aceitou a lógica e a composição das frentes contra o autoritarismo –, só terá lugar se o centro político conseguir formata-la em torno de uma candidatura competitiva que apresente propostas de superação da crise sanitária e econômica, e avance uma pauta concreta de reformas que reorganize o Estado, enfrentando a desigualdade social e recolocando o país numa perspectiva de cooperação mundial, recuperando sua vocação cosmopolita perdida nos últimos anos.

Caso contrário, restarão essas premissas como referencial às candidaturas de perfil democrático contra a de Bolsonaro, na expectativa de que o nosso sistema eleitoral de dois turnos seja terreno para uma competição eleitoral que não impeça a unidade em torno de uma proposta reformista em favor da reorganização política da Nação.


Hamilton Garcia: O esgotamento da democracia de clientela e os perigos que se avizinham

Falar no esgotamento da democracia de clientela após duas vitórias sucessivas do Centrão, nas eleições municipais de 2020 e nas mesas do Congresso Nacional, pode parecer totalmente despropositado, mas não é. Já há praticamente um consenso, entre muitos analistas políticos, de que a Nova República se esgotou, ela, que não obstante os sinais vindos da luta democrática dos anos 1970-1980, se desenrolou, a partir dos anos 1990, como um movimento transformista que, sob o impulso da luta pelo governo representativo (presidencialismo de coalizão), instaurou, de fato, um regime semi-representativo (presidencialismo de cooptação).

Mas é preciso discutir mais detidamente de qual esgotamento estamos falando. Não se trata apenas, pelo alto, de como a degeneração e a fragmentação partidária erodiram o sistema de representação, mas também, por baixo, de como o eleitorado foi levado a participar, por meio da velha cultura (coronelismo), da política de clientela – que, no nosso caso, apenas em parte se parece com a política de clientela norte-americana, baseada em ativismo social (grupos de pressão) e em modelo partidário horizontal (primárias/caucus) emulado por sistema eleitoral majoritário.

Não apenas isto, mas é preciso entender ambos os fenômenos em chave com o modo de produção predominante no país, no caso, um capitalismo reprimarizado, baseado em exportação de commodities e importação de manufaturados ou seus componentes, com forte participação do setor de serviços e baixa qualificação da mão de obra. Tal modelo, semi-estagnacionista e dependente, não é compatível com o Estado de Bem-Estar e, portanto, com a tão almejada equalização social, e por um motivo básico: sua cadeia de produção/valorização não gera renda compatível, na forma de lucros, impostos e salários, capaz de sustentar tal pretensão. Assim, só resta o endividamento público como viga de sustentação das amplas expectativas sociais e dos interesses privados, a par de porto seguro para o emprego da classe média e de auxílio aos miseráveis, em condições crescentemente gravosas, dado o pesado custo dos juros imposto pelo sistema financeiro nacional – setor hegemônico do bloco histórico em crise.

Claro está que, sem a mudança deste modo de produção – que só pode ser viabilizado por coalizão política ampla de forças político-sociais, o que não se confunde com bloco parlamentar ou simples coalizão eleitoral –, a crise atual não tem solução efetiva, quando muito pode ser rolada e sempre em condições mais críticas. Ocorre que, como historicamente sabemos, são muitas as rotas para a mudança, o que, por si só, não garante que ela seja de fato alcançada, nem mesmo em seu modo mínimo para não falar do ótimo.

O Governo Bolsonaro encarna a mais nova tentativa de mudança desde que o PT abdicou, de fato, desta postulação, em 2002, em prol de um “lugar ao sol” no sistema de domínio, com a diferença de que a extrema-direita sequer tinha um programa digno do nome e que chegou ao poder pela inusitada, embora prenunciada (junho de 2013), revolta de uma população apartada de instrumentos institucionais (partido político) para operar efetivas mudanças políticas.

Como não poderia deixar de ser, inclusive por suas idiossincrasias, tudo aconteceu de maneira mais rápida e atabalhoada com Bolsonaro, até mesmo se comparado à FCM. Já na largada, JMB expôs a fragilidade de sua coalizão eleitoral na crise com os Ministros Bebiano e Cruz, e embora tenha aprovado a Reforma da Previdência, esta se deveu mais a um consenso social, enquanto o Presidente iniciava sua luta desesperada pela própria sobrevivência. Em certa medida, o Governo foi "salvo" pela pandemia, que se transformou em álibi de sua anomia política, ao fim remediada pelo “porto seguro” do Centrão. É verdade que existem dúvidas fundadas sobre tal “segurança”, sobretudo diante de um governo tão frágil quanto atabalhoado. Mas é preciso olhar também para a crise do sistema, onde Bolsonaro se agarra.

Não se pode descartar que o liberalismo radical de Guedes tenha encontrado sua mediação clássica no Brasil neopatrimonial com a "nova" coalizão, o que possibilitará ao bolsonarismo, pelo menos em tese, por meio de sua ala militar, neutralizá-lo enquanto utopia burguesa e convertê-lo de obstáculo à catapulta de um novo arranjo nacional-desenvolvimentista, como já vislumbrado no PAEG em contexto histórico distinto, num cavalo de pau de difícil compreensão, inclusive para os observadores da história que ignoram as implicações da via prussiana em nosso longo processo de modernização.

O PAEG, é verdade, se desenvolveu sob a tutela militar, tutela que hoje seria esmaecida, o que pode comprometer o enquadramento dos atores políticos envolvidos na trama e, consequentemente, seus fins, caso não demonstrem a exata noção do que estão fazendo e em quais circunstâncias. Não obstante, a crise aguda força os atores a uma consciência diferenciada na luta pela própria sobrevivência, como nos ensinou Lênin, o que implica, hoje, em se observar e responder ao desespero social que se anuncia. Não apenas isto, será preciso também tratar da retomada econômica para garantir a renda do trabalho após a emergência, estimulando a esperança dos trabalhadores por dias melhores. Para que tal retomada aconteça, de outro lado, as reformas em discussão no Congresso deverão englobar medidas que contemplem a reindustrialização do país, a começar pelos setores que já dominamos e os que impliquem em enfrentamento da pandemia, como a indústria farmacêutica.

Se isto tiver sequência no âmbito do programa econômico da coalizão bolso-militar-centrista, restará observar a cena político-judiciária, ainda mais incerta em razão das pressões sociais que afetam os aparatos de justiça desde o Mensalão (2005). Mais especificamente, será preciso verificar se um eventual clima de otimismo econômico extra-Mercado será capaz de neutralizar o previsível aumento do mau humor dos cidadãos com seus representantes e a burocracia pública, em meio ao novo cenário de conforto projetado com o fim da Lava-Jato e a possível reabilitação jurídica de vários de suas "vítimas" de colarinho branco, que podem ensejar, a partir de agora, uma ida aos cofres com ímpeto represado, capaz de abalar a credibilidade que resta da reputação anti-sistêmica do bolsonarismo, além de acumular mais combustível sobre mata ressecada.

A própria blindagem de Bolsonaro pelas elites, em função, principalmente, do estancamento da sangria e seus supostos efeitos distensionistas sobre a política e a economia, é aposta inflamável no pior cenário. Nada disso deve passar desapercebido pelos estrategistas do bolsonarismo, que mantém na manga a carta do “auto-golpe", que, no caso do bolsonarismo, como se sabe, está longe do inverossímil e brancaleônico "exército do Stédile”, configurando, de fato, perigo tangível.

Diante disso e da incrível capacidade interpelatória das narrativas bolsonaristas – cuja diferença essencial em relação às narrativas lulopetistas reside tão somente em sua maior facilidade assimilatória pela massa –, é possível que o ônus deum eventual insucesso da coalizão bolsocentrista, em meio às frustrações econômicas e/ou o pipocar de escândalos de corrupção, possa ser jogado, com grandes chances de êxito, nas costas do STF, do próprio Centrão – da qual Bolsonaro conseguiu se distanciar pela ótica popular, não obstante as rachadinhas – e da esquerda, por conta das manobras de anulação processual que podem favorecer LILS  – sob o beneplácito de Bolsonaro, diga-se de passagem – e, em sequência, outros apenados, como Eduardo Cunha e Sérgio Cabral, entre outros.

Tudo isto estará sobre a mesa na campanha eleitoral de 2022, que se inicia agora, fora do controle do TSE, não devendo haver dúvidas sobre a disposição, inclusive já insinuada, de Bolsonaro entrar neste jogo com a intenção de “fazer o diabo para se reeleger” (DR), o que, na prática, projeta sua intenção de aceitar apenas o resultado que lhe beneficie. Isto, naturalmente, não dependerá apenas de sua vontade, mas também exigirá conjuntura favorável, como uma crise que conjugasse colapso social com desespero econômico e desmoralização das instituições republicanas, abrindo caminho para greves de caminhoneiros, alguma inquietação nos quartéis e apelos para a restauração da ordem, cenário em parte visto no pré-1964.

Um conflito desta envergadura não só é possível, como pode acontecer antes da suposta “fraude eleitoral”, em meio ao desarranjo de seu "novo" governo. Outra variável importante a considerar, é como a radicalização política e a frustração das massas com as instituições vai se manifestar, inclusive nos meios militares, já que desde 1930, como nos ensinou José Murilo de Carvalho[i], as FFAA se movimentam na cena política com vistas a conter as ameaças de ruptura vindas de baixo – como a de Prestes, em 1930/1935, e a de Jango/Brizola, em 1964. No contexto atual, todavia, a ameaça potencial vem do baixo-clero bolsonarista, o que tornaria o desenlace ainda mais complexo e incerto.

Fator decisivo para tal evolução da situação é como as massas reagiriam ao caos social. Não se pode descartar a hipótese de que um descontentamento geral se misture à anomia já instalada nas periferias das metrópoles, que, embora de difícil assimilação pelas elites intelectuais (liberais e socialistas) – tendentes a traduzí-la como questão ética –, segue sendo vivenciada pela população sitiada como desafio à sobrevivência, a exigir solução de força (desarmamento) sob os auspícios da lei, que, não acontecendo, escancara as portas para o puro arbítrio da força ilegal, alimentada pelas facções bolsonaristas. Em tal contexto, a politização da crise pela extrema direita poderia catalizar o desejo geral de estabilização e ordem, o que praticamente forçaria uma ação convergente por parte do Alto Comando das FFAA, embora ainda dentro da lei (GLO). 

Tudo isto nos coloca questões para muito além da ideia de resistência democrática experimentada nos anos 1960-1970, ideias que fossem capazes de neutralizar a perspectiva tutelar dos militares sobre a República, perspectiva esta que é a pedra angular do intervencionismo militar desde 1889 e que teve no Gen. Góis Monteiro, nos idos de 1930, um arguto articulador que a traduzia como a expressão institucionalizada da nacionalidade, em cuja sombra poderiam "se organizar as demais forças da nacionalidade"[ii].

À rigor, na posologia deste velho remédio, Bolsonaro não teria lugar, mas tampouco estaríamos à salvo de seus conhecidos efeitos colaterais. O mais sábio, à luz da história, seria reconhecer tais riscos e buscar evitá-los pela franca assunção da crise de nossa democracia (clientelista), articulando, sob o signo da reconstrução nacional, uma saída democrático-desenvolvimentista para a crise em diálogo com os militares.

De novo, pode não ser o ideal, mas é o que nos cabe em meio aos perigos que se avizinham.

Hamilton Garcia de Lima (Cientista Político, UENF/DR[iii])


[i] Forças Armadas e Política no Brasil, ed. Todavia/SP, 2019.

[ii] Apud Carvalho, p. 120.

[iii] Universidade Estadual do Norte-Fluminense/Darcy Ribeiro.


Cristovam Buarque: É preciso saltar

O Brasil assiste, nestes dias, às tragédias da epidemia e da educação, e das duas entrelaçadas asfixiando o futuro do país. Mas o presidente da República apresentou ao Congresso Nacional ações que deseja aprovadas como seu legado ao futuro sem a presença desses assuntos. O presidente quer que o Brasil tenha milícias com indivíduos cada vez mais armados, substituindo polícias e Forças Armadas. Ele propõe também reduzir a proteção aos nossos povos indígenas e inocentar previamente policiais que matam civis durante operações.

Ele não põe a educação como prioridade, salvo desobrigar os governos de oferecerem escola e transferir essa responsabilidade para que as famílias possam dar instrução em casa. Ignora 50 milhões de crianças em idade escolar cujas famílias não têm condições de educar os filhos em casa, como era no período medieval, com tutores, e ainda despreza o futuro da nação a ser construído por elas.

A análise das propostas do presidente assusta pela ausência de preocupação com a educação nos dois anos iniciais do governo. A ponto de isentar importações de armas e taxar importação de livros, porque seus ministros dizem que livros são comprados por ricos e armas por pobres. Se tivesse interesse em fazer com que o Brasil desse o salto na educação, ele teria apresentado as propostas já conhecidas, mas é forçoso dizer que seus antecessores também não quiseram pôr em prática. Apresentar uma estratégia para que em alguns anos, ou décadas, o Brasil atinja duas metas: ter um sistema educacional com máxima qualidade e que a educação tenha a mesma qualidade, independentemente da renda e do endereço da criança. Para tanto, seriam necessários alguns passos.

É preciso concentrar o trabalho do MEC na educação de base. Instalar uma agência para a proteção da criança e do adolescente capaz de cuidar desse público em todos os setores como saúde, cultura e bem-estar. Educação é mais que um direito de cada brasileiro, é também o vetor fundamental do progresso, sobretudo nestes tempos da economia e segurança nacional baseadas no conhecimento e a justiça social dependente da distribuição de conhecimento a todos, com a mesma qualidade.

É necessário retomar a implantação de um sistema nacional de educação de base, com proposta de adotar as escolas das cidades sem condições de oferecer a educação que suas crianças necessitam e merecem. Assumir para o governo federal a responsabilidade pela educação de base nas cidades que assim desejassem e na velocidade que os recursos federais permitirem, enviando professores de uma carreira federal, muito bem remunerados, selecionados com rigor depois de cuidadosa formação,

todos com dedicação exclusiva à escola onde estiverem lotados, aceitando substituir a estabilidade plena por estabilidade com responsabilidade, sujeita à avaliação periódica.

 Nessas cidades, as novas escolas seriam construídas com as instalações necessárias no padrão das escolas federais, especialmente as militares federais. Essas escolas iniciariam a evolução das atuais “aulas teatrais”, do professor com quadro e giz, para “aulas cinematográficas”, onde o professor utilizaria bancos de dados e de imagens. Todas as escolas das cidades adotadas teriam horário integral.

É possível fazer isso em dois anos em algumas cidades pequenas e, em 20 ou 30 anos, em todas as escolas do Brasil para todas as crianças brasileiras. É possível e é preciso. Os governos anteriores deram passos proativos, mas tímidos ainda na educação de base.

Ao longo dos últimos 30 anos, o Brasil foi melhorando sua educação, mas aumentando quatro brechas que nos fazem melhorar ficando para trás: brecha entre a educação dos ricos e pobres, entre cidades ricas e cidades pobres, entre os outros países e o Brasil e entre o que é preciso conhecer e o que é ensinado.

O atual governo parece decidido a piorar nossa educação. Os governos anteriores optaram por apenas melhorar, não saltar. O Brasil precisa interromper a marcha insana do atual governo sacrificando o progresso, a segurança e a sustentabilidade do país, mas também substituir a melhoria lenta, que nos deixa para trás, e adotar uma estratégia que permita saltar aos padrões de qualidade das melhores do mundo, com equidade para todas as crianças.

Para dar o salto necessário precisamos saltar este governo. Mas a simples substituição dele não basta se os próximos vierem com a mesma perspectiva de apenas melhorar nos deixando para trás e com brechas ampliadas.

*Cristovam Buarque, Professor Emérito da Universidade de Brasília


Luiz Werneck Vianna: Hic Rhodus hic salta

Nesse tempo de espantos algo já se pode dizer: perderam todos os que se empenharam em imprimir uma marcha à ré no movimento das coisas no mundo com a derrota no processo eleitoral de Donald Trump que os liderava a partir do poder e da influência que o governo dos EUA exerce na cena mundial. Em poucos dias, Joe Biden, cuja campanha se orientou por princípios opostos de política externa será ungido com a faixa presidencial, devolvendo o seu país ao seu leito natural historicamente constituído, exemplar no processo de criação da ONU.  O eixo do mal, portador de versões degradadas do nacionalismo em moldes populistas, perde a sustentação do pino que garantia seu funcionamento, e as peças que ainda lhe restam não terão como operar sem o amparo do sistema de quem faziam parte.

Cerra-se um ciclo que se iniciou no governo Thatcher, aprofundou-se com Reagan e culminou com Donald Trump, em que se tentou com a fórmula neoliberal nos devolver ao capitalismo vitoriano. As promessas de um novo tempo, contudo, se encontram embaçadas pelo flagelo da pandemia que nos assola e tolhe a livre movimentação das forças sociais embora estimulem a procura por soluções cooperativas supranacionais. Nesse sentido, o esforço mobilizado para o combate contra ela ainda mais reforça o processo de transição em que estamos envolvidos para uma era de superação do modelo de estado-nação em favor de organizações multinacionais que se comprometam com os ideais da igual-liberdade.

Essa transição não será um processo fácil, à sua frente poderosos obstáculos, políticos, sociais e econômicos, como se constatou dramaticamente com a insurreição frustrada da invasão do Capitólio quando se intentou obstar a certificação das eleições por um golpe de mão. O cenário dantesco daquele episódio foi registrado ao vivo e a cores, e seu macabro inventário tem sido exposto pela imprensa americana com a identificação dos seus personagens, conformando um quadro assustador de supremacistas brancos, neonazistas, de milicianos, de uma gente sem eira e beira, inflada pela cólera do ressentimento social, escória cevada com as bênçãos do governante do país.

Conduzir essa transição demanda soluções enérgicas e criativas que destravem seu caminho, a primeira resposta contundente foi a do impeachment de Trump, que contou com a aprovação de 10 votos de representantes republicanos, e as que devem ser apresentadas por Biden em seu discurso de posse no próximo dia 20 em nome do que ele sustenta serem os remédios para a cura da alma americana da doença do trumpismo que teria posto em risco os valores fundacionais da sua sociedade.

Tal como testemunha o caso brasileiro, mais do que uma patologia própria aos EUA o trumpismo se constituiu em um sistema. Sua derrocada importará em efeitos de dominó nos países que integravam sua constelação, entre os quais o Brasil, contudo a necessária admissão dessa nova condicionante da política brasileira, bem longe de recomendar uma postura quietista, de cega confiança de que a mudança no estado de coisas da nossa realidade possa provir do mundo exterior, deve servir de estímulo aos esforços de erradicação do trumpismo tupiniquim.

O princípio da realidade nos aconselha a constatar as dificuldades políticas e sociais que se antepõem a esse necessário e inafastável empreendimento diante da gravidade das circunstâncias a que estamos expostos. Mas, em que pesem as restrições, inclusive as impostas pela pandemia que dificulta os encontros e as mobilizações no espaço público, são necessários os primeiros passos na longa marcha que se tem pela frente, pois não se podem dar as costas à fortuna que nos alicia para a ação. Caso contrariada por um ator surdo às suas mensagens, ela pode nos entregar à nossa própria má sorte com o resultado nefasto de prolongar o abjeto governo que aí está.

A tragédia amazônica, se permanecermos inertes, será o destino de todos se nos faltar o alento para a reconquista do que nos tem sido subtraído pelo governo Bolsonaro em suas práticas demofóbicas e antidemocráticas. A investida das forças democráticas, na hora atual, deve ter como objetivo principal a defesa da vida e de todas as instituições da área da saúde que se empenham contra a orientação genocida imposta pelas autoridades governamentais, ora representada pela bizarra inépcia do ministro Pazzuelo.

Nessa direção, o movimento ofensivo deve transcorrer nas esferas institucionais, incluído o poder judiciário, com ênfase especial no Congresso, a que não pode faltar o recurso ao impeachment de Bolsonaro, principal responsável pela catástrofe sanitária do país, movimento a ser respaldado pelas agências da sociedade civil por meio de manifestos, panelaços e do que mais estiver à mão.

Cassandras nos aconselham a não partir para o mar alto, e nos relembram dos políticos liliputianos com que contamos, mas não nos vem de João Doria, governador de São Paulo, de perfil e robusto histórico conservador, a qualificação de Bolsonaro como facínora? Não se faz política sem alma, remoendo cálculos intermináveis de avaliação de forças esperando dos céus uma chuva que não vem, pois sempre chega a hora do hic Rhodus hic salta. Pois ela chegou. Já contamos mais de 200 mil mortos, basta, fora.

*Luiz Werneck Vianna, sociólogo, PUC-Rio


Marco Aurélio Nogueira: Impeachment Já

A crise está exposta, inflamada pelo Palácio do Planalto. E quanto antes ela for efetivamente enfrentada, melhor

A situação nacional chegou a tal ponto de absurdo e incompetência governamental que deveria estar pondo em alerta todas as forças responsáveis do País, dos partidos e movimentos às instituições, das Forças Armadas ao Poder Judiciário e ao Congresso. Ultrapassamos as barreiras do razoável, do suportável, e não há qualquer indício de que o atual governo vá mudar de orientação e de qualificação: continuará a agir com os olhos nos seus, de costas para a sociedade como um todo, seja ela entendida pela ótica dos interesses mais poderosos, seja a dos setores mais desfavorecidos, que formam a maioria do povo.

A opção pelo impeachment não é uma opção pelo confronto ou pela ruptura, mas pela salvação nacional, pela convergência política das maiorias, pela serenidade, pelo bom-senso. É algo para evitar que caiamos de vez no precipício. O País não aguentará mais dois anos de desgoverno. Se nada for feito, chegará ao fim de 2022 em pandarecos, perdendo quase tudo de positivo que conseguiu acumular nas últimas décadas. Falo das políticas sociais, dos direitos, da política educacional e ambiental, mas também da pujança econômica e do posicionamento no cenário internacional como potência média.

Tudo isso está sendo destroçado, dia após dia. Manaus é a ponte do iceberg. Um horror, que provoca espanto e incredulidade: como conseguimos chegar a esse ponto? Estamos nos afogando em uma chuva de lágrimas.

É impossível projetar o que acontecerá se houver uma troca de presidente. Mesmo que uma coalizão bem ajustada viabilize o impeachment, é difícil saber quanto tempo será necessário para que se recupere o País. Tudo dependerá da composição técnico-política do novo governo e da capacidade de sustentação que conseguir obter, na sociedade e no Congresso. Ele precisará contar com boa vontade e desprendimento, recursos difíceis de encontrar numa classe política viciada em cálculos eleitorais, cheia de ressentimentos e desejos de vingança.

Basta olhar o modo como estão sendo conduzidos os entendimentos em torno das presidências da Câmara e do Senado para ver incoerências e mesquinharia saltando por todos os poros. O apoio do PT e do PDT ao candidato do DEM no Senado é luminoso: partidos tidos como de esquerda renegam a combativa senadora Simone Tebet, do MDB, para ficar com a candidatura governista sem que se consiga conhecer as razões de uma opção tão estapafúrdia. Dizem que é para demarcar distância das posições pró- Lava Jato da senadora, dizem que é para não fortalecer demais o MDB. E daí que Rodrigo Pacheco é apoiado pelo bolsonarismo? Constrangedor, para dizer o mínimo.

É uma situação que indica as dificuldades que surgirão quando se pensar em articular uma candidatura competitiva para 2022.

Até por isso, a proposta de impeachment pode funcionar como um bálsamo para nossas oposições sem alma e sem direção. Pode ajudá-las a encontrar um rumo, energizá-las e reaproximá-las da população. Se não foram até agora competentes para confrontar um governo flagrantemente regressista e relapso, quem sabe não acordam?

Esse é o ponto secundário, mas não pouco importante. Chega a intrigar que ninguém tenha ameaçado iniciar um impeachment. Por muito menos Dilma e Collor receberam o impedimento. A explicação pode passar pelo “medo à crise”, pelo “foco na pandemia”, mas no fundo só se explica pela falta de coragem e maturidade democrática.

O principal argumento em favor do impeachment é mais que político: é resgatar a saúde da Nação. No sentido literal e no figurado. A pandemia aumentou e a vacinação exibe tamanha taxa de desencontros e incúria que não consegue nem sequer piscar como uma luz no fim do túnel. A Saúde Pública precisa ser salva. E o País precisa de medidas urgentes para recuperar minimamente suas forças, seu vigor e sua sanidade.

Estamos a assistir um ciclo de desmandos e incompetência jamais visto em nossa história. Não é razoável achar que isso deva prosseguir para que se evite o espocar de uma crise institucional. Quem tem olhos para ver não terá dificuldade alguma para constatar que a crise está aí, inflamada pelo Palácio do Planalto. E quanto antes ela for efetivamente enfrentada, melhor.

Para que se ponha na mesa um processo de impeachment alguém precisa colocar o guiso no gato. Começar uma campanha, cujo mote é simples: “Basta!”


Edmílson Caminha: O cineasta Vladimir, de São Saruê a Brasília

São muitos os grandes nomes que a cultura brasileira deve à Paraíba: o pintor Pedro Américo, o poeta Augusto dos Anjos, os escritores José Américo de Almeida, José Lins do Rego e Ariano Suassuna, o teatrólogo Paulo Pontes, os músicos Jackson do Pandeiro, Sivuca, Geraldo Vandré... Ponha-se, entre esses paraibanos ilustres, o cineasta Vladimir Carvalho, referência do documentário no Brasil, autor de artigos, memórias e análises que se reúnem no livro Jornal de cinema (São Paulo : É Tudo Verdade, 2015). Com a modéstia de quem não precisa autopromover-se para alcançar o reconhecimento da crítica e a admiração do público, Vladimir exalta os colegas, louva os amigos e se compraz em enaltecer-lhes o talento, mas tal é a importância de que se reveste, como ser humano e como profissional, que ao fim ninguém parece maior do que ele próprio, pela grandeza que lhe enobrece a vida e pela excelência que lhe consagra a obra.

Textos claros, objetivos, corretos, como nota Amir Labaki, na apresentação: “A elegância do estilo de Vladimir espelha sua sólida formação literária. A precisão e o dinamismo remetem às experiências pontuais no ofício de jornalista, de colaborador eventual a repórter em tempo integral, como ganha-pão no período mais duro da ditadura militar”. Leia-se, por exemplo, o que diz de José Américo de Almeida, o lendário político paraibano que se dispõe a recebê-lo:

Homem feito, eu achava a figura inatingível, posto a salvo da abordagem do restante dos mortais, na redoma sagrada em que o mantinha uma confraria de admiradores. Até que um dia, no exercício do jornalismo, fui colocado vis-à-vis com o mito, realizando uma entrevista com “o velho”, como o chamavam na Paraíba. Ele já estava na fase do recolhimento da praia de Tambaú fazia cerca de dez anos, em meados da década de 60. Reserva moral da Nação, como diziam, mas sem mandato, fazia pensar num navio velho encalhado no mar sereno do Cabo Branco.

Com saber de historiador, Vladimir compõe um abrangente painel do filme documentário brasileiro, a partir do célebre Aruanda (1959), de Linduarte Noronha, que teve Carvalho como assistente. Sua “luz nordestina, que explode como se fosse sempre meio-dia, sol a pino, com o mundo pegando fogo, agredindo retinas e ambientes”, torna-o, “até o lançamento de Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos, a mais resoluta e contundente proposta de cinema brasileiro”. É o marco fundador da geração paraibana em que o crítico Paulo Emílio Sales Gomes percebeu uma “inelutável teimosia”, tamanhas as carências e dificuldades que se antepunham àqueles jovens com o sonho de fazer cinema.

Iniciava-se a década de 1960, quando na provinciana João Pessoa, e em muitas outras cidades brasileiras, multiplicavam-se os cineclubes (como o de Fortaleza, dirigido por Eusélio Oliveira) e as sessões dos “cinemas de arte” no circuito comercial. Nas do Cine Diogo, em Fortaleza, às 11h da manhã de sábado, experimentei a emoção de assistir, pela primeira vez, a Teorema, de Pasolini, Persona, de Bergman e Sempre aos domingos, de Serge Bourguignon. Tempo em que se desencadearam paixões de uma vida inteira, como a do paraibano de Picuí que não por acaso se chama “Ivan Cineminha”, dono de dezenas de cadernos em que, desde a juventude, anota minuciosamente a ficha técnica dos milhares de filmes a que assistiu. Conhecimento profundo que o fez desmentir, no “Programa do Jô”, ninguém menos do que Anthony Quinn, que dissera nunca haver trabalhado atrás das câmeras, como diretor. “Trabalhou, sim. É que o filme não é bom, e ele prefere esquecer...”

Antes, milhões de espectadores divertiam-se com as comédias da Atlântida, recheadas de músicas e de histórias de amor, protagonizadas por Oscarito, Grande Otelo, Cyll Farney, Eliana, José Lewgoy, Dercy Gonçalves e Zé Trindade. Tão rendosas para Luiz Severiano Ribeiro, dono da produtora e de centenas de salas de cinema pelo Brasil, que incomodaram Hollywood, lembra Vladimir:

Foi tal o êxito da chanchada, mesmo desprezada como gênero chulo pela intelectualidade, que, segundo se diz, motivou a vinda para o Brasil daquele que seria uma espécie de xerife do cinema americano, o louro e bigodudo Harry Stone. Ele trataria de dissuadir Severiano de continuar produzindo a chanchada, que claramente tomava espaço dos filmes de Tio Sam no mercado exibidor. Como a rede de cinemas de Severiano também dependia de contratos com as distribuidoras americanas para exibição dos filmes de Hollywood, terminou por capitular. O advento da TV no Brasil e seu consequente impacto sobre o público fizeram o resto, e a chanchada foi aos poucos sendo arquivada.

Depois veio o Cinema Novo, com Glauber Rocha, Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade, Arnaldo Jabor, Cacá Diegues, que Vladimir Carvalho comenta com lucidez e honestidade crítica, em prefácio para o livro de Pedro Simonard sobre a geração que ganharia prêmios em festivais e resenhas lisonjeiras nos Cahiers du Cinéma:

Uma evidência que salta aos olhos neste ensaio tão sensível é que uma circunstância do Cinema Novo, talvez a mais marcante, o seu viés messiânico de dono da verdade, quase anula a sua proverbial veia contestadora e inconformista, atestando de certo modo a sua alienação e inata identificação com a classe dominante, como a reiterar que “a ideia dominante é a ideia da classe dominante”.      

Momentos de peso na cinematografia nacional ganham testemunhos históricos de quem os viveu em pessoa. Assistente do diretor Eduardo Coutinho no célebre Cabra marcado para viver, Vladimir e companheiros interrompem as filmagens no Engenho Galileia, interior de Pernambuco, ante a notícia do golpe militar que depusera Jango. Escondidos câmera, tripé e acessórios no meio do mato, o grupo caminhou por entre espinhos e pedras do sertão, milagrosamente a salvo dos jipes do Exército em patrulha pelas redondezas. Foi quando o aprendiz de cineasta soube que, documentarista por vocação e escolha, jamais provaria o glamour dos tapetes que levam às palmas de ouro de Cannes e aos leões de Veneza: em sociedades injustas e violentas como a nossa, fazer documentários é expor-se corajosamente aos riscos da denúncia, do desafio, do confronto perigoso com tiranos e corruptos. Ante a força de quem podia prender, torturar e dar sumiço, crismava-se o diretor do longa-metragem que chegaria às telas em 1971, pela obstinação com que vencera toda espécie de contratempo e obstáculo:

Nascia o embrião de São Saruê, com filme vencido, rebatedores feitos de quadros-negros dos grupos escolares; rapadura e farinha, pouca água. Um dia esquecemos um monte de latas da película já rodada em cima de um lajedo; quando voltamos pela caatinga espinhenta já era meio-dia, o sol no zênite, torrando tudo. As latas de filme estavam como chaleira quente fervendo, mudou toda a composição química, e o resultado é a textura pulverizada de areia que o documentário apresenta hoje, e os críticos dizem que foi “a troca do conteúdo pela forma através de uma imagem trepidante”. Que nada...

A O país de São Saruê, juntam-se O homem de areia (1982), O evangelho segundo Teotônio (1984) e O engenho de Zé Lins (2006), referências do que se pode compreender como “ciclo nordestino” na obra de Vladimir Carvalho. A homenagem ao romancista de Fogo morto é das maiores que já se fizeram a escritores brasileiros, com passagens comoventes. No leito em que morria de câncer, sem forças para aliviar a comichão nas partes íntimas, Zé Lins pede ao amigo Thiago de Mello que lhe coce os “quibas”. Lembrança que o poeta revive, entre lágrimas: “Eu meti a mão pela calça do pijama e cocei...”, gesto de grandeza que nem todo homem teria para com o pai. 

 Conterrâneos velhos de guerra (1990), Barra 68, sem perder a ternura (2000) e Rock Brasília – Era de Ouro (2011) destacam-se no “ciclo brasiliense” do diretor. O primeiro é um clássico, a ser obrigatoriamente citado em qualquer estudo sobre a construção da nova capital. Impressiona o depoimento do urbanista Lúcio Costa, que teima em negar a chacina de trabalhadores no canteiro de obras da Construtora Pacheco Fernandes. Ante a insistência do entrevistador Vladimir, põe por terra o refinamento do intelectual que se ilustrou em Paris e declara ser tudo invenção dos motoristas de táxi, eles gostam muito de mentir... E se tiver mesmo acontecido, que representa a morte de alguns operários, ante a epopeia que foi construir aquele colosso? Momento de insensibilidade e de pequenez humana, que a história brasiliense deve à argúcia com que Vladimir arranca a verdade de quem, no teto da casa-grande, dá as costas aos que se amontoam na senzala. Donos do poder insolentes o bastante para, sob o tacão do AI-5, invadir a Universidade de Brasília, humilhar professores e perseguir estudantes, violência que Barra 68 mantém viva na memória dos que a sofreram e no espírito alerta dos que se recusam a tê-la de novo. Tempos medonhos cuja trilha sonora poderia ser das bandas Capital Inicial, Legião Urbana e Plebe Rude, a dizer e a cantar que ainda assim não se deve perder a esperança, com o valor que lhes confere o cineasta: “Este rock and roll, que ganharia a mais extraordinária visibilidade nacional, é o primeiro e mais bem-sucedido produto de toda a cultura saída da estufa brasiliense”.

Essa, a obra do diretor que faz de um filme bem mais do que “a maior diversão”, segundo aquele velho slogan. Para Vladimir Carvalho, cinema é realidade, cultura, história, documento, verdade, saber, a juntar as pontas de duas fantasias, a dos pobres de São Saruê e a dos nobres que dançam quadrilha na Praça dos Três Poderes. Grande, triste e desoladora metáfora de uma terra chamada Brasil.

*Edmilson Caminha é escritor, jornalista, professor de literatura brasileira e de língua portuguesa. É consultor legislativo (aposentado) da Câmara dos Deputados. Tem artigos, ensaios e entrevistas publicados na Revista Brasileira, da Academia Brasileira de Letras (Rio de Janeiro); Revista da Academia Mineira de Letras (Belo Horizonte); revista ClãRevista da Academia Cearense de Letras e jornais O Povo Diário do Nordeste (Fortaleza); Jornal de LetrasRioArtes Jornal da ABI (Rio de Janeiro); D.O. Leitura (São Paulo); Suplemento Literário Minas Gerais (Belo Horizonte); A Tarde (Salvador); O Dia e Diário do Povo (Teresina); Correio Braziliense Jornal da Associação Nacional de Escritores (Brasília); O Cometa Itabirano O Trem (Itabira, MG), entre outros.


El País: Brasil chega a 200.000 mortes na pandemia com SUS sob pressão

País enfrenta um cenário difícil com doença mais uniforme entre as regiões enquanto a estratégia de vacinação segue imersa em dúvidas. Atrasos em testes e na atualização de prontuários turvam análise

Beatriz Jucá e Jorge Galindo, El País

O Brasil supera a dura marca de 200.000 mortes pela covid-19 em sua contagem oficial com um cenário nebuloso pela frente. O país está prestes a entrar na sazonalidade que favorece a circulação de vírus respiratórios e espera um repique pelas aglomerações das festas de fim de ano enquanto se vê imerso em uma série de obstáculos para iniciar a vacinação e ainda não tem uma política efetiva para frear os contágios mesmo com a iminência de uma variante do coronavírus mais transmissível. É neste cenário que o país conta, nesta quinta-feira, 200.498 mortes por coronavírus durante a pandemia e 7,96 milhões de casos ―mais de 87.000 deles registrados nas últimas 24 horas, um pico. Se no início da crise sanitária algumas regiões emanavam maior preocupação no país continental, a situação agora é grave nas mais diversas regiões. Nos últimos meses, o Brasil viu o vírus se espalhar pelo seu território de forma mais uniforme e agravar, por exemplo, a situação em regiões ao sul, que inicialmente tinham mais fôlego pela baixa concentração de casos e agora sofrem com seus sistemas de saúde abarrotados.

Depois de atingir os primeiros 100.000 mortos oficiais pela covid-19, em agosto, o Brasil não registrou picos agudos de mortes por covid-19 como nos primeiros meses da crise. A estratégia brasileira focou basicamente em uma gestão de leitos por prefeitos e governadores, que decidiam ampliar ou reduzir as medidas restritivas frequentemente conforme os dados locais. Em geral, só iniciativas pontuais de restrição circulação foram novamente impostas de agosto para cá, algumas delas só com a intervenção da Justiça, como em Manaus. Medidas para rastrear casos e de fato tentar frear os contágios não foram implementadas como uma política pública robusta. As mortes por covid-19 foram distribuídas em um espaço maior de tempo, mas o Brasil nunca chegou a conseguir controlar de fato a pandemia. Foram mais de 200.000 mortes registradas oficialmente desde março, data do primeiro óbito. Cerca de metade delas a cada cinco meses de pandemia no país.

Mas a perda humana de uma das maiores crises sanitárias pode ser ainda maior. O excesso de mortes já havia ultrapassado 200.000 em relação à média de anos anteriores em meados de novembro, segundo dados do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (Conass). Além disso, o sistema do Governo Federal que registra hospitalizações e mortes por covid-19, o Sivep-Gripe, indicava nesta quarta-feira, dia 6, as cifras de 187.800 óbitos confirmados e outras 80.000 mortes por síndrome respiratória aguda grave (uma complicação da covid-19 e de outras síndromes gripais) não especificadas, nas quais podem estar incluídos casos de coronavírus não registrados por exame por motivos que vão de problemas da coleta à dificuldades de detecção pelo teste laboratorial. A Vital Strategies —uma organização global composta por especialistas e pesquisadores com atuação junto a Governos— já alertou sobre a possibilidade de casos omissos sob a justificativa de que a OMS determina que casos em que os pacientes apresentaram três ou mais sintomas clínicos de covid-19 deveriam ser diagnosticados como suspeitos. O Ministério da Saúde tem dito que os casos são revisados e só depois incluídos no sistema de monitoramento.

Soma-se a isso a demora nas notificações e o represamento de dados que pesquisadores brasileiros têm ressaltado neste momento, quando a demanda por internação hospitalar de infectados pelo coronavírus voltou a crescer em diversos Estados. Isso porque, com a base de atendimento lotada, as fichas demoram a ser preenchidas e notificadas no sistema federal, atrasando a cadeia de dados. O cenário ainda é influenciado pelo represamento durante os feriados de fim de ano, quando tanto laboratórios quanto hospitais atuaram com equipes reduzidas, em regime de plantão.

Pandemia interiorizada

Se antes havia uma ampla concentração nas populosas capitais e cidades metropolitanas, o interior do país já está marcado pelo avanço do vírus e enfrenta a pandemia com sistemas de saúde mais frágeis. O mais recente boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, com dados até o dia 26 de dezembro, mostra que 56% das novas mortes por covid-19 na referida semana já se concentravam em cidades do interior. Esta interiorização da mortalidade é observada desde setembro, quando a concentração de mortes começou a se equiparar entre estes dois perfis.

Em vários Estados, gestores trabalham para tentar ampliar leitos de UTI, mas agora enfrentam maiores desafios para contratar profissionais da saúde, exaustos pelo trabalho na linha de frente ao longo de meses. O Amazonas ―Estado onde já se ventilou a teoria de ter chegado a uma imunidade de rebanho sem vacina e a um preço alto de mortes― vive uma nova onda preocupante. O próprio ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, já afirmou que o Amazonas está caminhando para as proporções do ano passado. E o governador Wilson Lima tem dito que trabalha contra o tempo para abrir mais leitos hospitalares, transformando espaços administrativos em hospitais em salas com leitos clínicos e as de leitos clínicos em terapia intensiva. Lá, a Justiça determinou maiores restrições após o Governo relaxar medida sob pressão de comerciantes e empresários.

Em um contexto em que os vizinhos da América Latina já reagem à alta de casos de covid-19 com novas restrições, o Brasil segue inerte. E parece repetir a mesma posição errática do começo da pandemia. A guerra política entre o presidente Jair Bolsonaro e o governador João Dória na corrida por uma vacina geraram um clima tenso no país, embora, nos últimos dias, há uma pequena sinalização de trégua, com a decisão do Ministério da Saúde de comprar a vacina paulista desenvolvida com os chineses, a Coronavac. O Governo Federal enfrenta pressão da sociedade, de governadores e até da Justiça para antecipar uma estratégia nacional de imunização depois de atrasos nas negociações tanto de vacinas quanto de insumos. O Governo de São Paulo está na iminência de pedir a autorização para uso emergencial à Anvisa da Coronavac e promete começar a vacinar grupos prioritários no dia 25 de dezembro. Enquanto isso, o Governo Bolsonaro corre contra o tempo para tentar iniciar a vacinação antes. Prometeu começar cinco dias antes de São Paulo, no dia 20 de janeiro. Os cronogramas sobre o quantitativo de vacinas que devem estar disponibilizadas nos postos nos próximos meses ainda não estão definidos.

“A gente lamenta, mas a vida continua”

Já o presidente Jair Bolsonaro segue com declarações que põem em xeque a segurança de vacinas em um momento em que a confiança na ciência é fundamental para garantir uma campanha de vacinação ampla. Especialistas têm sido categóricos ao dizer que a estratégia de imunização é coletiva e que, para chegar à almejada proteção, é preciso que a maioria da população receba os imunizantes. Mesmo que a vacinação comece nas últimas semanas de janeiro, os meses seguintes deverão ser de muito trabalho para garantir esta cobertura vacinal. Mesmo os que receberem a vacina deverão seguir os cuidados como distanciamento e uso de máscara, já que há um tempo até o corpo desenvolver uma resposta imune e a maioria das vacinas necessita de duas doses para uma proteção admissível.

Numa mudança de tom, o Ministério da Saúde emitiu nota de pesar pelas vítimas da pandemia. Assinada pela pasta, o informe expressa solidariedade aos familiares que perderam seus entes queridos e diz fazê-lo em nome do presidente. Pazuello também falou pela primeira vez em “guerra” total contra a doença, que deve estar acima “das ideologias”. “O Ministério da Saúde está trabalhando incansavelmente, acompanhando pesquisas científicas e reforçando diálogos entre o Brasil e outros países para garantir vacinas seguras e eficazes à população”, prometeu o ministério. Já Bolsonaro, em uma transmissão ao vivo nas redes sociais, voltou a questionar os dados sobre mortes, falando que pessoas morreram “com” covid-19, como se fosse possível separar as causas. “A gente lamenta hoje, estamos batendo 200 mil mortes. Muitas dessas mortes com covid, outras de covid, não temos uma linha de corte no tocante a isso aí. Mas a vida continua...”

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Everardo Maciel: Narrativas tributárias

No Brasil, o debate tributário tem conferido muita atenção às denominadas renúncias fiscais

Desde os primórdios, a humanidade se valeu de narrativas como forma de disseminação do conhecimento e preservação das tradições e valores. Nem sempre, entretanto, elas traduziam a verdade, por ato consciente ou não do narrador.

Como ensina o jurista Ives Gandra, tributo é norma de rejeição social, o que, combinado com a exigência de conhecimentos especializados sobre a matéria, converte a tributação num território pródigo para construção de narrativas, que podem tão somente traduzir vieses ideológicos ou interesses específicos, legítimos ou não, subsistentes ou não.

No Brasil, o debate tributário contemporâneo tem conferido muita atenção às denominadas renúncias fiscais.

Renúncia, no campo jurídico, corresponde ao “abandono ou desistência voluntária de um direito pelo seu não exercício, pelo não cumprimento de exigências para sua conservação ou por declaração expressa” (Dicionário da Língua Portuguesa, Academia de Ciências de Lisboa). Não há, pois, renúncia diante de uma obrigação.

Renúncias fiscais se inscrevem no âmbito da extrafiscalidade, que é tão universal e atemporal quanto a própria história dos tributos. O propósito é utilizar tributos para estimular iniciativas ou robustecer condutas, coexistindo com a função arrecadatória. Esse exercício demanda parcimônia, sujeição ao interesse público e aferição de resultados.

No domínio das desonerações tributárias, o direito pátrio reserva a denominação de imunidade para as desonerações que se deduzem do texto constitucional. Imunidades, pois, encerram a ideia de obrigatoriedade, o que afasta de pronto a possibilidade de renúncia.

Há imunidades que são irrestritas, como a desoneração do ICMS e do IPI nas exportações para o exterior; outras podem ser disciplinadas por legislação infraconstitucional, como o limite de faturamento para a concessão de tratamento privilegiado e simplificado para as micro e pequenas empresas, o universo dos produtos desonerados na Zona Franca de Manaus, os requisitos para fruição da imunidade das entidades de assistência social.

Em ambos os casos, todavia, inexiste a possibilidade de deixar de dar curso ao mandamento constitucional. Caso o legislador não positivasse as imunidades sujeitas a restrições por lei complementar, daria pretexto ao ingresso de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por omissão.

Jamais se aventou a possibilidade de apurar a desoneração, nas exportações, do ICMS e do IPI como renúncia, mas, não raro, se pretende qualificar como renúncias as imunidades sujeitas a disciplinamento por legislação infraconstitucional, o que constitui erro palmar.

Pode-se, por exemplo, discutir o limite de faturamento do Simples, mas jamais dispensar tratamento privilegiado e simplificado para as micro e pequenas empresas. Em outra perspectiva, é bom lembrar que a inexistência do Simples é a certeza de uma colossal informalidade, que pode recepcionar práticas perigosas, porquanto se converteria em atividade à margem da sociedade.

É certo que renúncias fiscais – não imunidades – devem ser submetidas a avaliações. Quando ineficazes, devem ser revistas por lei, conforme prescrição constitucional, observada a limitação imposta pelo art. 178 do Código Tributário Nacional, quanto às isenções concedidas por prazo certo e sob condições.

Eliminar uma renúncia fiscal não implica a constituição de equivalente montante de receitas. Pode, simplesmente, eliminar a atividade. Assim, alcança-se o pior dos mundos: não há renúncia nem receita. Cada situação, portanto, deve ser submetida à avaliação específica, sem a pretensão de generalizar.

Renúncia fiscal pode, também, estar associada a políticas sociais, a exemplo da isenção de produtos da cesta básica. A supressão dessa desoneração, mediante adoção de alíquota única na tributação do consumo, como tem sido aventado, é uma hipótese extrema de regressividade, afrontando, como observou o tributarista Edvaldo Brito, o celebrado princípio constitucional da capacidade contributiva.

*CONSULTOR TRIBUTÁRIO, FOI SECRETÁRIO DA RECEITA FEDERAL (1995-2002)


Paulo Fábio Dantas Neto: Espectros e esfinges - A esquerda na estrada até 2022

Dois dos temas mais carregados de incerteza na política brasileira atual são o rumo da oposição de esquerda até 2022 e sua sorte nas eleições presidenciais do mesmo ano.  Quem quiser ser radical na recusa a especulações, deve ser igualmente radical em não escrever sobre qualquer dos dois temas. Sobre o segundo, a incerteza desestimula até conjecturas. Entre a irrelevância que profetizam os espíritos desejosos de varrê-la do mapa político, a confirmação de uma posição de coadjuvante, desenhada nas eleições municipais de 2020 e a possibilidade de protagonismo polarizador, cavalgando uma crise econômica e social de proporções ainda maiores que a atual, há várias gradações possíveis para a sorte eleitoral da esquerda que é chamada por esse nome.  Seria exaustivo e sempre insuficiente tentar antecipá-las aqui. Já sobre o primeiro tema, como amante da moderação, desisti do excesso de cautela e resolvi me aventurar.

Um dos poucos consensos entre analistas é que, no interior desse campo onde se movimentam PT, PDT, PSB, PCdoB, PSOL, REDE e outros partidos menos cotados – e do qual se exclui uma esquerda que, no subsolo em que se viu colocada pela confrontação ideológica, já opera em interação com o campo liberal-democrático - , está em curso um realinhamento de forças, quiçá uma renovação de estratégias, métodos e programas, que poderá dar cabo da longeva hegemonia do PT sobre ele.

Evidenciada nas eleições municipais, essa possível tendência ainda precisa passar pelo teste de uma eleição nacional. Até lá, têm sido comentadas e interpretadas, nessa direção, as várias alianças eleitorais bem sucedidas que PDT e PSB celebraram - entre si e com partidos do centro e da centro direita - em muitas cidades relevantes, alianças das quais estavam ausentes o PT e o PSOL, com o PCdoB flutuando. Aponta para a mesma tendência (de realinhamento) a maioria dos comentários sobre a campanha de Guilherme Boulos em São Paulo, em cujo desfecho relativamente vistoso, os mais afoitos veem um tendencia do PSOL a substituir o PT como partido-polo de uma frente de esquerda e, os mais realistas, um movimento de Boulos em direção ao legado lulista, partindo da premissa de que o PSOL não é Boulos e Boulos não é o PSOL (assunto futuro para outra coluna).

São realinhamentos com sentido político diverso. Pelo primeiro, puxado pelo PDT e PSB, essa parte da centro-esquerda integraria, em 2022, uma frente ampla cujo epicentro estaria fora do seu campo. No segundo caso, haveria uma atualização da antiga ideia de pura frente de esquerda. Esses dois movimentos podem vir a ser contraditórios, de modo a um prevalecer e anular o outro - ou complementares.

O paralelismo de duas frentes anti bolsonaristas, uma de esquerda, outra ancorada ao centro, mas com participação de setores da centro-esquerda e ambas convergindo, num segundo turno, para se contrapor à reeleição de Bolsonaro, delineia-se como um possível e benigno desdobramento lógico das alianças que se firmaram para as eleições de 2020. Trata-se, entretanto, de conjectura destituída de caráter de predição. Por outro lado, é possível ver três modos pelos quais poderia prevalecer um dos dois tipos de realinhamento, anulando-se o outro.

Modo um seria a eventual frente ampla conseguir atrair o eleitorado de esquerda e anular a competitividade eleitoral de uma frente esquerdista, repetindo-se, no pleito nacional, o que se assiste, no momento, na campanha de Baleia Rossi à sucessão de Rodrigo Maia na Câmara dos Deputados. Como os eleitorados dos dois pleitos são completamente diferentes, a hipótese só não é delirante se a frente tiver um candidato mais à esquerda (Ciro Gomes, por exemplo), reeditando a fórmula de FHC, de um nome de esquerda sem um programa de esquerda, ou até contraposto ao dela, como ao da extrema direita. Ou se o centro construir um nome que dialogue com o andar de baixo do eleitorado nacional (pode ser, por exemplo, Luiz Mandetta] a ponto de fazer a centro-esquerda calcular que vale a pena.

Modo dois seria se Boulos conseguisse fazer do Brasil um imenso São Paulo e, por gravidade, atraísse PSB e PDT para uma frente de esquerda, tirando o chão da candidatura de Ciro Gomes, ou aliando-se com ela, murasse a outra frente, cujo arco se restringiria, assim, ao centro e à centro-direita.  Modo três seria a reinvenção da polarização direita-esquerda com fragmentação do centro político. Fala-se aqui do espectro de 2018 assombrar o processo político, por provocação de algum fator externo oposto à lógica moderadora do sistema político-partidário.

Um desses catalisadores negativos pode ser o recrudescimento da crise sanitária, econômica e social com os elementos explosivos aí embutidos, a saber, a politização do tema da vacinação, o agravamento do desemprego, o fim do auxilio emergencial, bombas-relógio potencializadas pela inércia governamental e pelo estímulo aberto do bolsonarismo à desobediência civil e ao desafio às instituições, como ante sala para uma solução autoritária. É visível que a extrema direita retoma sua ofensiva de maio desse ano, assim como é previsível que parte da esquerda não resista à tentação de aceitar o confronto nesse terreno.

Um segundo possível catalisador do espectro de 2018 é a reintrodução, como pauta central do País, através da mídia e do Sistema de Justiça, do tema da corrupção do sistema político. Essa iniciativa não é politicamente inocente, no sentido de que há, no interior da sociedade política, forças que trabalham contra a lógica moderadora do sistema representativo. Dentre elas a mais conspícua é, por definição, o próprio bolsonarismo. Mas há também atores que vêm perdendo terreno e protagonismo com a dinâmica agregadora que tem prevalecido das eleições municipais para cá, tendo como centro irradiador o Congresso Nacional.  Refiro-me aos setores cujas atitudes e pautas reportam-se ao lavajatismo e à parte da esquerda que vem sendo levada a reboque pelo processo de realinhamento em curso no próprio campo, como acima comentado.  Detenho-me neste ponto porque há uma nuance que não pode passar despercebida. Um eventual retorno de uma cena política polarizada pelo tema da corrupção, com suas implicações policiais e judiciais, não necessariamente terá, como protagonistas, os atores de 2018. 

Outra parece ser a visão da experiente jornalista Eliane Cantanhede, em artigo (“O pino da granada”) publicado em sua coluna em “O Estado de São Paulo”, em 29.12.20. Para ela, “ao abrir os arquivos hackeados da Lava Jato para os advogados do ex-presidente Lula, o ministro Ricardo Lewandowski tirou o pino da granada e vem por aí uma explosão política com epicentro no Supremo Tribunal Federal e estilhaços nas eleições presidenciais de 2022”. E conclui que o efeito político disso “deve ser favorável ao presidente Jair Bolsonaro”, porque pode facilitar a anulação de processos contra Lula, torná-lo elegível e, assim. “eletrizar o País e acirrar a polarização Lula versus Bolsonaro em 2022, o que ainda é favorável ao capitão, como em 2018”.

Devemos admitir que seja sim, uma granada. O risco de reiterar a polarização é real porque a personificação populista da esquerda na figura de Lula, aos olhos de uma larga faixa do eleitorado, e a predisposição de outra ampla faixa, ao populismo lavajatista, seguem sendo entraves ao livre fluxo da democracia e da política de isolamento da extrema direita. Mas quem daria a Bolsonaro o aval para se apresentar ao eleitorado como expoente desse segundo populismo se o perigo petista já não se apresenta como em 2018, a ponto de se apoiar o capitão para evitá-lo? Sem o “perigo do retorno” e sem o fator Lava Jato/Sergio Moro, Bolsonaro e as eleições de 2018 não teriam sido o que foram. Da explosão da granada de Lewandowski, temida por Cantanhede, Moro sairia mais fraco do que já se encontra. O script lavajatista não tenderia a vagar em busca de um novo ator? Não se duvida que Bolsonaro possa disputar esse lugar, mas que o conseguirá não é uma consequência lógica da explosão, pois não faltarão concorrentes a tentar se apropriar da retórica faxineira. Ela é candidata a se diluir como cereja de muitos bolos, de variados sabores ideológicos. Mas dificilmente será o centro do debate num País traumatizado pela pandemia e pela cumplicidade do Governo com ela.

Nesse ponto, podemos voltar à esquerda, nosso foco. Quem prestou atenção à campanha de Boulos em São Paulo viu que não se afastou da sua pauta o tema da corrupção. Muito pelo contrário, tentou fazer dele um foco para desestabilizar o oponente, através do questionamento da figura do seu vice.  Detonada a granada pelo STF, a solidariedade a Lula, no campo da esquerda realinhada, iria até o ponto da desmoralização de Moro para colar no ex-presidente a etiqueta de perseguido. Mas a partir desse ponto, quem na esquerda renunciaria ao tema para apostar em Lula como piloto do novo navio? O realinhamento no âmbito da esquerda (e até no próprio PT) já chegou a um ponto em que esse revival não tem mais espaço. Numa eventual reiteração da polarização estéril de 2018, a fila terá andado dos dois lados. Nem Moro nem Lula podem mais representar o que representaram.

Como político realista que é, Lula sabe disso melhor do que ninguém. Sabe que precisa usar uma eventual reabilitação eleitoral - advinda da sua batalha junto à Justiça para levar a Lava Jato a ocupar o seu lugar no banco de réus - para conquistar um mandato em condições menos incertas, do que se aventurar a uma candidatura presidencial. É mais racional que opte – como se cogita e se planta em sites e colunas - por uma candidatura ao Senado na Bahia. Se vitoriosa, renderia um abrigo institucional para prosseguir nas suas lides judiciais, que voltariam à estaca zero, mas não se extinguiriam. O lugar nacional que tentaria ocupar seria o de apresentador, sob protestos do PSOL, de Guilherme Boulos como príncipe herdeiro de sua majestade pretérita. Já na Bahia, a primeira barba tostada seria a do Governador Rui Costa, cuja estratégia política seria virada de ponta-cabeça por esse eventual movimento de peças em que o Estado se tornaria um bunker da resistência à renovação da esquerda. Mas nunca é demais repetir: isso tudo poderá ocorrer se a política moderadora não prevalecer.

* Cientista político e professor da UFBa.


Paulo Fábio Dantas Neto: Congresso Nacional 2021 - Manter sempre teso o arco da promessa

A notícia da incorporação, ontem, dia 18.12, de cinco partidos de esquerda (PT, PDT, PSB, REDE, PCdoB) à frente, já anteriormente formada pelo chamado “Centro Democrático” (DEM, MDB, PSDB, Cidadania, PSL, PV), que o Presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, articula para disputar sua sucessão, marca uma aliança política de grande significado. Independente dessa aliança levar ou não a uma candidatura única, importa que se torna bem mais robusto um movimento de amplas dimensões pela independência daquela casa legislativa e de reação à tentativa do Poder Executivo de instrumentalizar o seu comando. Nesse momento o deputado Artur Lira, candidato apoiado pelo Planalto, passa, em tese, à condição de candidato minoritário, se somados como seus adversários os deputados integrantes das bancadas daqueles onze partidos.

Vários tópicos entram em pauta para se analisar as implicações desse fato político. Dentre eles é possível citar o grau de correspondência efetiva que haverá entre as decisões das direções partidárias e o comportamento das bancadas, as repercussões, nas bancadas dos partidos do bloco “centro democrático”, especialmente o PSL e o DEM, dessa aliança com a esquerda, PT incluído e a nova relação que se poderá estabelecer entre as eleições na Câmara e no Senado, por vezes vistas como partes de uma “operação casada”.  Cedo para compreender tudo isso. Mais produtivo analisar o contexto mais geral dos processos sucessórios nas duas casas do Congresso, ao qual o fato de ontem se incorpora.  Parto da premissa de que o referido processo teve sua dinâmica afetada pelo timing de uma decisão judicial provocada por adversários do movimento unitário que se robustece na Câmara.

Judicialização como refração de um processo político

Como sabido e já bastante comentado, as urnas de 2020 trouxeram más notícias aos bolsonarismo e ao lavajatismo, os grandes vencedores de 2018. É menos evidente, devendo ser salientado, que essas duas faces da direita negativa não metabolizaram a nova disposição do eleitorado, que valorizou a eficácia da política na gestão de municípios e deu sinal verde a políticas de frente democrática de um centro moderado. Poucos dias após a apuração dos votos, juntaram-se para tentar armar a mão do STF contra esse impulso agregador. Tiverem êxito, ainda que por apertada maioria. O tribunal interceptou o processo político que se esboçava nas duas casas do Congresso para a renovação de suas mesas diretoras. Processo que mal começara a entrar em sua fase mais importante, a fixação de candidaturas expressivas de um realinhamento de forças no Legislativo, que só poderia mesmo avançar a partir do resultado eleitoral, como se requer numa democracia.

É bom lembrar que o STF foi formalmente provocado à judicialização preventiva do processo pelo PTB, partido da base governista, que assim fez o primeiro movimento de revide ao veredicto das urnas. Na sequência, uma bem articulada ameaça de “cancelamento” via redes sociais recorreu a palavras chave do dicionário político das eleições de 2016 e 2018 para emparedar o tribunal. Embora usando outro palavreado, não foi diferente a posição da mídia tradicional. Armou-se o raciocínio de que o STF prevaricaria se permitisse a continuidade do jogo político no Legislativo. Conforme esse raciocínio, “os políticos”, fatalmente, rasgariam a Constituição. Logo, caberia ao tribunal antecipar-se, mesmo na ausência de fato concreto, para pôr ordem na “bagunça”.  Preconceito antipolítico travestido de prevenção, pois, se é verdade que havia sinais de que um ator importante, o presidente do Senado, movia-se em direção a uma transgressão, sinais opostos partiam de articulações do Presidente da Câmara. E, para além disso, o processo envolvia um conjunto de partidos e lideranças que, por dever de oficio e instinto de sobrevivência política, tenderiam a ser afetados pelo espirito das urnas. Tinha horizonte, ao menos na Câmara, a articulação de uma ampla candidatura comprometida a conservar a independência da Casa frente ao Executivo e o padrão de decisões colegiadas que ali se verificaram nos últimos anos.  E se, no caso no Senado, seu presidente passasse da intenção ao gesto para viabilizar sua reeleição, com aparente cobertura de um plano B do Governo aí, sim, o STF seria chamado a se pronunciar perante um fato concreto.

Para não raciocinar sobre hipóteses, o STF poderia ter simplesmente desconhecido a ADIN do PTB.  Aliás, se não fosse o preconceito que ali também há contra a lógica do Parlamento, essa poderia ter sido a posição preliminar do presidente do tribunal. Feito relator, o ministro Gilmar Mendes também poderia, como Pilatos, ter ido nessa direção. Não o fez, mas também não foi na linha da interferência no jogo político. Ao contrário, apontou que era assunto do Legislativo, o que lhe rendeu críticas. Se houvesse lavado as mãos seria criticado do mesmo modo, por não ter interferido a tempo para impedir a "bandalheira".  Por outro lado, o fechamento prévio da porta à estratégia de Rodrigo Maia (que acabou ocorrendo, contra o voto de Gilmar) pode ter aberto a porta da Câmara dos Deputados a Bolsonaro. O tamanho desse perigo só sabia quem tinha informação sobre a correlação de forças real. Deve ter sido o caso de Mendes, dotando seu voto de razões próprias de um cálculo político. Um pecado? Quem disso escapa, na posição em que ele está? Gilmar foi minimalista e propôs deixar à liderança do outro Poder a decisão sobre os custos políticos comparativos da derrota de um candidato de continuidade que não fosse o próprio Maia e os das implicações de marcar um gol em impedimento. Gol que no fim das contas não valeria, já que habemus STF. Logo, o voto minimalista foi condicional e não rasgou a Carta. Na contra mão de um senso comum que acha realista prejulgar políticos, penso que faria mais bem à saúde das instituições brasileiras se a maioria do STF tivesse seguido o voto de Gilmar Mendes e dado a Rodrigo Maia o benefício da dúvida, mantendo a condicional.

Por que não o fez? Difícil aceitar a hipótese de que tenha sido por razões doutrinárias. Como observou um aluno perspicaz, é curioso que a letra da Carta tenha sido defendida pelos partidários do “direito criativo” e o “jeitinho”, proposto pelos garantistas.  Do paradoxo só escapou o ministro Marco Aurélio. Afora ele, parece que gregos e troianos votaram com a lógica da política. O voto de Gilmar tem afinidades eletivas com a política dos políticos. Já a posição da maioria expressa quanto o impacto da ética faxineira da Lava Jato ainda afeta a conduta de parte da cúpula do Judiciário. Alguém me dirá que depois da desmoralização de Moro, essa hipótese é enxergar vida no velhinho que morreu ontem.

Sergio Moro e sua turma entraram em decomposição. O lavajatismo, penso que não. É força latente, atuante na subjetividade de larga faixa da sociedade, mesmo que momentaneamente esteja na penumbra, pela prioridade objetiva da pandemia sobre a corrupção. Vejo-o como um sentimento público em busca de novo intérprete após o fracasso político de Moro. João Dória é um óbvio candidato a esse legado, daí sua dificuldade e sua indisponibilidade para interagir com tudo que cheire a esquerda. Mas Bolsonaro não renunciará ao mesmo legado, daí a guerra sem quartel entre ambos. Bolsonaro, ou a política palaciana, já trabalha para reconectar o legado lavajatista ao seu eclético repertório eleitoral, usando o aparato da segurança pública, sua influência em áreas do MP e as brechas que vai abrindo no Judiciário, prisma sob o qual se deve analisar, a meu ver, a coalizão de veto que aconteceu no STF no julgamento da ADIN do PTB.

Efeitos politicamente regressivos da judicialização

Salta aos olhos que uma frente ampla contra a bolsonarização da Câmara até a npte de ontem ainda não pudera passar de palavra a ato. O jogo político exige harmonização de discursos e de interesses complexos. É preciso gerenciar compromissos político-partidários, distribuir recursos e espaços políticos entre os aliados, no Congresso e fora dele e sintonizar as alianças nesse episódio particular com as que têm 2022 no horizonte e com as ainda mais gerais e permanentes, que importam na defesa das instituições. O encurtamento do prazo para fazer tudo isso teve graves implicações. Admito não ter tido, prospectivamente, no momento em que o STF julgava, a clareza que penso ter disso hoje, após o leite derramado.  O candidato fisiológico passou a operar na Câmara com desembaraço bem maior. E mesmo que não seja bem sucedido, que perca a eleição ou mesmo desista dela, a solução alternativa vencedora deverá estar mais distante de ter um perfil político contraposto ao dele. Bolsonaro pode não ganhar a Câmara do jeito que quer, nem controlar o Senado.  Mas tampouco será fácil isolá-lo, a não ser que ele deseje.

Por outro lado, foi um teste e tanto para a possibilidade de uma frente política futura que tenha no DEM um eixo de articulação. As tensões no partido acentuaram-se na razão direta da redução do espaço de manobra de Rodrigo Maia. A costura nos bastidores do nome da ministra Teresa Cristina para a cadeira que hoje ele ocupa é um recado claro de que o partido já age para enquadrar o seu personagem até aqui mais destacado. E não é realista esperar que partidos aliados ajudem a dissipar essas tensões. O MDB enxerga a possibilidade de retomar o controle do Congresso. Tucanos, sempre no limiar do discurso hegemônico, têm essa tendência reforçada pelo comando de João Dória. Quanto à esquerda, notou-se, após o julgamento do STF, movimentos erráticos que vão desde alimentar candidatura própria a negociar no varejo turvo de Artur Lira. O gesto político de ontem sinaliza a reversão do segundo tipo de movimento, mas a ideia de candidatura de esquerda à presidência da Câmara não se afastou da boca da presidente nacional do PT.

Existe a possibilidade do passo agregador dessa sexta-feira reverter um perigo que se insinuava no centro político da Câmara dos Deputados e em suas conexões à esquerda, aquele pathos centrífugo que acometeu, a partir de 2017, a coalizão que sustentara o impeachment de Dilma Rousseff e levara Michel Temer à Presidência. A centrifugação da amplíssima articulação do presidente começou quando Rodrigo Janot produziu um artefato midiático com o caso Joesley Batista. A centrifugação do arco de Rodrigo Maia tornou-se possível desde que o STF, também diante de um artefato de apelo midiático, aceitou fazer da sucessão das mesas do Congresso um parto prematuro. 

Tirado de tempo, Maia tentou a autoconvocação do Congresso, que suspenderia o recesso parlamentar para não deixar o governo agir solto no breu das tocas. A PEC emergencial não foi pauta capaz de fazer os partidos de centro se moverem e fez a esquerda roer a corda com receio das reformas.  Pela enésima vez não confiou no caminho da negociação política, preferindo a comodidade do status quo. O relator governista da PEC não apresentou, é claro, seu relatório e assim sepultou a ideia da convocação extraordinária, cuja serventia iria além da PEC e se estenderia a dois problemas cruciais para o País, no momento, para cuja solução se requer unidade e moderação, logo, vigilância do Congresso. Além das sucessões no próprio Congresso, o da vacinação, interesse público número um, de que tratarei na próxima semana pois não se pode tratá-lo a não ser como foco central.

Com tempo ruim todo mundo também dá bom dia

Em meio a tantos percalços e com o Congresso fechado em janeiro, o campo estará, em tese, livre para o governo operar nas sombras e tentar impor seus candidatos. Mas quem der como certo que o Parlamento foi neutralizado e que aceitará ser humilhado pela leviandade contumaz do Presidente da República pode ter surpresas.  Situação oposta ficou patente, também nessa sexta-feira, 18, na tribuna da Câmara dos Deputados. O presidente da Casa reagiu de modo contundente a uma acusação de Bolsonaro ao Legislativo, qualificando-a de mentirosa e tendo sua narrativa dos fatos, pela qual restabeleceu a verdade, confirmada pelo próprio líder do governo. Fora do plenário, no manifesto que anunciou a ampliação do “Centro Democrático” lê-se que “Os radicalismos se retroalimentam e são fundamentais para explicar a nossa união. Enquanto alguns buscam corroer nossas instituições, nós aqui lutamos para valorizá-las”.

Esses sinais de contraponto à ingerência espúria de outro Poder nas decisões do Legislativo animam, mas não devem iludir quanto a dificuldades de um processo em que a assimetria de recursos de cooptação e de chantagem joga contra a autonomia da instituição e cujo desfecho se dará numa votação secreta. Mas um discurso político forte pela independência da Câmara tem apelo pragmático também. Deputados e senadores, de um modo geral, têm noção do poder de barganha que perdem se elegerem presidentes que se dobrem a um Executivo comandado por um candidato a ditador. Tendem a preferir alguém com moderação no trato com o governo, mas firmeza na defesa do Poder e que cumpra acordos internos. Esse foi o roteiro de construção da liderança de Rodrigo Maia. 

Nomes assim não podem ser encontrados se o roteiro para tratar desse problema for o confronto personalizado com Bolsonaro.  A resiliência de sua popularidade seduz os mais pragmáticos, porém, seu efeito mais corrosivo é irritar os adversários impacientes, fomentando a dispersão e jogadas para a plateia. Santos guerreiros são ineptos para lidar com o tipo de maldade que o presidente encarna. Provam-no os sucessivos momentos em que foi desafiado nesses termos e, das urnas ou pesquisas, emergiram efeitos perversos. Foi assim no segundo turno de 2018, com o “elle Não!” puxado por um lulo-petismo ferido; foi assim em maio desse ano, quando o mito começou a ressurgir, ainda antes do auxilio emergencial, logo após Sergio Moro supor que o foguetório de artificio de seu rompimento seria um tiro de misericórdia sobre um presidente até então isolado por se opor à política pública do moderado ministro Mandetta; está sendo assim agora quando, uma semana depois de fortes embates com o governador de São Paulo em torno da vacina, pesquisa Datafolha informa que Bolsonaro é bem avaliado por 37% dos entrevistados e que para 52% ele não tem nenhuma culpa pelo total de mortos pela covid no Brasil.

Na esteira dessas lições o discurso político firme e unitário precisará, nesses pouco mais de trinta dias, ser combinado com a abertura de novas frentes de entendimento com áreas próximas à candidatura de Lira na Câmara e com a bancada governista no Senado. Preparar-se para vencer um embate em condições adversas é um empreendimento em que, afinal, um acordo pode também se tornar razoável. E ele também é possível, se o adversário tiver igualmente juízo atento ao preço pago por Dilma Rousseff por imaginar que poderia politizar plebiscitariamente uma eleição no interior do Legislativo.

Num cenário como esse, estará em posição privilegiada quem, a essa altura, ainda puder intermediar, com êxito, uma negociação do centro democrático do Congresso com as bases parlamentares governistas nas duas casas, em torno de possíveis nomes de consenso. A posição discreta que o ex-presidente Temer ocupa na geografia política do país faz dele alguém que poderia obter um “nada a opor” do governo a tal entendimento sem, necessariamente, precisar de um “tá ok” de Bolsonaro. Até porque não se pode escrever o que o ex-capitão diz. As chances de êxito dessa interlocução provem dela poder se dar, simultaneamente, com o centro e o centrão e favorecer um entendimento autônomo, no Legislativo, para manter teso, numa conjuntura social e sanitária crítica, o arco da promessa de governabilidade com preservação da democracia que exerceu em 2019-2020.

Na falta de um horizonte límpido, a experiência de dois anos de labuta com o fator Bolsonaro traz bons conselhos. Olhar para os resultados das eleições e para frentes políticas que se formaram e venceram. Lembrar dos trinta primeiros dias de enfrentamento articulado da pandemia no Brasil; de cooperações entre governos estaduais e municipais adversários; do auxílio emergencial, do auxílio aos Estados, da votação do Fundeb. Nesses momentos Bolsonaro se isolou e perdeu espaço. Ao inverso, recupera-se sempre que se perde o foco nesse processo plural e incremental. Sei que o que estou dizendo não responde a certas urgências e convicções, mas o que responde?

Peço, a quem o desfecho dessa coluna decepcionar, que me conceda o benefício de esperar a da próxima semana. Talvez tratando de outro tema crucial, eu possa argumentar melhor pelo bem público que faria um grande acordo político que evitasse a disputa dilacerante que se anuncia pelo controle das mesas diretoras do Congresso. Daqui a 30 dias o país agradeceria se sobre ambas reinasse, soberano, em vez da sucessão, o tema da vacinação. Sem prejuízo de que a frente democrática que se desenhou hoje na Câmara tenha longa vida e ganhe muita força no parlamento e na sociedade. Aliás, um acordo nacional para vencer a crise com aval do Legislativo é uma promessa que depende da solidez do arco.

* Cientista político e professor da UFBa.


Caetano Araújo: Ecos da Guatemala

Depois das manifestações massivas no Chile e no Peru, chegou a vez da Guatemala. Milhares de manifestantes saem às ruas do país, num roteiro semelhante aos eventos de 2015, que terminaram com a queda e posterior prisão do então presidente do país. O movimento tem bandeiras claras: combate à corrupção e alocação eficiente dos recursos públicos. O estopim da crise foi a proposta de orçamento, que embute aumento expressivo da dívida pública, em benefício de alguns setores empresariais, com a redução concomitante dos recursos destinados à saúde e à educação. A renúncia do presidente já é discutida abertamente, até nos círculos governistas.

Nas diferentes capitais da América Latina sucedem-se manifestações intermitentes de insatisfação política. Na verdade, todos esses eventos são as manifestações visíveis do mesmo terremoto que opera nas profundezas do subcontinente. Para pensar esse terremoto, podemos usar, a título de hipótese, a expressão “paradoxo da educação mínima”, em analogia com as armadilhas da situação de “renda média”, que anima o debate econômico.

A descrição do paradoxo é simples. Em situações de legalidade democrática e relativa estabilidade econômica, com acesso à informação em tempo real, um pequeno crescimento nos níveis de escolaridade dissemina na população, simultaneamente, a consciência de suas carências e da responsabilidade do Estado pela sua superação. A agenda política que daí resulta tem duas caras: eficiência dos serviços públicos e, para chegar a tanto, aperfeiçoamento das instituições. Na linguagem comum, reforma política e reforma democrática do Estado.

No Brasil, a sequência temporal entre progresso educacional e nova agenda foi clara. A universalização do ensino fundamental entre nós data de fins do século XX e a primeira geração que sofreu o seu impacto foi protagonista das manifestações de 2013. O processo constituinte, em debate no Peru, está acordado no Chile. Na Guatemala, teremos que aguardar os desdobramentos do processo para ter alguma clareza a respeito de seu desfecho provisório.

Não é a primeira vez que países da América Latina partilham o mesmo conjunto de tarefas e desafios históricos. Em anos não muito distantes, a tarefa de pôr fim às ditaduras e reiniciar a ordem democrática foi enfrentada com sucesso, seguida, quase de imediato, pela conquista de algum patamar de estabilidade econômica. Nesses momentos, em consonância com as especificidades históricas de cada país, foram constituídos operadores políticos à altura das demandas da conjuntura.

Hoje, em contraste, as demandas estão claras, para população e para os atores da política, mas o ritmo da política é mais acelerado e os operadores competentes demoram mais a aparecer.

*Sociólogo, diretor da Fundação Astrojildo Pereira


El País: Estados Unidos processam Facebook por monopólio

Procuradores de 48 Estados do país e o órgão regulador do Comércio pedem que a empresa de tecnologia venda o Instagram e o WhatsApp

A Comissão Federal do Comércio dos Estados Unidos (FTC na sigla em inglês) e um grupo de procuradores de 48 dos 50 Estados do país entraram com uma ação contra o Facebook nesta quarta-feira para reduzir o tamanho da empresa e sua posição de mercado. De acordo com o processo, a empresa de tecnologia dirigida por Mark Zuckerberg mantém seu “monopólio” no setor de redes sociais há anos por meio de condutas empresariais que atentam contra o livre exercício da concorrência.

A reação da empresa de tecnologia foi imediata e, em comunicado, lamentou os “efeitos adversos” que essas restrições terão sobre a comunidade empresarial e os usuários de seus serviços. O penúltimo capítulo da repressão antitruste à gigante de Palo Alto gerou inquietação no pregão, com o índice de tecnologia Nasdaq caindo quase 2%. Os restantes índices registraram ligeiras quedas, devido ao continuado bloqueio em torno do novo pacote de estímulos.

A ação, movida em um tribunal federal de Washington, foi anunciada pela procuradora-geral do Estado de Nova York, Letitia James, que lidera a ação. Os Estados acusam o Facebook de adquirir ilegalmente concorrentes como Instagram e WhatsApp, privando dessa maneira os consumidores dos benefícios e vantagens de um mercado competitivo com maior proteção da privacidade. O Facebook comprou o Instagram em 2012 por um bilhão de dólares e o sistema de mensagens WhatsApp dois anos depois por 1,9 bilhão de dólares. Desde que foram adquiridas pelo Facebook, as redes sociais viram sua popularidade disparar, contribuindo para reforçar o monopólio da empresa de tecnologia, que começou em um alojamento estudantil de um campus e cujo valor agora é estimado em mais de 800 bilhões de dólares.

Os reguladores federais e estaduais investigaram a empresa de Zuckerberg por 18 meses. “Essa conduta prejudica a concorrência, deixa os consumidores com pouca margem de escolha para suas redes sociais pessoais e priva os anunciantes dos benefícios da concorrência”, disse a FTC em um comunicado. Os autores da ação solicitam ao tribunal que obrigue o Facebook a desinvestir em ativos ou implementar uma reestruturação de seus negócios, especialmente em relação à rede social fotográfica e ao popular serviço de mensagens.

“As redes sociais são fundamentais para a vida de milhões de norte-americanos. A prática do Facebook de se entrincheirar e manter seu monopólio nega aos consumidores o benefício da concorrência”, afirmam os reclamantes, em uma conduta que consideram claramente “anticompetitiva”.

O processo ilustra a crescente ofensiva nacional e internacional contra o gigante da tecnologia. Legisladores e reguladores há muito buscam o Facebook, Google, Amazon e Apple por seu domínio no comércio, eletrônicos, mídia social, mecanismos de busca e publicidade na Internet, algo que para muitos representa uma injeção econômica em tempos de crise devido à pandemia, mas que, na consideração de outros, como o presidente Donald Trump e seu rival, o presidente eleito Joe Biden, representa um risco pelo poder e influência que acumulam. Tanto o partido Democrata quanto o Republicano têm sido a favor da regulamentação da atividade das grandes tecnologias, o que foi comprovado nos últimos meses em uma ação do Departamento de Justiça contra o Google por abusar de sua posição diante da concorrência. Outro na mesma direção é esperado, a pedido de legisladores republicanos e democratas, até o final do ano. Os reguladores na Europa também defendem leis mais rígidas para limitar o domínio da indústria de tecnologia e impuseram multas de bilhões de dólares por violar as leis de concorrência.

As batalhas contra o Facebook devem desencadear uma guerra jurídica árdua e prolongada, diante da qual a tecnologia parece blindada por seu valor de mercado incomensurável e uma defesa de luxo mais do que provável. A empresa rejeitou repetidamente que viola quaisquer regras antitruste. Muito poucos casos antitruste importantes apontaram para fusões aprovadas e encerradas anos antes; na verdade, a Federal Trade Commission aceitou os acordos para adquirir o Instagram e o WhatsApp pelo Facebook durante o mandato de Barack Obama.