Democratas

Ascânio Seleme: E se Trump ganhar?

Desdobramentos políticos impactarão todo o mundo

Nenhum analista político pode cravar, é cedo, mas evidentemente as chances de Donald Trump perder a eleição em novembro parecem bastante razoáveis. Neste momento, as pesquisas apontam que ele está pelo menos dez pontos percentuais atrás de Joe Biden, o candidato democrata a presidente dos Estados Unidos. Desde o início da pandemia de coronavírus, que teve um efeito devastador sobre a sua liderança, Trump vem perdendo apoios e ganhando antipatias. Os erros em sequência cometidos no enfrentamento do vírus e a deterioração da economia foram os principais elementos para turvar a impressão que os americanos têm de seu presidente.

Sua única possibilidade de reverter o quadro é ver as coisas mudarem daqui até novembro, mês da eleição americana. Para sua sorte e azar do mundo, já há sinais de que estão mudando. Na economia, a recessão aparentemente acabou ainda em abril. Em junho, mais de quatro milhões de empregos foram criados nos EUA. As vendas no varejo cresceram 25% nos últimos dois meses. Uma recuperação importante, que não foi vista em nenhum outro país, mesmo os que já vivem a pós-pandemia. Outros indicadores puxados por estes dois também melhoraram no final do primeiro semestre.

Além de apontar para a pujança da maior economia do mundo, os dados mostram que Trump não está morto. Crescimento econômico com criação de emprego é cabo eleitoral de primeira grandeza em qualquer lugar. Muitos eleitores votam com o bolso, com a geladeira cheia, com o carro na garagem, com a hipoteca da casa paga. Mas há um outro elemento no qual o republicano aposta. Trata-se do voto dos que Trump chama de seus “eleitores invisíveis”. São, na verdade, os envergonhados, que votam num determinado candidato porque intimamente se identificam com ele, mas publicamente não conseguem assumi-lo.

Para seus eleitores conservadores Trump mantém a política de permanente confronto com os manifestantes do “Black Lives Matter”. Estes chamam manifestação de baderna e não se importam com a truculência policial contra negros. Embora não admitam publicamente, muitos concordam com a tese dos supremacistas, são racistas e querem manter a dominância branca na política e na economia. Os envergonhados por vezes dizem o oposto, mas no escuro do seu âmago odeiam manifestações e manifestantes. O envio de tropas federais para conter distúrbios em Portland, no Oregon, na segunda-feira, teve esse cálculo político. Trump quis mostrar ao seu eleitor que continua sendo Trump.

Aos demais, tenta pintar um novo autorretrato. O mais inusitado foi apresentado na semana passada aos jornalistas que cobrem a Casa Branca, durante entrevista sobre o coronavírus. Trump entrou sozinho na sala de briefing, fez uma breve declaração sobre a situação do dia e abriu para perguntas. E então, surpreendentemente, respondeu a cada uma delas sem arrogância, sem ataque a jornalistas, sem ódio. Falou de maneira tranquila e respondeu a todas de modo correto, como deve ser feito, civilizadamente, mesmo as mais venenosas. Estava introduzindo um novo elemento na campanha, que por ora pode ser chamado de Trumpinho Paz e Amor.

Além disso, duas vacinas contra a Covid em testes finais em laboratórios americanos podem estar disponíveis ainda em setembro ou outubro. Será seu último trunfo contra Biden. O tempo dirá, mas a chance de Trump receber das urnas um segundo mandato não pode ser descartada tão cedo, apesar da enorme vantagem de seu oponente. E se ele ganhar, os desdobramentos políticos impactarão todo o mundo.

No Brasil, claro, fortaleceria Bolsonaro. O problema para o capitão reside na derrota de Trump. Ele teria de explicar aos democratas o apoio tão descarado quanto indevido que deu ao presidente republicano. Na verdade, mais do que isso, foi “vergonhoso e inaceitável”, como reclamou anteontem o deputado democrata Eliot Engel, presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados. Referia-se a um dos três zeros de Bolsonaro, que publicou em redes sociais vídeo da campanha de Trump atacando Biden.


Demétrio Magnoli: O partido rasgado

O plano A é disputar com Sanders, que se descreve como um ‘socialista democrático’ e parece inelegível no panorama político americano

Na noite de 4 de fevereiro, Nancy Pelosi, a democrata que preside a Câmara dos EUA, rasgou as páginas do discurso provocativo de Donald Trump sobre o Estado da União. Simultaneamente, emergiam os resultados da apuração atrasada das primárias democratas de Iowa, evidenciando tanto o duplo triunfo de Pete Buttigieg e Bernie Sanders quanto a humilhante derrota de Joe Biden. O gesto extremo de Pelosi revelou a vontade do Partido Democrata de encerrar a “era Trump”. Iowa, por outro lado, revelou que o Partido Democrata está rasgado, para sorte de Trump.

Os assessores de Trump não fazem segredo da tática que empregam nas primárias do partido rival: concentram o fogo em Biden, o principal candidato moderado, e disseminam o rumor de que a direção democrata trapaceia contra Sanders, o nome mais forte da esquerda. A tese da trapaça cala fundo na ala esquerda democrata, pois é elemento crucial do discurso do próprio Sanders desde a contenda interna de quatro anos atrás com Hillary Clinton.

Sanders compartilha com Trump inclinações políticas isolacionistas e ideias econômicas protecionistas. Mas a preferência do presidente não se deve à comunhão ideológica pontual. O Plano A é disputar a Casa Branca com Sanders, que se descreve como um “socialista democrático” e parece inelegível no panorama político americano. O Plano B é ajudar o esquerdista a caminhar até a convenção democrata, provocando uma cisão tão amarga quanto a de 2016, quando o núcleo de eleitores de Sanders preferiu a abstenção ao voto em Hillary.

A crise dos trabalhistas britânicos, que sofreram sua pior derrota eleitoral desde 1935, ilumina a encruzilhada dos democratas americanos. Há cinco anos, o Partido Trabalhista foi tomado de assalto pelo Momentum, uma organização esquerdista inspirada no exemplo dos partidos Syriza (Grécia) e Podemos (Espanha). O desastre eleitoral é o resultado previsível do giro à esquerda dos trabalhistas.

O ativismo militante do Momentum propiciou a eleição de Jeremy Corbyn como líder trabalhista e o isolamento das lideranças partidárias tradicionais. Sob o seu influxo, o Partido Trabalhista lançou um manifesto eleitoral estatizante e ausentou-se do debate nacional sobre o Brexit. Os conservadores de Boris Johnson, alinhados sobre a política de ruptura completa com a União Europeia, bateram impiedosamente o adversário inviável, subtraindo aos trabalhistas suas antigas fortalezas eleitorais do centro e do norte da Inglaterra.

Sanders não é, exatamente, um Corbyn. O “socialista” americano nunca flertou com o antissemitismo, retirou seus antigos elogios à Cuba castrista e, mesmo hesitante, classificou o regime venezuelano de Maduro como “muito abusivo”. Mas, como Corbyn, ele lidera uma facção esquerdista própria, engajada em combate permanente com o establishment do Partido Democrata.

O paralelo esclarece um fenômeno relevante: a emergência de movimentos esquerdistas capazes de cindir partidos tradicionais de centro-esquerda. O Momentum constituiu-se como expressão da juventude urbana radicalizada, dos campus universitários e de uma expressiva parcela do funcionalismo público. A corrente de Sanders tem raízes sociais semelhantes. Não por acaso, o Sanders da última década abraçou as causas do multiculturalismo e das minorias, enterrando no passado sua aliança prioritária com os sindicatos e seus votos parlamentares anti-imigração.

Corbyn e Sanders são os “Grandes Eleitores” da direita nacionalista. Sem o primeiro, a história do Brexit talvez tivesse outra conclusão. Sem o segundo, a jornada de Trump rumo à reeleição enfrentaria obstáculos incomparavelmente maiores.

Contudo, o britânico e o americano refletem a separação cada vez mais pronunciada entre os eleitores de esquerda das cidades cosmopolitas e a “nação profunda” que teme os deslocamentos sociais engendrados pela globalização. A responsabilidade pelos triunfos da direita nacionalista não é deles, mas dos partidos tradicionais incapazes de se reinventar. Pelosi rasgou o discurso odiento, mas não sabe escrever um texto alternativo.


El País: Impeachment de Trump chega a clímax com desfecho previsível e impacto eleitoral incerto

Advogados da Casa Branca alertam contra a destituição do mandatário: “Estão pedindo algo muito perigoso”

Os advogados de Donald Trump começaram no sábado seu turno de fala e defenderam que as manobras do presidente sobre o Governo da Ucrânia, a quem pedia investigações prejudiciais aos seus rivais democratas, eram de interesse legítimo e não foram apoiadas em coação. O advogado da Casa Branca, Pat Cipollone, acusou os democratas de usar um procedimento excepcional como o impeachment, que os Estados Unidos realizam pela terceira vez na história, para retirar o mandatário da reeleição em 2020. Cipollone tentou dessa forma dirigir a acusação que pesa sobre o acusado aos promotores. “Estão pedindo que façam algo muito perigoso”, alertou.

Trump tem o caminho à absolvição livre uma vez que a destituição precisa de dois terços da Câmara e os republicanos, que são maioria com 53 das 100 cadeiras, cerraram fileiras em torno ao mandatário. Os democratas têm problemas para conseguir convencer até mesmo quatro deles, com os quais somam 51 votos, para poder pedir a declaração de testemunhas no julgamento. Foi a maioria democrata na Câmara baixa que tornou possível a abertura do julgamento, mas o peso agora está na alta, território amigo do mandatário. O veredito do Senado é previsível, o efeito nas eleições presidenciais de 2020 é mais incerto.

A manhã começou com um gesto teatral por parte dos gestores do impeachment, os sete congressistas democratas que lideram a acusação e na sexta-feira concluíram sua exposição pedindo a destituição do presidente. Pouco antes das 10h, quando começava a sessão, marcharam em procissão da Câmara dos Representantes ao Senado para entregar um total de 28.578 páginas de transcrições e outros documentos divididos em caixas. Procuravam reforçar a solidez do caso diante do que estava por vir: a tentativa da defesa do presidente de dar uma guinada na acusação.

“Estão pedindo que revertam não só os resultados da última eleição, como pedem que retirem o presidente Trump de eleições que ocorrerão em nove meses”, afirmou Cipollone no começo de uma exposição de duas horas, breve, pelos parâmetros em que se move o impeachment. “Seria um abuso de poder completamente irresponsável fazer o que lhes estão pedindo que façam: interferir em uma eleição e excluir o presidente dos Estado Unidos das urnas”, afirmou ao concluir.

Trump é acusado de abuso de poder, em seu benefício eleitoral, por pressionar Kiev para que anunciasse duas investigações, uma relacionada ao pré-candidato presidencial que lidera as pesquisas, Joe Biden, e seu filho, Hunter, pelos negócios deste último na Ucrânia quando o pai era vice-presidente; e outra sobre uma teoria desacreditada segundo a qual o país europeu havia planejado uma campanha de ingerência nas eleições de 2016 para favorecer a vitória democrata. O próprio presidente norte-americano pede explicitamente as duas investigações a seu homólogo ucraniano, Volodymyr Zelensky, na conversa de 25 de julho, cujo conteúdo se tornou público. A acusação também afirma que ele usou o congelamento de ajudas militares e um convite à Casa Branca como moeda de troca.

O insistente pedido de Trump não só fica corroborado pela ligação de julho, como por múltiplos depoimentos e documentos que mencionam o interesse do republicano pelo assunto, mas os advogados o apresentaram no sábado como uma preocupação legitima pela corrupção e negaram o quid pro quo. Cipollone frisou que Trump não mencionou na conversa nenhuma moeda de troca e atribuiu a retenção de quase 400 milhões de dólares (1,7 bilhão de reais) em ajudas militares, que haviam sido aprovadas pelo Congresso, à irritação da Administração pelo escasso apoio vindo da União Europeia. Em relação à reunião entre Trump e Zelensky, os advogados lembraram que ela acabou não ocorrendo.

O encontro aconteceu, entretanto, em 25 de setembro em Nova York, quando o escândalo já havia explodido e com investigação na Câmara dos Representantes já em andamento. E Gordon Sondland, embaixador norte-americano na União Europeia, que recebeu de Trump um papel importante nas manobras com a Ucrânia, admitiu em seu depoimento na Câmara dos Representantes que, “na ausência de uma explicação crível”, acabou concluindo que as ajudas militares não seriam entregues “enquanto não ocorresse uma declaração pública da Ucrânia comprometendo-se com as investigações de 2016 e com a Burisma”. Em um relatório oficial, o Escritório de Controle do Governo, uma agência independente dentro da Administração, chamou o congelamento de ajudas de ilegal.

O advogado adjunto da Casa Branca, Mike Purpura, se expressou em linha semelhante a Cipollone em relação à teoria da conspiração sobre as eleições de 2016, frisando que “não há absolutamente nada de errado em pedir ajuda a um líder estrangeiro para se chegar ao fundo de qualquer forma de interferência nas eleições americanas”. Essa teoria da conspiração já não tinha fundamento quando o presidente pediu a Kiev que anunciasse as investigações. Toda essa campanha de pressão foi orquestrada através de uma espécie de diplomacia extraoficial e paralela, em que o advogado pessoal de Trump, Rudy Giuliani, desempenhou papel essencial.

Também pesa sobre o republicano a acusação de obstrução ao Congresso por obstruir a investigação. O congressista Adam Schiff, na liderança dos gestores nomeados pela Câmara dos Representantes para comandar a acusação, concluiu na sexta-feira três dias de argumentos com um pedido final aos republicanos: “Sabem que não podem confiar em que esse presidente faça o correto para o país”.

Vários veículos de comunicação norte-americanos adiantaram na sexta-feira que a defesa se centraria em aprofundar as suspeitas sobre os Biden como maneira de justificar as manobras de Trump. Pode ser que seja a bala reservada para segunda, quando o julgamento continuar. Cada parte possui 24 horas divididas em três dias, mas os advogados de Trump indicaram que não esgotarão seu tempo, ao contrário do que fez a acusação. O republicano, mais do que o prazo, se preocupa pelas horas, como bom animal midiático que é. “Meus advogados começarão no sábado, que é o que em televisão se chama o Vale da Morte”.


Fareed Zakaria: Esquerda dos EUA deve encontrar sua voz na Venezuela

Há sinais preocupantes de que a nova política externa dos democratas levará a um isolacionismo não tão diferente das concepções de Trump

O governo de Donald Trump enfrenta um teste na Venezuela. Ele precisa adotar uma política externa que contribua para a queda do regime de Nicolas Maduro, mas sem desencadear uma reação contra o que é percebido como “imperialismo americano”. E tem de respaldar uma transição que não ameace a velha guarda a ponto de ela lutar até o fim. E os EUA têm de se aliar a outras nações para ajudar um país que foi basicamente destruído na última década. Tudo isso exige uma diplomacia cuidadosa, multilateralismo e uma pressão silenciosa, não bombástica.

Mas a Venezuela também constitui um desafio para os democratas. Conseguirá o partido encontrar sua voz no caso da Venezuela e da política externa em geral? Até agora, observamos sinais preocupantes de que a nova política externa dos democratas poderá levar a um isolacionismo não tão diferente das concepções de Trump da “América em primeiro lugar”.

A deputada Tulsi Gabbard, do Havaí, afirmou que “os EUA não devem se envolver no caso da Venezuela e devem deixar o povo venezuelano determinar seu futuro”. Ilhan Omar, de Minnesota, disse: “Não podemos escolher líderes para outros países em nome de interesses corporativos multinacionais”. E o senador Bernie Sanders observou que “temos de aprender com as lições do passado e não nos envolvermos em mudanças de regime ou apoiar golpes”.

O guru da esquerda, Noam Chomsky, e outros 70 acadêmicos e ativistas, assinaram uma carta culpando ações dos EUA pela crise na Venezuela. É necessário explicar que os problemas da Venezuela foram causados por seu asqueroso governo? Que a população venezuelana não tem permissão para determinar o próprio futuro ou escolher seus líderes há anos, desde os tempos de Hugo Chávez?

O atual governo se agarrou ao poder fraudando eleições, procurando esmagar os partidos de oposição, amordaçando a mídia e usando força letal contra os que saem às ruas para protestar. O regime Chávez-Maduro destruiu o que foi um dia a nação mais rica da América Latina, produzindo uma inflação inimaginável de 1.000.000%. O indicador mais simples e desolador de como as coisas estão ruins na Venezuela é que, desde 2015, cerca de 3 milhões de venezuelanos fugiram.

Mas milhões estão lá e lutando. E multidões compareceram às urnas para votar contra esse governo, quase derrotando Maduro, em 2013, numa eleição desleal e conseguindo eleger um Parlamento de oposição, em 2015. E agora se uniram em torno de um líder de oposição, Juan Guaidó, e estão usando um processo constitucional para passar o controle do governo para o Parlamento eleito.

O governo venezuelano usou a sua riqueza vinda do petróleo para apoiar movimentos antiamericanos em toda a América Latina, de Cuba à Nicarágua. Mantém relações estreitas com traficantes de droga e está bem documentado que o país tem elos com Irã e o Hezbollah. O regime Maduro é apoiado por uma galeria de ditadores, de Vladimir Putin a Xi Jinping, Recep Tayyip Erdogan e os mulás iranianos.

Há um debate sobre o caminho a tomar no sentido de uma política externa progressista nos EUA. Existe um ceticismo, que é apropriado, quanto a um orçamento para a defesa que hoje é de US$ 700 bilhões e vem crescendo. Há lições a serem extraídas da ampliação demasiada do poder americano no exterior e das intervenções longas demais. A política com relação à Venezuela exigirá tato, cautela, um engajamento regional e mais. No entanto, para nos protegermos do perigo de erros e ações nefastas a resposta certamente não é o imobilismo resoluto.

Em um brilhante livro lançado no ano passado, A Foreign Policy for the Left, o filósofo político Michael Walzer (que é de esquerda) afirma que a posição padrão da esquerda tende para o imobilismo. O mundo é complicado, o poder americano pode ser mal utilizado e a informação nunca é suficiente, tudo isso serve para se manter fora de uma situação.

Walzer defende que, “num mundo assolado por guerras e conflitos civis, fanatismo religioso, ataques terroristas, nacionalismo de extrema-direita, governos tirânicos, enormes desigualdades e uma pobreza e fome generalizadas, o mundo exige uma atenção inteligente da esquerda”. / Tradução de Terezinha Martino


Foto: Beto Barata\PR

Augusto de Franco: Os democratas na beira do precipício

Uma análise das alternativas eleitorais do campo democrático

Umas das deficiências “genéticas” dos democratas é não perceberem com antecedência os perigos para a democracia. Foi assim que FHC – que é um democrata – não viu o perigo que Lula poderia representar. É assim agora com muita gente que não está vendo claramente o perigo Bolsonaro. Ou o perigo da volta do PT (com candidato próprio e/ou apoiando tácita ou explicitamente o nacionalista retrógrado Ciro Gomes). Ou o processo de captura da disputa política pelo campo autocrático que está em curso e que pode se consumar caso se estabeleça uma polarização entre duas candidaturas iliberais (no sentido político do termo, quer dizer, estatistas) no primeiro turno das eleições de 2018: Ciro ou alguém do PT x Bolsonaro.

Essa deficiência é antiga: os democratas atenienses, no século 5 a. C. não conseguiram prever os dois golpes que a democracia nascente sofreu por parte dos oligarcas (em aliança com os espartanos). E foram golpes sangrentos, que instalaram a Ditadura dos 400 e a Ditadura dos 30 (esta última conseguiu matar, em 8 meses, mais gente do que toda a primeira fase da Guerra do Peloponeso). Só foram acordar quando esses autocratas (chamados na época de patriotas – foi aí, aliás, que o termo foi cunhado, para designar que queriam a volta “do regime dos nossos país”), contando inclusive com gente da entourage de Sócrates, tentaram dar um terceiro golpe.

Ao longo da história, depois que os modernos reinventaram a democracia, a mesma deficiência se manteve: pode-se citar os casos da ascensão de Mussolini na Itália e do partido nazista, na Alemanha (mas também em vários países de Europa das décadas de 20 e 30 do século 20) cujos perigos, no início, não foram percebidos.

E a deficiência continuou. Assim como a democracia não tem proteção eficaz contra o discurso inverídico e nem contra o uso da democracia (notadamente das eleições) contra a própria democracia, os democratas têm uma miopia congênita para perceber os sinais fracos de que um processo de autocratização está em curso. Agora mesmo, no Brasil de julho de 2018, não estão conseguindo avaliar corretamente os perigos do bolsonarismo (vença ou não Bolsonaro as eleições de 2018) ou da volta da esquerda autocrática ao poder.

Examinemos as alternativas no campo democrático, ou seja, no campo das forças políticas que não são iliberais (no sentido político do termo). Neste campo temos como pré-candidatos: Geraldo Alckmin, Álvaro Dias, João Amoedo, Henrique Meirelles, Paulo Rabello, Flávio Rocha e (embora isso ainda seja controverso) Marina Silva.

Geraldo Alckmin
O problema com Alckmin não é, nunca foi, falta de competência administrativa. Isso todo mundo sabe que ele tem. Também não é a corrupção: até agora não há nada consistente contra o ex-governador de São Paulo. Por último, não é, igualmente, seu desapreço pela democracia: ele sempre atuou dentro dos marcos do Estado de direito.

O problema com Alckmin é de outra ordem: em parte, falta de inteligência política e, em parte, uma dificuldade de conquistar a simpatia do eleitorado e de infundir entusiasmo nos que poderiam apoiá-lo. Claro que se Alckmin se revelar o candidato que tem mais condições de quebrar a polarização, no primeiro turmo, entre dois candidatos do campo autocrático (Ciro ou alguém do PT x Bolsonaro), devemos ir de Alckmin. O mesmo vale para João Amoedo, Meirelles, Álvaro Dias, Paulo Rabello, Flávio Rocha e Marina (de preferência se conseguir se desvencilhar da mentalidade petista, se comprometer com as reformas e prometer que não indicará nenhum petista para compor seu governo).

A questão é: até quando podemos – os democratas – esperar por isso? A resposta padrão, de que Alckmin só vai crescer quando começar o horário eleitoral gratuito na TV e no rádio, não está mais colando. As pessoas estão percebendo que isso é uma maneira de produzir um fato consumado. Quando a curta campanha estiver na metade e se Alckmin não crescer, a resposta será a mesma: dirão que só na segunda metade da campanha ele vai crescer.

Muitos também se perguntam de que adiantou queimar João Dória (que tem, inegavelmente, mais facilidade para atrair o eleitor). Alguns perceberam a incoerência do argumento para desqualificar Dória, dos que diziam que ele não cumpriu até o fim o seu mandato de prefeito (curiosamente os mesmos que não criticaram Serra por ter feito igual).

Para resumir, o grande problema que temos agora é o seguinte: se Alckmin – o candidato do campo democrático com mais estrutura – não crescer, se Dória não puder mais substituí-lo, se Amoedo, Meirelles, Dias, Rabello, Rocha e Marina também não crescerem (ou não cumprirem os requisitos mínimos para ser apoiados pelos democratas, como o compromisso com as reformas), caminharemos em marcha batida para o cenário do horror, com a disputa política capturada pelo campo autocrático e os democratas sendo alijados da cena pública? Este o drama que estamos vivendo. É como estar na beira do precipício.

Álvaro Dias
Álvaro Dias também pode ser colocado no campo democrático, ainda que – provavelmente por oportunismo eleitoreiro – namore com o jacobinismo restauracionista dos instrumentalizadores políticos da operação Lava Jato (e queira representá-la). Mas a Lava Jato, como operação jurídico-policial do Estado de direito, não pode ter candidato. E ainda que alguns integrantes da força-tarefa de Curitiba sejam simpáticos à candidatura de Álvaro Dias, o resultado objetivo da campanha indireta que fazem, quando se comportam como atores políticos, leva necessariamente ao bolsonarismo.

Cabe aqui abrir um parêntesis sobre a instrumentalização política da Lava Jato. A insistência dos seus operadores em propagar que todo sistema político é corrupto e não tem mais conserto é uma mensagem perigosa para a democracia na medida em que será entendida pelos eleitores da seguinte maneira: temos de eleger uma pessoa honesta, capaz de fazer uma limpeza geral e recolocar ordem na casa. Os instrumentalizadores políticos da Lava Jato escondem, porém, que judiciário e ministério público fazem parte do establishment e apontam suas baterias para o parlamento (o poder, por excelência, da democracia) e para o executivo. Como se juízes e procuradores possuíssem um gene diferente, que os protegesse da corrupção que assola todos os demais poderes.

Álvaro Dias tem poucas chances eleitorais: forte na região Sul (especialmente no seu estado, o Paraná), é praticamente desconhecido nas outras regiões do país. E até agora não deu mostras de ter compreendido a gravidade do problema. Tanto é assim que continua refratário (ou pouco entusiasmado) com as tentativas de se buscar uma unidade do campo democrático no primeiro turno. Está de costas para o abismo, mas também na beira do abismo.

João Amoêdo
É imperativo agora unir os democratas para impedir a volta do PT ou a ascensão de projetos autoritários como o de Ciro ou de Bolsonaro. Isso inclui Amoedo e seu partido chamado Novo.

Mas a insistência do Amoêdo em dizer que só o Novo é coerente porque não aceita financiamento público de campanha denuncia uma vontade de se auto-afirmar, acumulando forças para o crescimento do seu futuro partido, de corte mais liberal (ainda que num sentido rebaixado, quase que exclusivamente econômico do termo, quando o que importa para a democracia é o liberalismo-político).

É claro que financiamento público de campanhas é incorreto (mas não ilegal). O financiamento deveria ser privado (incluindo contribuições de empresas, dentro de certos limites, o que era permitido e só recentemente foi tornado ilegal).

A postura de Amoêdo de afirmar intransigentemente seus princípios seria legítima se não decorresse de uma leitura equivocada da conjuntura, que não vê os perigos reais que ameaçam a democracia neste momento, não no futuro. Vê a árvore, mas não vê a floresta. Quando Amoêdo ataca todos os demais candidatos que estão no campo democrático (porque aceitam financiamento público de campanha), elimina a possibilidade de alianças (o que é próprio do jogo democrático). E revela um egoísmo de candidato, de projeto e de partido, que não entende que não precisamos de uma saída em 2022 ou 2026 e sim agora, em 2018.

O partido chamado Novo é importante, mas – sozinho – ainda não é uma alternativa concreta agora (aliás, sozinho, mesmo que vença as eleições, ninguém poderá governar). Pelo menos ainda não há nenhuma indicação concreta disso. Se houver, se Amoêdo tiver mais condições de impedir uma polarização, no primeiro turno, entre Ciro (ou algum outro apoiado pelo PT) x Bolsonaro, então vamos todos, os democratas, de Amoêdo. Do contrário, não podemos votar em Amoedo só porque ele quer fazer seu nome para disputar o mercado futuro da política, caindo no cenário do horror de ter de escolher, no segundo turno de 2018, Ciro (ou outro apoiado pelo PT) ou Bolsonaro. A democracia brasileira não aguenta esperar 4 ou 8 anos por Amoêdo (até que ele tenha condições de vencer sozinho).

Henrique Meirelles, Paulo Rabello e Flávio Rocha
Embora se situem no campo democrático esses candidatos ainda não conseguiram dizer claramente aos eleitores a que vieram. Meirelles é um nome indiscutível, para cuidar da área econômica de qualquer governo democrático. Paulo Rabello, nem tanto. E Flávio Rocha, ao abraçar uma pauta liberal em economia e conservadora nos costumes (para disputar com o bolsonarismo ou com a chamada “nova direita”), não dá mostras de que conseguirá empolgar as pessoas comuns que não são simpáticas à candidatura de Jair Bolsonaro. Os três devem ser aproveitados em qualquer coalizão eleitoral democrática, mas sozinhos têm poucas chances.

Marina Silva
Marina – de todos os citados que não estão no campo autocrático (e nisso há muito controvérsia) – é a mais ligada à mentalidade petista. Seu partido no Congresso (durante o processo do impeachment, em 2016) defendeu Dilma e o PT com mais afinco do que os próprios petistas (via seus líderes na Câmara, Molon e, no Senado, Randolfe – e este último continua na tal Rede). E Marina, com perdão da blague, permaneceu durante todo esse tempo como uma Submarina (pois jamais veio a público desautorizar os líderes parlamentares de seu partido chamado Rede).

Além disso, para que ficasse claro que Marina está indiscutivelmente no campo democrático, seria necessário que ela se comprometesse com as reformas (o que não fez até agora de modo enfático) e pare de falar que governará com gente de todos os partidos (mesmo porque isso não é verdade: todos sabem que ela tenderá a indicar militantes do PT e que não indicará ninguém do partido do Bolsonaro, por exemplo – e neste caso está certa).

O problema de fundo é que Marina – e, mais do que ela, o seu partido chamado Rede – é de esquerda. Isso é um problema porque por mais que alguns anseiem por uma “esquerda democrática”, a esquerda realmente existente no Brasil de hoje não está mais no campo democrático.

Claro que se a alternativa mais viável for Marina para barrar o cenário do horror (Ciro ou alguém do PT x Bolsonaro), impõe-se para os democratas o voto nela. Mesmo sabendo que sua mentalidade continua fronteiriça (entre o campo democrático e o campo autocrático de esquerda).

É fácil verifica isso. Em entrevista às Páginas Amarelas da Veja (edição de 27/06/2018), Marina afirmou o seguinte:

“Focar no Lula é reducionismo. Temos, além do ex-presidente, o Michel Temer, o Aécio Neves, o Romero Jucá, o Renan Calheiros… A única diferença é que um está preso e os outros não”.

A “única diferença”, camarada?

O que ela está nos dizendo é que Mussolini é a mesma coisa que Berlusconi, Hugo Chávez é a mesma coisa que Rafael Caldera, Salazar é a mesma coisa que José Sócrates ou que o Hezbollah é a mesma coisa que o PCC. Ou seja, segundo Marina, a corrupção com motivos estratégicos de poder de um Lula, de um Dirceu, de um Vaccari é igual à corrupção endêmica na política, de um Cunha, de um Alves, de um Geddel. Mas para mostrar uma certa injustiça (da justiça) ela cita os que não estão presos: Temer, Aécio, Jucá e Calheiros.

Acontece que a corrupção com motivos estratégicos de poder é um ataque direto ao coração da democracia, enquanto que a corrupção tradicional, endêmica nos meios políticos, provoca uma degeneração do sistema político, por certo, mas não altera necessariamente o DNA do regime. Depois de Berlusconi, a Itália continuou sendo uma democracia, depois de Mussolini, não. Depois de José Sócrates, Portugal continuou sendo uma democracia, depois de Salazar, não. Depois de Caldera, a Venezuela continuou sendo uma democracia, depois de Chávez (e seu sucessor Maduro), não.

Essa é a tese para livrar a cara do PT, inventada por Thomaz Bastos e Malheiros e usada por Lula: o PT só fez o que todo mundo faz. É falso. Tentar fazer a “revolução pela corrupção” (para usar uma expressão do saudoso poeta Ferreira Gullar, que percebeu o ardil) é muito diferente de roubar para enriquecer e se dar bem na vida. Ainda que ambas sejam condenáveis, os riscos são muitos diferentes para a democracia. E ainda que o PT tenha praticado as duas formas de corrupção ao depositar seus ovos dentro da carcaça podre do velho sistema político.

Conclusão

Dada a gravidade da situação não cabe aos democratas fazer muitas restrições aos candidatos do campo democrático. A questão agora não é a de escolher o melhor: o candidato que tenha o programa mais consistente, o mais capacitado gestor, o líder mais brilhante.

A orientação agora parece ter ficado clara e pode ser resumida na frase:

PT nunca mais. Ciro ou Bolsonaro, jamais.

Qualquer um do campo democrático que tiver chances reais de quebrar a polarização, no primeiro turno (pois no segundo, já era), entre dois candidatos do campo autocrático (Ciro ou alguém do PT x Bolsonaro) servirá. Ainda é cedo para fazer essa escolha, pois nenhum dos candidatos citados reúne tais condições. Mas já passou da hora de articular um polo democrático e reformista que seja capaz de unir os democratas para evitar o desastre anunciado.

O bolsonarismo continua crescendo, em parte subterraneamente (e ele, como corrente de opinião, é muito mais perigoso do que o oportunista eleitoreiro chamado Jair Messias Bolsonaro). Se o caos se instalar – na esteira das tentativas de destruição do atual governo e das candidaturas do campo democrático mais viáveis – é possível até que Bolsonaro vença no primeiro turno. Ciro ou alguém do PT ungido por Lula (provavelmente Haddad) também crescerá (ainda que com menos chances de levar no primeiro turno). O mais provável é que, não havendo uma alternativa democrática forte, consistente e com alta visibilidade, ainda no primeiro turno, a situação se polarize entre dois projetos populistas (ambos estatistas): o neopopulismo lulopetista de esquerda (ou o nacionalismo-retrógrado cirista, também de esquerda) versus o populismo-autoritário bolsonarista de direita. Este é o cenário do horror, que alijará os democratas da cena pública.

O grande problema é que os democratas ainda não perceberam que estamos na beira do precipício. E que, se não fizerem nada – agora, não depois que começar a propaganda eleitoral gratuita no rádio e TV – a democracia brasileira vai cair num abismo profundo, do qual não sairemos em menos de uma década (ou, talvez, de uma geração). (Dagobah-Inteligência Democrática – 06/07/2018)


Marco Aurélio Nogueira: A união indispensável

Democratas de todos os partidos e quadrantes, uni-vos! Vocês nada têm a perder a não ser os grilhões que os aprisionam ao atraso, à inoperância, à demagogia. Têm um mundo a conquistar: um país mais justo, mais dinâmico, menos atropelado pelas estripulias obscenas de corruptos e aproveitadores, assim como de exploradores da ingenuidade política das multidões.

A paráfrase da frase célebre do Manifesto de Marx e Engels serve para indicar o caminho das pedras que os brasileiros devem seguir. Não há meio termo, atalhos alternativos. A estrada pode não levar de imediato a um novo mundo, mas se quisermos ter chances reais de futuro é por ela que teremos de trafegar.

Reúnam-se todos, liberais, socialistas, comunistas, ex-comunistas, liberais-socialistas, conservadores liberais, católicos, umbandistas e evangélicos. Façam com que importe menos o que os divide e deixem tremular mais alto a bandeira da democracia, que generosamente os abrigará a todos.

Unam-se, porque se não o fizerem a desesperança cívica corroerá os laços já débeis que ligam a sociedade à política. Os cidadãos fugirão da democracia representativa, como vêm demonstrando a pouco e pouco querer fazer. Os autoritários avançarão, as soluções mágicas cairão como perdigotos de ouro da boca dos salvadores de plantão, que não se pejam de chorar lágrimas de crocodilo em público e de posar de vítimas impolutas. Sem a união ativa dos democratas, crescerão os chamamentos à caserna, as vozes favoráveis a intervenções militares saneadoras, que limpariam a sujeira acumulada, como se fosse possível fazer isso contra cidadãos, políticos e democratas. Ganharão corpo, também, as iniciativas para trancar a política com as cordas da Justiça, vistas como antídoto infalível contra os “maus” políticos.

Se os democratas continuarem divididos e inertes, o futuro será comprometido. Escaparão pelos poros do sistema todos aqueles que desejam que tudo fique como está ou que pregam as virtudes de uma volta para trás, o retorno da força e da autoridade perdidas, a reiteração da interpelação direta e sem mediações do “chefe” e do “líder” com as massas marginalizadas e os crentes fanáticos, a absolvição generalizada dos corruptos e dos escroques de todas as correntes políticas. Ganharão fôlego os nefelibatas fundamentalistas, os sonhadores que com suas maquinações nos roubam o senso de realidade e nos empurram para o reino da fantasia.

Sem o concurso desprendido dos democratas, unitário a ponto de superar discordâncias tópicas, vaidades despropositadas e obstáculos circunstanciais, aumentarão os apelos ao protagonismo antipolítica de magistrados e procuradores, investidos de atribuições substitutivas que não lhes competem. Atenção cuidadosa, porém, deverá ser dada ao papel que vem sendo desempenhado pelo STF, pelo MPF e pela Polícia Federal. Pode haver algum viés jacobino aí, mas é melhor jogar o jogo nos tribunais do que sob o tacão das baionetas. O fato é que o protagonismo judicial se impôs quanto mais o Executivo e o Legislativo foram perdendo credibilidade e legitimidade. A raiz da crise não está nem nunca esteve no Judiciário. Assim como não é uma crise derivada da corrupção galopante. Trata-se de um problema político, grudado naqueles que fazem da política sua razão de viver.

Podemos dizer: a crise se alimenta da distância que se abriu entre um sistema político fragmentado, sem lideranças de coordenação, e uma ordem social em transformação acelerada, tudo devidamente assentado numa democracia política que subsiste e se reafirma. Se nada for feito, o choque produzirá conflitos de grande magnitude. Se a crise, porém, for democraticamente administrada, dela poderão nascer uma nova sociedade e um novo modo de fazer política.

A força do processo
Olhem um pouco mais atentamente para o processo. Nas últimas três ou quatro décadas, o Brasil evoluiu, melhorou em inúmeros aspectos, deu mostras de que pode ultrapassar as barreiras do atraso secular, das deformações estruturais, da improvisação, da espoliação dos pobres pelos poderosos, do excesso de Estado, do desperdício.

É bem verdade que essa marcha foi descontinuada de 2013 para cá, período em que o desatino se sobrepôs ao discernimento e à responsabilidade e em que a corrupção veio a público com a força de um vulcão que libera uma lava tóxica que só provoca horror e desilusão.

Mas o eixo do processo – desenvolvimento com inclusão social – permaneceu vivo e mesmo neste ciclo político aziago e temerário em que estamos pode ser reativado, retomado, recuperado. A um único preço: o da suspensão dos antagonismos artificiais, das polarizações estéreis, dos particularismos exacerbados, do radicalismo retórico.

Unam-se pois, democratas! Passem um pano vigoroso na velharia político-partidária que nos atazana, na impunidade que nos envergonha, no desperdício de recursos e talentos que nos mantém parados no tempo, girando em falso.

Assumam o papel de vanguarda moderna que lhes cabe. Saiam da letargia, mobilizem a sociedade, rompam os grilhões do sistema político, resistam ao corporativismo multifacetado que vigora no Estado e na sociedade civil. Abracem o povo, interpelando-o ativamente para escutar suas pulsações e com ele elaborar uma agenda que nos impulsione para frente e nos distancie do regressismo autoritário, da palavra fácil que incendeia e da demolição política. As urnas de 2018 estão logo ali. Não cheguem desarvorados a elas.
 


Luiz Sérgio Henriques: Democratas de esquerda – a hora e a vez?

 

A esquerda brasileira gira em círculos em torno de seus anacronismos e tabus

O quadro partidário em ruínas e o destino incerto de tantos personagens de primeiro plano tornam particularmente opaca a cena pública a pouco mais de um ano de eleições gerais. Não há muitos termos de comparação para nossas agruras e a referência inevitável para este nó aparentemente insolúvel entre questões judiciais e questões políticas continua a ser a Operação Mãos Limpas, italiana, na década final do século passado (na foto, Antonio di Pietro, o procurador da República encarregado do caso).

Diferentemente do caso brasileiro, em que partidos frouxamente organizados conduziram a transição e dominaram o poder central até 2002, a Primeira República Italiana, que nasceu no segundo pós-guerra, era uma República de partidos de massa, dois dos quais se tornaram reconhecidos até fora do país: a Democracia Cristã (DC) e o Partido Comunista (PCI). Ambos portavam visões de mundo comunitaristas, não necessariamente antagônicas, admiravelmente retratadas na arte culta ou popular. Para dar um exemplo divertido, foram tempos de Don Camillo e Peppone, o pároco e o prefeito comunista – criaturas de Giovannino Guareschi – que se comportavam expressivamente ora como adversários, ora como aliados.

Positivamente, aquela República fez nascer a Itália moderna; negativamente, reduziu-se muitas vezes, segundo os críticos, a uma “partidocracia”, em que cargos e nomeações, em toda a estrutura do Estado, se dividiam segundo regras bizantinas de filiação partidária. Sempre no poder, a DC e seus aliados de centro ou centro-esquerda; eternamente na oposição, o PCI – uma disposição que se tornaria disfuncional em razão, precisamente, do veto que os condicionamentos da guerra fria impunham à alternância.

A Mãos Limpas levou à implosão daquele sistema bloqueado: dois partidos tradicionalíssimos, a DC e o Partido Socialista, entre outros menores, foram tragados na grande crise. Forza Italia, a agremiação berlusconiana, e os separatistas da Liga Norte dariam voz à nova direita. O PCI continuaria o processo de reconstrução que o levaria muito além do comunismo de origem. E na margem a galáxia ultraesquerdista, a praticar “rachas” e cisões, seu esporte preferido.

Começada de forma casual, a Lava Jato terá topado, progressivamente, com um esboço de “sistema de poder” à italiana, estruturado não só a partir de nossa maior empresa pública, mas, pelo que se vê, espalhado por fundos de pensão, bancos e demais órgãos públicos. As regras de repartição saíram do âmbito artesanal: não se tratava mais de dar, ao sabor de pressões momentâneas, “diretorias que furam poços e acham petróleo” para este ou aquele personagem folclórico, mas de criar máquinas eleitorais poderosas e alianças parlamentares imbatíveis, roçando a unanimidade.

Não se pode dizer, de forma alguma, que o mecanismo fosse inteiramente inédito, salvo na proporção que passou a assumir. Mudanças quantitativas, como se diz, acarretam saltos de qualidade e no auge de sua vigência o mecanismo pareceu capaz de autorreprodução: mal se descobriam feitos e malfeitos que deram vida ao “mensalão”, surgiram indícios de algo mais grave a envolver empresas públicas e privadas numa escala que nos assusta ainda agora.

Alguém poderá lembrar que Sérgio Motta, um dos ministros mais fortes do primeiro governo FHC, certa vez vaticinou um domínio de 20 anos para consolidar as reformas liberais de então. A lembrança é cabível, mas não de todo pertinente: essa espécie de reforma é normalmente impopular, independentemente das justificativas que possa ter, e costuma minar as bases de sustentação de qualquer governo. E, ainda mais importante, os tucanos, como de resto seus aliados do antigo PFL ou do PMDB, eram partidos à moda antiga, fortes eleitoralmente, mas com pouca ou nenhuma vida orgânica ou elaboração autônoma. A adesão que obtinham, no mais das vezes, era de tipo passivo; salvo na implantação da nova moeda e em algumas outras situações, não entusiasmavam nem mobilizavam seus eleitores ao longo do tempo. Não lhes davam argumentos para a boa luta cotidiana, em meio às pessoas comuns.

Uma forte assimetria, ao contrário, caracterizou o sistema de poder petista. Longe de ser um partido comunista, especialmente se considerado o conjunto de fins (realizáveis ou irrealizáveis) que caracterizava esse tipo de partido, o PT sempre trouxe em si algo dos velhos PCs: a centralização, a disciplina e, ai de nós, o culto do chefe, não raro imantado dos dotes de messianismo e infalibilidade. Em contato com tradicionais “partidos de Estado”, que a ele se aliaram a partir do segundo mandato de Lula, o PT pôde exercer por alguns anos, quase sem contestação, seus pendores hegemonistas e seus vezos de cooptação. De fato, o “franciscano” toma lá dá cá atingiu o estado da arte, muito além dos desvios – intoleráveis! – de caixa 2 eleitoral e “sobras de campanha” que sempre atingiram os amorfos partidos brasileiros.

As democracias estão sob ataque por toda parte. Inútil buscar situações exemplares ou receitas definidas. Os partidos, em particular, veem-se assediados por “não políticos”, que estimulam a vaga populista contra a “casta” e disso se beneficiam – até porque, reconheçamos, há muito de “casta” no comportamento político convencional. Os italianos não estão fora do abalo sísmico que varre o mundo. Contudo, sem contar flutuações conjunturais, apontaram um caminho promissor ao tentarem associar num só “partido democrático” os reformistas egressos do comunismo e do catolicismo social.

A esquerda brasileira até agora não contou com tal sabedoria. Gira em círculos em torno de seus anacronismos e tabus. Reduz-se à defesa de seu chefe único e se fecha ao aggiornamento. Parece não ver que é necessário resgatar a si mesma – consciente de que “esquerda” é hoje um conceito desonrado – e contribuir para a missão comum de renovar a política, o Estado e, não por último, a sociedade brasileira.

*Luiz Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta. É um dos organizadores das 'obras' de Gramsci no Brasil.