Democratas

Míriam Leitão: Negros, latinos e jovens decidem

A eleição americana, que hoje tem seu dia D, está sendo marcada pelo acirramento do conflito racial. Foram mortes em série, desde George Floyd, e manifestações constantes. O que agravou a tensão foi a atitude do presidente Donald Trump de não manifestar solidariedade às vítimas e ainda se recusar a condenar grupos supremacistas brancos. O voto dos negros sempre foi majoritariamente contra os republicanos. Negros, latinos e jovens serão decisivos, indo ou não indo votar.

Os latinos também votam mais azul que vermelho, mas numa proporção menor que os negros. O banco de dados da Universidade de Cornell registra que, em 2016, 89% dos eleitores negros votaram na candidata democrata e 66% dos latinos. Juntos, negros e latinos são 34% do eleitorado. O grupo latino é tratado como unidade apenas para efeito estatístico, mas é muito heterogêneo. Há uma enorme diferença entre um brasileiro que foi para Nova York, um cubano de Miami ou o mexicano da Califórnia.

A tendência demográfica é de crescimento dos latinos. Para se ter ideia, 52% do acréscimo da população americana na última década foi de latinos. Eles são hoje 61 milhões, 10 milhões a mais do que em 2010, segundo o Census Bureau. E é o grupo étnico mais jovem, de idade mediana mais baixa. Os aptos a votar chegam a 32 milhões de eleitores, 18% do eleitorado. Nem todos votam, e nem todos os que podem votar estão interessados em fazê-lo. Uma pesquisa do Pew Research Center revela que apenas 54% da comunidade latina estava “extremamente motivada a votar”, enquanto no resto da população esse percentual chegou a 69%.

O que isso significará numa eleição em que o presidente é defensor dos valores mais radicais dos brancos não latinos, e que aprofundou a divisão racial, produzindo um movimento contrário de estímulo ao comparecimento às urnas?

Alguém pode concluir que, como sempre votaram mais nos democratas, isso não fará diferença. Mas nesta dramática eleição em que se joga o futuro do mundo, cada voto conta. Na Flórida, onde o eleitor latino tem mais inclinação republicana, houve um aumento de meio milhão de eleitores registrados em relação à última eleição, saíram de 2 milhões para 2,5 milhões. Porém há mais eleitores democratas entre os que se registraram. Há quase um milhão de eleitores latinos democratas na Flórida contra 640 mil republicanos. Flórida é um dos estados decisivos e é o terceiro em voto latino, depois da Califórnia e do Texas.

O eleitorado jovem deve bater este ano o recorde de comparecimento às urnas. O grupo etário não se dispõe muito para o ato de votar, mas as pesquisas feitas pelo Center for Information and Research on Civic Learning and Engagement (Circle) da Universidade de Tufts, mostravam, no dia 30, que em oito estados os eleitores jovens (18-29 anos) que anteciparam o voto já tinham superado o total de comparecimento desse grupo etário em 2016. Ao todo, sete milhões a mais do que os eleitores que compareceram às urnas na última eleição. Em 14 estados-chave eles podem decidir tanto a presidência quanto a disputa para o Senado. Um seminário em Harvard com vários especialistas chegou à mesma conclusão. Desta vez, os jovens estão indo às urnas.

Se não fossem todos os motivos para considerar que a derrota de Trump é o melhor desfecho para esta eleição, há ainda o fato de que a diversidade americana se amplia e o candidato republicano não consegue representar essa sociedade. Se os democratas vencerem, o posto de vice-presidente será ocupado pela primeira mulher, a primeira negra, a primeira pessoa descendente de mãe asiática e pai jamaicano a chegar nessa posição. E pela primeira vez haverá um second gentleman no país. Doug Emhoff será o primeiro judeu nesse quarteto, de presidente, vice-presidente e seus cônjuges. Emhoff deu uma pausa na sua carreira de advogado para se dedicar à campanha e é considerado uma das armas secretas por atrair também a comunidade judaica. O jornal “Washington Post” fez uma divertida matéria sobre ele, contando da amizade entre Kamala Harris e a ex-mulher dele, uma produtora de cinema de Los Angeles, Kerstin Emhoff. A matéria mostrava que ele tem feito perfeitamente o papel do “homem por trás de uma grande mulher”, invertendo a expressão sempre usada sobre as mulheres de homens públicos.


Rubens Ricupero: Maré antidemocrática está em jogo

Nenhum país possui a capacidade de pautar a agenda mundial como os Estados Unidos. A última vez em que isso aconteceu de maneira brutal e instantânea foi em 2016, com a eleição de Donald Trump. Antes, ao menos em duas ocasiões sucedera algo parecido: em 1932, com a eleição de Franklin Roosevelt, e em 1980, com a de Ronald Reagan. O que existe em comum entre personalidades tão contrastantes?

Todos foram homens de ruptura com o que se vinha fazendo até então, todos chegaram ao poder em meio a crises graves, todos tinham total autoconfiança na capacidade de mudar os acontecimentos. Os outros presidentes, mesmo Barack Obama, não foram homens de ruptura, não inauguraram novas eras, não mudaram o mundo.

Roosevelt encontrou um país prostrado pela Grande Depressão e o capitalismo em crise profunda. Reformou com o New Deal o sistema capitalista, inaugurou o Estado do bem-estar e o ativismo do governo em matéria social e econômica. Liderou os aliados na derrota do nazifascismo na Segunda Guerra Mundial.

Sua influência só foi superada com Reagan, que abandonou o keynesianismo, sustentou que o governo era o problema, não a solução, desregulamentou as finanças, acelerou a globalização. Peitou Moscou na corrida armamentista, contribuindo para o fim da Guerra Fria e da União Soviética.

Esse poder americano de definir a agenda não depende só da riqueza ou da força militar. Tem muito a ver com o fato de que, há mais de 100 anos, os americanos fazem a cabeça do mundo com o cinema, a música, a TV, as histórias em quadrinho, o streaming, a internet, as mídias sociais. É um poder para o bem e para o mal, para construir e destruir.

No caso de Trump, tem sido para botar abaixo, destruir tudo, para começar virando pelo avesso as realizações de Obama. De um dia para o outro, a política internacional sofreu um terremoto.

Os EUA saíram do Acordo do Clima de Paris, repudiaram o acordo com o Irã, voltaram atrás no relacionamento com Cuba, atropelaram as regras da Organização Mundial de Comércio. A relação com a China virou confronto permanente, a Organização Mundial de Saúde foi abandonada. A maré populista antidemocrática, antiliberal, atingiu o apogeu.

Uma derrota de Trump agora truncaria a obra de demolição pela metade. Permitiria não voltar a 2016, mas reconstruir o mundo em novas bases com economia verde, mais igualdade, mais cooperação e menos confronto, prevenção de epidemias, avanço em direitos humanos, política de gênero, superação da guerra cultural fomentada pelo fanatismo religioso.

Está em jogo, como se vê, a própria possibilidade de futuro, pois quatro anos mais de negativismo de Trump talvez tornem irreversível a catástrofe do aquecimento global. Sairemos todos perdendo se Trump ganhar. Como não podemos votar nas eleições de 3 de novembro, resta-nos esperar que os americanos tenham sabedoria para salvar seu país e devolver ao mundo um mínimo de esperança.

*Rubens Ricupero é diplomata aposentado, jurista e historiador da política externa brasileira. Foi ministro da Fazenda durante o governo de Fernando Henrique Cardoso.


Folha de S. Paulo: 'Reeleição de Trump traria dúvidas até sobre eleições livres nos EUA em 2024', diz Yascha Mounk

Autor de 'O Povo Contra a Democracia' afirma que vitória de Biden seria batalha mais crucial que democracia terá conseguido vencer

Marcos Augusto Gonçalves – Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - Num pleito presidencial épico, que mobiliza como nunca as atenções dos Estados Unidos e do mundo, a escolha entre a permanência do republicano Donald Trump na Casa Branca ou a eleição do democrata Joe Biden representará uma decisão histórica sobre o futuro da democracia.

“Uma vitória de Biden seria uma enorme dádiva para a democracia americana”, diz o cientista político Yascha Mounk, professor associado da universidade Johns Hopkins e autor de “O Povo contra a Democracia” (Companhia das Letras, 2019).

Em entrevista à Folha, ele avalia que uma eventual reeleição de Trump, o mais valioso aliado de governantes hostis às instituições democráticas, em países como Índia, Polônia, Filipinas e Brasil, aprofundaria a crise existencial das democracias e lançaria incertezas até mesmo sobre as perspectivas de eleições livres e justas nos EUA em 2024.

Mounk considera que Biden, caso eleito, enfrentaria dificuldades, mas tenderia a manter seu perfil moderado no governo, em que pesem as pressões que sofrerá, a começar pelas da ala mais à esquerda do Partido Democrata.

O cientista político também opina sobre o papel de um Trump relegado à oposição e levanta hipóteses sobre o futuro do Partido Republicano. Analisa, ainda, as possíveis mudanças nas relações que uma administração democrata teria com Rússia e China.

Uma vitória de Trump provavelmente reforçaria a onda conservadora internacional. No Brasil, seria quase uma vitória pessoal do presidente Jair Bolsonaro. No plano internacional, seriam mais quatro anos de ataques ao multilateralismo. A ameaça às democracias seria renovada? 

Nos últimos quatro anos Donald Trump enfraqueceu significativamente as instituições democráticas nos Estados Unidos. Além disso, tem sido o aliado mais valioso de populistas autoritários que procuram enfraquecer a democracia, em países que vão da Índia às Filipinas.

Se ele for reeleito, a crise existencial da democracia vai se intensificar. Nesse caso, deixaremos de ter a certeza de eleições livres e justas nos EUA em 2024 e será ainda mais provável que a democracia seja enfraquecida nos países onde ela está lutando para sobreviver neste momento.

Na hipótese de uma derrota de Trump, o populismo de direita tenderia, em tese, a se enfraquecer. Mas a polarização vai prosseguir de alguma forma. Você acredita que um Trump derrotado exerceria algum papel como opositor ou tenderia a sair de cena, como costuma ocorrer com ex-presidentes americanos? 

Uma derrota de Donald Trump será uma enorme dádiva para a democracia americana. Embora muitos dos problemas do país provavelmente devam continuar refratários, teríamos uma administração progressista, decente, de visão humanitária, que respeita os direitos de seus adversários no poder. Também seria a expressão do desejo de muitos americanos de superar o clima de confrontação e ódio mútuo dos últimos quatro anos.

Joe Biden venceu as primárias e pode vencer a eleição geral porque desde o primeiro momento sua candidatura apostou na ideia de que esta é uma luta pela reconciliação e pela alma da América. É claro que Donald Trump provavelmente se recusará a aceitar a legitimidade da eleição e fará o que puder para instigar a divisão por meio do Twitter.

Eu imagino, porém, que se for derrotado por uma margem mais ou menos ampla ele conseguirá atrair menos atenção do que tem sido o caso até agora. A atração que ele exerce sempre foi a do vencedor, mas, se ele perder e for rejeitado pela maioria da população americana, isso enfraquecerá sua posição seriamente.

Que cenários você imagina para o Partido Republicano em caso de uma derrota de Trump? Grupos mais moderados tenderiam a assumir o controle ou a resposta seria mais conflito e polarização? 

Nos Estados Unidos, um partido político só tem um líder claro, realmente, quando ocupa a Presidência ou está no meio de uma eleição presidencial. Assim, pelos próximos três anos, pelo menos, não estará claro qual seria a real situação pela qual o Partido Republicano estaria passando.

Haverá alguns republicanos tradicionais que tentarão levar o partido de volta para o terreno do conservadorismo, das políticas pró-empresas, dos impostos mais baixos e de algum grau de posições conservadoras em questões sociais. Em segundo lugar, haverá um campo populista que procurará sistematizar alguns dos instintos políticos reais de Trump.

Esse campo poderá, por exemplo, continuar a colocar pressão sobre as empresas de tecnologia, a tentar impelir o Partido Republicano a adotar políticas econômicas mais favoráveis à classe trabalhadora americana, a focar esforços na oposição à imigração. Em terceiro lugar, provavelmente haverá um campo de seguidores fiéis que continuará a derramar-se em elogios ao próprio Donald Trump ou que tentará instaurar um sucessor escolhido a dedo, que pode ser um dos membros da família do atual presidente.

É muito difícil prever qual desses três campos acabará vencendo em 2024. Há uma possibilidade de o Partido Republicano se moderar e retornar à sua forma tradicional, mas também é possível que seu líder seja Donald Trump Jr. ou alguém como o apresentador da rede Fox News Tucker Carlson. Portanto, serão quatro anos interessantes para observar os rumos do Partido Republicano.

Apesar das ameaças, ao menos em parte as democracias parecem resistir, como ocorre no Brasil. A ideia de que caminhamos para o fim das democracias ainda está viva? 

No último ano, mais ou menos, observamos a resiliência de democracias, mas também observamos o poder de resistência e permanência de populistas em todo o mundo. Em uma eleição muito importante, na Polônia, o partido populista conseguiu reeleger seu presidente.

Na Índia, Narendra Modi conquistou uma grande vitória recentemente nas eleições nacionais e agora está agindo com vigor renovado para enfraquecer a liberdade de expressão e os direitos da oposição. Nas Filipinas, a democracia, na prática, já morreu.

Se Biden ganhar nesta terça-feira, essa será sem dúvida a batalha mais importante que a democracia terá conseguido vencer, e isso deverá nos deixar otimistas quanto à nossa capacidade de travar batalhas futuras. Mas acho que ainda é cedo para previsões seguras sobre o desenlace dessa guerra futura.

Parece claro que o liberalismo como ideologia e proposta econômica vem demonstrando dificuldades em dar respostas para os desafios contemporâneos e para promover o desenvolvimento de nações emergentes. Há uma perspectiva em cena de governos com tendência a promover mais presença do Estado na vida econômica e social? Um vitória democrata nos EUA levaria a um governo mais preocupado com o Estado de bem-estar social? 

Precisamos distinguir os dois significados muito diferentes do termo “liberalismo”. O liberalismo, do modo como eu tendo a falar dele, é um elemento fundamental de nosso sistema político democrático.

É a insistência na ideia de que o presidente ou o primeiro-ministro não podem tomar todas as decisões ou qualquer decisão, de que haverá limites ao seu poder. A ideia de que é necessário conservar os direitos da oposição. De que precisamos que especialistas possam tomar decisões ou influenciar decisões sobre questões como saúde pública no meio de uma pandemia global. De que precisamos respeitar os direitos mesmo de indivíduos impopulares ou de minorias.

A importância do liberalismo nesse sentido foi comprovada ao longo dos últimos anos, quando vimos o impacto terrível causado por pessoas como Donald Trump ou Jair Bolsonaro, que ignoram esses direitos.

Você parece estar empregando “liberalismo” em um sentido um pouco diferente, que talvez seja mais comum na América Latina, como um conjunto de ideias sobre o papel do governo na economia. E com certeza houve uma espécie de consenso nos anos 1990 e início dos anos 2000 de que o governo deveria se retirar da vida econômica e que o Estado deveria exercer o menor papel possível.

Esse consenso, na medida em que existiu, foi claramente equivocado de algumas maneiras importantes. Estamos vendo mais uma vez que precisamos de equilíbrio entre uma expansão da economia que ofereça, às pessoas de talento, oportunidades de criar novas empresas e produtos para ajudar no crescimento, e um Estado de bem-estar social muito robusto que garanta que os ganhos auferidos com esse crescimento sejam distribuídos justamente e que cada cidadão, independentemente de seu grau de êxito econômico, consiga levar uma vida digna, tenha acesso a atendimento médico decente, a uma moradia, à alimentação e à educação.

Existe certamente a esperança de que uma administração Joe Biden nos Estados Unidos possa ajudar a completar o Estado americano de bem-estar social. E isso talvez ajude a concretizar a mudança no tom prevalente sobre a política econômica.

Como você vê a crescente influência chinesa nesses cenários de redefinição das democracias? Já estamos no limiar de um século chinês? Ele será mais coletivista, tecnológico e autoritário? 

A China está claramente ganhando influência e autoconfiança crescentes. O país agora está mais interessado do que esteve no passado em influenciar as relações internacionais e a política interna. Isso inclui, em alguns casos, ataques reais contra a liberdade de expressão em democracias ocidentais. Essa influência é perigosa para a persistência dos valores liberais dentro dos países e entre eles. Precisamos fazer o que pudermos para resistir à influência chinesa indevida em nossos próprios países.

Ao mesmo tempo, acho que também existe uma oportunidade potencial aqui, porque o desafio a esses valores, a ameaça que vem do exterior à persistência da democracia, além do âmbito interno, pode facilitar a cooperação entre democracias do mundo em defesa do nosso modo de vida. Assim, o modo como nos contrapomos à ascensão do poder da China vai determinar se o mundo se tornará mais coletivista e autoritário ou se poderemos aproveitar isso como inspiração para lutar pelos valores democráticos.

Caso Biden vença, as relações com a Rússia e a China mudariam? 

Donald Trump gostou de Vladimir Putin, mas também de Xi Jinping. Teve relações calorosas com o general Sisi, mas também com Kim Jong-un. Mesmo em democracias ele tem preferido candidatos e líderes populistas, incluindo Jair Bolsonaro, a suas contrapartes mais moderadas.

Uma administração Biden certamente ficará mais do lado da democracia que da autocracia e mais do lado dos moderados que dos extremistas. Mas há uma questão à parte sobre o quanto os EUA realmente poderão fazer para se contrapor à influência russa e chinesa no mundo e até que ponto uma administração Biden se disporia a lançar mão de todos os meios para isso. É uma questão difícil, que teremos que observar nos próximos anos.

Você acredita que Biden conseguirá manter uma posição mais moderada se chegar ao poder? Ou ele seria pressionado a ceder terreno para a esquerda?

Joe Biden ganhou a indicação do Partido Democrata porque era o único candidato que não achou necessário ir muito longe à esquerda para conquistar os corações e mentes dos democratas. Durante a campanha eleitoral ele resistiu inúmeras vezes à ala radical de seu partido, por exemplo, mostrando-se muito mais disposto que outros a condenar a violência em alguns dos protestos que ocorreram nos EUA.

Assim, é muito provável que ele procure governar como moderado. Se ele obtiver uma vitória convincente, isso será mais fácil, sob alguns aspectos, na medida em que um número maior de deputados e senadores virá de distritos e estados indecisos que também precisam permanecer no centro da política. Ao mesmo tempo, é provável que a insatisfação da esquerda com Biden domine boa parte da esfera pública e seja expressa com destaque pela mídia.

Ele vai precisar preencher milhares de cargos e é provável que muitos dos indicados se situem à esquerda dele. Desse modo, ele poderia acabar empurrado para a esquerda. Se isso acontecer, temo que possa criar condições para o ressurgimento do Partido Republicano nas eleições parlamentares de 2022 e, potencialmente, na presidencial de 2024.

*Yascha Mounk, 38 Cientista político, com doutorado em Harvard, é professor associado da universidade americana Johns Hopkins, em Baltimore. É autor de “O Povo Contra a Democracia” (Companhia das Letras, 2019), livro que se tornou referência internacional nos debates sobre a ascensão do populismo autocrático em diversos países. Assina coluna mensal na Folha.


Ricardo Noblat: Na reta final, Trump une-se aos democratas contra os republicanos

Coisas da política americana

Imagine a seguinte situação. A poucos dias do segundo turno da eleição de 2022, ameaçado de não se reeleger, Jair Bolsonaro, aconselhado por assessores, concorda em negociar com a oposição um pacote de socorro aos brasileiros que mais sofreram com os efeitos da pandemia do coronavírus.

A oposição no Congresso quer um pacote o mais generoso possível. Bolsonaro está de acordo porque seria uma chance de não ser derrotado. Mas, o conjunto de partidos que apoia o governo é contra. Alega que suas bases eleitorais, predominantemente conservadoras, acham o pacote um exagero. Questão de ideologia.

Essa é a situação que vive neste momento o presidente Donald Trump. Ele e o Partido Democrata negociam um pacote que poderá injetar na economia algo como pouco mais de dois trilhões de dólares além do que já foi gasto até aqui com os americanos mais afetados pelo Covid-19. O Partido Republicano discorda.

Segundo o jornal The New York Times, o senador Mitch McConnell, líder dos republicanos, disse ontem a seus colegas que havia alertado a Casa Branca para não chegar a um acordo pré-eleitoral com a presidente da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, a democrata Nancy Pelosi.

Pelosi e o Secretário do Tesouro, autorizado por Trump, já ultrapassaram a casa dos 1,8 trilhão de dólares na discussão sobre o tamanho da ajuda. Trump quer mais. McConnell garante que o máximo que os republicanos poderiam tolerar seria um pacote de 500 bilhões. Sem os votos dos democratas, não haverá pacote.

Em outra frente, Trump pressiona o Secretário de Justiça William Barr a abrir uma investigação sobre um novo e suposto escândalo que envolveria Joe Biden, candidato do Partido Democrata a presidente, e o laptop de seu filho Hunter. “Temos de fazer o Secretário de Justiça agir”, disse Trump à Fox News.

Um e-mail encontrado em um laptop que Hunter Biden teria deixado em uma assistência técnica daria conta que ele marcara uma reunião entre seu pai, à época vice-presidente de Barack Obama, e um funcionário da Burisma, empresa ucraniana de energia que pagava para ter Hunter no seu conselho de acionistas.

O jornal New York Post publicou a história cuja fonte original é Rudy Giuliani, advogado de Trump. O FBI investiga se o material entregue ao jornal está ligado a um esforço de desinformação russo. Biden afirma que o encontro nunca ocorreu. Trump abordará o assunto no debate de amanhã com Biden, o último.

Para Trump, na reta final da campanha, vale tudo para dar a volta por cima. As pesquisas de intenção de voto apontam Biden como favorito.


Ruy Castro: Perguntas à queima-roupa

Ver os repórteres em ação nas eleições americanas é um espetáculo instrutivo

A sucessão presidencial nos EUA tem oferecido um espetáculo instrutivo: ver repórteres americanos em ação. Ao entrevistar os candidatos ou assessores, eles não vacilam —um de cada vez, disparam à queima-roupa uma pergunta de, se tanto, dez palavras. O entrevistado não tem tempo para pensar. O ritmo da pergunta determina o ritmo da resposta. E esta nem sempre é a que o entrevistado pensava dar.

Entre nós, com respeitáveis exceções, é diferente. Nenhuma pergunta leva menos de um minuto. É precedida de um introito que esmiúça a questão, estende-se nos prolegômenos e sugere alternativas. O entrevistado escuta com a maior atenção. Quando a pergunta parece estar chegando à sua formatação final, com o esperado ponto de interrogação —“O que o senhor diria disso ou daquilo?”—, o repórter, para arredondar, envolve-a com duas ou três outras, que ele próprio responde, e só então cede a palavra ao entrevistado. O qual já teve tempo para burilar seu discurso e adequá-lo ao que sabe ser a forma ideal: falar sem dizer nada.

Bem, essa é só uma variação. Há outra, não menos comum: a das duas ou três perguntas feitas em sequência, cada qual sobre um assunto. Esse é o formato favorito de todo entrevistado —permite-lhe responder apenas a última pergunta ou a que lhe for mais conveniente. E, quando isso acontece, raramente se ouve uma insatisfação com a resposta ou um repique. Fica por isso mesmo, como se o importante não fosse a resposta, mas a pergunta.

Alguns entrevistados se dão ao trabalho de tentar responder a essa série de perguntas, indo ao fundo da memória para se lembrar de qual tinha sido mesmo a primeira, depois a segunda, a terceira etc. Mas só porque sabem que isso lhes garantirá mais tempo de câmera.

Os repórteres americanos podem aceitar como resposta um simples “Sim” ou “Não”. É o que basta para, às vezes, até derrubar um presidente.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Hélio Schwartsman: Trump e o espírito santo

Ou ele é um dos piores empresários do país ou um sonegador contumaz

Num furo histórico, o jornal The New York Times obteve as declarações do imposto de renda de Donald Trump, que, contrariando uma tradição de décadas entre candidatos e presidentes, ele sempre recusara mostrar. O resultado é arrasador.

Em 2016, ano em que foi eleito, ele pagou US$ 750 em impostos federais, uma ninharia não apenas para um suposto bilionário, mas para qualquer contribuinte. Eu próprio, no ano em que passei como "fellow" numa universidade americana, recebendo uma bolsa, gastei mais do que ele em tributos federais.

E fica pior. Trump pagou tão pouco porque alega sofrer enormes prejuízos em seus negócios. Se diz a verdade, é um dos piores empresários do país; se mente, é um sonegador contumaz. Não obstante, analistas não prognosticam nenhum efeito devastador sobre a corrida eleitoral. O presidente já disse que a reportagem é "fake news", e seus apoiadores tendem a acreditar nisso.

Parece haver uma classe de políticos que é quase invulnerável a escândalos e declarações absurdas. São às vezes chamados de candidatos teflon, pois nada grudaria neles. Trump está nessa categoria, assim como Bolsonaro, Lula, Maluf, Ademar de Barros. Eles sobrevivem a coisas como fama de ladrão, condenações judiciais e podem sem temor defender o indefensável. Não raro transformam tais passivos em ativos, que vão compondo uma espécie de mitologia pessoal. Por quê?

O primeiro a ensaiar uma resposta foi o sociólogo alemão Max Weber. Para ele, algumas lideranças, que chamou de carismáticas, são postas à parte do universo das pessoas comuns e passam a ser tratadas, ao menos por seus seguidores, como se tivessem poderes especiais ou mesmo sobre-humanos. Não é coincidência que Weber tenha ido buscar o termo "carisma" na teologia cristã. Só o espírito santo explica por que alguns "escolhidos" se livram tão facilmente de pecados que seriam fatais para políticos mais normais.


Dorrit Harazim: Trump coroado

O país real ficou de fora do seu discurso e do Jardim da Casa Branca

Leonard Cohen fez bem em morrer na véspera da eleição de Donald Trump em 2016. Deixou um vasto tesouro feito de palavras e música, entre elas a sublime “Aleluia”, canção-reflexão sobre amor e perda, espiritualidade e empatia. Muito da força desse hino à humanidade está no que ele deixa em aberto para interpretações múltiplas do que é ser, do que é viver. Difícil imaginar que Trump tenha sido fã do compositor canadense. Mais difícil ainda cogitar que Cohen algum dia se resignaria ao triunfo trumpista. Daí a vilania da rasteira post-mortem dada no artista por ocasião do festão de quinta-feira na Casa Branca: “Aleluia” foi entoada duas vezes, sem autorização dos herdeiros, na coroação do presidente-candidato à reeleição em novembro próximo. Nada transcendental, apenas um detalhe da grosseria em tudo o que leva a logomarca Trump.

Na cerimônia de encerramento da Convenção Republicana faltou apenas rebatizar o partido para Trump Party. De resto —da apropriação da Casa Branca como imobiliário do ocupante aos fogos de artifício proclamando “Trump 2020” sobre o Monumento a Washington —, o evento todo foi de adulação personalista. Nos jardins da “casa do povo americano” haviam sido plantadas 1.500 cadeiras para familiares e servidores públicos, não por servirem ao Estado, mas por serem servos de Trump. E, ao final de quatro dias de elegias, coube ao entronizado apresentar a sua versão fantasia de si mesmo.

Foi um discurso de 70 minutos que arrebatou a plateia. Mesclando fatos e ficção, o presidente proclamou-se predestinado guardião da Constituição e acenou com um futuro de grandeza nacional. Sobretudo, Trump incitou medo, recurso de eficácia comprovada em tantas eleições mundo afora. Richard Nixon disse o essencial em 1968 ao conquistar a Casa Branca: “As pessoas reagem a medo, não a amor. Ninguém aprende essas coisas em aula de catecismo, mas a verdade é essa.”

Na semana anterior, a Convenção Democrata também procurara definir Donald Trump como uma ameaça nacional — mas à democracia. O partido do presidente optou por retratar o país como uma presa da violência urbana. Uma escumalha de foras da lei e da ordem estaria a rondar os subúrbios brancos, governantes democratas seriam incapazes de conter o caos urbano, a China acabará com a bonança americana e, resumiu Trump, “ninguém mais estará em segurança nos Estados Unidos de Joe Biden”.

O presidente referiu-se ao adversário Biden 41 vezes, ora como incompetente desvertebrado — “está há 47 anos no Congresso e nunca fez nada” —, ora como “cavalo de Troia” a serviço da extrema-esquerda socialista.

Mas a estocada de Trump mais letal contra o adversário, e talvez a mais temida pela campanha democrata, ainda está por vir. Trata-se da reiterada insinuação do presidente de que Joe Biden, aos 77 anos, estaria com a acuidade cognitiva comprometida, portanto sem condições de liderar a nação.

Dias atrás Trump chegou a sugerir que os dois candidatos se submetessem a testes toxicológicos antes do primeiro debate presidencial, marcado para 29 de setembro, com divulgação dos remédios que cada um toma. Alegou ter observado que Biden apresentou-se apagado e confuso nos dez debates democratas coletivos, e que apenas no último, contra Bernie Sanders, apresentara vigor cerebral. O repórter do ultraconservador “Washington Examiner” quis saber se Trump estava sugerindo testes como os que lutadores fazem antes de subir no ringue.

“Sim”, respondeu o presidente, “debate é como uma luta entre gladiadores. Só que no debate você usa o cérebro e a boca. E também seu corpo. Quero debater em pé, não sentado como quer a comissão organizadora.”

A esse contexto que, por si, já parecia insólito, veio se juntar, também esta semana, um inesperado conselho público da presidente da Câmara, a democrata Nancy Pelosi, para Biden: recusar-se a debater com Trump no formato habitual. A falta de civilidade e a notória enxurrada de afirmações falsas do presidente tornariam o debate inútil, argumentou Pelosi. Por ora, Joe Biden descartou a sugestão. Ainda bem.

A tática do medo adotada por Trump contém um risco evidente — alardear para o caos num país que está sob seu comando há três anos e meio. O papel de presidente como espectador, não responsável pelas desgraças nacionais, só existe no planeta Trump, porque o país real ficou de fora do seu discurso e do Jardim da Casa Branca. Mas esse país real existe — ele tem 180 mil mortos por Covid, é formado por uma sociedade dilacerada pelo racismo, pela violência policial, esgotamento e desgoverno. É esse o país que vai votar. Ou deixar Donald J. Trump se reeleger. Rest in Peace, Leonard Cohen.


Dorrit Harazim: Faltam 72 dias

Obama desvestiu-se da sua oratória poética para comunicar, em tom de urgência, que a nação corre perigo

Feliz do país que, como os Estados Unidos, tem no seu acervo de instituições democráticas algo tão peculiar como sua confraria de ex-presidentes. O seleto clube nunca conseguiu ter mais de seis membros, uma vez que ex-presidentes também morrem. Mas, desde que foi criado formalmente por Harry Truman, em meados do século 20, com estatuto e direito à sede própria perto da Casa Branca, os ex servem de esteio valiosíssimo para quem assume a Presidência. Os relacionamentos entre eles e com o titular na Casa Branca se forjam com o tempo. São relacionamentos por vezes surpreendentes, de afeto tardio, outras vezes hostis ou cheios de reservas, mas sempre respeitosos. Todos do clube passaram pela mesma experiência, conheceram as falácias do poder, acumularam cicatrizes no comando da nação. E todos, quando eleitos, recorreram ao clube em algum momento de seus mandatos. Menos Donald Trump, que não confia em ninguém.

Em outubro de 1981, diante da notícia-choque do assassinato do líder egípcio Anuar Sadat em atentado no Cairo, Ronald Reagan convocou três antecessores para representá-lo nos funerais de Estado: Gerald Ford, Richard Nixon e Jimmy Carter. A longa viagem tinha tudo para dar errado: Ford nunca se afinara com o encrenqueiro Carter, e este jamais escondera o desapreço por Nixon. Os três haviam se tornado ex-presidentes ou em desgraça, ou decepcionados, ou trucidados nas urnas. As questões de protocolo no voo foram espinhosas até para definir quem subiria primeiro no Air Force One. Mas ao final o trio já se tratava por Dick, Jimmy e Jerry. A partir dali, Ford e Carter estabeleceram uma parceria tão longeva que decidiram firmar um pacto — quem sobrevivesse ao outro faria o tributo final no funeral do morto. E assim foi.

Cabe também lembrar a tradicional “carta ao sucessor” deixada na mesa de carvalho do Salão Oval por todos os presidentes no derradeiro dia de poder. “Quando você ler esta carta você será Nosso Presidente… Torço por você”, escreveu o republicano George H.W. Bush em bilhete endereçado ao democrata Bill Clinton. E assim foi — Bush sênior sempre torceu pelo sucessor. Também Barack Obama, pouco após a posse em 2009, tratou de convidar para um almoço íntimo os quatro membros do clube dos ex da época: Bush pai e filho, Carter e Clinton. “Conseguimos deixá-lo à vontade falando de nossas próprias inseguranças, trocando lembranças”, contou Carter em livro. “Todos que ocuparam o posto entendem que o cargo transcende o indivíduo.”

Todos, menos Donald Trump.

Difícil imaginar o teor de uma hipotética “carta ao sucessor” redigida de próprio punho por Trump. Talvez um tuíte? Ou apenas sua assinatura garrafal? Ou nem isso? A tentativa de adiar a qualquer custo a passagem de bastão poderia levá-lo a desviar da caminhada democrática iniciada há 244 anos.

Foi pensando nisso que Barack Obama falou à nação esta semana. É útil ouvir e ler o discurso na íntegra para apreciar a escolha de cada uma de suas 2.298 palavras. O tom de voz sombrio tem peso equivalente ao conteúdo. Nada no texto é acidental ou retórico. Obama desvestiu-se de sua conhecida oratória poética para comunicar, em tom de urgência, que a nação americana corre perigo. A palavra “democracia” é repetida 18 vezes, e o alerta vem sem enfeites: “Este governo já demonstrou que, para vencer, derrubará nossa democracia se achar necessário”.

Pela primeira vez na história dos EUA, um ex-presidente afirma que outro presidente, no exercício do cargo, ameaça a democracia, é moralmente falido e inteiramente despreparado para liderar o país.

A fala de Obama fez parte da programação de quatro dias que oficializou a chapa Joe Biden/Kamala Harris no confronto com Trump. Mas ficará registrada como um dos discursos mais relevantes de toda a carreira pública do ex-presidente. Como a pandemia condenara a Convenção Democrata a um formato 100% virtual — alguns dos recursos utilizados deram muito certo, por sinal —, Obama escolheu o Museu da Revolução Americana na Filadélfia para lhe servir de pano de fundo silencioso, carregado de história. Foi mais decisivo do que Hillary e Bill Clinton somados.

Caberá ao amplo leque de vozes que acredita em “We, the People…” tentar empurrar o candidato democrata para a vitória perseguida por Joe Biden há 33 anos. A depender do seu discurso de aceitação, sozinho ele não conseguirá turbinar a nação “para além da escuridão atual”. Foi designado pela temperança de agregador e pela imagem de decência exigida no momento. Tomara que seja o suficiente. Cabe sempre lembrar que Donald Trump não é uma aberração solitária, nem a causa do estado de desagregação cívica do país. O ocupante da Casa Branca é apenas o sintoma mais berrante e perigoso da corrente obscurantista que o colocou no poder. Tem tudo para ser, também, um dos piores ex-presidentes da história.


Míriam Leitão: Risco democrático é o ponto central

“Esta eleição é sobre preservar a democracia”, disse o senador americano Bernie Sanders na convenção do Partido Democrata. A mensagem foi passada até nos cenários escolhidos. O ex-presidente Barack Obama falou diretamente do icônico “National Constitution Certer”, museu da Constituição, na Filadélfia. O candidato Joe Biden confirmou no seu discurso que essa é a luta principal. No Brasil, o Supremo deu o mesmo recado. Proibiu o Ministério da Justiça de fazer dossiê contra funcionários que não apoiam o governo. “É incompatível com a democracia”, segundo o ministro Luiz Roberto Barroso. A Corte condenou a espionagem de adversários feita pelo Ministério da Justiça, confirmando, por nove a um, o voto claro da ministra Cármen Lúcia.

A democracia, que parecia garantida, passou a ser ameaçada por governantes sem valores democráticos e com desprezo pelas instituições. O importante no dossiê contra policiais antifascistas e pessoas notáveis, como os professores Paulo Sérgio Pinheiro e Luiz Eduardo Soares, é que ele não pode ser feito. É inaceitável. Simples assim. Alguns ministros ressaltaram que o relatório tinha péssima qualidade como documento de inteligência. Isso é assunto lateral. O relevante é a atitude do Ministério da Justiça, de usar a máquina para investigar servidores que não concordam com o governo.

O ministro André Mendonça é o maior derrotado, mesmo tendo sido poupado, e até defendido pelo presidente Dias Toffoli. O país viu seu contorcionismo. A ministra relatora quis saber: existe ou não existe o dossiê? Ele tentou escorregar, mas a realidade se impôs. O pior momento do ministro da Justiça foi alegar questão de segurança nacional para negar ao STF o acesso ao documento. Felizmente, a ministra Cármen não se deixou enganar pela mentira embrulhada na bandeira. Exigiu conhecer o teor e fundamentou seu voto: “O Estado não pode ser infrator, menos ainda em afronta a direitos fundamentais que é sua função garantir e proteger.”

A existência dessa atitude infratora do governo, de montar um dossiê identificando servidores contrários ao fascismo, foi revelada pelo jornalista Rubens Valente no UOL. O país não caiu no erro de deixar passar para ver como é que fica. A Rede Sustentabilidade foi ao Supremo. O STF estabeleceu que o Ministério da Justiça não faça mais esse tipo de investigação, porque isso ameaça a democracia e é “desvio de finalidade”.

Na discussão, duas coisas ficaram claras: mesmo que seja nomeado ministro do Supremo, André Mendonça não merece a cadeira. Ele se comportou mal com suas versões conflitantes, mas o pior foi não entender a função constitucional do Supremo. Outro ponto a ficar explícito foi a constrangedora submissão do procurador-geral da República ao executivo. Colocando-se, na prática, como assistente do advogado-geral da União, Augusto Aras traiu o papel que a Constituição entregou ao chefe do Ministério Público.

Nos Estados Unidos, a convenção democrata, toda virtual, trouxe um recado real. Obama disse que Donald Trump representa a maior ameaça às instituições americanas. “É isso que está em jogo neste momento, a nossa democracia.” E por fim avisou sobre a dureza da luta dos próximos 70 dias: “Essa administração já mostrou que destroçará a nossa democracia, se é isso que precisa para ganhar.”

O candidato democrata Joe Biden confirmou a mensagem de toda a convenção. Falou dos tempos sombrios que Trump representa. “O caráter nacional está em disputa nas urnas. A decência, a ciência, a democracia.” Falou em “salvar nossa democracia”. Em tempos de descrença, alguém pode perguntar para que ela serve afinal? Para ter líderes que tragam uma palavra de conforto quando o país atravessa período de sofrimento. “O melhor caminho para superar a dor, a perda e a desolação é encontrar um propósito”, disse o candidato democrata, que em sua vida pessoal viveu o que diz. E o propósito final tem que ser sempre ampliar a inclusão de todos os grupos da sociedade. A convenção democrata trouxe de volta à cena a nova demografia da América, colorida, diversa, multicultural, ecumênica, que está explícita na exuberante diversidade de Kamala Harris, negra, filha de imigrantes — mãe indiana e pai jamaicano — e que estará na chapa que enfrentará Donald Trump.


Vera Magalhães: Democracia acima de tudo

Firmeza dos democratas nos Estados Unidos deveria inspirar os brasileiros

“Este presidente e aqueles no poder estão contando com o seu cinismo. (…) E é assim que nossa democracia murcha, até não ser mais democracia. Não deixe isso acontecer. Não permita que nos tirem nossa democracia.”

O discurso, dito olhos nos olhos por um Barack Obama bem mais grisalho e com semblante muito mais grave que aquele que incendiou os Estados Unidos em 2008, já nasceu histórico.

Foi a primeira vez que um ex-presidente do país se referiu ao seu sucessor, ao presidente em exercício, com palavras tão duras e diretas. Obama chamou Donald Trump textualmente de incompetente, que encara a presidência “como outro reality show”.

No próprio discurso, o democrata deixou explícito por que resolveu romper a liturgia e chamar as coisas pelos nomes que têm: “O que nós fizermos nos próximos dias vai ecoar pelas gerações que virão”.

A mesma falta de meias-palavras esteve presente nas falas de Michelle Obama, Bill e Hillary Clinton e dos candidatos a presidente, Joe Biden, e a vice, Kamala Harris. Sim, são todos do mesmo partido, mas estão longe de ocupar as mesmas casas no tabuleiro ideológico, de ter as mesmas origens, de concordar em muitas políticas públicas.

A democracia emerge da convenção democrata como um bem inegociável. Porque ela é fundamental, e não um mero detalhe.

Corta para o Brasil. Na mesma semana em que o Supremo Tribunal Federal teve de dar mais uma reprimenda no Executivo por vilipendiar a democracia, desta vez produzindo dossiê contra 579 adversários, os mesmos ministros trataram de dar aquela aliviada para o ministro responsável pela excrescência, André Mendonça. E a Polícia Federal comandada por ele acaba de convocar um jornalista a depor com base na Lei de Segurança Nacional, um resquício da ditadura, por uma coluna de opinião.

Aqui a democracia é um apêndice, um adereço contra o qual o presidente investe diuturnamente sob um dar de ombros preguiçoso dos políticos, dos juízes, dos procuradores e da sociedade entre anestesiada e cúmplice da barbárie.

Adversários de Bolsonaro estão mais preocupados em criar uma narrativa para si que em se unirem na defesa incondicional de princípios inegociáveis e dizer com todas as letras que Bolsonaro é, sim, uma ameaça ao estado democrático de direito. Como Trump também é.

Em seu novo livro, O Tempo dos Governantes Incidentais, o sociólogo e cientista político Sérgio Abranches se debruça sobre esse novo tipo de mandatário eleito em circunstâncias excepcionais (daí por que “incidentais”) e que, recorrendo à desinformação, a um passado falsamente idealizado e ao populismo barato, além da estratégia de aniquilação dos adversários, corroem as instituições por dentro.

Os democratas perceberam que não se combate um adversário descompromissado com a ética, a verdade e as responsabilidades do cargo com palavras vazias. E foram ao ponto ao apontar também que Trump não faz o seu trabalho, não lidera o país em seu momento mais grave no século.

Bolsonaro também passou meses sem fazer o seu trabalho: comandando claques golpistas, no lombo de cavalos, mostrando cloroquina para a ema e mais preocupado em lotear os órgãos de Estado que em dirigir o País na pandemia.

E ainda assim os presidentes da Câmara e do Senado não o chamam à responsabilidade, e os postulantes a seu lugar em 2022 seguem cometendo os mesmos erros e se preparando para repetir a polarização nefasta que o elegeu.

Há tempo de os políticos brasileiros acompanharem os artifícios de que Trump vai lançar mão, de teorias da conspiração à sabotagem dos Correios, para se preparar para enfrentar um presidente que não hesitará em lançar mão de todos os expedientes para se perpetuar no cargo, sua única preocupação genuína.


Marco Aurélio Nogueira: Os democratas norte-americanos e seus demônios

Como toda boa organização política, o Partido Democrata norte-americano é um compósito de correntes. Tem sua direita, seu centro e sua esquerda, que se batem entre si especialmente durante as convenções partidárias, quando as eleições presidenciais chegam à fase das definições e as campanhas ganham cara, força e ritmo.

As alas à esquerda costumam ser mais combativas, como é de esperar. Vocalizam grupos enraizados no mundo cultural e acadêmico. São expressivas nos movimentos por direitos e reconhecimento. Fazem política de um modo particular, no qual a ideologia e o simbolismo têm papel de destaque. Renegam o pragmatismo e gostam de promover o desgaste das candidaturas partidárias, sobretudo as presidenciais. Alegam que a pressão interna é decisiva para que o Partido Democrata não esmoreça e combata o sistema.

Em 2016, fuzilaram Hillary Clinton e contribuíram, indiretamente, para afastar eleitores progressistas ou predispostos a apoiar a candidata do partido. Os demônios partidários terminaram por tirar parte dos votos de Hillary.

Estão ensaiando fazer o mesmo hoje, mediante a interposição de vetos (discretos ou ostensivos) a Joe Biden e à escolha da senadora Kamala Harris como sua companheira de chapa. As ressalvas se apoiam em críticas à “elite democrática”, que só olharia para os próprios interesses, não ouviria as vozes mais jovens nem daria a devida ênfase às questões identitárias e às reformas sociais. Em certos setores, dá-se maior importância ao passado de Kamala Harris – que foi procuradora do estado da Califórnia – que a seu significado político na disputa eleitoral de 2020. Chega-se mesmo a dizer que a senadora é uma “policial” travestida de democrata e indiferente aos eleitores negros mais jovens.

Ainda faltam três longos meses para as urnas e pode ser que o furor esquerdista arrefeça. Vozes importantes, como Bernie Sanders, não estão a insuflar os ventos da discórdia, o que é um sinal unitário significativo, que reconhece a dimensão estratégica da atual disputa eleitoral. Uma vitória sobre Donald Trump é vista como uma espécie de tábua da salvação para os democratas, um impulso para que o partido volte a ser pujante e recupere sua marca política e social.

A escolha de Kamala Harris como vice-presidente foi inteligente. Negra, feminista, militante de direitos civis e com larga experiência administrativa, a senadora é uma moderada na arena partidária. A ideia é que ela atraia votos de setores que se abstiveram em eleições anteriores, dialogue com o movimento negro e por direitos civis sem, ao mesmo tempo, assustar os eleitores republicanos.

Trump sentiu o golpe e tem se dedicado a bater insistentemente em Kamala.

Ao opor vetos ideológicos à chapa de Joe Biden, os esquerdistas mais inflamados reforçam aquela “abdicação pelo imaginário americano” que o professor Mark Lilla (em O progressista de ontem e o do amanhã, publicado em 2017 pela Companhia das Letras) entende ser a principal fragilidade dos liberals, ou seja, dos democratas. Dizem pouco para o americano comum, as grandes multidões, ajudando a empurrar os democratas para “as cavernas que construíram para si próprios na encosta do que um dia foi uma grande montanha”, nas palavras de Lilla.

O professor é um crítico firme das inflexões identitárias que adquiriram expressivo peso no movimento social e nas áreas intelectuais próximas do Partido Democrata. Na sua visão, tais inflexões enfraquecem a solidariedade social e incentivam o populismo, com o enfraquecimento da dimensão institucional da cidadania. De quebra, põem em circulação uma “pseudopolítica de autoestima e autodefinição estreita e excludente”, que celebra um posicionamento refratário a avanços políticos consistentes, trocando-o por uma “evangelização” de baixa produtividade política. A diferença, para Lilla, é que “evangelizar é dizer verdades ao poder e fazer política é conquistar o poder para defender a verdade”.

O que vale para os Estados Unidos vale também para outras sociedades. A insistência em demarcar identidades partidárias ou ideológicas tem sido, em todas as partes, o laço que asfixia as forças democráticas e impede sua articulação. A eventual derrota de Trump em novembro próximo terá impacto significativo e poderá representar uma nova temporada de florescência democrática, com efeitos que se espalharão pelo mundo.

*Professor titular de teoria política da Unesp


Jason Stanley: Fascismo nos Estados Unidos?

As ações de Trump não são o maior motivo de alarme, mas o fato de que essas ações são realizadas com um partido que há muito tempo é implacável para controlar um país no qual tem apoio minoritário

RAQUEL MARÍN

Durante toda a presidência de Donald Trump houve preocupação com suas tendências antidemocráticas. Mas neste verão, em plena crise dos Estados Unidos, se fala cada vez mais abertamente de uma variante especialmente perigosa de autoritarismo já conhecida pela história da Europa no século XX. Depois desses anos de violento sentimento anti-imigração, nos quais houve mudanças nas leis para proibir a entrada nos EUA de residentes de vários países muçulmanos, diatribes contra a imprensa livre e, nas últimas semanas, o envio de forças federais a várias cidades para combater manifestações majoritariamente pacíficas em favor da justiça racial, cada vez mais políticos e jornalistas usam o termo “fascismo” para qualificar a ameaça que o Governo Trump representa.

A palavra “fascismo” implica muitas coisas, e seu uso em relação a Trump é polêmico. Por isso vale a pena que aqueles de nós que pensamos que o uso de um termo tão dramático é apropriado façamos uma pausa para apresentar nossos argumentos. Os EUA não são, por enquanto, um regime fascista. Embora os manifestantes encontrem violentas represálias das forças federais, podemos criticar o partido governante e seu líder sem medo de sofrer consequências. Os tribunais estão ocupados por juízes muito partidários, nomeados por Trump, mas agem com relativa independência. No Congresso, a maioria corresponde ao partido da oposição. Se falarmos de regimes, o Governo de Trump não preside um regime fascista.

Seria ingênuo pensar apenas em regimes que já são fascistas. Estaríamos indefesos diante dos movimentos sociais e políticos determinados a transformar as democracias liberais e empurrá-las ainda mais para o fascismo. Se somos verdadeiramente antifascistas, todos os movimentos fascistas devem nos inquietar. E esses movimentos podem nascer e nascem nas democracias. Os Estados Unidos continuam sendo uma democracia liberal, mas é legítimo se preocupar.

Embora acreditemos que é pouco provável que os EUA se tornem um regime fascista, também é legítimo se preocupar com as táticas políticas fascistas. A base de uma democracia saudável é formada pelas normas democráticas liberais: o mesmo respeito a todos os cidadãos e a tolerância de costumes e crenças diferentes. Para a política fascista, a diferença é uma ameaça mortal. A liberdade, a alma da democracia, é inimiga do fascismo. O que preocupa é a possível transformação do regime dos EUA no futuro. Quais são as razões para ter esses temores sobre a democracia mais antiga do mundo?

Uma característica dos movimentos e partidos fascistas é o racismo descarado. E a política do presidente sempre teve algo a ver com o racismo. Desde 2015 não deixa de demonizar os imigrantes, e está tendo reações muito duras aos protestos políticos dos negros. E agora decidiu deliberadamente basear sua campanha eleitoral na oposição ao movimento de justiça racial Black Lives Matter e, o mais inquietante de tudo, classificou seus promotores de terroristas. No entanto, Trump não é o primeiro presidente a usar o racismo em uma campanha política. Relacionar os norte-americanos negros com a criminalidade é uma tática tão frequente nas eleições presidenciais que não recorrer à demagogia racial é a exceção. O atual candidato democrata, Joe Biden, tem um histórico muito conhecido de demagogia racial mal dissimulada. O fato de um político fazer uma campanha racista não é motivo suficiente para pensar que haverá uma infração escandalosa às normas políticas tradicionais. Para compreender por que há mais preocupação agora, precisamos nos aprofundar mais.

Outra característica dos líderes fascistas é como alteram a realidade para fazer que sua propaganda tenha aspecto de verdade. Quando Trump decidiu enviar as forças federais a Portland, as manifestações lá e em outras cidades já tinham começado a decair; enviar as tropas para aquela cidade e ameaçar enviá-las a outras foi uma provocação para causar exatamente o caos que se supunha que devessem impedir.

O recente tuíte de Trump criticando o voto pelo correio e levantando a possibilidade de adiar as eleições é um exemplo de várias táticas fascistas clássicas misturadas em uma. Os líderes fascistas acusam os processos democráticos de serem corruptos e fraudulentos. Mas, assim como acontece nos fascismos, o que lançaria dúvidas sobre a validade das eleições seria precisamente seguir as recomendações de Trump, como impedir o voto pelo correio e adiar as eleições. Da mesma forma, os líderes fascistas sempre denunciam outros por fazerem o que eles estão fazendo. Nesse caso, Trump e os republicanos são os que colocaram em risco a validade das eleições, por exemplo, com suas táticas para impedir que determinados grupos votem. No entanto, o tuíte acusa os democratas, que estão tentando garantir a limpeza das eleições apesar de todas essas artimanhas. Mas por mais repugnante que seja a maneira de agir de Trump, o mais alarmante não é que ele tome essas medidas, mas o contexto histórico em que as toma. Outra característica dos regimes autoritários é o partido único. Faz muito tempo que o Partido Republicano tacha seus adversários de ilegítimos e sempre qualifica a oposição centrista de comunistas ocultos. Os republicanos conseguiram ganhar muitas eleições presidenciais e no Senado apesar de os eleitores que os apoiam serem minoria. Existem motivos para pensar que o Partido Republicano é um partido minoritário que pretende se alavancar como único partido.

O segundo motivo de inquietude é que os EUA acabam de deixar para trás uma “guerra contra o terrorismo” em que se usava a tortura contra os suspeitos. Dentro dessa guerra foi criada uma Administração nova à qual foram concedidos poderes extraordinários para rastrear e deter residentes sem documentos. Essas são as forças paramilitares, treinadas para tratar com brutalidade pessoas que não são norte-americanas, que hoje foram enviadas a várias cidades norte-americanas para enfrentar os manifestantes. É frequente que os regimes fascistas surjam depois de guerras coloniais e que as forças que lutaram nelas se orientem agora para dentro. É fácil ver os paralelos no momento atual.

Em resumo, as ações concretas do Governo de Trump, por mais inquietantes que possam ser, não são o maior motivo de alarme. É que essas ações estão sendo realizadas no contexto de um partido político governante que há muito tempo se mostra implacável para controlar um país no qual tem apoio minoritário. E em um país que não desmontou o aparato de segurança que construiu em uma aventura imperialista fracassada no Oriente Médio. Durante vários anos disseram a seus agentes que todos os residentes sem documentos são terroristas. E agora o presidente ordenou que os norte-americanos que se manifestam pacificamente sejam tratados como terroristas. São dias aterradores, não apenas por causa dos demônios atuais, mas porque o país está há muito tempo permitindo que seus demônios do passado sobrevivam sem tocá-los.

Jason Stanley é professor de Filosofia da Universidade de Yale e autor de Como Funciona o Fascismo: A Política do “Nós” e “Eles” (L&PM).