Democratas

El País: Segundo impeachment pode deixar Trump inelegível?

Senado estará dividido em 50 a 50 entre republicanos e democratas, mas o impedimento só é aprovado com dois terços dos votos

Yolanda Monge, El País

Donald Trump entrará na história como o único presidente submetido a dois julgamentos políticos, ou impeachments. Pode até se tornar o primeiro presidente dos Estados Unidos a sofrer esse impeachment já sendo ex-presidente. Porque ao contrário dos julgamentos anteriores no Senado contra Andrew Johnson, Bill Clinton e o próprio Trump, nesta ocasião o tempo é um fator determinante, uma vez que daqui a uma semana o presidente eleito, Joe Biden, prestará juramento nas escadarias do Congresso e Trump deixará o poder ao meio-dia do dia 20.

O ambiente político é muito diferente daquele do impeachment que Trump enfrentou em 2019. Na época os republicanos eram uma força monolítica e sem fissuras ―com a única exceção do senador Mitt Romney. Desta vez, o líder da maioria do Senado, Mitch McConnell, indicou que considera que a melhor maneira de tirar o trumpismo do Partido Republicano seria submeter o presidente a um impeachment. Trump seria julgado por “incitação à insurreição”.

A missão da Câmara dos Representantes nesta quarta-feira era aprovar a norma procedimental que definiria o impeachment, uma questão puramente mecânica, e votar a favor ou contra. A votação resultou na aprovação, porque só era necessária maioria simples e a Câmara está nas mãos dos democratas. A partir daí, tudo é novo em comparação com os julgamentos anteriores da época moderna, seja o de Clinton ou o do próprio Trump. Nancy Pelosi, a presidenta da Câmara dos Representantes, deve então decidir quando enviar a proposta de impeachment ao Senado, uma vez que, segundo o atual calendário, a Câmara Alta está em recesso até o próximo dia 19.

A única maneira de o Senado retomar suas sessões seria se os líderes de ambos os partidos, Mitch McConnell e Chuck Schumer, acordassem voltar mais cedo do que o calendário indica. Nesta questão, alguns democratas tinham pedido a Pelosi que adiasse o início do impeachment para permitir que Joe Biden começasse seu mandato sem que esse fardo pesasse sobre sua cabeça, o que, além disso, tornaria mais lenta a confirmação de seu Gabinete. Outros exigiram que começasse de imediato. Se forem confirmadas as palavras desta quarta-feira do líder da maioria da Câmara dos Representantes, Steny Hoyer, uma vez aprovados, os artigos do impeachment serão enviados imediatamente ao Senado, onde se realizará o segundo julgamento de Trump. Isto acabaria com as dúvidas sobre se os democratas esperariam os primeiros 100 dias de Biden na Casa Branca para realizar o julgamento e assim não interferir em sua agenda. No entanto, McConnell já avisou que não reunirá o Senado durante o recesso, razão pela qual o processo certamente terá lugar depois de Trump ter deixado a Casa Branca.

Numa atmosfera normal, não depois do ataque ao Congresso e com a Guarda Nacional mobilizada dentro do Capitólio, haveria uma investigação que seria enviada ao Comitê de Justiça da Câmara, que realizaria audiências intermináveis nas quais seriam redigidos centenas de artigos para que se aprovassem. Isto aconteceu em 2019, quando Trump foi processado por seu conluio com o presidente da Ucrânia. Esse inquérito demorou três meses. O julgamento de Clinton começou em 19 de dezembro de 1998 e terminou com sua absolvição em 12 de fevereiro do ano seguinte.

No entanto, existe o precedente de um impeachment expresso. Em 1868 a Câmara levou apenas três dias para julgar o presidente Andrew Johnson para evitar que violasse uma lei que o impedia de demitir o secretário de Guerra. A Câmara terminou então os artigos relativos ao impeachment depois que o presidente já tinha sido julgado, e absolvido. Em resumo: a Câmara pode avançar tão rápido quanto os líderes democratas desejarem.

Uma vez que a proposta de impeachment for enviada ao Senado, que é onde se julga o presidente, é de suma importância lembrar que o impeachment acontece num momento de transição tanto presidencial quanto de senadores. Os democratas Raphael Warnock e Jon Ossoff ganharam as eleições especiais da Geórgia no dia 5, mas como os resultados ainda não foram certificados eles não foram empossados, razão pela qual Mitch McConnell continua sendo o líder da maioria na Câmara Alta. O dia 22 é a data limite para a Geórgia legalizar os votos.

Se ambos os senadores tomarem posse enquanto Trump ainda for presidente, o Senado ficaria dividido em 50 a 50 e seria o vice-presidente, Mike Pence, quem romperia um empate em favor dos republicanos. Só depois que a vice-presidenta Kamala Harris e os senadores da Geórgia prestarem juramento é que os democratas assumirão o controle do Senado. De novo o tempo joga contra os democratas, e até ao dia 20, e mesmo alguns dias depois, McConnell e os republicanos é que decidirão o que será feito no Senado, o que significa que decidirão se começam o julgamento e como (por exemplo, quanto tempo será dedicado a ele, se testemunhas serão chamadas ou não).

Entre os obstáculos para que Trump seja condenado por insurreição ―e, a depender de uma segunda votação, incapacitado para voltar a ocupar um cargo público― está o fato de que deve ser aprovado por uma maioria de dois terços no Senado ―a incapacitação política dependeria de maioria simples, por outro lado. Embora várias vozes republicanas defendam a punição a Trump, seriam necessários 17 votos no Senado, o que torna uma condenação muito difícil. A isto se junta a pergunta de saber se o Senado pode proceder a um impeachment contra um presidente que já não está em exercício.

A pergunta que divide os especialistas citados pela imprensa norte-americana é: o Senado pode efetuar um impeachment contra um presidente que já não está em exercício? Há quem argumente que um ex-presidente já é um cidadão comum e que a figura do impeachment não foi redigida para tais casos. Outros dizem que o objetivo é conseguir que se proíba ao acusado poder concorrer à Casa Branca ―ou a outras instâncias do Governo― no futuro. A Constituição não dá respostas claras a esse respeito.

Enquanto isto acontece, Trump pode tentar alguma manobra, como declarar a lei marcial ou ordenar uma nova eleição, como sugeriu seu aliado Michael Flynn? Apesar de que, depois da insurreição, o presidente tenha se comprometido a respeitar a transição de poder, ninguém pode garantir que o fará. É por isso que uma grande maioria de legisladores democratas acredita que não se pode confiar que o presidente jogará limpo, e por isso pedem sua destituição imediata do cargo.


Roberto DaMatta: O combate de Trump contra a igualdade

Eis um combate revelador de um permanente negacionismo hierárquico cujas raízes estão centradas na crença segundo a qual as pessoas poderosas canibalizam a seu gosto as regras e estão acima da lei

A eleição é um evento de formidável significado político nas democracias. O ritual eleitoral livre e individualizado equivale à morte paradoxalmente programada de um rei. Ele renova o sistema político e acaba com o exclusivismo dos arranjos de familismos e abala os ardis de classe, dando sentido a associações voluntárias que ajudam a enfrentar problemas. Somente na democracia há uma entrega do poder político ao julgamento do povo. 

Tal paradoxo torna-se ainda mais poderoso num planeta permeado por redes digitais – uma jamais vista capacidade de livre expressão, o que facilita tanto a verdade quanto a intriga e a mentira. O fato inegável, contudo, é que a eleição livre é a melhor vacina contra os golpes cujo primeiro ato é eliminá-la. 

A dúvida de quem vai ser o mandatário por meio eleitoral é a prova viva do valor da igualdade inibidora do execrável “você sabe com quem está falando?”, porque a competição eleitoral suspende e separa indivíduos de cargos, revelando que estes são fixos, mas pessoas e contextos – eis o centro do surto trumpista e de todos os autoritarismos – passam.

As estruturas eleitorais neutralizam hierarquias e exigem igualdade. No fundo, elas equilibram esses dois polos descompassados, mas acasalados da vida social. Elas substituem um obrigatório “sabe com quem está falando?” por um realista “quem você pensa que é?”, numa transição verdadeiramente revolucionária quando se vai do personalismo patriarcal para a impessoalidade de um igualitarismo universalista – esse marco da vida moderna.

A eleição, diz um ativista amigo e querido, não é o emplastro de Brás Cubas, mas renova a esperança de liberdade, igualdade e justiça. 

Não foi, pois, por acaso que o inusitado, criminoso e brutal ataque ao Parlamento americano, uma agressão insuflada pelo próprio presidente Trump, tenha sido iniciado explicitamente no processo eleitoral. 

Ironicamente, foi o mecanismo eleitoral singularmente americano com as suas duas etapas – voto universal centralizador e de massa; e voto num colégio eleitoral federativo e qualitativo –, desenhado para inibir populismos, que, nesta eleição, trouxe à cena o antidemocratismo violento e, no limite, fascista, de Donald Trump. Foi justo na segunda etapa eleitoral que a narrativa de fraude ganhou credibilidade. 

Daí, encarnou-se a encrenca de Trump contra a realidade das contagens dos votos numa rejeição surrealista de números e do igualitarismo competitivo. Encrenca surrealista, típica da má-fé que tão bem conhecemos. Um “morde e assopra” que tipifica a nossa vida pública e permite escolher não escolhendo tanto a democracia quanto o autoritarismo; tanto o salvador da pátria quanto a lei, conforme tenho reiterado na minha obra. 

Eis um combate revelador de um permanente negacionismo hierárquico cujas raízes estão centradas na crença segundo a qual as pessoas poderosas canibalizam a seu gosto as regras e estão acima da lei. Tal é justamente o caso de Donald Trump com a diferença de que, nos Estados Unidos, uma profunda tradição do “governo da lei” reafirmou que não há ninguém acima de qualquer suspeita.

Sobretudo quando se trata de um presidente contraditório, mentiroso e insuflador de insurreição. A força do domínio da lei surgiu abertamente quando o Senado reafirmou que, nas democracias, os juramentos não são feitos a pessoas, mas ao país e à Constituição.

Trump foi derrotado pela igualdade, essa discreta dama imprescindível às democracias. A despeito dos seus fanáticos seguidores, ele foi vencido pelo princípio de que, quanto maior o privilégio do cargo, mais o seu ocupante é um devedor permanente da honestidade e da transparência. 

O que nos leva a um assunto inibido quando se trata de discutir o lugar de uma superpotência num mundo globalizado. Refiro-me à capacidade de o presidente dos Estados Unidos poder emitir moeda, construir muros, afetar a economia mundial e – valha-nos, Deus! – de ter o poder pouquíssimo discutido, mas absurdo de, num apertar de botões, destruir o mundo! 

Nesse contexto, vale discutir se as regras de governabilidade que anularam, com justiça, o poder dos reis e dos papas, seriam ainda adequadas a presidentes e líderes de países dotados de artefatos nucleares. Lembro que, até a metade do século passado, imperadores, reis, ditadores e tiranos tinham poderes sem dúvida absolutos sobre seus povos, mas não tinham a capacidade de – como Deus ou algum maluco, a Oeste ou Leste, onipotente – destruir o planeta! 

Para terminar com essa crônica um tanto bíblica, temo que, quando a vacina for libertada das sabotagens burocráticas, todos estaremos doentes ou mortos pela tal “gripezinha”.

*É antropólogo social e escritor, autor de ‘Fila e democracia’


El País: Mike Pence rejeita apelos para destituir a Trump e abre as portas para o impeachment

Câmara de Representantes, dominada pelos democratas, vota a favor do uso da 25ª emenda, apesar da recusa do vice-presidente

O vice-presidente dos EUA, Mike Pence, rejeitou os apelos dos deputados democratas para que destitua Donald Trump com base na 25ª emenda da Constituição. A recusa de Pence, expressa em carta à presidenta da Câmara de Representantes, Nancy Pelosi, foi anunciada horas antes de a Câmara baixa colocar em votação, na noite de terça, uma resolução em que se solicitava formalmente ao vice-presidente que invocasse a 25ª emenda para declarar a vacância do cargo, sob a alegação de que Trump se encontra incapaz de cumprir seus deveres e obrigações. Os democratas deram um prazo de 24 horas para que Pence aja, e se isso não ocorrer pretendem votar nesta quarta-feira o segundo impeachment do presidente, para depois esperar que o Senado o destitua, quando faltam sete dias para o final do mandato de Trump e a posse do democrata Joe Biden como novo titular da Casa Branca.

“Não cedi à pressão para exercer um poder além de minha autoridade constitucional”, afirmou Pence em sua carta a Pelosi, “e não cederei agora aos esforços da Câmara de Representantes de fazer jogos políticos em um momento tão grave na vida da nossa nação”. Com a possibilidade de uma destituição via 25ª emenda sendo rejeitada antes mesmo de começar a correr o prazo dado pelos deputados, o caminho para o impeachment fica aberto.

Pence exibe assim um último gesto de lealdade a Trump. Ou talvez um zelo escrupuloso pelos limites do seu cargo, como diz em sua carta. Entre as limitadas atribuições constitucionais do vice-presidente ―único cargo eletivo de âmbito nacional, além do próprio presidente ― está a de evocar a 25ª emenda. Isso se dá informando por escrito aos líderes das duas casas do Congresso que o presidente, na avaliação da maioria do gabinete, se encontra “incapaz de cumprir os poderes e obrigações de seu cargo”, o que leva o próprio vice-presidente a assumir esses poderes e obrigações na qualidade de presidente interino. O desafio lançado a Pence pelos congressistas punha em xeque um relacionamento, vizinho ao servilismo, que permeia estes turbulentos quatro anos, desde que os dois políticos compuseram a chapa republicana para as eleições presidenciais de 2016 ―repetida em 2020. Mas se trata de uma relação que, nestas últimas semanas, esfriou de maneira notável.

Se já era remota a probabilidade de que Pence decidisse trair Trump na reta final, entrando para a história como um efêmero 46º presidente dos Estados Unidos, ela praticamente se extinguiu na noite de segunda-feira. Trump e Pence se reuniram no Salão Oval e, segundo fontes da Administração, se comprometeram a continuar trabalhando juntos “no que resta de mandato”. O fato de a reunião ser a primeira interação entre os dois desde a invasão do Capitólio, na quarta-feira passada, revela a insólita deterioração da confiança de Trump naquele que era um dos seus mais fiéis escudeiros.

O esfriamento começou em 15 de dezembro, quando alguém convenceu Trump de que Pence era sua última esperança para reverter o resultado das eleições que perdeu em 3 de novembro. A possibilidade de o vice-presidente impugnar a contagem dos votos do Colégio Eleitoral no Congresso virou uma obsessão para o presidente. Pence estudou a possibilidade com constitucionalistas, que concordaram em considerá-la inviável. A equipe do vice-presidente soube, segundo o The Washington Post, que os advogados de Trump preparavam inclusive uma ação judicial contra ele. O fato de Pence se basear em juristas do Departamento de Justiça para neutralizar essa ação, segundo o Post, deixou Trump ainda mais furioso.

A pressão sobre Pence incluiu um telefonema na manhã de 6 de janeiro, a fatídica data em que o vice-presidente presidiria o Senado para o ritual da certificação do resultado eleitoral. Depois da negativa de Pence, o presidente arremeteu publicamente contra seu vice. “Mike Pence não teve a coragem de fazer o que deveria ter feito para proteger o nosso país e a Constituição”, tuitou às 13h24 daquele dia (hora local). Àquela altura, as hordas trumpistas, estimuladas pelo presidente, já tinham tomado o Congresso de assalto. “Cadê o Pence?”, gritavam os amotinados. O vice-presidente tinha sido retirado do plenário do Senado e se estava escondido numa localização secreta do Capitólio. O presidente não ligou para Pence para saber se estava bem. Nem naquele dia nem nos seguintes.

O presidente anunciou que não assistirá à posse de Joe Biden e Kamala Harris na próxima quarta-feira. Pence, entretanto, confirmou que estará lá. O vice-presidente se manteve ao lado de Trump em todas as crises. Deu um jeito inclusive de esquivar os golpes à frente da errática resposta da Casa Branca à crise do coronavírus, transitando com destreza pelo cisma entre a ciência e as gafes do presidente. Agora, seu distanciamento com as bases trumpistas gera incógnitas sobre suas mal disfarçadas aspirações presidenciais.


Amanda Mars: Trump dinamita o final com o qual sonhava

Até quarta-feira, o presidente republicano imaginava uma etapa pós-presidencial na primeira linha de combate. O ataque ao Congresso o deixa mais isolado e silenciado que nunca

Silenciado nas redes sociais, repudiado pelo establishment republicano, abandonado por uma série de altos funcionários de seu Gabinete e derrotado nas urnas, Donald Trump nunca esteve tão sozinho como agora. Sua última grande batalha contra o sistema dos Estados Unidos, na qual tentou reverter o resultado das eleições presidenciais espalhando acusações infundadas de fraude, serviu de teste final sobre as lealdades, e também sobre as forças democráticas, e o presidente se deu mal.

O secretário de Justiça William Barr, nomeado pelo próprio Trump, não encontrou nenhum fundamento da alegada grande operação fraudulenta; as autoridades republicanas dos Estados cujos resultados eleitorais foram contestados pelo mandatário resistiram às suas pressões; a Suprema Corte, de maioria conservadora e com três dos nove juízes nomeados por ele, decidiu por unanimidade não envolver-se; e no último momento, na quarta-feira, quando o Congresso se reuniu para certificar em Washington a vitória eleitoral do democrata Joe Biden, apenas um punhado de legisladores fiéis ao presidente se animou a torpedear o processo.

Naquele 6 de janeiro, já escrito para sempre nos livros de história, o magnata nova-iorquino resolveu fazer uma nova demonstração de força. Pela manhã, antes que os membros do Congresso se reunissem para ratificar Biden, convocou um comício em frente à Casa Branca, aproveitando a enorme quantidade de seguidores que tinham chegado de todo o país. Depois, incentivou-os a ir protestar diante do Capitólio, a ser fortes, a recuperar o país sem fraquejar.

Até quarta-feira, Donald Trump tinha planejado uma etapa pós-presidencial na primeira linha de combate, pensando em se manter como uma voz destacada do eleitorado conservador. Tinha revelado inclusive sua intenção de voltar a ser candidato nas eleições presidenciais de 2024 e, pelo que seu entorno vazou para a imprensa, pensava em anunciá-la formalmente no dia da posse de Joe Biden, em 20 de janeiro. Ninguém gosta tanto de um bom espetáculo como esse empreendedor imobiliário de 74 anos que conquistou a presidência mais poderosa do mundo ao saltar dos reality shows para a política. Irritado com a linha da TV conservadora Fox News —outra que o abandonou, segundo seu ponto de vista—, pensava em lançar uma plataforma própria para continuar conectado com suas bases. A batalha de fundo era o controle do eleitorado republicano. Alguns membros de sua família, como sua filha, Ivanka, e seu filho mais velho, Donald, também consideraram a possibilidade de seguir uma carreira política. Em suma, para a família Trump, a política estava apenas começando.

Todos esses planos se complicaram para Trump depois do violento assalto de seus seguidores radicais ao Congresso, uma revolta — instigada por sua campanha dos últimos meses— na qual morreram cinco pessoas e que pôs a imagem dos Estados Unidos, a democracia mais poderosa do mundo, em uma situação vergonhosa.

Segundo o procurador Ken Kohl, do gabinete do Ministério Público dos EUA em Washington, o Departamento de Justiça não planeja, pelo menos por enquanto, denunciar por crimes de incitação à violência o presidente ou outros que discursaram no comício da manhã de quarta-feira diante da Casa Branca (como seu filho Donald Jr.), onde foi aceso o pavio. No entanto, o Partido Democrata pretende submeter Trump a um processo de impeachment, ou seja, a um julgamento político no Congresso para decidir sobre sua destituição, a não ser que ele renuncie ou seu próprio Gabinete o deponha recorrendo à 25ª emenda da Constituição (estas duas últimas opções são improváveis).

Resta para Trump pouco mais de uma semana na Casa Branca, mas, se for condenado nesse processo, o Senado poderia votar também para incapacitá-lo como candidato no futuro. O impeachment teria caminho livre na Câmara dos Representantes, que iniciaria o processo e tem maioria democrata, mas seria complicado no Senado, onde ocorreria o julgamento político em si, no qual um presidente só pode ser condenado por maioria de dois terços dos votos —o que, atualmente, o partido de Joe Biden não tem.

“É muito difícil que tenham tempo para tudo isso; o que os democratas querem fazer é prejudicá-lo politicamente, evitar que possa se candidatar nas eleições em 2024, e buscam o apoio dos republicanos para isso, mas essa não é sua prerrogativa, é uma prerrogativa dos eleitores”, considera o jurista republicano Robert Ray, que atuou como procurador independente no caso Whitewater, um escândalo imobiliário que atingiu Bill e Hillary Clinton nos anos noventa.

Além dos episódios violentos no Congresso, o que estará à espera de Trump quando ele deixar o Governo é a Justiça. A procuradoria de Manhattan está investigando seu histórico tributário e, graças a uma vitória na Suprema Corte, terá acesso a oito anos de suas declarações, como parte de inquéritos sobre pagamentos a mulheres para ocultar possíveis infidelidades matrimoniais durante a campanha de 2016 e sobre uma possível fraude fiscal. Além disso, a procuradora de Nova York Laetitia James está analisando possíveis acusações contra sua construtora por alterar o valor real de seu ativos para obter empréstimos.

O Departamento de Justiça também terá o caminho livre para reativar o caso de obstrução à Justiça durante a investigação da trama russa —Trump já não terá a imunidade presidencial— e, por outro lado, continuam os processos por sua conduta pessoal: uma ação de sua sobrinha Mary Trump por fraude em uma herança e duas por difamação, uma destas movida pela escritora E. Jean Carroll, que o acusa de uma agressão sexual supostamente cometida nos anos noventa.

Essas questões, porém, já estavam na mesa antes do pleito de novembro e não minaram o apoio ao presidente, que perdeu as eleições, mas obteve 74 milhões de votos, quase 12 milhões a mais do que em 2016. A dúvida é se o magnata conseguirá manter sua capacidade de mobilizar as bases a partir de agora; se realmente, como afirma, poderá continuar sendo o líder dos eleitores conservadores depois de ser expulso do poder político, com menos atenção da mídia e com outros republicanos já pensando em varrê-lo do mapa para entrar na corrida pela Casa Branca.

Para o estrategista político Rick Wilson, um dos fundadores do The Lincoln Project, uma plataforma de republicanos contra Trump, o presidente perdeu “seu superpoder”, ou seja, seu alto-falante nas redes sociais, Twitter e Facebook, “e não poderá se comunicar com seus seguidores tão facilmente quanto antes”.

Wilson relativiza o peso dos 74 milhões de votos que Trump recebeu nas eleições, e alerta que metade deles é de “republicanos comportamentais”, ou seja, eleitores que “votarão em republicanos aconteça o que acontecer, porque para eles as eleições são uma alternativa entre socialismo e liberdade, luz e escuridão, bem e mal”. Resta, acrescenta o estrategista, essa outra metade que participa do culto à figura do magnata nova-iorquino. “Mas o grande cisma com que esta nação se defronta é se as pessoas que se dizem republicanas, que acreditam nos princípios conservadores, estão bem servidos com Trump”, assinala. Para o Partido Republicano, diz ele, o que ocorreu quarta-feira foi “devastador”.

Fala-se muito sobre os próximos movimentos de Trump. Renegado como nova-iorquino, espera-se que ele se mude para a Flórida, principalmente por conveniência fiscal. Um personagem tão singular como esse, alérgico às derrotas e orgulhoso até a agonia, não pode ser considerado varrido do mapa. Se vir opções, continuará lutando pelo controle dos eleitores republicanos, mas ninguém acredita mais que ele tenha coragem de convocar outra manifestação para coincidir com a posse de Biden.


Cacá Diegues: Uma nova democracia

O fracasso da invasão do Capitólio se deu graças à aliança entre democratas e republicanos

Pouco antes da conquista do planeta pelo coronavírus, pegava fogo o debate sobre a crise da democracia. Da versão política de Steven Levitsky à nênia econômica de Thomas Piketty, os pensadores ocidentais se dividiam entre a desconfiança num sistema de lógica tão frágil e a inesperada ascensão de gente como Boris Johnson, Matteo Salvini e sobretudo Donald Trump. Este último trazia a chave que abriu a caixa de Pandora do delírio antidemocrático, iniciado com a crise de 2008. A decadência desse baile de máscaras ideológico nos pegaria em cheio — a eleição, no Brasil, de Jair Bolsonaro, dez anos depois da inauguração dos novos tempos.

Como disse Manuel Castells, “a desconfiança nas instituições (...) nos deixa órfãos de um abrigo que nos proteja em nome do interesse comum”. Não há interesse comum quando os “representantes do povo” administram seus próprios sonhos em nome das sociedades que supostamente representam. O movimento antidemocrático é a inversão da energia popular: não cabe aos líderes realizar os “sonhos do povo”, mas orientar o povo sobre quais devem ser seus sonhos. É daí que nascem os “brexits”, rompimentos indesejáveis, xenófobos e populistas, que não podem ser condenados por ter sido escolhidos por eleitores.

O surgimento de um personagem excessivo, narcisista e grosseiro como Bolsonaro, que chega ao poder com uma ideologia semelhante à de Trump, pretende liberar energias reprimidas. E nos ameaça, para o futuro próximo, com algo parecido com a invasão do Capitólio. “A chave do sucesso de Trump”, escreve Matt Taibbi, “é a ideia segundo a qual as velhas regras de decência foram feitas para os perdedores que não têm o coração e a coragem de ser eles mesmos”. Essa é a mensagem do trumpismo numa era “narcisista de massa”, bem adequada a ela. O apoiador herda, por transição natural, o poder do apoiado, o herói político que o salvará não apenas da fome, mas também da insignificância de onde só pode se embasbacar com o universo estratosférico dos heróis inatingíveis da Marvel.

Foi o vírus que nos salvou desse mundo de mentira, dessa ficção de blockbuster direitista. A tragédia da Covid-19 nos fez voltar à realidade, trocar o papo enfeitado da política pelo discurso óbvio da sobrevivência da humanidade.

No Brasil do século XIX, por ocasião da Guerra do Paraguai, o governo imperial obrigara cada província a enviar uma percentagem de sua população para a luta. Os senhores de terra prometiam então a seus escravos alforria imediata a quem fosse à guerra no lugar deles. A maior parte desses “voluntários” acabava morta, esquecida no campo de batalha; e os que retornavam voltavam aos poucos à condição de escravos, numa sociedade em que não havia, para eles, outra coisa a fazer para ter um teto e matar a fome. É como se a escravidão estivesse em sua natureza e pudesse ser chamada de democracia, já que dependia apenas da vontade dos que a exerciam.

O melancólico livro de David Runciman, sobre o fim da democracia liberal, nos afirma, logo no início, que “nada dura para sempre”. E acrescenta o que nega ao longo de suas páginas: “A democracia sempre esteve destinada a passar, em algum momento, para as páginas da história”. Mas as páginas da história reproduzem apenas o modo como certas ideias são tratadas em um determinado tempo. Se pensarmos na convivência humana sem limitações ou prejuízo para o outro, estaremos praticando a ideia de democracia. Essa ideia nasceu há muitos séculos, nas reuniões públicas de cidadãos da Grécia Antiga. E, como ideia, já chegou hoje à ausência absoluta de discriminação, onde todos têm os mesmos direitos, seja qual for seu gênero, cor, origem ou formação. A única interdição segue sendo não atropelar os interesses legítimos e o justo desejo do outro.

O fracasso da invasão do Capitólio pelas tropas civis de Trump se deu graças à aliança entre membros dos partidos Democrata e Republicano, políticos tão diferentes quanto Nancy Pelosi e Mitch McConnell. Selvageria e barbárie dos invasores, em cuja tropa não havia um só negro, passaram longe das comoventes passeatas que proclamavam que “black lives matter”. Uma nova democracia pode surgir daí, talvez menor, mas certamente mais humana, sem bravuras mas com solidariedade. Uma democracia que não serve apenas a quem já tem o poder. Mas a do vizinho, nascida da consciência de que estamos todos vivendo num mesmo mundo e dele temos que tirar os mesmos proveitos para sermos felizes. Em tempos de tanta incerteza, não custa nada citar Gramsci: a velha ordem já não existe, e a nova ainda está para nascer.


Alon Feuerwerker: Para a defesa de interesses, manobras complexas

Governos que se mantêm apesar das crises induzem a celebrar e elogiar a institucionalidade; já governos que fracassam e caem têm sempre a tentação das teorias conspiratórias. Mas a realidade, em última instância, é uma só: cabe a qualquer governo cuidar de suas bases de sustentação, sem elas está fadado à ruína. Seja qual for a "institucionalidade".

E quando a ruína vem, abre-se a possibilidade de uma ofensiva do inimigo, que costuma ser implacável e brutal. E que só freia quando se estabelece uma nova correlação de forças, mais equilibrada. Ainda não chegamos a esse ponto nos Estados Unidos. A coalizão política, social e cultural organizada pelo Partido Democrata contra Donald Trump só começou seu avanço.

E com a ordem de não fazer prisioneiros.

E a ofensiva ali se espalhará por todos os fronts. A guerra cultural será particularmente cruenta, na tentativa de ajustar as contas com as raízes mesmo da formação nacional norte-americana e daí buscar uma legitimidade de tipo completamente novo. Até chegar o dia em que tudo isso vai cansar e os robespierres de hoje forem encaminhados à guilhotina.

Claro que em pleno século 21 essa é apenas uma figura de linguagem. Mas os precedentes históricos são vários.

E o que temos a ver com isso, tirando o óbvio interesse pelo espetáculo? O que os americanos vão fazer com o país deles é assunto deles, mas o problema é se tratar de uma superpotência, a maior, e com armamento capaz de destruir a civilização algumas vezes. E qual será o melhor meio para os novos detentores do governo ali buscarem mais apoio num país fraturado?

Além de fazer a revolução interna, tentar restabelecer a liderança planetária que vai escorrendo pelo ralo do fantasma da decadência econômica.

A política de Donald Trump para fazer a América grande de novo sustentava-se no resgate das raízes nacionais e, principalmente, no buy american and hire american. Os americanos comprarem produtos americanos e produzirem em casa. Joe Biden repete o buy american, mas a ambição dele é maior: remontar a hegemonia planetária.

Aí cada país, dos maiores aos menores, precisará entrar num jogo de manobras complexas, buscando no todo e em cada situação defender seus próprios interesses, e ao mesmo tempo adaptar-se aos interesses de quem tem a vantagem da força. Porque, novamente, nunca é prudente subestimar a correlação de forças.

E qual o desafio maior do Brasil na nova conjuntura? Talvez saber qual é exatamente o interesse nacional neste momento da nossa história. Dificuldade que aliás começa pela dúvida, espalhada sistematicamente na periferia do sistema global: faz sentido falar em “interesse nacional” já passadas duas décadas deste novo século?

Fazendo um certo reducionismo caricatural, o Brasil parece estar dividido entre quem preferia engatar incondicionalmente nosso vagão na locomotiva trumpista e quem agora está pronto a bater continência à nova ordem, também de modo incondicional, desde que receba de fora o apoio suficiente para fazer aqui dentro seu próprio ajuste de contas.

Não chega a ser animador.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Merval Pereira: Autogolpe

A melhor resposta da democracia americana ao autogolpe que o (ainda?) presidente Donald Trump tentou ao incentivar seus militantes a impedir a formalização pelo Congresso da eleição de Joe Biden à presidência dos Estados Unidos seria utilizar a 25ª emenda para não deixa-lo continuar no cargo por incapacitação física, ou impedi-lo, com o apoio da Câmara, que tem maioria Democrata, e do Senado, com maioria Republicana.

“Autogolpe” é como o professor de governabilidade da Universidade Harvard, Steven Levitsky, co-autor do livro “Como as Democracias Morrem”, classifica a invasão do Congresso em entrevista à BBC em espanhol. Consequência de "quatro anos de descrédito e deslegitimação da democracia" por parte do Partido Republicano e de Trump. Também foi um assunto polêmico desde que, na campanha presidencial, o candidato a vice, General Hamilton Mourão, admitiu o ”autogolpe” como uma possibilidade no cenário político brasileiro.

Para ele, "a grande diferença entre esse autogolpe e os autogolpes na América Latina é que Trump foi completamente incapaz de obter o apoio dos militares", e "um presidente que tenta permanecer no poder ilegalmente sem o apoio dos militares tem poucas chances de sucesso".

Essa análise de Levitsky vai ao encontro de diversos estudos acadêmicos sobre a militarização do governo Bolsonaro, ou a “bolsonarizacao” dos quartéis, que estamos discutindo nos últimos dias. Até ontem, podíamos especular sobre a possibilidade de termos aqui os acontecimentos decorrentes da negação de Trump em aceitar a derrota na eleição presidencial. Mas Bolsonaro deixou claro, ao apoiar Trump nas acusações de fraude nas eleições americanas, que pode haver, sim, uma rebelião como a que o presidente americano organizou.

Ao dizer que podemos ter coisa pior, se não houver cédula física nas próximas eleições, ameaça e pressiona a Justiça Eleitoral. Especulamos sobre o assunto quando ele, no início do governo, tentou várias vezes desmoralizar o Congresso, o STF, a imprensa independente, e seus militantes mais radicais atacaram com fogos de artifício o STF. Também quando fez comício contra as instituições em frente ao quartel-general do Exército em Brasília, numa clara provocação.

A especulação ganha foros de verdade quando ele diz claramente que vai haver problema “mais sério” entre nós. O presidente não convive com a democracia, autoritário, querendo sempre mais poder. Por isso, as instituições da democracia deveriam impedir que essa tendência autoritária se revertesse em influência nas Forças Armadas.

A “transição militar”, que deve ocorrer com a transição política para a democracia segundo Narcís Serra, acadêmico catalão e respeitado ministro da Defesa da Espanha entre 1982 e 1991, é lembrada em um estudo do cientista político Octavio Amorim Neto, da FGV do Rio, e Igor Acácio, doutorando em Ciência Política pela Universidade da Califórnia, sobre o papel político dos militares sob Bolsonaro, publicado na edição em português do Journal of Democracy, editado pelo Instituto Fernando Henrique Cardoso.

As transições militares têm três etapas: evitar golpes de Estado; remover os militares da política, privando-lhes de qualquer veto às decisões de governo que não digam respeito à defesa nacional e reduzindo drasticamente sua autonomia; o estabelecimento da supremacia civil.

Para os dois estudiosos, até há pouco o Brasil se encontrava na segunda, e ensaiava ingressar na última etapa. “O primeiro retrocesso decorrente do padrão de relacionamento engendrado por Bolsonaro com as Forças Armadas é óbvio: enquanto permanecer alta a presença dos militares no governo, a ideia de estabelecer a supremacia civil está suspensa”, diz o estudo.  

Para os autores, “estamos correndo o risco de voltar à primeira etapa da transição militar, pois, no primeiro semestre de 2020, a agenda política brasileira foi marcada por um intenso debate em torno da possibilidade de um golpe militar ou de uma extremamente controversa intervenção das Forças Armadas, ao abrigo do Artigo 142 da Carta Magna, nos conflitos entre o Executivo e o Supremo Tribunal Federal. O terceiro retrocesso : as tendências recentes do sistema internacional, com crescentes tensões dentro e fora do entorno estratégico brasileiro, podem encontrar o país sem consenso social e político para canalizar recursos para os projetos das Forças Armadas. (Amanhã, sugestões para superar os retrocessos).


El País: Democratas conseguem o controle do Senado dos EUA

Raphael Warnock e Jon Ossoff conquistam as cadeiras no segundo turno da eleição na Geórgia

Antonia Laborde, El País

Em meio ao caos gerado pelo ataque ao Capitólio feito por partidários de Donald Trump em Washington, o Partido Democrata arrebatou do Republicano o controle do Senado dos Estados Unidos com a vitória dos dois candidatos progressistas na eleição desta terça-feira na Geórgia, que disputava no segundo turno as duas cadeiras atribuídas a este Estado. O resultado abre caminho para o mandato do presidente eleito, Joe Biden, que, pelo menos pelos próximos dois anos, governará com as duas Câmaras legislativas a seu favor, a dos Representantes e o Senado. A maioria democrata deste último será, no entanto, mínima. Com a vitória do reverendo Raphael Warnock e do documentarista Jon Ossoff, o Senado será composto por 50 republicanos e 50 democratas (dois deles independentes). A próxima vice-presidenta, Kamala Harris, exercerá o voto decisivo nos casos de empate.

O resultado vem depois de uma campanha de alta tensão, marcada pela ofensiva do presidente republicano Donald Trump para anular o resultado das eleições presidenciais brandindo acusações infundadas de fraude em massa, que implicam o questionamento de todo o sistema e que culminou com o caos na sessão que ratificaria o mandato de Biden. A Geórgia estava no olho do furacão depois de ter elegido, em novembro, o primeiro presidente democrata em 28 anos, tornando-se assim o único oásis azul no chamado “cinturão bíblico” do sul, em uma votação apertada que Trump tentou desacreditar sem sucesso. Nesta terça-feira, o sul do Estado voltou a fazer história e elegeu o primeiro senador democrata desde 1996 no segundo turno depois de um primeiro empate em 3 de novembro.

Com a recuperação do Senado depois de seis anos de maioria republicana, os democratas deram outro basta à era Trump, embora o resultado apertado reflita a necessidade de consensos. A vitória democrata na Geórgia também marca o fim do reinado do dirigente republicano Mitch McConnell na Câmara Alta, que passará a ser o líder da minoria. McConnell foi durante anos o muro no qual a Administração de Obama se chocou em seus últimos anos, um veterano político orgulhoso do apelido de La Parca [A Morte], por sua capacidade de enterrar projetos da oposição.

A maciça participação da comunidade afro-americana e a mobilização dos jovens foram fundamentais para a vitória de Warnock, que enfrentou a senadora republicana Kelly Loeffler, de 50 anos, e de Ossoff, de 33, que disputou uma vaga contra David Perdue, até o último domingo senador republicano, de 70 anos.

O reverendo Warnock, o primeiro afro-americano a chegar ao Senado pela Geórgia, era um forte adversário. O pastor, que há mais de 15 anos pertence à Igreja Batista Ebenezer, a mesma do líder pelos direitos civis Martin Luther King Jr., foi imediatamente bem recebido pela comunidade, que sentiu sua proximidade em relação aos seus problemas cotidianos. A Geórgia é o segundo Estado com maior população negra do país (33,5%), um grupo demográfico que costuma favorecer os democratas. Por seu lado, Loeffler, que foi escolhida a dedo pelo secretário de Estado da Geórgia depois que um legislador se afastou por problemas de saúde, era uma incógnita.

Embora as pesquisas indicassem uma ligeira vantagem para Ossoff sobre Perdue, sua vitória foi uma surpresa ainda maior. O agora ex-senador conquistou sua cadeira em 2014, quando venceu confortavelmente com 52,9% dos votos. Durante a última semana, o fiel seguidor de Trump não pôde fazer campanha no terreno porque esteve em contato direto com um contagiado por coronavírus. Ossoff será o senador mais jovem na Câmara Alta e também o democrata mais jovem a chegar ao Senado desde Joe Biden, há quase meio século.

Uma das dúvidas da jornada consistia em quanto pesaria ―e se positiva ou negativamente― a retórica do presidente cessante sobre a confiabilidade do sistema eleitoral. Trump denuncia há dois meses sem provas que houve fraude nas eleições de novembro, mas ao mesmo tempo convidava suas bases a votar nos dois candidatos republicanos na Geórgia. O último escândalo relacionado à inédita cruzada do presidente foi a chamada telefônica publicada no domingo na qual Trump pressionou o secretário de Estado da Geórgia, o republicano Brad Raffensperger, para “encontrar” votos suficientes para reverter a vitória de Biden.

A imigração para a capital e para as áreas residenciais de minorias étnicas e profissionais da indústria cinematográfica favoreceu o Partido Democrata. O núcleo da área metropolitana de Atlanta vem se expandindo rapidamente há uma década e agora representa quase metade do eleitorado do Estado. Esse crescimento do capital progressista conseguiu ganhar o braço de ferro contra a zona rural do Estado, conservadora.

A eleição dos senadores pela Geórgia acontece em uma semana intensa para a política norte-americana. Nesta quarta-feira terá lugar a certificação de Biden como vencedor da eleição presidencial, em uma sessão bicameral no Capitólio, e um grupo cada vez maior de senadores e congressistas republicanos planeja torpedeá-la, embora não tenha votos suficientes para realizar mais do que um ato de rebeldia contra a vontade que os cidadãos norte-americanos expressaram nas urnas.


Elio Gaspari: O maior espetáculo da Terra

EUA vão ao triste patamar das repúblicas latino-americanas

Donald Trump começou o espetáculo da sua partida deixando “House of Cards” no chinelo. Seu telefonema de uma hora para o secretário de Estado da Geórgia, Brad Raffensperger (um republicano), seria rejeitado por qualquer roteirista de séries de TV. Foi desconjuntado, alternou momentos de prepotência e delírio. Ao seu estilo, puxou a carta do Apocalipse: “O povo da Geórgia está zangado, o país está zangado”. Falou três vezes em “tumultos”. Ameaçou e fez-se de vítima, queixando-se do que “vocês fizeram com o presidente”.

Na essência, Trump acha que ganhou a eleição na Geórgia por mais de cem mil votos e telefonou para que Raffensperger contasse o resultado, arrumando-lhe 11.779 votos. Repetiu 11 vezes esse número ou o milhar arredondado. Numa das últimas menções foi patético: “E agora? Eu só preciso de 11 mil votos. Pessoal, eu só preciso de 11 mil votos. Tenham paciência”.

O telefonema termina de uma forma bizarra.

Raffensperger: “Obrigado pelo seu tempo, presidente”.

Trump: “Ok. Obrigado, Brad”.

(Não cabe a um interlocutor encerrar uma conversa com o presidente dos Estados Unidos.)

Raffensperger sabia com quem estava lidando. Não deu outra. No domingo, Trump soltou um tuíte dizendo que ele não sabia de nada porque não queria ou porque não podia. O secretário de Estado respondeu: “Respeitosamente, presidente Trump, o que o senhor está dizendo é falso. A verdade aparecerá”. Horas depois o áudio apareceu no “Washington Post”.

Faltavam 18 dias para a posse de Joe Biden e terminara o primeiro capítulo da série “Os últimos dias de Trump”. Começou o segundo, menos pitoresco e muito mais grave. Dez ex-secretários da Defesa mandaram uma carta ao “Post” dizendo que a eleição já acabou e que os militares devem ficar fora dessa encrenca. Entre os signatários, Richard Cheney e Donald Rumsfeld. A dupla tem mais de 40 anos de experiência em Washington e patrocinou as guerras de George W. Bush. Dois republicanos que não comiam mel, comiam abelha. Suas assinaturas mostram que o núcleo tradicional do partido afastou-se de Trump.

Atitude inédita, o manifesto colocou os Estados Unidos no triste patamar das repúblicas latino-americanas. Como nenhum dos signatários tem biografia de vivandeira, é razoável supor que havia algo no ar além dos aviões de carreira. Sabe-se, por exemplo, que um general da reserva, integrante do pelotão palaciano, circulou a ideia de colocar os Estados Unidos sob lei marcial, e um assessor de Trump falou num possível adiamento da posse de Biden.

O que está acontecendo em Washington é o maior espetáculo da Terra. Coisa nunca vista, com promessa de novas emoções.

Felizmente, o comportamento do secretário de Estado da Geórgia e dos ex-secretários de Defesa mostra que as instituições dos Estados Unidos funcionam. Vai daí que no dia 20 de janeiro irá ao ar o último capítulo. Não se sabe o que Trump fará. Ele pode imitar John Adams, que foi-se embora da cidade na noite da véspera da posse de Thomas Jefferson.

Poderia também sair da Casa Branca para um prédio que fica a uns poucos minutos de carro. Lá funciona a Associação Americana de Psiquiatria.


El País: Democratas conquistam primeira vaga na Geórgia e se aproximam de controlar o Senado dos EUA

Raphael Warnock se torna o primeiro senador negro eleito no Estado sulista, enquanto a disputa pelo segundo assento continua acirrada. Geórgia não escolhia um senador democrata desde 1994

Antonio Laborde, El País

A apuração da crucial eleição para o Senado na Geórgia, que decidirá a maioria na Câmara Alta dos Estados Unidos ―definindo, portanto, o escopo do futuro mandato do presidente eleito Joe Biden―, transcorre de forma apertada desde a madrugada desta quarta-feira. Logo depois das 2h (hora local, 4h em Brasília), com 97% dos votos apurados, os meios de comunicação projetaram a vitória do democrata Raphael Warnock em uma das vagas. O pastor evangélico fez história ao se tornar o primeiro senador negro a ser eleito neste Estado sulista, permitindo que seu partido fique um pouco mais próximo de controlar o Congresso. Se o outro candidato democrata vencer, o Senado ficará formado por 50 republicanos e 50 democratas (incluindo dois parlamentares formalmente independentes), e a vice-presidenta eleita, Kamala Harris, exercerá o voto decisivo nos casos de empate. Os republicanos precisam ganhar o assento que continua em jogo no Estado para prolongar os seus seis anos de domínio do Senado, o que obrigaria Biden a alcançar pactos com a oposição para impulsionar sua pauta política.

Raphael Warnock se impôs com 50,6% dos votos sobre a senadora republicana Kelly Loeffler (49,4%). O segundo assento em jogo é disputado pelo diretor de documentários Jon Ossoff, democrata, e o republicano David Perdue, que encerrou no domingo seu atual mandato de senador pela Geórgia. Com 98% dos votos apurados, Ossoff lidera por 0,3 ponto percentual (12.000 votos). Os quatro candidatos superam os dois milhões de votos. As apertadas disputas ―que leva a uma demora na apuração― ocorrem porque no primeiro turno, em 3 de novembro, nenhum deles conseguiu superar metade dos votos válidos, o que a lei local determina que seja resolvido em uma nova rodada de votação. As autoridades informaram que os resultados oficiais devem sair por volta de 12h (14h em Brasília) desta quarta-feira.

Durante a madrugada, Warnock sinalizou que se via como ganhador, embora não declarasse isso formalmente. “Vou ao Senado para trabalhar por toda a Geórgia, não importa em quem você votou nesta eleição”, disse em uma mensagem que compartilhou nas suas redes sociais. Por sua vez, o grande motor mobilizador dos democratas neste ano eleitoral, a ativista Stacey Abrams, felicitou seu “querido amigo” e “próximo senador”. A adversária republicana Kelly Loeffler discursou no final da noite em Atlanta para antecipar que não vai conceder a vitória ao democrata e que lutará para que “cada voto legal” seja contado.

“Parece que estão armando um grande sorvedouro de eleitores contra os candidatos republicanos. Estão esperando para ver quantos votos precisam?”, escreveu o ainda presidente Donald Trump no Twitter, insinuando, novamente sem provas, que os democratas querem manipular o pleito.

O republicano Brad Raffensperger, secretário de Estado da Geórgia, informou no final da noite de terça que faltavam ser apurados quase 200.000 votos, mas ainda há as cédulas enviadas por militares que servem no exterior, cujo prazo para serem recebidas vai até as 12h de sexta-feira.

A eleição transcorreu em um clima de alta tensão, depois de uma campanha marcada pela ofensiva de Trump para anular o resultado das eleições presidenciais, agitando acusações infundadas de fraude maciça que implicam questionar todo o sistema eleitoral. A Geórgia se encontrava no olho do furacão após ter dado seus votos a Biden, fazendo dela o único oásis azul no chamado “cinturão bíblico” do sul. A vitória do democrata foi selada após uma apuração dramática, que Trump tentou a todo custo desacreditar.

Antes de as seções eleitorais serem abertas, nesta terça-feira, mais de 3 milhões de pessoas (de 7,7 milhões de eleitores registrados no Estado) já tinham votado de maneira antecipada ou pelo correio, uma cifra sem precedentes em um segundo turno de eleições para o Senado. Os votos antecipados, que costumam favorecer os democratas, foram os primeiros a serem apurados. Por isso, à medida que foram sendo contadas as cédulas emitidas na terça-feira, sua vantagem foi diminuindo. Depois, com os resultados de alguns condados de maioria progressista, a foto voltou a mudar.

Nas eleições presidenciais de novembro, cinco milhões exerceram seu direito a voto na Geórgia, e a mobilização da comunidade afro-americana e dos jovens foi crucial para o apertado triunfo de Biden, que conseguiu derrotar Trump no feudo conservador por menos de 12.000 votos. A Geórgia não optava por um presidente democrata desde 1992, e não escolhia um senador desse partido desde 1994. Os apoios democratas se concentram em Atlanta e nos seus bairros periféricos, o núcleo progressista do Estado, que na última década se estendeu a grande velocidade, pondo em xeque a hegemonia republicana baseada nas zonas rurais.

Nesta quarta-feira está prevista a certificação da vitória de Biden em uma sessão bicameral do Congresso. Um grupo de senadores e deputados republicanos planeja reforçar o clima de tensão e tumulto apresentando objeções, embora careçam de votos para que o protesto se traduza em algum contratempo na confirmação do Biden, uma formalidade prévia à sua posse, em 20 de janeiro.

A figura de Trump pairou sobre esta eleição. Primeiro pela pressão que exerceu sobre os republicanos que não lhe seguiram em suas acusações de fraude eleitoral, apontando-os como desleais ao partido. E, segundo, porque esta eleição significa uma prova para os republicanos, um teste para sua capacidade de sedução sem a figura do presidente.

Uma das dúvidas a serem esclarecida com os resultados oficiais da Geórgia foi o peso ―para o bem ou para o mal― da retórica trumpista sobre a fiabilidade do sistema eleitoral. Trump vem há dois meses denunciando, sem provas, que houve fraude no pleito de 3 de novembro, ao mesmo tempo em que conclamava suas bases a saírem de casa para votar nos dois candidatos republicanos ao Senado. Conforme as pesquisas de boca de urna feitas pelo The Washington Post nesta terça, quase 9 em cada 10 democratas da Geórgia acreditam que a eleição de novembro foi justa, enquanto só 2 em cada 10 republicanos acham isso.

O último escândalo relacionado com a inédita cruzada de Trump foi a informação publicada no domingo passado sobre o telefonema em que o mandatário pressionou o secretário de Estado da Geórgia, o republicano Brad Raffensperger, para que “encontrasse” os votos suficientes para reverter a vitória de Biden. Os eleitores democratas fora das seções eleitorais se mostravam fartos das polêmicas do presidente e com as esperanças voltadas para o triunfo de seus candidatos a senadores para começar a escrever um novo capítulo na história política. Jerald Hogan, de 46 anos, estava confiante na guinada do Estado conservador: “Pela primeira vez em minha vida acredito que as coisas vão mudar.”


Yascha Mounk: Verniz de invencibilidade de Trump se desfaz com vitória de Biden

Republicano lançou tentativa de golpe mais incompetente desde 'Bananas', de Woody Allen

O presidente Donald Trump deixou uma coisa dolorosamente clara: depois de deixar a Casa Branca a contragosto, ele vai seguir fazendo tudo o que puder para continuar a ser notícia. Vai postar insultos e teorias conspiratórias no Twitter. Talvez abra seu canal de televisão próprio. E, segundo membros de seu círculo interno, é possível que se candidate a presidente em 2024.

Após meia década sob sua influência, muitos observadores políticos imaginam que Trump vai conseguir conservar a atenção da nação voltada para ele. Entendo por quê. Uma minoria considerável dos americanos acredita que a eleição foi fraudada e permanece profundamente devota ao presidente que está de saída.

Mesmo agora que a derrota de Trump libertou o Partido Republicano de seu captor, os políticos republicanos parecem estar sofrendo de um caso grave de síndrome de Estocolmo. E a única área na qual o 45º presidente já comprovou reiteradamente possuir talento real é sua capacidade de se manter no centro da atenção pública.

Mas, embora Trump ainda possa acabar se mostrando uma influência tão dominante sobre a política na década de 2020 quanto foi na década de 2010, esse resultado é menos provável do que muitos supõem.

Sobram teorias para tentar explicar a ascensão de Trump ao poder em 2016. De acordo com algumas, ele falou em nome dos economicamente despossuídos. Segundo outras, suas mensagens racistas disfarçadas atraíram eleitores preconceituosos.

Entretanto, embora as duas hipóteses ajudem a explicar parte de sua atração, a verdade é muito mais simples: milhões de americanos que não pensam muito em política encaravam Trump como um vencedor, um realizador.

Desde seus primeiros momentos de fama local em Nova York, ele vem moldando sua imagem pública cuidadosamente para dar ênfase a seu poder e seu sucesso.

Os insiders de Manhattan sabem que a verdadeira elite da cidade sempre o desprezou. Mas os leitores de seu livro “A Arte da Negociação” o encaram como exemplo rematado de um negociador dominante que sabe como usar seu poderio financeiro.

Jornalistas de negócios sabem que muitos dos empreendimentos de Trump foram à falência em pouco tempo e que ele poderia estar muito mais rico agora se tivesse simplesmente aplicado sua herança no mercado acionário. Mas, para a maioria dos americanos, o apresentador de “O Aprendiz” é a personificação de um empreendedor que construiu um grande império graças a seu incrível tino para os negócios.

Agora, porém, o verniz de invencibilidade de Trump está se desfazendo. Ele perdeu sua tentativa de reeleição e lançou a tentativa de golpe mais incompetente desde “Bananas”, de Woody Allen. Ele pode se enfurecer e falar loucuras sobre o que aconteceu em novembro, mas não poderá impedir seus seguidores de verem Joe Biden tomar posse em janeiro. O medo de qual pode ser seu próximo passo está dando lugar às gargalhadas. Trump está parecendo mais fraco e assustado a cada dia que passa.

Tampouco está claro se o presidente em final de mandato vai conseguir construir uma “Rede Trump de Jornalismo”. Se ele tiver um programa diário de uma hora na televisão, seus fãs mais devotos com certeza vão assistir. Mas, para ser comercialmente viável, seu canal teria que ampliar aquele público fundamental, atrair outros apresentadores que fossem capazes de conservar a atenção do público, contratar jornalistas que pudessem cobrir de fato o que acontece no mundo e atrair publicidade de empresas comuns.

Competir com a Rede Fox não seria fácil para ninguém que estivesse lançando uma nova rede de jornalismo conservador. Dado o histórico de incompetência de Trump tanto nos negócios quanto em seu cargo público, parece improvável que ele tivesse êxito nessa empreitada.

Tampouco é evidente que Trump pudesse realisticamente se candidatar à Presidência outra vez. Em 2024 ele pode estar falido, na prisão ou com a saúde muito fragilizada. E, mesmo que esteja em condições de disputar a candidatura presidencial republicana, ele não necessariamente a conquistaria.

O Partido Republicano teve uma composição ideológica relativamente estável no último meio século. O chamado “banquinho de três pés” unia conservadores sociais, defensores do livre mercado e figuras de linha dura na política externa, formando uma aliança intranquila, mas durável. Mas, precisamente pelo fato de a composição política do partido ser tão heterogênea, seus líderes mais influentes —de Richard Nixon a George W. Bush e de John McCain a Donald Trump— não guardam muita semelhança uns com os outros.

Que ninguém se engane: ainda é muito cedo para encarar Trump como carta fora do baralho. Pode ser que os americanos continuem a acompanhar seu feed no Twitter com horror ou fascínio pelos próximos quatro anos. Talvez os eleitores das primárias escolham Trump como candidato republicano em 2024. Pode até ser que Trump faça um retorno triunfal à Casa Branca.

Mas o que é possível não precisa ser provável. E as chances são muito boas que os americanos se entediem com as palhaçadas cada vez mais risíveis do mau perdedor que acabam de expulsar do cargo.

*O cientista social Yascha Mounk é professor associado na Universidade Johns Hopkins e autor de "O Povo contra a Democracia".


Rubens Barbosa: Judicialização do processo

O recurso que Donald Trump está interpondo à Suprema Corte diz respeito ao resultado da apuração em alguns Estados e o que está sendo pedido é a recontagem ou a anulação de votos

Na eleição presidencial de 2000, acompanhei de Washington o impasse na apuração dos votos na Flórida, que gerou pedido de George Bush à Suprema Corte para suspender a contagem dos votos. Depois de um mês de incertezas, o Judiciário, por um voto, decidiu suspender a apuração e, com isso, o candidato republicano venceu a eleição naquele Estado e tornou-se presidente dos EUA.

A situação hoje é diferente. O recurso que Donald Trump está interpondo à Suprema Corte diz respeito ao resultado da apuração em alguns Estados (Pensilvânia, Geórgia, Nevada e Michigan) e o que está sendo pedido é a recontagem ou a anulação de votos. Como a Suprema Corte decidiu recentemente que todos os votos devem ser contados, dificilmente a judicialização favorecerá o atual presidente.

Trump tem repetidamente colocado em dúvida o sistema eleitoral, prevendo fraudes e contestando o sistema de votos pelo correio, sem nenhuma evidência. Na noite do dia 3, à frente na maioria dos Estados, afirmou que havia vencido, mas que havia uma manobra para “roubar” a eleição e dar a vitória para o candidato democrata.

O resultado da apuração mostrou o alto grau de divisão existente hoje nos EUA. A pequena margem entre os dois candidatos encoraja a alegação de Trump. Duvidar da legitimidade eleitoral pode abalar a confiança pública no sistema, embora tenham sido raros os casos de ilícitos comprovados ao longo da história política dos EUA e nenhum deles afetou o resultado final.

Apesar de o sistema eleitoral americano não dispor de uma Justiça Eleitoral nacional, mas estadual, é constrangedor ver um presidente, no exercício de suas funções, questionar a lisura das apurações com acusações sem provas. Trata-se de um mau exemplo, vindo de um país que tem a pretensão de ser um modelo democrático para o mundo. Essa atitude representa um sério problema para o funcionamento do sistema eleitoral no futuro, pelas incertezas que desperta, mas não chega a ameaçar nem a democracia nem a credibilidade do país.

A repetição desse recurso, em prazo tão curto, começa a despertar discussões sobre a necessidade de revisitar o sistema eleitoral. Deverão aumentar as críticas à eleição indireta por um colégio eleitoral, com regras que variam de Estado a Estado, e a apuração manual, longe das urnas eletrônicas. As mudanças, contudo, serão difíceis, sobretudo se, com Joe Biden, o Senado continuar com maioria republicana.

A Suprema Corte também poderá começar a ser visada, sobretudo em relação à forma como os juízes são escolhidos. Como no Brasil, a escolha é feita por indicação do presidente, com forte influência ideológica. Sistema eleitoral e Suprema Corte passarão a ser temas de discussão no cenário político americano e poderão estimular esse debate também no Brasil.

*Foi embaixador do Brasil nos EUA