Demétrio Magnoli: O partido rasgado

O plano A é disputar com Sanders, que se descreve como um ‘socialista democrático’ e parece inelegível no panorama político americano.
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O plano A é disputar com Sanders, que se descreve como um ‘socialista democrático’ e parece inelegível no panorama político americano

Na noite de 4 de fevereiro, Nancy Pelosi, a democrata que preside a Câmara dos EUA, rasgou as páginas do discurso provocativo de Donald Trump sobre o Estado da União. Simultaneamente, emergiam os resultados da apuração atrasada das primárias democratas de Iowa, evidenciando tanto o duplo triunfo de Pete Buttigieg e Bernie Sanders quanto a humilhante derrota de Joe Biden. O gesto extremo de Pelosi revelou a vontade do Partido Democrata de encerrar a “era Trump”. Iowa, por outro lado, revelou que o Partido Democrata está rasgado, para sorte de Trump.

Os assessores de Trump não fazem segredo da tática que empregam nas primárias do partido rival: concentram o fogo em Biden, o principal candidato moderado, e disseminam o rumor de que a direção democrata trapaceia contra Sanders, o nome mais forte da esquerda. A tese da trapaça cala fundo na ala esquerda democrata, pois é elemento crucial do discurso do próprio Sanders desde a contenda interna de quatro anos atrás com Hillary Clinton.

Sanders compartilha com Trump inclinações políticas isolacionistas e ideias econômicas protecionistas. Mas a preferência do presidente não se deve à comunhão ideológica pontual. O Plano A é disputar a Casa Branca com Sanders, que se descreve como um “socialista democrático” e parece inelegível no panorama político americano. O Plano B é ajudar o esquerdista a caminhar até a convenção democrata, provocando uma cisão tão amarga quanto a de 2016, quando o núcleo de eleitores de Sanders preferiu a abstenção ao voto em Hillary.

A crise dos trabalhistas britânicos, que sofreram sua pior derrota eleitoral desde 1935, ilumina a encruzilhada dos democratas americanos. Há cinco anos, o Partido Trabalhista foi tomado de assalto pelo Momentum, uma organização esquerdista inspirada no exemplo dos partidos Syriza (Grécia) e Podemos (Espanha). O desastre eleitoral é o resultado previsível do giro à esquerda dos trabalhistas.

O ativismo militante do Momentum propiciou a eleição de Jeremy Corbyn como líder trabalhista e o isolamento das lideranças partidárias tradicionais. Sob o seu influxo, o Partido Trabalhista lançou um manifesto eleitoral estatizante e ausentou-se do debate nacional sobre o Brexit. Os conservadores de Boris Johnson, alinhados sobre a política de ruptura completa com a União Europeia, bateram impiedosamente o adversário inviável, subtraindo aos trabalhistas suas antigas fortalezas eleitorais do centro e do norte da Inglaterra.

Sanders não é, exatamente, um Corbyn. O “socialista” americano nunca flertou com o antissemitismo, retirou seus antigos elogios à Cuba castrista e, mesmo hesitante, classificou o regime venezuelano de Maduro como “muito abusivo”. Mas, como Corbyn, ele lidera uma facção esquerdista própria, engajada em combate permanente com o establishment do Partido Democrata.

O paralelo esclarece um fenômeno relevante: a emergência de movimentos esquerdistas capazes de cindir partidos tradicionais de centro-esquerda. O Momentum constituiu-se como expressão da juventude urbana radicalizada, dos campus universitários e de uma expressiva parcela do funcionalismo público. A corrente de Sanders tem raízes sociais semelhantes. Não por acaso, o Sanders da última década abraçou as causas do multiculturalismo e das minorias, enterrando no passado sua aliança prioritária com os sindicatos e seus votos parlamentares anti-imigração.

Corbyn e Sanders são os “Grandes Eleitores” da direita nacionalista. Sem o primeiro, a história do Brexit talvez tivesse outra conclusão. Sem o segundo, a jornada de Trump rumo à reeleição enfrentaria obstáculos incomparavelmente maiores.

Contudo, o britânico e o americano refletem a separação cada vez mais pronunciada entre os eleitores de esquerda das cidades cosmopolitas e a “nação profunda” que teme os deslocamentos sociais engendrados pela globalização. A responsabilidade pelos triunfos da direita nacionalista não é deles, mas dos partidos tradicionais incapazes de se reinventar. Pelosi rasgou o discurso odiento, mas não sabe escrever um texto alternativo.

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