Demétrio Magnoli

Demétrio Magnoli: A conspiração e a ultradireita do governo

A teoria conspiratória eleva qualquer um à condição de sábio

Diante de uma lápide, no antigo cemitério judeu de Praga, à sombra da noite, reúnem-se 12 rabinos, representantes das tribos de Israel. O mais venerável toma a palavra. No seu discurso, proclama que “18 séculos pertenceram a nossos inimigos”, mas “o século atual e os futuros pertencerão a nós”. Em seguida, explica que a luta pela hegemonia mundial se desenrolará nos planos político, econômico e religioso, por meio da tomada de controle das finanças, do poder de Estado, dos meios de comunicação e das instituições educacionais.

A estrutura narrativa da conspiração encontra seu paradigma no mito da conspiração judaica, que emerge em romances baratos, artigos fantasiosos de jornal e uma célebre falsificação da polícia czarista russa, na passagem do século 19 para o século 20. O historiador Raoul Girardet segue a trilha desses textos no ensaio “A conspiração”, que faz parte do livro “ Mitos e mitologias políticas ” , publicado em 1986. É um guia inesperado para compreender o que se passa, hoje, no governo Bolsonaro.

A facção ultradireitista do governo, formada por seguidores de Olavo de Carvalho, nutre-se da ideia da conspiração. No lugar dos judeus, o Bruxo da Virgínia coloca os “liberais globalistas” e os “comunistas”, ligados por um pacto de dominação global que almeja destruir as “nações de sangue”. Se a constrangedora visita presidencial aos EUA nos ensina algo, a lição é que a paranoia conspiratória sedimentou-se como convicção fundamental do próprio presidente.

O Bruxo da Virgínia não inventou a versão contemporânea da conspiração mundial. De fato, ele apenas reproduz a tábua da fé da alt-right, a direita nacionalista americana, que tenta organizar um movimento nacionalista internacional. A crença difunde-se entre os fiéis pelo labirinto das redes sociais, em fragmentos de informação descontextualizada, boatos ferozes e acalorados rumores. Uma concha protetora providenciada pela aversão à imprensa profissional isola a seita da torrente de notícias que descortinam a complexidade do mundo.

A conspiração seduz, hipnotiza, encanta os espíritos. Sua narrativa simples, similar às do conto de fadas e do folhetim, oferece explicações completas para fenômenos complexos. Sua força persuasiva floresce no solo da ignorância histórica e da preguiça intelectual. Não é preciso ler, estudar, investigar: a teoria conspiratória eleva qualquer um à condição de sábio. A conspiração é o travesseiro, o lençol e o cobertor dos incultos. O Bruxo da Virgínia, que sabe disso, fez dela o núcleo do seu modelo de negócios.

Depois que deita raízes, a teoria conspiratória é invulnerável à prova negativa — e, inclusive, alimenta-se dela. Postos diante de contestações lógicas ou factuais, os espíritos tomados por ela retrucam que o autor da refutação faz parte da própria conspiração. Experimente sugerir a um “aluno de Olavo” que o keynesianismo fechou caminhos às proposições socialistas. Ele responderá que o interlocutor é um arauto do keynesianismo — isto é, do “marxismo cultural” espraiado nas instituições, na mídia e nas universidades. Nas bolhas das redes sociais, a resposta patética passa como contrarrefutação indiscutível.

Figuras imersas no caldo de cultura da conspiração inclinam-se a fantasiar pequenos complôs cotidianos— e a reagir articulando, eles mesmos, complôs paroquiais. O MEC, comandado por um discípulo do Bruxo da Virgínia, é um microcosmo desse fenômeno. A crônica guerra civil que o paralisa, contrapondo fanáticos “olavetes” a assessores técnicos e militares, evidencia a inviabilidade de um governo submetido ao paradigma conspiratório. Governar exige um mínimo de respeito a regras de administração e alguma estabilidade política. Nada disso é compatível com as quimeras que movem a facção ideológica do bolsonarismo.

“Se continuar assim, mais seis meses e acabou”, pressagiou Olavo de Carvalho sobre o governo Bolsonaro, no jantar em Washington, pouco antes de tomar assento ao lado do presidente. O Bruxo da Virgínia tem os meios para demonstrar o acerto de sua profecia.


Demétrio Magnoli: Para Paulo entender Olavo

A 'revolução' do guru fuzilaria os liberais junto com os comunistas, se pudesse

"Por que o líder dispara contra a revolução que inspirou?", perguntou um inconformado Paulo Guedes a Olavo de Carvalho no jantar em homenagem a Bolsonaro, em Washington. Na véspera, o Bruxo da Virgínia atirara um petardo contra Hamilton Mourão, responsabilizando-o pela virtual dissolução do governo no horizonte de seis meses. Paulo merece resposta. Ofereço-lhe duas, complementares.

Paulo acalenta a doutrina do liberalismo econômico radical: o Estado Mínimo. Já Olavo interessa-se apenas marginalmente por economia. A "revolução" dele também é um retorno, mas não ao Estado liberal do século 19 e sim a um passado mítico de soberanias estatais absolutas, hierarquias patriarcais fundadas na tradição e respeito às "liberdades naturais" do colono armado. Numa síntese rápida, a fusão do conservadorismo romântico europeu com o nativismo individualista americano.

Olavo não é original. Logo após a Primeira Guerra Mundial, Oswald Spengler anunciou o "declínio do Ocidente", fruto de um longo envenenamento cultural provocado pelas bactérias do Iluminismo. Do nacionalismo conservador e autoritário spengleriano nasceu essa contrafação pós-moderna: o mingau "filosófico" servido pelo Bruxo da Virgínia e, de modo geral, pela alt-right (direita nacionalista) americana. Paulo talvez não se interesse por esse labirinto ideológico, mas deveria prestar atenção à sua implicação.

A alt-right difunde a tese de que os "liberais globalistas" estão associados aos "marxistas" numa conspiração mundial contra os povos. Nessa aliança fantasiosa, Paulo figura no primeiro grupo. A "revolução" de Olavo fuzilaria os liberais junto com os comunistas, se pudesse.

No dia seguinte ao célebre jantar, Bolsonaro prostrou-se aos pés de Trump. Cito, com autorização, a incisão cirúrgica realizada pelo embaixador Marcos Azambuja num debate fechado: "O produto que Bolsonaro tentou vender não tem demanda na Casa Branca. Trump despreza os que o bajulam; ele gosta de Putin e Kim Jong-un, que o confrontam." Acrescento: a "revolução" de Olavo é uma ideia fora de lugar, a importação de um discurso populista estranho aos dilemas brasileiros.

A segunda resposta: a "revolução" de Olavo é uma "revolução permanente", uma guerra sem fim contra moinhos de vento.

O Bruxo da Virgínia precisa conservar seu estatuto de bruxo —ou seja, a condição de guru de uma seita. Para reter a lealdade total de seus seguidores, deve evitar que eles sejam contaminados pelos intercâmbios de interesses e conciliações políticas inerentes a qualquer governo. Por meio da "revolução permanente", o líder impede que seus liderados cedam à tentação de oscilar entre os comandos de dois senhores.

Olavo não é tonto como seus "alunos" que colonizam o Itamaraty e o MEC. Ele sabe que clama por uma utopia: a volta dos ponteiros da História a uma Idade de Ouro imaginária. Sabe, portanto, que qualquer governo está destinado ao fracasso, se a medida do sucesso for a régua maximalista da sua utopia. O líder que não pretende ser desmascarado pela inevitável falência de sua "revolução" precisa identificar e denunciar, previamente, os traidores da causa. Daí, o recurso à "revolução permanente": o líder dispara contra a revolução que inspirou.

A consequência da "revolução permanente" é a perene ingovernabilidade. Sacudido por crônicas guerras intestinas, o governo carece da coesão, da autoridade e da força persuasiva para formar maiorias parlamentares sólidas. O projeto da reforma previdenciária, ato inaugural da "revolução" de Paulo, corre o risco de ser tragado no vórtice da "revolução" de Olavo.

Há algo mais. Entre os "alunos" do Bruxo da Virgínia, contam-se ao menos dois dos filhos do presidente. A "revolução" de Olavo é a de Jair. Anote isso, Paulo.

*Demétrio Magnoli é sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Demétrio Magnoli: Causa mortis

Marielle foi executada pois colocava em risco os negócios e a segurança das milícias

Ela morreu porque era negra, homossexual, feminista e socialista. Um ano atrás, logo após o assassinato de Marielle Franco, incontáveis ativistas de esquerda atribuíram o crime a isso que a lei qualifica como "motivo torpe". No dia da prisão dos suspeitos (12/3), a promotora Simone Sibílio, coordenadora do Gaeco, reproduziu a conclusão prévia: "os autos de investigação nos autorizam a imputar aos dois denunciados a motivação torpe, decorrente de uma repulsa à atuação política de Marielle na defesa de suas causas: minorias, mulheres negras, LGBT". No megafone dos ativistas, o diagnóstico reflete o impulso de direcionar os holofotes para suas convicções militantes. Já no microfone da promotora, denota incompetência —ou, pior, o desejo de encerrar as investigações sem elucidar a autoria intelectual da execução.

O crime foi meticulosamente planejado. Os suspeitos não mantinham relações pessoais com a vítima. Um deles pertenceria a uma milícia de Rio das Pedras; o outro seria responsável por homicídios ligados à contravenção. Tudo indica que eles dispunham de um arsenal de fuzis de assalto M-16. A tese do "crime de ódio" não combina com esse conjunto de circunstâncias. As causas das "minorias, mulheres negras, LGBT" contam com inúmeros destacados porta-vozes. Contudo, não há indícios de que os suspeitos buscavam a eliminação genérica deles. Por que precisamente Marielle, entre tantos?

Num artigo publicado na Folha, Mônica Benício, viúva de Marielle, faz referências ao racismo e à homofobia mas não inclui, em momento nenhum, a palavra "milícias". Talvez sem perceber, seu texto assenta-se sobre a tese do "crime de ódio". Contudo, simultaneamente, em outra declaração, afirma que "não basta prender mercenários" pois é preciso "saber quem mandou articular tudo isso e qual foi a motivação".

O problema é que, se estamos diante de um "crime de ódio", a demanda não faz sentido. Nessa hipótese, os suspeitos não poderiam ser classificados como "mercenários" e suas recompensas transitariam exclusivamente na esfera psicológica. A viúva da vítima tem direito à confusão; a promotoria não tem. A promotora que, açodada, joga todas as fichas na "motivação torpe" está, conscientemente ou não, sabotando a investigação.

A indagação "quem mandou articular tudo isso?" inscreve-se na tese do crime político, que Simone parece disposta a afastar. Marielle, negra e homossexual, assim como Marcelo Freixo, branco e heterossexual, era uma liderança engajada na exposição das ligações das milícias com a polícia e com a política. A primeira foi executada; o segundo consta de listas semipúblicas de "marcados para morrer" das milícias. Sob a lógica do crime político, compreendem-se as características metódicas da execução e as motivações racionais que deflagraram a operação. Mas ela solicita perseguir respostas politicamente sensíveis.

Marielle foi executada pois colocava em risco os negócios e a segurança das milícias. Raul Jungmann, ex-ministro da Segurança Pública, partia desse princípio quando declarou, há quatro meses, que um "complô" impedia que viessem à tona "os mandantes e executores" do assassinato. Na ocasião, Jungmann atribuiu o "complô" a "interesses que envolvem agentes públicos, milícias, políticos". Simone, a promotora, tem evidências de que o ex-ministro assoprava um balão de denúncias vazias?

De um ex-ministro a um ministro, e do passado ao presente: Sergio Moro assegurou que a Polícia Federal "continuará contribuindo com todos os meios necessários para as investigações do crime e das tentativas de obstruí-las". Disse, ainda, esperar que as prisões conduzam à "elucidação completa deste grave crime, para que todos os responsáveis sejam levados à Justiça". O "complô", porém, segue ativo, agora agarrado à conveniente tese do "crime de ódio".

*Demétrio Magnoli, Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Demétrio Magnoli: O Itamaraty, segundo Ernesto

Durante quase 14 anos, nos governos lulopetistas, o diplomata Paulo Roberto de Almeida experimentou o que chama de “exílio involuntário”. Excluído pela chefia de qualquer atividade, instalou seu “escritório de trabalho” numa mesa da biblioteca do Itamaraty. O intervalo entre um “exílio” e outro durou menos de dois anos. Exonerado da direção do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (Ipri), ele se prepara para seguir rumo à Sibéria: “Vou ter de voltar à biblioteca para poder trabalhar”. O bolsonarista Ernesto Araújo imita Celso Amorim, chanceler lulista, rebaixando o Itamaraty ao estatuto de ferramenta de uma facção.

“Personalidades autoritárias não apreciam espíritos libertários como o meu”. O diagnóstico aplica-se tanto a Araújo como a Amorim. Nos tempos do segundo, ondas de expurgos afastaram dezenas de diplomatas experientes que não aceitavam a condição de sabujos do ministro de turno. Hoje, a pretexto de promover jovens diplomatas, o primeiro cerca-se de bajuladores dispostos a aplaudir com igual fervor suas asneiras retóricas e suas insanas iniciativas de política externa. A corrupção moral não figura no Código Penal, mas suas consequências são tão danosas quanto a corrupção política.

Na democracia, uma fronteira nítida separa a conquista do governo da colonização partidária do Estado. O bolsonarismo aprendeu com o lulopetismo a ultrapassar a linha divisória, excluindo os “espíritos libertários” para não ouvir vozes dissonantes. Daí, nasce o governo de facção, isolado numa concha de certezas ideológicas, protegido da crítica por espessos cordões de puxa-sacos. A demissão de Almeida é mais um sintoma de que a eleição presidencial produziu um giro de 360 graus, colocando-nos de volta no ponto de partida.

Araújo plagia Amorim. O chanceler lulista anunciou um novo começo para nossa política externa, que se tornaria “ativa e altiva”, substituindo a orientação supostamente subserviente de seus antecessores. O chanceler bolsonarista promete “libertar a política externa” dos grilhões do “globalismo” para que ela represente o “Brasil verdadeiro”. A ideia de inaugurar a História, enterrando um passado de impurezas e escrevendo capítulos imaculados no mármore branco, é marca invariável das “personalidades autoritárias”. Mas o paralelo entre os dois chanceleres tem limites —e as circunstâncias da demissão de Almeida lançam luz sobre uma diferença fundamental.

O ato de exoneração — comunicado depois que o diplomata publicou, em seu blog pessoal, as críticas formuladas por FH e Rubens Ricupero à atuação de Araújo na crise venezuelana — derivou efetivamente das críticas de Almeida a Olavo de Carvalho. A polêmica emergiu no 23 de fevereiro, dia do “cerco humanitário” a Maduro, quando Araújo sugeriu a abertura de um corredor de invasão em Roraima, a ser utilizado por forças dos EUA. A ideia evidenciou que o chanceler despreza as leis brasileiras e nossa tradição de política externa. Ao mesmo tempo, revelou que ele comprara, pelo valor de face, o blefe vazio da Casa Branca.

O desatino de Araújo provocou uma intervenção branca no Itamaraty. Um cordão sanitário formado pelo vice, Hamilton Mourão, e pelos generais Augusto Heleno (GSI) e Villas Bôas, ex-comandante do Exército, rodeou silenciosamente o ministro de Relações Exteriores. Então, na impossibilidade de demitir os generais que o sitiaram, o “Zeus de subúrbio” (apud Almeida) direcionou seu raio contra um espírito livre situado no interior de sua casamata.

Todo o episódio distingue, sob um aspecto crucial, o chanceler bolsonarista de seu predecessor lulista. A política externa de Amorim obedecia a centros de comando claros: Lula e o PT. Já a política externa de Araújo emana de um centro de comando clandestino, constituído por Olavo de Carvalho, Eduardo Bolsonaro e Steve Bannon, o ex-assessor de Trump que tenta construir uma “Internacional dos nacionalistas”.

No fim, a sorte sorriu para Almeida: as amplas vidraças da biblioteca Azeredo da Silveira são o melhor ponto de observação do incêndio que devasta o Itamaraty.


Demétrio Magnoli: Um carnaval em Aalst

O levante contra o 'globalismo' reativa o paradigma antissemita

O grupo "não tinha intenções ofensivas", assegurou o prefeito de Aalst, Cristoph D'Haese, do partido nacionalista N-VA, que busca a independência da região belga de Flandres. "Carnaval é apenas um festival de caricaturas", disse um integrante do grupo. O carro alegórico que detonou a polêmica exibia bonecos representando judeus hassídicos, narizes aduncos, as mãos estendidas pedindo doações, um rato sobre suas malas de dinheiro. Num artigo para a The Atlantic, Eliot A. Cohen traçou paralelos com alegorias similares que apareceram no carnaval de Marburg (Alemanha), em 1936. Hitler não nos espreita na esquina, mas o antissemitismo retorna como discurso socialmente admitido.

De carro, menos de uma hora separa Aalst do Parlamento Europeu. A nova onda de aversão aos judeus faz seu caminho pelo Velho Mundo, escorrendo por veredas de direita e de esquerda. Os bonecos carnavalescos são sintoma do "espírito do tempo". Na Hungria, o primeiro-ministro Viktor Orbán pinta o financista George Soros como o lendário "judeu sem pátria" que dirige um complô destinado a afogar a "Europa cristã" num mar de imigrantes muçulmanos. No Reino Unido, o líder trabalhista Jeremy Corbyn atribui um atentado jihadista no Egito à "mão de Israel", autorizando tacitamente os discursos antissemitas que engolfaram seu partido numa crise moral. Os foliões pertencem às elites políticas e seus gestos cumprem funções estratégicas.

O antissemitismo clássico deita raízes na direita, especificamente no catolicismo tradicional e no nacionalismo autoritário. Nos EUA, como no Brasil, a direita nacionalista represou seus impulsos antijudaicos para atender à base evangélica, que enxerga em Israel o sinal das profecias do Livro do Apocalipse. Na Europa, de modo geral, a gramática do discurso ultranacionalista substitui os judeus pelos muçulmanos no papel de quinta-coluna infiltrada nas sociedades nacionais. Aí, a islamofobia explícita funciona como veículo de um antissemitismo implícito. Mas o ovo está lá, como evidenciam Orbán e inúmeras correntes extremistas que adquirem crescente peso eleitoral.

"O antissemitismo é o socialismo dos idiotas", na frase corrente entre os social-democratas alemães no anoitecer do século 19. O alerta, porém, apagou-se no passado desde que o terceiro-mundismo contaminou o pensamento de esquerda. As eclosões antijudaicas na ala esquerdista do Partido Trabalhista britânico, assim como entre tantas correntes da esquerda latino-americana, cobrem-se com o conveniente disfarce do antissionismo. Mas, sob o manto da crítica legítima ao governo israelense, o novo "socialismo dos idiotas" traça paralelos repugnantes entre Israel e a Alemanha nazista para negar o direito à existência do Estado judeu.

O molde do antissemitismo moderno, fabricado pela polícia política russa, é uma célebre falsificação publicada em 1903: Os protocolos dos Sábios do Sião. Na história da conspiração judaica internacional, financistas, magnatas, jornalistas e comunistas judeus coordenam suas ações para controlar os bancos, a mídia e os governos, com o objetivo final de dominar o mundo. Magnatas e comunistas, ambos sem pátria, operando juntos, formam uma tecla quente para o nacionalismo de direita. Já a associação entre bancos, mídia e governo toca num nervo sensível da esquerda anti-imperialista. Numa ponta e na outra, o levante contra o "globalismo" reativa o paradigma antissemita que inspira a alegoria de Aalst.

O pátio de encontro antissemita da direita e da esquerda saltou da teoria à prática pelas mãos do movimento dos coletes amarelos. Na França, pela primeira vez, correntes extremistas antagônicas colaboram ativamente numa revolta contra o "sistema". O fruto da aliança são suásticas e frases de ódio aos judeus que emporcalham cemitérios e sinagogas. Cinzas na quarta-feira.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Postado por Gilvan Cavalcanti de Melo às 07:50:00


Demétrio Magnoli: Diante do enigma venezuelano

A negação de uma estratégia desvairada não equivale à definição de uma positiva

O "Deus de Trump" invocado por Ernesto Araújo não funcionou. No 23 de fevereiro, suposto Dia D, Maduro escapou do "xeque-mate humanitário", provando que ainda mantém controle sobre a alta oficialidade. A estratégia fracassada representou uma nítida derrota para o líder opositor Juan Guaidó, mas também para Donald Trump e o presidente colombiano Iván Duque. O Brasil só não amargou completa desmoralização porque, na hora H, Bolsonaro entregou o comando ao vice, Hamilton Mourão, assinando uma demissão branca do chanceler Araújo. Há lições a extrair do episódio.

A disputa de poder na Venezuela contrapõe o Executivo (isto é, a ditadura do chavismo terminal) ao Parlamento (isto é, a maioria oposicionista oriunda das derradeiras eleições livres no país). O Parlamento conta com apoio internacional majoritário e o respaldo da maior parte do povo. Contudo, o Executivo tem as armas, pois o regime equilibra-se sobre a aliança entre o aparato político chavista e a cúpula militar. Nesse cenário, a queda de Maduro depende de uma cisão entre os componentes da aliança cívico-militar que o sustenta.

A ideia de uma intervenção militar liderada pelos EUA só passa pelos desvarios conspiratórios de correntes extremistas com as quais o neófito Araújo extravasa seus impulsos infantis. Trump não organiza retiradas americanas da Síria e do Afeganistão para se envolver numa ação isolada na América do Sul. Duque não reativará a guerra civil colombiana em nome da democracia na Venezuela. Os militares brasileiros rejeitam a perspectiva de produzir uma Síria na faixa de fronteira amazônica. O chefe do Itamaraty que clamou por um corredor de invasão a partir de Roraima é evidência dos riscos que Bolsonaro corre ao nomear acólitos do Bruxo da Virgínia a postos de responsabilidade.

No Dia D que não houve, os Estados Unidos, a Colômbia e o Parlamento venezuelano tentaram emparedar os militares entre as alternativas de usar munição real contra o povo ou romper com o Executivo. A encruzilhada, porém, não se materializou. De um lado, superestimou-se a mobilização popular na fronteira colombiana. De outro, subestimou-se a coesão das Forças Armadas, que sofreram defecções apenas periféricas. A vitória pontual de Maduro não altera a paisagem de fundo, que descortina um regime falido e fraturas estruturais na aliança de poder. Mas exige a substituição das proclamações triunfalistas por iniciativas realistas.

O Brasil perdeu o confortável papel de ator coadjuvante. Na reunião doGrupo de Lima, o chanceler de facto Mourão reorientou a diplomacia regional, afastando a sugestão de intervenção militar externa aventada por Guaidó. A negação de uma estratégia desvairada não equivale, porém, à definição de uma estratégia positiva. A ditadura venezuelana não cairá sob golpes retóricos ou a multiplicação de sanções econômicas americanas. É preciso remover as últimas esperanças da cúpula militar e, ao mesmo tempo, convencê-la de que não sofrerá a vingança de um futuro governo democrático.

As chaves do enigma encontram-se na Rússia e na China. As duas potências devem ser persuadidas a abandonar o esquife do regime chavista, ajudando a negociar um pacto de transição com os chefes militares. Sem o pulmão financeiro providenciado por elas, a ditadura seria asfixiada. E, com a garantia delas, os comandos das Forças Armadas venezuelanas dariam crédito à promessa de anistia formulada pelo Parlamento.

Não é missão impossível. Putin carece de meios para projetar poder na América do Sul. O governo chinês não trocará suas relações com os principais países sul-americanos pela proteção a um regime sem amanhã. Contudo, para realizá-la, o "Deus de Trump" precisa sair de cena. Se pretende exercer liderança na crise regional, Bolsonaro deve ter a coragem de apagar as luzes do quarto das crianças. Afinal, já passa da meia-noite.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Demétrio Magnoli: Trump, os limites da democracia

Não há emergência imigratória

Nos jornais e em ensaios acadêmicos, difunde-se a tese de que o “Estado profundo” enquadrou Donald Trump, neutralizando seus impulsos autoritários e assimilando-o ao sistema político americano. A ordem executiva de declaração de “emergência nacional”, supostamente destinada à construção do muro na fronteira com o México, evidencia as dimensões do equívoco. Por meio dela, o presidente circunda o Congresso, apropriando-se de prerrogativas constitucionais que não pertencem ao Executivo. O precedente busca destruir o mecanismo de contrapesos que garante o funcionamento normal da democracia americana.

Trump já corroeu a ordem internacional edificada pelos EUA no pós-guerra. A aliança transatlântica, corporificada pela Otan, cambaleia sob os golpes do ocupante da Casa Branca, que prefere a companhia da Rússia à da Europa. O sistema multilateral experimenta incontrolável hemorragia depois de sucessivas retiradas americanas (Acordo do Clima, acordo nuclear com o Irã, mudança da embaixada para Jerusalém, guerra tarifária com a China). No Oriente Médio, o isolacionismo trumpiano propiciou a expansão da influência russa e ameaça deflagrar uma corrida nuclear entre Arábia Saudita e Irã. Entretanto, a ordem democrática interna parecia preservada — até a edição da ordem executiva de 15 de fevereiro.

“Eu não precisava fazer isso”, respondeu Trump diante da indagação de um repórter. O ato falho diz tudo. O presidente qualificou o fluxo de migrantes na fronteira sul como “emergência nacional” por motivos exclusivamente político-partidários. Dois anos após a posse, a promessa nativista de construção do célebre muro dissolve-se no ar rarefeito das bravatas, especialmente após a reconquista de maioria na Câmara pelos democratas. Como explicou Gavin Newsom, governador da Califórnia, um presidente “constrangido” inventa uma falsa emergência para “alimentar sua base” com a ração da xenofobia. Nesse percurso, procura libertar o Executivo da rede de controles fabricada pelo sistema democrático.

Não há emergência imigratória. Graças à drástica redução do fluxo de mexicanos, a imigração nos EUA conhece forte redução depois do apogeu de 1995-2000. Nos dois anos iniciais do governo Trump, as detenções de migrantes na fronteira sul atingiram seu nível mais baixo desde 1971. Atualmente, na sua maioria, os imigrantes ilegais entram nos EUA com vistos válidos que deixam expirar. A ordem executiva desvia para as obras do muro US$ 8 bilhões, uma fração dos custos totais da obra, estimados em US$ 23 bilhões. Imigrantes e muro não passam de pretextos para uma encenação teatral xenófoba. Contudo, se a Corte Suprema avalizar a farsa, ficará virtualmente anulado o poder do Congresso de definir o Orçamento nacional.

Do russo Putin ao turco Erdogan, passando pelo húngaro Orbán, os governantes populistas do movimento neonacionalista avançam rumo ao autoritarismo pela subordinação dos parlamentos e dos tribunais ao arbítrio do Executivo. Nos EUA, uma nação de enraizadas instituições democráticas, o empreendimento é muito mais difícil. Trump não conseguiu barrar as investigações judiciais que se aproximam de seu clã familiar. O desafio que agora lança ao equilíbrio de poderes definirá o futuro de seu governo.

A Lei de Emergências Nacionais, de 1976, inscreve-se no percurso histórico de ampliação das prerrogativas presidenciais que começou com a ratificação da Constituição americana, em 1788. A lei de 1976 não define o conceito de “emergência nacional”. O Congresso pode revogar emergências, mas o presidente tem o direito de vetar o ato parlamentar. A derrubada de vetos exige maioria qualificada de dois terços na Câmara e no Senado. Nessas condições, Trump tem chances razoáveis de obter da Corte Suprema uma sentença na qual os juízes se abstêm de intervir em prerrogativas dos outros poderes.

Geralmente, ao produzirem suas leis, as democracias não preveem a ascensão ao Executivo de líderes populistas engajados na degradação da própria democracia. Essa é a verdadeira “emergência” que os EUA enfrentam hoje.


Demétrio Magnoli: Círculo militar

O governo afunda sozinho na areia movediça sobre a qual apoiou seu edifício

O Floriano Peixoto de ontem, marechal de ferro, armas na mão, salvou a República da reação oligárquica. O de hoje, um comandante testado no terremoto do Haiti, integra-se ao círculo de aço de militares encarregados de salvar o governo do caos engendrado pelo próprio presidente. A substituição de Bebianno converte Onyx Lorenzoni no único civil remanescente no núcleo de ministros que despacham do Planalto. Junto dele, figuram três generais: Augusto Heleno, chefe do GSI, Santos Cruz, na Secretaria de Governo, e Floriano, na Secretaria-Geral. De fato, um mês e meio após a posse, assistimos ao ensaio da inauguração de um segundo governo Bolsonaro.

A demissão de Bebianno pode ser narrada em dois registros alternativos. Na linguagem do recreio do pré-primário: um chamou o outro de mentiroso, feio e bobo. No idioma compartilhado entre milicianos e facções do crime: um qualificou o outro como traíra, X-9. De um modo ou de outro, o evento veicula uma lição de ciência política: o governo Bolsonaro, na sua versão original, é um experimento patológico destinado a perecer sob o efeito das toxinas empregadas na sua concepção. Os militares finalmente entenderam isso.

Nos idos de 2016, ano do impeachment de Dilma Rousseff, a cúpula militar encarava Bolsonaro com indisfarçável desprezo. O ex-capitão baderneiro cercava-se por constelações de extremistas de redes sociais que gritavam pela "intervenção militar", ameaçando poluir os quartéis com os gases da política golpista.

Dali, numa brusca oscilação, os chefes fardados entusiasmaram-se com uma candidatura que prometia recuperar a estabilidade econômica, exterminar a corrupção e destruir as cidadelas do crime organizado. A velha desconfiança dos políticos profissionais, os ressentimentos nutridos pelas comendas oficiais concedidas a Marighella e Lamarca, o sonho desvairado de restauração da imagem da ditadura militar contribuíram para o imprudente abraço dos militares ao candidato da direita populista.

Do desprezo ao entusiasmo —e deste ao pânico. O clã familiar dos Bolsonaro, permeado por loucas ambições, inclina-se à guerra palaciana permanente. As cliques do baixo clero parlamentar que rodeiam Lorenzoni e Bebianno prometem engolfar o governo em perenes disputas mesquinhas. Os dois ministros nomeados por Olavo de Carvalho, o Bruxo da Virginia, personagens atormentados por moinhos de vento puramente imaginários, fabricam crises fúteis em série. Segundo o diagnóstico dos chefes militares, o governo afunda sozinho na areia movediça sobre a qual apoiou seu edifício improvisado.

Você disse "fascismo"? Sentenças odientas pontilham discursos das autoridades. Um projeto de lei assinado por Moro concede às polícias uma licença irrestrita para matar. No Rio de Janeiro, sob o influxo do "espírito do tempo", noticia-se uma chacina policial no Morro do Fallet e tiros fatais de snipers na favela de Manguinhos. Mas só há "fascismo" na literatura vulgar de uma esquerda que tudo esqueceu ou nada leu. O governo Bolsonaro, tal como exposto pelo episódio constrangedor da demissão de Bebianno, carece de coesão organizativa, estrutura político-partidária e coerência ideológica mínima.

"Fascismo"? Bolsonaro não mobiliza camisas-negras ou falanges, exceto a militância virtual comandada pelo filho Carluxo que vitupera nos subterrâneos da internet. Um paralelo viável não é com Mussolini, mas com Rodrigo Duterte, o populista primitivo das Filipinas que contaminou suas forças policiais com as práticas do vigilantismo. No Brasil, um governo desse tipo está condenado à implosão. Daí, o alerta de pânico ativado pelos generais do Planalto.

A defenestração de Bebianno assinala uma transição silenciosa. Que ninguém se iluda: está em curso a "intervenção militar" pela qual clamavam os patetas civis extremistas na hora do impeachment.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Demétrio Magnoli: Esferas de influência

A nova/velha lógica das grandes potências paira sobre a Ucrânia e a Venezuela

Trump não tem problemas com regimes autoritários. Ele admira o russo Putin, o turco Erdogan e o saudita Bin Salman. Uma exceção notória é Nicolás Maduro, um personagem que o faz falar sobre direitos humanos. Ninguém, porém, deve se iludir: do ponto de vista do presidente americano, a Venezuela é sobre esferas de influência.

O conceito de esferas de influência aproxima Trump de Putin. O líder russo devota um desprezo absoluto pela noção de soberania popular. Na Ucrânia, quando o povo se levantou contra o regime pró-russo de Viktor Yanukovych, em 2014, o Kremlin interpretou a revolução como ingerência estrangeira num país aliado: uma conspiração ocidental antirrussa. Trump nunca discordou da avaliação, tanto que se recusou a condenar a anexação da Crimeia e a guerra separatista patrocinada por Putin no leste ucraniano.

Sob as lentes de Trump, Maduro deve cair não porque seu regime viole sistematicamente os direitos humanos ou porque tenha conduzido a Venezuela a uma catástrofe humanitária sem precedentes. A substituição do regime, aos olhos da Casa Branca, é um imperativo ditado pela meta de restauração da hegemonia dos EUA na sua esfera tradicional de influência.

A política externa trumpiana organiza-se ao redor desse conceito antigo, que está sendo reativado por Washington e Moscou. No teatro do Oriente Médio, os EUA traçam uma linha no chão, dividindo áreas de influência com a Rússia. A aliança americana com Israel e a Arábia Saudita destina-se a contrabalançar a aliança russa com o Irã e a Síria. A anunciada retirada das forças americanas da Síria tem a finalidade de concluir a partilha geopolítica, que inclui a aceitação de uma "faixa de segurança" para a Turquia mesmo às custas do abandono dos curdos à sua própria sorte.

A nova/velha lógica geopolítica das grandes potências paira sobre a Ucrânia e a Venezuela. Inicialmente, Putin estabeleceu o objetivo de impedir a estabilização do governo pró-europeu ucraniano, utilizando para isso o instrumento da rebelião separatista no leste do país. Certo de que os EUA de Trump não se engajarão na proteção da Ucrânia, Putin revela-se determinado a dar um passo adiante. Desde o bloqueio dos portos do mar de Azov, em novembro, Moscou parece jogar suas fichas na hipótese do colapso do governo ucraniano.

A crise venezuelana tem potencial para acelerar o projeto de Putin de restauração da influência russa sobre a Ucrânia. Essa é a chave para interpretar os movimentos russos na batalha pela Venezuela.

A Venezuela não é a Síria. O regime de Bashar Assad tinha uma sólida base social, fincada nos alauitas e nos cristãos, que temiam a tomada do poder pelos sunitas. Já Maduro não dispõe da lealdade incondicional de nenhum setor da população. Além disso, Assad contava com a paliçada protetora do Irã, uma potência regional relevante, enquanto o chavismo tardio já não dispõe dos apoios do Brasil e da Argentina. Putin sabe que o regime de Maduro não sobreviverá, mas aposta no prolongamento do impasse, a fim de extrair o máximo possível de concessões dos EUA.

O apoio dos bancos russos a Maduro confere algum fôlego ao regime cercado pelas sanções americanas. O alento diplomático do Kremlin mantém, por enquanto, a fidelidade do alto comando militar venezuelano a um regime em ruínas. Trump comprometeu-se irreversivelmente com a derrubada do regime chavista. Washington já não pode voltar atrás sem se desmoralizar por completo —e, ao mesmo tempo, quer evitar o profundo desgaste de uma intervenção militar. Dessa disjuntiva, emanam as oportunidades de Putin. No limite, a Rússia conseguiria o prêmio máximo: a queda do governo ucraniano, em troca da cabeça de Maduro.

Um intercâmbio desse tipo não faria sentido para Obama, que não se movia no tabuleiro das esferas de influência. Mas ajusta-se à visão de mundo de Trump.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Demétrio Magnoli: Ladrões de petróleo na Venezuela

Os malvados americanos não ditavam os preços do barril

‘A propriedade é um roubo!”, escreveu Pierre-Joseph Proudhon em 1840. Karl Marx fez gato e sapato do anarquista francês, explicando que a economia capitalista é um tanto mais complicada que isso. Não adiantou, a julgar pelas inclinações proudhonianas da esquerda contemporânea, em particular quando se trata de julgar as motivações do “imperialismo americano”. Fernando Haddad, por exemplo, mesmo ao criticar (suavemente) a presença de Gleisi Hoffmann na posse de Nicolás Maduro, dirigiu suas baterias contra a oposição venezuelana, acusando-a de “buscar um status quo anterior”, quando a Venezuela seria “um quintal cheio de petróleo para os americanos”.

A ideia do roubo de recursos naturais corre solta, em meio ao dramático declínio intelectual da esquerda. Há décadas, circula a tese de que os americanos planejam surrupiar a água doce da Amazônia, a fim de abastecer a insaciável Califórnia. Nunca se esclareceu se isso se faria por meio do transporte em baldinhos ou por via técnica menos dispendiosa. No caso do petróleo, porém, a noção infantil do roubo parece menos fantasiosa e, talvez por isso, ganhe ares de coisa séria o suficiente para ser incorporada ao discurso de um professor de Filosofia.

Mas qual roubo? No tempo em que a Venezuela era “um quintal cheio de petróleo”, os americanos o compravam, segundo cotações definidas pelo mercado mundial. Os malvados americanos não ditavam os preços do barril. Antes, a Opep o fazia, sob influência decisiva da Arábia Saudita. Depois, com a explosão do óleo de xisto nos EUA, o mercado tornou-se mais competitivo. Num ponto intermediário, os preços do barril saltaram a níveis recordistas, em torno de US$ 100. Nesse período, a Venezuela seguiu, alegremente, exportando óleo para os EUA — o que propiciou a Hugo Chávez expandir sua popularidade e consolidar seu regime.

A geografia separa radicalmente a Venezuela da China. O petróleo extrapesado da Faixa do Orenoco exige processos de refino singulares, para os quais estão adaptadas diversas refinarias dos EUA. Sob Maduro, Guaidó ou quem quer que seja, o mercado americano continuará sendo vital para as exportações venezuelanas. Hoje, graças ao óleo de xisto, custa muito menos para os EUA dispensar os suprimentos da Venezuela do que custa à Venezuela encontrar consumidores alternativos. Há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe a vã filosofia de Haddad.

Qual roubo, afinal? A tese talvez não se refira ao comércio, mas aos investimentos. A pérfida oposição venezuelana abriria os campos da Faixa do Orenoco aos investimentos das companhias “ianques”, rompendo o monopólio da PDVSA, a estatal petroleira da Venezuela.

O raciocínio, contudo, esbarra em duas dificuldades. A primeira é que inexiste monopólio da PDVSA. Sob o chavismo, empresas como a norueguesa Equinor (ex-Statoil), a espanhola Repsol e a americana (sim: ianque!) Chevron exploraram petróleo no Orenoco em associação com a PDVSA. A segunda é que, devastada pelo chavismo, a estatal extrai, hoje, pouco mais de um milhão de barris/dia, contra 3,1 milhões em 1998. De fato, a Venezuela precisa de investimentos estrangeiros. Sem eles, não recuperará sua capacidade de exportar — e, portanto, de importar bens de consumo e de produção.

Sob Lula e Dilma, o Brasil não cedeu à tentação de restaurar o monopólio estatal da exploração de petróleo. Os governos petistas limitaram-se a trocar o sistema de concessão pelo de partilha — e não cumpriram a promessa populista da redenção nacional pelo pré-sal. Por que a Venezuela deveria ser condenada por uma eventual tentativa de recuperar os níveis de extração alcançados antes do chavismo?

A lenda sobre o roubo do petróleo revela uma confusão mais profunda, que é a identificação de recursos naturais com riqueza social. Os primeiros são substâncias que ocorrem na natureza e encontram uso econômico útil. A segunda é a capacidade de inventar tecnologias que aumentem o bem-estar da sociedade. Atenção, Haddad: isso depende de educação e ambiente institucional. E não pode ser roubado.


Demétrio Magnoli: Ministério Privado

Partidarização de promotores e procuradores se alastra como fogo no cerrado

Eles obedecem a dois senhores. Com a mão esquerda, prestam serviço ao Estado, oferecendo denúncias criminais. Com a direita, propagam nas redes sociais um programa ideológico ultraconservador. Foi com esta mão que uma centena de promotores e procuradores de um certo Ministério Público Pró-Sociedade escreveu uma carta aberta contra os críticos do "pacote de Moro", responsabilizando-os pelo "caos" na segurança pública "nos últimos 30 anos". A dupla militância e o tom fanático do texto evidenciam a extensão do "caos" —mas no Ministério Público (MP).

Quem se recorda de Luiz Francisco de Souza, o procurador-militante que, um quarto de século atrás, dedicava seu tempo a produzir notícias destinadas a favorecer o PT? De 1 ou 2 a 100, do petismo ao bolsonarismo, o fenômeno da partidarização do MP alastra-se como fogo no cerrado. O Ministério Público Pró-Sociedade nasceu em congresso realizado na sede da Fundação Escola Superior do Ministério Público do DF, no final de dezembro. O movimento organiza-se como partido político, explicitando sua doutrina.

Do congresso, emanou um manifesto com 23 "enunciados". Nele, o partido de promotores e procuradores alinha-se com o Escola Sem Partido, sustenta políticas de encarceramento em massa, cinde os direitos humanos para defender exclusivamente os "direitos humanos das vítimas", critica a "censura ilícita" de notícias falsas na internet e sugere uma censura lícita à "pornografia" em "eventos artísticos". Nada de errado para um partido político de extrema direita determinado a mudar as leis.
Tudo errado quando se trata de funcionários de Estado encarregados de zelar pelo cumprimento das leis.

Notavelmente, o manifesto do Ministério Público Pró-Sociedade mobiliza uma novilíngua orwelliana. Declara, no prólogo de seu próprio programa de transformação social, que "o MP não deve ser agente de transformação social". Na mesma introdução a seus 23 enunciados ideológicos, classifica as ideologias como derivações de "sonhos" e "abstrações" contrárias "à concretude dos fatos, da realidade, da verdade", explicando professoralmente que "conservadorismo não é ideologia, mas expressão da realidade pautada na ordem, na liberdade e na justiça".

O PT inventou; eles copiaram. O Ministério Público Pró-Sociedade (cujo nome implica uma acusação velada ao restante do MP) inspira-se metodologicamente na Associação Juízes para a Democracia (cujo nome implica uma acusação velada ao restante do Judiciário). São, os dois, típicos "partidos da boquinha". Tal como os juízes-militantes, os promotores e procuradores militam dentro do Estado, na condição de funcionários com estabilidade, apropriando-se de uma instituição do sistema de Justiça para promover sua plataforma ideológica. E, tal como no caso deles, sua atividade militante é financiada pelos impostos de todos os cidadãos, que pagam seus salários, seus régios auxílios-moradia e seus gordos benefícios previdenciários.

O "pacote de Moro" afoga as louváveis prioridades de combate à corrupção e ao crime organizado num caldo de inconstitucionalidades, mudanças legais inócuas e estímulos à violência policial. Mas, acima de tudo, simula não ver que o encarceramento em massa de pequenos delinquentes converte as penitenciárias em campos de recrutamento das facções criminosas. O ataque furibundo do novo partido de promotores e procuradores tem a finalidade de cercear a crítica ao caldo viscoso que sabota as intenções virtuosas.

A militância político-partidária é direito de todos, fora do sistema policial e judicial. Decisão do Conselho Nacional do Ministério Público suspendeu Luiz Francisco de Souza, por "práticas incompatíveis com o cargo". O que fazer com uma centena de promotores e procuradores dispostos a, no exercício de suas funções, ignorar a letra das leis para servir à sua ideologia?

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Demétrio Magnoli: Parapolítica, uma lição colombiana

Com a ascensão de Bolsonaro, o tema das milícias escapa aos limites do Rio, ganhando dimensões nacionais

“Nomeei Noguera por sua biografia e sua família, confiei nele. Se delinquiu, me dói e peço desculpas à cidadania.” Foi assim, no condicional, que o ex-presidente Álvaro Uribe reagiu à condenação de Jorge Noguera a 25 anos de prisão, pela Corte Suprema, em 2011.

Noguera, diretor do Serviço de Inteligência estatal entre 2002 e 2006, no primeiro mandato de Uribe, foi sentenciado por pertencer secretamente às Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC), maior grupo paramilitar do país.

O processo que o desmascarou salvou o Estado colombiano das garras das milícias. Sugiro ao Ministério Público, ao Congresso e ao ministro Sergio Moro que estudem o caso –e não por mera curiosidade histórica.

O paramilitarismo na Colômbia é fenômeno tão antigo quanto as guerrilhas de esquerda. As AUC, como as Farc, sua inimiga, firmaram pactos com o narcotráfico e envolveram-se com inúmeros negócios criminosos.

Na moldura da guerra civil, os tentáculos dos grupos paramilitares alcançaram a esfera da política. O termo “parapolítica” descreve o entrelaçamento dos dois mundos. Os paramilitares patrocinaram as eleições de deputados, prefeitos e vereadores.

O Ministério da Justiça colombiano divulgou, antes das eleições municipais de 2011, uma lista de candidatos “inidôneos”. Eram 13 mil nomes, mais que 10% do total.

As milícias brasileiras não surgiram no quadro de uma guerra civil, mas no contexto do controle das favelas do Rio de Janeiro pelo crime organizado. Nasceram como “polícia mineira”: grupos de autodefesa das comunidades.

Logo, evoluíram como bandos criminosos que exploram serviços ilegais e mantêm laços estreitos com a polícia oficial. A infiltração das milícias na política começou há tempo, em escala local. A Folha (31) publica indícios alarmantes sobre a possível extensão dos tentáculos da parapolítica ao núcleo do Estado brasileiro.

O clã Bolsonaro notabilizou-se, ao longo dos anos, por minimizar a ameaça das milícias. A estratégia discursiva empregada articula-se em torno de uma simulação: eles fingem que as milícias encontram-se, ainda, no estágio embrionário de “polícia mineira”.

A bandeira da liberação do porte de armas encontra, aí, sua lógica: sem as rigorosas restrições atuais, uma faceta crucial da atividade dos milicianos fica protegida da sanção da lei.

Evidentemente, o discurso político dos Bolsonaro não constitui sintoma de envolvimento com as milícias. Já os lugares ocupados pelo ex-PM Fabrício Queiroz e pelo ex-capitão do Bope Adriano da Nóbrega na rede de relações do clã levantam óbvias suspeitas.

O segundo, acusado de liderar o Escritório do Crime, milícia suspeita da execução de Marielle Franco, foi homenageado na Alerj por Flávio Bolsonaro, a pedido do primeiro. Na ocasião, o ex-Bope encontrava-se preso, justamente em função de suas aparentes ligações com as milícias.

O gabinete de Flávio Bolsonaro empregou como assessoras a mãe e a esposa de Adriano, sempre a pedido de Queiroz, o homem que produz dinheiro vivo. Nada disso, em si mesmo, é crime. Mas são coincidências em série que solicitam investigações urgentes.

Na Colômbia, informações compartilhadas por Noguera com as AUC conduziram a pelo menos um assassinato de ativista de direitos humanos: o do professor Alfredo Correa de Andreis, em 2014. No fim, graças ao Judiciário, a Colômbia não se tornou um Estado dos paramilitares.

Por aqui, com a ascensão de Bolsonaro ao Planalto, o tema das milícias escapa aos limites do Rio, ganhando dimensões nacionais. A lição colombiana é que a parapolítica pode até se instalar na cúpula estatal.

Num país sério, o MPF já teria assumido o controle sobre as investigações da estranha teia de relações de Flávio Bolsonaro, e o Congresso criaria uma CPI da execução de Marielle. Mas, se fôssemos um país sério, não estaríamos contando os mortos de Brumadinho.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.