Demétrio Magnoli

Demétrio Magnoli: A lei, o povo e o inimigo do povo

Tudo é anormal nas mensagens que evidenciam o conluio entre juiz e Estado

“Caim, que Brasil queremos?”. A indagação que encerra o artigo do procurador Edilson Bonfim (Folha, 3/7) evoca a mítica fonte do mal e da violência. É uma conclusão apropriada para um texto eivado de ódio, mas que funciona como síntese perfeita do discurso reativo de Sergio Moro e dos procuradores da Lava Jato.

Diante das revelações oferecidas pelo The Intercept Brasil, eles respondem com dois argumentos sucessivos, incongruentes entre si.

1) Os diálogos foram obtidos por hackers (“a flor do mal de mais um crime”), podem ter sofrido adulterações (“como saber da autenticidade, contexto ou conteúdo das mensagens?”) e sua publicação destina-se a caluniar as autoridades judiciárias, condenando-as à “morte moral”.

2) As mensagens não indicam nenhuma violação das leis e normas do processo penal (“o seu conteúdo é normal como diálogo de autoridades públicas”).

Um ou outro, senhores! Se é verdadeiro o segundo argumento, inexiste tentativa de calúnia. Nessa hipótese, Moro e os procuradores deveriam celebrar a publicação, que comprovaria de uma vez a lisura do processo. Mas, pelo contrário, como sinaliza a fúria santa do artigo de Bonfim, tudo é anormal nas mensagens que evidenciam o conluio entre juiz e Estado acusador na montagem de estratégias jurídicas e de comunicação midiática.

O segundo argumento é um medíocre exercício de contradição: a negação de um fato incontroverso. Já o primeiro orbita o planeta da especulação vazia. Qual é a prova de que as mensagens foram obtidas por hackers (e não por um procurador de facção rival, por exemplo)?

Há algum vestígio, por mínimo que seja, a sugerir falsificação dos diálogos?

“Ó crime sórdido! Caluniam-me ao dizer que escrevi essas coisas, que posso ou não ter escrito —mas, se de fato as escrevi, nada fiz de errado.” O cerne do discurso de Moro e dos procuradores emana do manual de advogados embrenhados na missão de produzir uma defesa para réus carentes de álibis verossímeis. O fato embaraçoso é que, postos diante de um caudal de diálogos referentes ao principal caso jurídico de suas vidas, não conseguem apontar uma única instância de falsificação.

A conjunção dos dois argumentos resulta em catástrofe lógica. Daí, o recurso a um terceiro, de tipo nuclear: a acusação de que os críticos de Moro e dos procuradores não passam de agentes de corruptos presos ou ainda soltos (“mais de uma centena de potentados acusados”). Aí, sim, nas palavras de Bonfim, identifica-se “o parto de uma calúnia”.

Na estante dos argumentos polêmicos, o ataque “ad hominem” ocupa a prateleira inferior: algo como virar a mesa, levar embora a bola do jogo, chamar o irmão mais velho. Mas, na esfera política, é ferramenta cotidiana dos espíritos autoritários. Sob esse aspecto, os fiéis de Moro emulam o procedimento padrão dos regimes comunistas. Critique Stálin (ou Castro, ou Maduro) e você será um agente da CIA. Critique as sagradas figuras da Lava Jato e será um comparsa dos corruptos.

Bonfim só menciona a Constituição, a lei, o Código de Processo Penal para circundar o tema da separação entre juiz e Estado acusador. No lugar disso, dedo em riste, fala do povo e do inimigo do povo, em alocuções condoreiras: a “grandeza bilionária das cifras da corrupção, abjeto monstro que produz exclusão social”, “mais uma tunga na história e no povo brasileiro nacional” (sic).

Seu discurso, que reproduz o utilizado por Moro na Câmara, pede tradução. Ele está dizendo que a lei deve se curvar ao interesse do povo, tal como interpretado por seus arautos. Todos os regimes autoritários do mundo dizem isso.

Lula é um detalhe, quase uma nota de pé de página, nessa história triste. Não é necessário acreditar na inocência do ex-presidente para desprezar juízes e procuradores que se pronunciam como políticos. Mais precisamente, como políticos populistas.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Demétrio Magnoli: Por que Maduro não cai

É o cenário de um país em guerra — com o detalhe de que não há guerra. A hiperinflação mede-se em taxas de seis ou sete algarismos. Destruída a moeda, a economia regride ao estágio do escambo. Doentes, inclusive crianças, morrem em hospitais devastados. São, até agora, quatro milhões de refugiados. A “revolução bolivariana” destruiu a Venezuela. Pensando bem, há uma guerra, do regime contra o povo. Mas, contrariando os prognósticos, Nicolás Maduro não cai. Por quê?

A sobrevivência do regime desmonta as duas crenças do pensamento mágico que orientaram, pendularmente, as análises e a ação dos diplomatas. A primeira deve ser batizada como Mito da Negociação; a segunda, como Utopia da Insurreição.

Nos últimos anos, a Costa Rica, o Vaticano e o ex-primeiro-ministro espanhol Zapatero ofereceram-se como mediadores de uma transição negociada. Todas as tentativas fracassaram. A negociação tem um pré-requisito de princípio: o reconhecimento da legitimidade da outra parte. Se é esse o ponto de partida, os polos em conflito podem aceitar vitórias parciais, trocadas por concessões substantivas. No caso venezuelano, o Mito da Negociação simula a existência da condição prévia ausente.

O chavismo, um movimento revolucionário, jamais admitiu a legitimidade da oposição, definida como coleção de “inimigos do povo”. Do outro lado, o núcleo duro oposicionista nunca aceitou o chavismo como componente incontornável da paisagem política venezuelana. Daí que, nos diversos simulacros de negociação, os polos opostos sempre exigiram o impossível: a supressão do outro como candidato a exercer o poder.

O sonho insurrecional apossou-se dos espíritos meses atrás. Nutriu-se do enrijecimento autoritário do regime, que dissolveu as esperanças numa transição eleitoral, e ganhou impulso na esteira das iniciativas dos EUA rumo à mudança de regime, às quais aderiram os governos da Colômbia e do Brasil. Contudo, o regime resistiu tanto ao “cerco humanitário” de 23 de fevereiro quanto ao ensaio de levante militar de 30 de abril. Então, a Utopia da Insurreição cedeu lugar à expectativa de uma improvável intervenção militar americana.

Desde a Revolução Francesa de 1789, a utopia da insurreição popular aninha-se na alma das sociedades contemporâneas. No registro histórico, porém, as insurreições vitoriosas são eventos muito raros, excepcionais. A Revolução de Fevereiro, na Rússia
de 1917, é uma dessas singularidades (mas não a de Outubro, um levante militar dirigido pelos bolcheviques). A conta pode incluir a Revolução Iraniana de 1989 e as revoluções populares de 1989 no Leste Europeu. Fora disso, o cortejo de insucessos estende-se por um século, das tentativas insurrecionais comunistas na Alemanha de 1919 à Primavera Árabe de 2011.

A aplicação da força organizada quase sempre frustra a insurreição. O regime de Maduro conserva o controle sobre as Forças Armadas e, crucialmente, mantém um apoio popular minoritário que não é desprezível. Além disso, tem os suportes vitais de Cuba, da Rússia e da China. Nesse sentido preciso, parece-se um pouco com o regime sírio de Bashar al-Assad, que resistiu à avalanche de uma guerra civil de sete anos.

Do Mito da Negociação à Utopia da Insurreição, e de volta à partida. O pêndulo estéril ingressou em novo ciclo, com o teatro das negociações na Noruega. Sem alternativas, representantes de Juan Guaidó sentaram-se à mesa, apenas para rejeitar a cínica proposta do regime de eleições legislativas, o que implica aceitar a continuidade do mandato de Maduro e colocar em risco a maioria oposicionista na Assembleia Nacional. O chavismo ganha tempo, obtém fiapos de legitimidade diplomática, desmoraliza uma oposição ferida pelos insucessos recentes.

Maduro não é eterno. Será destronado pelo imponderável, como um golpe da cúpula militar corrompida ou uma desastrosa intervenção americana? FHC sugere o exercício da “paciência histórica”, enquanto uma nação impaciente se desfaz na guerra cotidiana pela sobrevivência. Melhor exercitar a criatividade estratégica, para além dos limites do pensamento mágico.


Demétrio Magnoli: Fruto proibido

Se os generais podem, por que tenentes, sargentos e soldados não poderiam?

“Não fazemos política.” Ash Carter, secretário da Defesa sob Barack Obama, sintetizou desse modo sua crítica a um pequeno, mas significativo, incidente recente. O sujeito oculto da frase são as Forças Armadas dos EUA. A lição precisa ser ouvida pela cúpula militar brasileira, que parecia tê-la aprendido 35 anos atrás.

O incidente foi objeto de indagação numa entrevista de Carter à The Atlantic (14/6). Durante a visita de Donald Trump ao Japão, no final de maio, uma ordem transmitida por algum funcionário da Casa Branca a alguém na Marinha determinou que se ocultasse o nome do destroier USS McCain, fundeado numa base naval americana. Motivo: o navio foi batizado em homenagem ao falecido senador republicano John McCain(e também a seu pai e a seu avô, todos oficiais da Marinha), antigo inimigo político do presidente. A ordem foi cumprida, manchando uma valiosa tradição democrática.

A “violação da natureza apolítica das Forças Armadas”, na qualificação de Carter, parece pouca coisa. Não é: a estabilidade do sistema democrático da maior potência militar do planeta depende da subordinação absoluta dos militares ao poder civil. Nos EUA, generais fazem política (e um deles, Eisenhower, presidiu o país entre 1953 e 1961), mas só depois de passarem à reserva. No episódio do USS McCain, a subversão da tradição emergiu como perigoso precedente. E se, amanhã, o presidente for recebido numa base militar por soldados com os bonés MAGA (“Make America Great Again”) das campanhas de Trump?

Os que não têm armas cuidam da política; os que têm armas ficam proibidos de fazer política. Bolsonaro liga menos ainda para a regra de ouro que Trump. Até agora, nossa cúpula militar parecia engajada em conservá-la —mas isso já não é tão certo.

Mourão, Augusto Heleno e Santos Cruz, a troika militar original, foi constituída por generais da reserva. A separação era mais formal que efetiva, pois o ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas opera como ponte entre a troika e o atual comandante, Edson Pujol. Os três traçaram um prudente círculo de ferro discursivo, distinguindo-se da radicalização ideológica bolsonarista. O metal, porém, começa a sofrer visível corrosão.

As manifestações intempestivas de Heleno, na esteira da revelação dos métodos heterodoxos da Lava Jato, não podem ser tratadas como as declarações de um qualquer Onyx Lorenzoni (“Moro ajudou a salvar o Brasil do PT”). O general que identifica Moro à pátria e clama pela condenação de Lula à prisão perpétua ainda mantém, no armário, a sua farda estrelada.

Há mais. No lugar do general da reserva Santos Cruz, uma voz da moderação, o núcleo militar governista ganha a presença do general Luiz Eduardo Ramos. O novo ministro da Secretaria de Governo também exibe perfil moderado, mas é da ativa —e seu cargo tem peso estratégico muito maior que os de Bento Albuquerque (ministro de Minas e Energia) e Rêgo Barros (porta-voz da Presidência), os outros generais da ativa no primeiro escalão. O risco é a contaminação dos quartéis: se os generais podem, por que tenentes, sargentos e soldados não poderiam? Perto disso, o episódio do USS McCain não passa de folguedo infantil.

A história conta. Os EUA nasceram sob o signo do poder civil, que não foi abalado nem mesmo pela Guerra de Secessão. No Brasil, o Império civilista deu lugar a uma República parida pelas baionetas, no rastro da Guerra do Paraguai.

A pulsão da intervenção castrense ritmou a política nacional, do 15 de novembro de 1889 ao 31 de março de 1964, passando pelo suicídio de Vargas, no 24 de agosto de 1954. Um fruto positivo da ditadura militar, que desgastou a imagem das Forças Armadas, foi a apreensão do valor do princípio explicitado pelo americano Carter: “Não fazemos política”. Contudo, sob Bolsonaro, nossa cúpula militar flerta com a tentação de experimentar, uma vez mais, o fruto proibido.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Demétrio Magnoli: Não é sobre Lula ou Moro

A corrupção do sistema de Justiça não reprime a corrupção política

Os fins justificam os meios? A pergunta não tem sentido, pois cinde duas instâncias inseparáveis. Nem todas as estradas conduzem a Roma. Os meios escolhidos definem os fins que eles podem alcançar. O vigilantismo miliciano não reduz a criminalidade, ainda que modifique sua morfologia. A corrupção do sistema de Justiça não reprime a corrupção política, ainda que substitua um grupo de corruptos no poder por outro. O conluio de Sergio Moro com os procuradores coloca em risco o combate à corrupção —e, ainda pior, paira como nuvem de chumbo sobre nossa democracia.

“Querem macular a imagem de Sergio Moro, cujas integridade e devoção à pátria estão acima de qualquer suspeita”, rosnou Augusto Heleno, invocando “o julgamento popular” para “os que dominaram o cenário econômico e político do Brasil nas últimas décadas”. Não faltou nem o “Brasil acima de tudo!”. Trocando o manto de chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional) pelo uniforme de agitador de redes sociais, o general usa a linguagem dos seguidores de Nicolás Maduro para embrulhar o ato criminoso na sacrossanta bandeira nacional. Mas, apesar dele e da manada que replica mensagens emitidas por robôs virtuais, os diálogos estão aí, como montanhas imóveis na planície sem fim.

Um hacker pago pelo PT? Um agente bolsonarista engajado em sabotar a campanha presidencial de Moro? Um procurador de facção rival, na guerra crônica que esgarça um Ministério Público submerso na lagoa da política partidária? A identidade do autor do vazamento é mistério secundário, de interesse meramente policial. A notícia relevante, não desmentida, é que Moro operou, simultaneamente, como juiz e promotor, violando a lei e fraudando o sistema judicial. Os heróis dos cartéis do tráfico combatem a injustiça social. O herói da justiça corrompida combate os políticos corruptos. Quando cansaremos de fabricar heróis que afrontam a lei legítima?

A pátria e o inimigo da pátria circulam tanto no discurso de Heleno quanto no de Lula. “Deltan Dallagnol, que me persegue, é um fantoche do Departamento de Justiça dos EUA”, acusou Lula, em entrevista à revista Der Spiegel (7/6). A CIA nada tem a ver com isso. A politização do Ministério Público é um fenômeno nacional. Moro, Dallagnol et caterva são saliências visíveis no impulso que conduz uma fração de altos funcionários de Estado a abraçarem a missão jacobina de sanear a política, convertendo-se em agentes políticos.

À sombra de Lula, a Petrobras foi saqueada. A Lava Jato prestou serviços valiosos à nação, expondo máfias políticas e empresariais dedicadas à pilhagem sistemática de recursos públicos. Mas, agora sabemos, desviou-se pelos atalhos do arbítrio. Não há inimigo mais letal do combate à corrupção do que juízes e procuradores dispostos a flexibilizar a lei em nome da causa.

Os vazamentos publicados pelo The Intercept Brasil confirmam, com razoável certeza, que Moro sequestrou a toga para chefiar o Partido dos Procuradores. As águas da política infiltraram-se da laje trincada do Ministério Público aos aposentos do Judiciário. Mas, nessa história, já vivemos um novo capítulo: Moro, chefe do Partido dos Procuradores, trocou a camuflagem de juiz pelo cargo de ministro da Justiça. Na hora de sua nomeação, avisou que prosseguiria em Brasília o trabalho iniciado em Curitiba. Assim, um sistema de Justiça politizado conecta-se ao poder governamental.

Na Rússia, na Turquia, na Venezuela, as democracias morrem quando se desfaz a fronteira que circunda o sistema judicial, protegendo-o das demandas do Executivo. A semente da perseguição judicial de adversários políticos deve ser erradicada antes que germine. Um governo decente afastaria Moro sem demora, mas não temos nada parecido com isso. As iniciativas precisam partir do Congresso, do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público. Não é sobre Lula nem sobre Moro. É sobre o país no qual queremos viver.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Demétrio Magnoli: A exceção brasileira

O “Deus de Trump” surgiu, como motor da História, num artigo de Ernesto Araújo publicado em novembro. Em fevereiro, Eduardo Bolsonaro juntou-se ao movimento de partidos populistas de direita articulado por Steve Bannon, que apresentou o rebento 03 como seu “representante na América Latina”. Na visita presidencial aos EUA, em março, a comitiva brasileira ofereceu um jantar que teve Bannon como convidado especial. Depois, em abril, o 03 fez um giro europeu para se reunir com líderes da direita nacionalista, iniciado por um encontro com o viceprimeiro-ministro italiano, Matteo Salvini. Aparentemente, o bolsonarismo deve ser descrito como expressão brasileira da onda nacionalista e populista que varre o Ocidente. De fato, porém, o bolsonarismo é uma exceção —e tem pés de barro.

A poesia épica do populismo nasce na gramática do medo. De Trump a Salvini, nos EUA e na Europa, a angústia, a insegurança diante do futuro alimentou a onda populista em curso, que não dá sinais de retrocesso. Nesse sentido genérico, o Brasil acompanhou a tendência internacional. Bolsonaro foi catapultado ao Planalto por eleitores temerosos, inseguros, indignados. Mas, por aqui, os eleitores não foram seduzidos pela narrativa ideológica do bolsonarismo. O voto negativo, não a adesão política, definiu o triunfo de um líder carente de bases sociais sólidas. Aí reside nossa excepcionalidade.

O grande tropeço da globalização, iniciado em 2008, deflagrou a ascensão do populismo nacionalista. Trump venceu no Colégio Eleitoral (mas não no voto popular) apoiando-se na baixa classe média branca de estados submetidos à corrosão da indústria tradicional. A crise do euro, seguida por longos programas de austeridade econômica, inflou o balão dos partidos da nova direita europeia. Dos megafones de Trump, Salvini, Le Pen, Farage, Orbán e tantos outros emanam as conclamações antiliberais do nativismo, da xenofobia e do protecionismo. A poesia gritada seduz vastas camadas do eleitorado, que buscam respostas simples a dilemas complexos.

No Brasil, Bolsonaro também emergiu do caos: a depressão econômica armada pelas estratégias fiscais do lulo-dilmismo. O voto antipetista, no cenário de desmoralização da elite política derivado da Lava-Jato, desviou-se de seu desaguadouro natural, que seria o PSDB. A campanha bolsonarista certamente apertou as teclas sensíveis da corrupção e da criminalidade, mas o sucesso derivou do colapso catastrófico do sistema político. Lá fora, uma corrente histórica profunda impulsiona a nova direita nacionalista. Aqui, um cruzamento de circunstâncias nacionais fortuitas colocou um político obscuro no trono presidencial.

Bolsonaro não entendeu isso. Hipnotizado pelo Bruxo da Virgínia, que controla seus filhos, o presidente casual copia discursos exógenos, isolando-se num gueto ideológico. A bandeira das estrelas, o muro da fronteira e o muro das tarifas ajustam-se ao projeto de poder de Trump, pois respondem ilusoriamente às angústias legítimas dos órfãos da globalização, prometendo prosperidade, emprego e renda. Já a camiseta verde-amarela de Bolsonaro, estampada com pistolas e fuzis, só excita as emoções de um núcleo minoritário de fiéis incondicionais.

Os espectros da China, dos imigrantes e do Islã circulam nos EUA e na Europa como alvos perfeitos para os poetas histéricos do nacionalismo. No Brasil, porém, não passam de ecos longínquos de uma guerra alienígena. O bolsonarismo ideológico tenta substituí-los por “inimigos da pátria” endógenos: políticos corruptos, criminosos comuns e “comunistas” de cartolina. No circuito fechado das redes sociais, o exercício de mimetismo pode perdurar indefinidamente, como uma oração repetida por gerações de fanáticos. No mundo real, estiola-se de encontro às rochas da indiferença, da ironia e do sarcasmo.

O “Deus de Trump” é uma divindade estrangeira, incapaz de se aclimatar nos trópicos brasileiros. O bolsonarismo ideológico é uma ideia fora do lugar, um curto parêntesis nas cerimônias fúnebres da Nova República.


Demétrio Magnoli: Nossa Moncloa de mentira

Partidos podem firmar pactos, pois representam seus eleitores; Poderes, não

O "pacto dos três Poderes" ensaiado por Toffoli, Rodrigo Maia e Bolsonaro foi descrito como uma reedição dos pactos assinados no governo Lula, em 2004 e 2009. A interpretação apega-se à forma para ignorar a substância. Os pactos lulistas circunscreviam-se à criação do Conselho Nacional de Justiça e à reforma do Judiciário. Já o "Pacto pelo Brasil", nome cunhado no forno da novilíngua orwelliana, pretende reinventar a sociedade (reformas previdenciária e tributária) e o Estado (pacto federativo, administração pública e segurança pública). Seria a nossa versão da Moncloa: uma Moncloa ao avesso.

O Pacto da Moncloa —um acordo político e outro econômico, assinados em outubro de 1977— traçou o rumo da transição espanhola do franquismo à democracia parlamentar. Na foto histórica, estão os líderes dos partidos de direita (Manuel Fraga, da AP), centro-direita (Adolfo Suárez e Calvo-Sotelo, da UCD), centro-esquerda (Felipe González e outros), esquerda (Santiago Carrillo, do PCE) e dos autonomistas bascos e catalães. A reinvenção da Espanha, obra quase milagrosa, foi um pacto entre partidos, não entre Poderes. Sugiro aos três "pactuadores do Brasil" que estudem o evento do Palácio da Moncloa, uma aula magna sobre a arte da construção de consensos democráticos.

Os espanhóis fizeram uma grande transação. A economia herdada do franquismo, um capitalismo de Estado erguido sobre oligopólios, desfazia-se sob os golpes da inflação e do déficit público. As reformas modernizantes nas esferas fiscal e previdenciária envolveram a contenção temporária de aumentos salariais. Os social-democratas e comunistas aceitaram a pílula amarga em troca de reformas políticas que consagraram as liberdades de imprensa, associação e manifestação, além da criminalização da tortura e da despenalização do adultério. Na encruzilhada da reforma previdenciária, o Brasil teria transações significativas a realizar, se escolhesse inspirar-se na experiência da Espanha.

Partidos têm o direito de firmar pactos, pois representam seus eleitores. Poderes não têm esse direito, pois suas prerrogativas estão limitadas ao que prescreve a legislação. Maia nada pode assinar sem a anuência impossível do conjunto dos deputados. O caso de Toffoli é mais grave: sua mera presença numa reunião destinada a costurar acordos políticos indica uma disposição subversiva de submeter o Judiciário às conveniências do Executivo. Os ministros do Supremo fariam bem se proibissem ao presidente do tribunal a travessia da Praça dos Três Poderes.

O "Pacto pelo Brasil" é uma encenação tão pomposa quanto vulgar. Para decifrá-la, substitua o nome da pátria pelos de seus promotores. Bolsonaro, que não comanda nem mesmo seu partido, almeja terceirizar a responsabilidade de formação de uma maioria parlamentar pela reforma da Previdência. Maia tenta, apenas, desviar-se da mira dos canhões montados nas redes sociais olavo-bolsonaristas. Toffoli sonha galgar a posição de Moderador da República, aceitando trocá-la pela independência do STF.

O pacto espanhol de 1977 nasceu da necessidade de enterrar uma ditadura de quatro décadas. O esboço de pacto brasileiro emana de manifestações governistas que clamaram pelo fechamento do Congresso e do STF. A Moncloa deles orientava-se pela bússola da democracia; a nossa reaviva o discurso autoritário da "harmonia entre Poderes" para anular os contrapesos institucionais ao Executivo.

Na Espanha que rompia com o franquismo, as lideranças colocaram o interesse nacional acima dos interesses partidários. A Moncloa de verdade inaugurou a nação moderna, próspera, integrada à União Europeia. No Brasil que se recusa a avançar, a invocação do interesse nacional funciona como camuflagem de mesquinhos interesses pessoais. A Moncloa de mentira é só uma nota de rodapé na crise do bolsonarismo.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Demétrio Magnoli: Medo

Bolsonaro fomentou protestos de rua porque teme governar na democracia

"Aqui tem olavetes, intervencionistas, católicos e templários", explicou uma certa Elizabeth Rezende, que está entre os organizadores das manifestações deste domingo (26) mas esqueceu-se de elencar os trilobitas, os entoproctos, os braquiópodes, os caminhoneiros e os reptilianos.

"Aqui", contudo, não tem Bolsonaro. O líder inconteste, "Mito" e "Messias", traiu a fauna paleozoica de seus devotos. O porta-mentira oficial, general Rêgo Barros, precisou ler uma nota que qualifica os eventos como "espontâneos". De fato, a mobilização foi incitada (com "c", viu Weintraub?) pelas redes do clã presidencial, mas o capitão recuou para a retaguarda, abandonando seus soldados na trincheira enlameada.

Medo. A incitação e a fuga têm motivo idêntico. Mais: o medo é a melhor chave explicativa do comportamento geral do presidente da República.
Na política, o medo está sempre presente. FHC temia, mais que tudo, o retorno do monstro inflacionário. Daí, a sobrevalorização do real, seu único grave erro de política macroeconômica. Antes de surfar a onda ascendente do ciclo global, Lula temia a ruptura da estabilidadeeconômica herdada.

Daí, o acerto decisivo na escalação da equipe econômica de seu primeiro mandato. Os medos de FHC e Lula referenciavam-se, principalmente, no interesse nacional. O medo de Bolsonaro, pelo contrário, referencia-se exclusivamente no interesse pessoal. Ele fomentou a mobilização de rua porque teme governar na democracia e desertou, assustado, porque teme o impeachment.

O medo é a sombra inseparável de Bolsonaro. Cabe ao psicanalista investigar a dimensão íntima de seu medo, que se manifesta na conjunção da homofobia com a obsessão pelo cano de uma arma. Já a ciência política deve iluminar seu temor de exercer o cargo de chefe de Estado.

Nos idos da minha infância, as crianças ainda brincavam na rua. Lembro de um garoto ruivo, provocador, geralmente ignorado pelos demais, que corria para o refúgio de sua casa quando algum de nós reagia a suas afrontas. Durante 28 anos, Bolsonaro habituou-se a praticar o esporte do insulto e da difamação, abrigando-se na barra da saia da imunidade parlamentar. A fortuita ascensão ao Planalto privou-o da redoma protetora. Fora do santuário, exposto às sanções da democracia, ele experimenta o peso insuportável de sua inadequação. Estamos, todos, condenados a participar da aventura do valentão de opereta cindido entre seus dois medos.

Originalmente, as manifestações foram convocadas sob as bandeiras do fechamento do STF e do Congresso. "Essa pauta está mais para Maduro", esclareceu Bolsonaro, finalmente. Mas, mesmo após a operação sanitizadora, a presença do presidente nas ruas o implicaria em atentado contra as instituições, um crime de responsabilidade bem mais sério que as pedaladas fiscais dilmistas.

Cedendo ao medo do impeachment, Bolsonaro ganha a chance de viver mais um dia no Planalto. O problema é que essa perspectiva o aterroriza: no poder, o gesto adolescente da arminha não substitui o imperativo de entregar resultados seguindo as regras da democracia.

A saída é ceder ao medo de governar, utilizando o pretexto clássico da facada nas costas. "Dolchstosslegende": o mito nasceu na Alemanha, na esteira da derrota na Primeira Guerra Mundial, como fonte da narrativa da extrema direita. A Alemanha, diziam, teria vencido a guerra se o Exército não tivesse sofrido a traição doméstica dos políticos de esquerda, da imprensa esquerdista e dos diabólicos judeus.

O discurso bolsonaro-olavista segue trilha paralela, invocando as facadas nas costas desferidas pelo Congresso, pelo STF e pela imprensa "comunista" (Folha, Globo) como justificativa antecipada do eventual fracasso do governo.

Dessa vez, Bolsonaro recuou diante do medo do impeachment. Na próxima, movido pelo medo de governar, avançará até o abismo?

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Demétrio Magnoli: STF curva-se perante Erdogan

Ato de Fachin converte o sistema judicial brasileiro em tentáculo da repressão do regime autoritário turco

Ali Sipahi era, até um mês atrás, um homem comum. De lá para cá, por um ato do STF, tornou-se o único preso político do Brasil. No 6 de abril, cumpriu-se sua prisão preventiva para fins de extradição, determinada pelo ministro Edson Fachin, sob a acusação de terrorismo. Kafka passeia entre nós: a prova do “crime” de Sipahi, brasileiro naturalizado de origem turca, foi depositar, em 2014, uma ínfima quantia no Banco Asya, então um banco legal na Turquia. Caímos baixo: o ato de Fachin converte o sistema judicial brasileiro em tentáculo da repressão do regime autoritário turco de Recep Erdogan.

Narro uma história que, a essa altura, Fachin teria o dever de conhecer. A cisão entre Erdogan e o clérigo Fethullah Gulen, seu antigo aliado, em 2013, provocou o declínio do experimento democrático na Turquia. A perseguição ao Hizmet, movimento dirigido por Gulen com centenas de milhares de aderentes, ganhou as dimensões de um expurgo colossal desde a tentativa de golpe militar de julho de 2016, atribuída sem provas a seu inimigo político. Sipahi está preso por pertencer à Câmara de Comércio Turco-Brasileira e ao Centro Cultural Turco-Brasileiro, instituições inspiradas pelo Hizmet. Ele é um prisioneiro de consciência feito pela nossa precária democracia, que presta vassalagem judicial a um tirano.

Fachin não está só no pátio da vergonha. Tem a companhia do vice-procurador-geral da República, Luciano Mariz Maia, que assina um parecer do MPF contrário à revogação da prisão preventiva. Conto o que os dois doutores fingem não saber.

Erdogan qualificou o frustrado golpe de 2016 como um “presente de Deus” que propiciaria a “limpeza social” da Turquia. O Hizmet, uma rede de sociedades filantrópicas, escolas, centros culturais e instituições financeiras (como o Banco Asya), prega a economia de mercado, o empreendedorismo e a conciliação do Islã com os valores democráticos. Diante da onda repressiva de Erdogan, cerca de 250 turcos ligados ao Hizmet encontraram no Brasil um pátria alternativa. Eles imaginaram emigrar para uma nação que respeita os tratados internacionais de direitos humanos e sua própria Constituição. O “novo” Fachin, um desmemoriado que se esqueceu de suas decisões recentes, não podia fazer parte do cálculo deles.

Faz só três anos que o STF revogou, por unanimidade, a prisão preventiva de um extraditando solicitado pelo regime chavista de Maduro. O relatório, escrito por Fachin, apontava as violações de direitos humanos, a perseguição de opositores e a submissão do Judiciário ao Executivo na Venezuela. O cenário turco assemelha-se, sob os três aspectos, ao venezuelano. Qual é a conveniência oculta, extra-judicial, que explica o contraste entre as duas decisões?

Sipahi não se chama Cesare Battisti. Jamais matou alguém. Nunca foi condenado por nenhum tribunal independente. Cidadão brasileiro, com filho brasileiro, residência fixa e 16 funcionários em São Paulo, ele não é uma “causa célebre”, da esquerda ou da direita. O descaso conjunto do STF e do MPF com os princípios dos direitos humanos o transformou em vítima de um regime que se nutre dos serviços de um cortejo de juízes vergados diante do poder de turno.

Stalin instaurou sua ditadura totalitária a pretexto de limpar a URSS dos “trotskistas”. Na sua cruzada autoritária, Erdogan substituiu “trotskistas” por “gulenistas”. Os expurgos turcos produziram a prisão de 50 mil opositores, inclusive cerca de 300 jornalistas e 600 advogados, a exoneração de 150 mil funcionários públicos e de 4,2 mil juízes e procuradores, a demissão em massa de professores universitários e o fechamento de 166 veículos de comunicação.

As garras persecutórias do regime turco estendem-se pelo mundo todo, por meio das embaixadas. Nas democracias, os magistrados protegem os exilados turcos da fúria do tirano. Na Rússia, juízes que não merecem esse título mandam prendê-los. Fachin, que permanece sentado sobre a sua decisão insensata, empurra o Brasil à vala de Putin. Até quando aguardarão os demais ministros do STF para dar um basta à marcha do arbítrio?


Demétrio Magnoli: Faroeste Brasil

Iniciativas presidenciais atacam regras que previnem a 'guerra de todos contra todos'

Bolsonaro organizou sua campanha presidencial em torno de um discurso ideológico, não de uma plataforma de governo. Hoje, quatro meses após a posse, temos finalmente uma clara plataforma de governo. O nome dela é faroeste Brasil.

Bolsonaro anunciou a intenção de conceder aos proprietários rurais o direito a portar armas e um passaporte de impunidade, cinicamente descrito como "excludente de ilicitude", para os que alvejarem invasores. A pretensão, que viola as leis existentes, implica a formação de milícias rurais privadas com selo oficial: o retorno a um passado no qual a proteção da propriedade privada se sobrepunha ao monopólio estatal da violência legítima.

Bolsonaro anunciou uma "limpa no Ibama e no ICMBio" e um drástico corte de recursos para a estrutura de fiscalização das unidades de conservação. Seu filho Flávio apresentou projeto de alteração do Código Florestal que eliminaria o capítulo referente à reserva legal de vegetação nativa nas propriedades rurais. A supressão permitiria o avanço das culturas em áreas de matas protegidas em estabelecimentos situados na Amazônia. De fato, seria a legalização dos negócios ilegais de desmatadores, madeireiros, palmiteiros, mineradores e invasores de terras indígenas. No Brasil profundo, passaria a valer a lei do colono armado.

Bolsonaro anunciou a retirada de todos os radares de tráfegoinstalados em rodovias federais. Há, de fato, uma lucrativa indústria de multas de trânsito que opera à base de armadilhas como radares ocultos, variações bruscas de limites de velocidade e confusa sinalização. Daí, o presidente não extraiu a necessidade de adequar o sistema de fiscalização ao propósito de educação dos motoristas. Optou, no lugar disso, por um programa de anarquia individualista nas estradas.

O ministro da Justiça de Bolsonaro, Sergio Moro, tem especial apreço por prisões preventivas. O juiz Marcelo Bretas, que segue a mesma linha, criticou a "visão tradicional" dos tribunais superiores que limitam a prisão preventiva às hipóteses previstas no Código de Processo Penal. Bretas expressou a visão de Moro ao afirmar que "hoje em dia é muito difícil o sujeito fugir" e, por isso, "o que querem é conseguir habeas corpus". No discurso legal bolsonarista, o habeas corpus é rebaixado do estatuto de pilar fundamental do direito moderno, salvaguarda da liberdade do cidadão diante do arbítrio estatal, à condição de estratagema de criminosos para escapar à justa punição.

Lula restaurou o Estado balofo, paternalista, corporativista e intervencionista, legado pelo varguismo. Bolsonaro gira o leme até a posição oposta, tentando instaurar o vale-tudo. O espírito da fronteira tomou o Palácio do Planalto. Cada uma das iniciativas presidenciais constitui um ataque às regras de convivência social que previnem o "estado de natureza" hobbesiano: a "guerra de todos contra todos".

Mas, que ninguém se engane: a plataforma de governo não é, rigorosamente, a do "Estado mínimo" desenhado nas utopias ultraliberais. Segundo Bolsonaro, o princípio do "Estado mínimo" aplica-se às esferas da administração das coisas e da garantia da liberdade dos indivíduos. Por outro lado, aplica-se o princípio do "Estado máximo" à esfera dos costumes e aos interesses das corporações de "amigos do rei".

O "Estado máximo" bolsonarista emerge em atos de puro arbítrio inscritos numa arena de "guerra cultural", como a interferência palaciana na publicidade do Banco do Brasil e os propalados cortes seletivos de verbas a cursos de humanas e universidades "esquerdistas". Assoma, igualmente, na concessão de benefícios preferenciais a grupos de pressão como igrejas, caminhoneiros e ruralistas.

Bolsonaro só não é um Putin, um Erdogan, um Maduro ou um Ortega porque está no país errado. Aqui, vale o que está escrito na Constituição. Por enquanto.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Demétrio Magnoli: Vingança eterna

Só a restauração da soberania estatal nos territórios controlados pelo crime pode oferecer um mínimo de segurança aos moradores das ‘comunidades’

‘É comigo mesmo, amigo, direto comigo. Garantia nenhuma. Você pode vir e não tem negócio de nome sujo. É só chegar aqui, partir para dentro do imóvel e pagar as parcelas. Eu que aprovo, eu que sou o dono.” O convite, de um autodeclarado corretor de Rio das Pedras, foi registrado pela reportagem do G1 em outubro de 2018. O prédio que desabou no Morro da Muzema é um dos muitos imóveis erguidos pelas milícias nas favelas do Rio — e, como tantos outros, em área de risco de escorregamentos. A culpa principal pela tragédia anunciada cabe ao Estado, que exercita uma vingança eterna contra os pobres da “outra cidade”.

No lançamento do programa Favela-Bairro (1995), idealizado por Luiz Paulo Conde na prefeitura de Cesar Maia, reconheceu-se pela primeira vez que a “cidade ilegal” pertence à cidade. Mas o gesto esgotou-se no simbolismo. Depois, com o programa das UPPs (2008), anunciou-se a retomada da estratégia de integração. Mas, no fim, novamente, o espírito da vingança triunfou.

Os nomes contam uma história. Favela indicava a “outra cidade”: o limite que separa o Estado de Direito da esfera da barbárie. Quando, por obra do eufemismo politicamente correto, favela converteu-se em “comunidade”, a sociedade do asfalto aplacou sua consciência. Mude-se o nome, para que tudo permaneça igual: a cartografia oficial não recepciona as ruas das “comunidades”, o correio não entrega cartas nas suas residências, e a polícia identifica a “cidade ilegal” como território inimigo. Ali, fora dos muros invisíveis da cidade legal, tudo é permitido.

A favela surge de um ato ilegal: a ocupação de terrenos para a construção de moradias. O ato ilegal nasce da necessidade e produz uma “outra cidade”. No Brasil, e no Rio em particular, ele gerou uma reação oficial que se reitera eternamente. A ilegalidade original contamina seus autores e, inclusive, seus descendentes, que se tornam, eles próprios, habitantes ilegais da cidade. Daí para frente, eles viverão à margem do “direito das gentes”. A favela jamais será bairro.

Na “cidade ilegal, tudo se passa como na cidade legal — com a diferença de que o poder público está ausente. As pessoas alugam, compram e vendem imóveis. Há anos, as milícias entraram no ramo da especulação imobiliária: a incorporação de terrenos, a construção de edificações e a comercialização de residências. A lei que vale é a da força. Na hora da incorporação, milicianos intimidam moradores até conseguir que vendam suas residências a preços vis, e expulsam os recalcitrantes. A construção é tocada por mão de obra sem qualificação técnica, à base do improviso. O crédito ao comprador é automático: ninguém dará calote no poder armado local.

Não culpe as chuvas. A verticalização das favelas promovida pelo crime organizado decorre da conivência estatal. Desabamentos, assim como incêndios, inscrevem-se no contrato informal que regula as relações entre o Estado e as milícias. O contrato diz, essencialmente, o seguinte: o poder público abstém-se de aplicar as leis gerais nas “comunidades”, reconhecendo-as como territórios de domínio exclusivo das milícias.

A “lei do abate”, enunciada por Wilson Witzel (“mira bem na cabecinha...”), não deve ser confundida com uma nova disposição de estender a “lei das gentes” às “comunidades”. De fato, pelo contrário, é mais uma oscilação no ciclo pendular entre a idealização romântica do morro e a criminalização indistinta de seus moradores. O governador promete alvejar a “cidade ilegal” com disparos de snipers, não resgatar os direitos elementares de seus habitantes.

Muzema ilumina as verdadeiras dimensões do tema da segurança pública. A prefeitura do Rio contabiliza 14.204 moradias encravadas em 218 áreas de alto risco de escorregamentos, em 117 favelas. Só a restauração da soberania estatal nos territórios controlados pelo crime organizado pode oferecer um mínimo de segurança aos moradores das “comunidades”. Quando, finalmente, será interrompida a vingança eterna e legalizada à “cidade ilegal”? A favela não tem que ser “comunidade”: tem que ser bairro.


Demétrio Magnoli: Rumo ao segundo Israel?

Netanyahu rompe com o consenso sionista que se estendia da esquerda à direita

A reeleição de um líder político deve, normalmente, ser examinada sob o registro da continuidade. A regra não se aplica ao triunfo de Binyamin Netanyahu nas eleições gerais israelenses. Na campanha, o primeiro-ministro prometeu anexar as colônias israelenses na Cisjordânia e declarou que "Israel não é um Estado de todos os seus cidadãos".

À luz do "Deus de Trump" (apud Ernesto Araújo), Netanyahu avançou os sinais vermelhos sempre respeitados pela corrente principal do sionismo. Nesse passo, ameaça levantar a âncora que prende Israel à rocha da democracia.

A maior vitória militar de Israel trouxe com ela um desafio de natureza existencial. Depois da Guerra dos Seis Dias (1967), o Estado judeu converteu-se em potência ocupante dos territórios palestinos (Jerusalém Oriental, Cisjordânia, faixa de Gaza).

O rápido crescimento demográfico palestino descortinou a perspectiva de configuração de uma maioria populacional árabe no conjunto geopolítico Israel/Palestina. O exercício da soberania sobre uma maioria destituída de direitos políticos terminaria por corroer os fundamentos democráticos de Israel. O Estado judeu teria que escolher entre a democracia e a ocupação.

Os Acordos de Oslo (1993) surgiram como solução para o dilema. A paz pela partilha da Terra Santa em dois Estados não só atenderia à demanda nacional palestina como protegeria o caráter judeu e democrático de Israel. O fracasso dos acordos de paz recolocou o dilema. Netanyahu oferece, agora, sua própria solução: a ocupação permanente, a renúncia à democracia, a refundação de Israel como Estado baseado na discriminação étnica oficial.

A falência dos Acordos de Oslo foi obra conjunta dos fundamentalistas palestinos do Hamas e da direita israelense polarizada pelo Likud. Mas Ariel Sharon, o "falcão" do Likud, conservou a porta aberta para a solução dos dois Estados ao promover a retirada israelense da faixa de Gaza (2005).

Sharon reconhecia, por meio do desengajamento, que só um Estado, uma nacionalidade e uma cidadania para os palestinos assegurariam a sobrevivência do Israel democrático fundado em 1948.

Netanyahu rompe, hoje, com o consenso sionista que se estendia da esquerda à direita. Depois de anos de sabotagem tácita da retomada de negociações de paz, a prometida anexação de extensas áreas da Cisjordânia equivale a uma sentença de morte para a solução dos dois Estados.

Sob o amparo de Trump, que acaba de reconhecer a soberania israelense sobre o território sírio das colinas de Golã, o chefe de governo de Israel ameaça inviabilizar um futuro Estado palestino.

Israel não é um, mas dois. Historicamente, é o Estado-nação do povo judeu. Legalmente, é um Estado de todos os seus cidadãos. A alma histórica expressa-se na Lei do Retorno: a concessão de cidadania a qualquer judeu que imigrar para Israel. A alma legal exprime-se na Corte Suprema, que não distingue os direitos de cidadãos judeus dos direitos de cidadãos não judeus. As duas almas convivem em perene tensão, formando as faces paradoxais do Estado judeu. Netanyahu almeja eliminar a tensão pela supressão do princípio da igualdade perante a lei.

O conceito de que "Israel não é um Estado de todos os seus cidadãos" abre a fresta por onde podem passar iniciativas já em curso legislativo como a remoção da cidadania de não judeus "desleais" ao Estado.

No limite, a ruptura do princípio da igualdade legal propiciaria a retirada em massa da cidadania dos árabes israelenses, uma violação flagrante dos direitos humanos. A ideia escandalosa circula entre correntes supremacistas judaicas, como o Otzma Yehudit (Poder Judaico), que transitam dos subterrâneos para as cercanias do governo israelense.

Netanyahu é um refundador pós-sionista. O Israel que ele pretende reinventar renega os valores básicos do Estado proclamado por Ben Gurion em 1948.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Demétrio Magnoli: Deus, o hino e a bandeira

‘Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. O mantra de Bolsonaro é mais do que parece. A invocação da fé religiosa pontilha os discursos oficiais, do presidente à ministra dos Direitos Humanos, passando pelo ministro das Relações Exteriores. Paralelamente, por atos ou palavras, o governo insiste nos ícones da nacionalidade. Como esquecer a frustrada iniciativa do ministro da Educação de solicitar às escolas vídeos de professores e alunos entoando o Hino Nacional, durante o hasteamento do auriverde pendão da esperança? Ou a conclamação do porta-voz presidencial, general Otávio Rêgo Barros, para “toda a sociedade prostrar-se diante da bandeira ao menos uma vez por semana”?

As pessoas cultas inclinam-se a descartar isso tudo, transferindo a ladainha carola e nacionalisteira para o arquivo morto dos anacronismos. De modo geral, não se atenta ao sentido mais profundo dessas exaustivas referências: o populismo de direita encontrou uma refutação eficaz do multiculturalismo.

Há algumas décadas, as elites políticas liberais e de esquerda substituíram o discurso universalista (cidadãos) pelo discurso multiculturalista (minorias). A diferença converteu-se em valor supremo, enquanto o ácido da ironia dissolvia a aspiração à igualdade (de direitos, de oportunidades). A nação deu lugar a uma miríade de grupos singulares (negros, mulheres, gays). A ideia de direitos universais (educação, saúde, previdência, transportes) deu lugar à chamada discriminação positiva (leis e regras específicas, cotas de gênero ou de “raça”). Deus e a pátria fazem seu caminho no espaço aberto por essa abdicação histórica.

A direita populista manipula poderosos signos de igualdade. O “Brasil acima de tudo” cumpre dupla função. Na sua faceta oculta, tenta identificar a pátria ao governo, um expediente autoritário clássico. Mas, na sua faceta pública, veicula uma mensagem inclusiva: todos —ricos e pobres, homens e mulheres, “brancos” e “negros” — pertencem igualmente à comunidade nacional. O nacionalismo da direita populista carrega as sementes da xenofobia (diante do imigrante) e da intolerância política (diante das oposições). Ao mesmo tempo, oferece um abrangente manto comum — e, com ele, a promessa de resgate dos fracos e humilhados.

As religiões monoteístas deitaram raízes pois ofereciam uma base pétrea de legitimidade aos governantes (um Deus no céu, um imperador na Terra) mas, simultaneamente, a esperança de justiça aos desamparados (todos são filhos do mesmo Deus). O “Deus acima de todos” de Bolsonaro também desempenha dois papéis. Na sua face escura, corrói a laicidade estatal e propicia o acesso das igrejas à mesa do poder. Na sua face luminosa, porém, apela ao sentido popular de igualdade: nenhuma ovelha do rebanho será deixada para trás.

No plano filosófico, a doutrina do multiculturalismo enfraqueceu os pilares dos direitos humanos. A condição humana foi rebaixada ao estatuto de mito liberal, abstração destinada a esconder as singularidades étnicas, raciais ou culturais. A direita populista nutre-se dessa renúncia à humanidade universal para negar os direitos dos “indesejáveis”, sejam eles imigrantes, refugiados, gays ou marginais.

No plano político, o multiculturalismo abandonou a ideia de unidade, que se conecta estreitamente à de igualdade. O conceito de unidade nacional, fundado no contrato de cidadania, foi reinterpretado como ferramenta de exclusão das minorias. O populismo de direita ocupou a trincheira deserta para embrulhar a unidade no celofane da autoridade. Na sua equação, o governo identifica-se com a nação, e a divergência política transforma-se em traição.

Bolsonaro não está só. Deus, a bandeira e o hino são chaves narrativas compartilhadas por Donald Trump, nos EUA, Vladimir Putin, na Rússia, Recep Erdogan, na Turquia, Viktor Orbán, na Hungria, e Matteo Salvini, na Itália. O comboio populista avança pelas clareiras desmatadas no longo intervalo de abjuração multiculturalista. A direita autoritária sequestrou os estandartes da igualdade e da unidade. Foi fácil: ninguém mais cuidava deles.