Demétrio Magnoli
Demétrio Magnoli: O enigma de Adriano
A estratégia de Bolsonaro, cínica e inteligente, persegue o objetivo de lavar sua própria reputação
Por que Jair Bolsonaro acusou a PM da Bahia de assassinar deliberadamente o miliciano Adriano da Nóbrega? Por que 20 governadores assinaram o manifesto em defesa das PMs — e da PM da Bahia? Por que, afinal, a polícia baiana eliminou o foragido cercado? A análise política oferece respostas às duas primeiras perguntas. A terceira, porém, forma um enigma de elevado interesse público que exige investigação judicial.
A estratégia de Bolsonaro, cínica e inteligente, persegue o objetivo de lavar sua própria reputação. Os laços entre o clã presidencial e o miliciano conduzem à conclusão lógica de que o evento policial em Esplanada (BA) deve ser classificado como uma queima de arquivo cujos beneficiários são os Bolsonaro. A acusação à PM da Bahia, “do PT”, turva as águas, desviando a agulha magnética para um ator inesperado.
Na nota do Planalto, incluiu-se o registro de que a culpa de Adriano não transitou em julgado. Assim, em flagrante contradição com seu supremo desprezo pela presunção de inocência, o presidente sugere que Adriano foi um herói da lei e da ordem perseguido pelo “Estado profundo”. Nesse passo, aproveitando-se da conhecida circunstância de que mortos nunca mais falam, o presidente desenha uma auréola de santidade em torno da condecoração ofertada por seu filho 01 ao policial-miliciano.
O manifesto dos governadores é menos um ato de solidariedade com o governador da Bahia, Rui Costa, e mais um gesto preventivo de proteção de suas próprias PMs. O bloco carnavalesco da União dos Governadores invoca o princípio federativo para bloquear o funcionamento do sistema de justiça. A meta é converter suas polícias em batalhões de intocáveis.
Wilson “mira na cabecinha” Witzel, o inspirador do manifesto, enxerga a PM fluminense como esquadrão da morte. João “Paraisópolis” Doria celebra um inquérito policial que, num exercício fanático de corporativismo, isenta a PM paulista de responsabilidade pelo massacre de nove adolescentes num baile funk. Se não se puder mais exterminar um miliciano procurado, e armado, como matar impunemente os suspeitos de sempre, pretos e pobres, nas favelas ou periferias?
Resta o fato incontornável que deflagrou a controvérsia. Como explicar que, numa operação planejada, 40 agentes policiais da Bahia não prenderam, mas eliminaram a tiros, um foragido solitário? Há, no caso, duas hipótese excludentes. A mais benevolente pode ser sintetizada na palavra incompetência — grifada e grafada em maiúsculas. A outra mora na boca do povo: queima de arquivo. Diante das alternativas inconvenientes, Rui Costa cobre-se no manto providencial do manifesto da União dos Governadores, vestindo a fantasia desbotada da normalidade.
Bolsonaro triunfou. A esquerda, sempre loquaz, recolhe-se ao silêncio, como se dissesse que a indignação deve tirar férias quando se trata do cadáver de um miliciano. De fato, diante da hipótese mais provável — que “faz corar, me salta aos olhos, me aperta o peito a me atraiçoar” — a esquerda prefere subscrever a carta da impunidade ditada por Witzel. Afinal, qual é a ligação da polícia baiana, “do PT”, com a queima de arquivo?
A sugestão de que a PM da Bahia é comandada pelo PT só faz sentido para militantes bolsonaristas incuráveis. Ninguém, exceto os que acreditam em bruxas, compartilha a narrativa delirante de uma ordem de Rui Costa para o cancelamento do miliciano cercado. A pergunta legítima é mais grave: será que a polícia do B da Bahia executou, às costas de seus superiores, o serviço sujo encomendado pela polícia do B do Rio? E, por implicação, duas outras: já existiria uma clandestina polícia do B interestadual, talvez nacional? Qual é a extensão da influência das milícias sobre as polícias?
A Colômbia é aqui? A indagação, que emana diretamente da acusação presidencial contra a PM da Bahia, deveria ser dirigida ao ministro da Justiça, o santo guerreiro do combate ao crime organizado. O problema é que Sergio “Excludente de Ilicitude” Moro nunca se interessou por Adriano da Nóbrega, seu Escritório do Crime e suas condecorações parlamentares.
Demétrio Magnoli: Limite legal da palavra vale para cidadãos comuns, mas não para políticos com cargo
Os leninistas da direita invejam e imitam os leninistas originais, da esquerda
A Associação Brasileira de Imprensa clamou por uma ação da Procuradoria-Geral da República (PGR) diante dos insultos proferidos por Jair Bolsonaro contra a jornalista Patrícia Campos Mello. Simultaneamente, vozes diversas pediram ao Facebook a remoção das ofensas contra a mesma jornalista oriundas do deputado Eduardo Bolsonaro e de uma testemunha que lhe ofereceu a sujeira em depoimento ao Congresso. A primeira solicitação faz sentido. A segunda é um equívoco e, secundariamente, uma prova de infinita ingenuidade.
O modelo de negócio do Facebook baseia-se na promoção de correntes de ódio e na difusão de fake news. Delira quem nutre a esperança de que a empresa se policie. O único remédio é seu enquadramento como veículo de imprensa, o que implicaria a possibilidade de responsabilizá-la judicialmente, na forma da lei. Mas, nesse caso específico, os ataques deram-se numa CPMI parlamentar, o que os torna notícia de interesse público. Assim, solicitar sua remoção da rede social equivale a pedir censura –e, pior, atribuir ao Facebook o poder de Grande Censor.
Já o “episódio triste” (Rodrigo Maia) das ofensas presidenciais situa-se em esfera distinta. O silêncio do procurador-geral indica que, como Davi Alcolumbre, ele pretende encará-lo como “página virada”, uma evidência do quanto já avançou o Executivo no propósito de quebrar a independência do Ministério Público. As frases boçais do presidente configuram dois crimes catalogados: injúria e difamação. A PGR foge ao seu dever constitucional ao fingir que nada ouviu.
Num país sem censura prévia, a palavra encontra limite na punição prevista em lei. Mas, desde sempre, nosso sistema de Justiça tende a ignorar a lei quando se trata da palavra criminosa de políticos com cargo. Nos tempos áureos das milícias intimidatórias lulistas, um deputado do PT da Bahia rotulou-me nas redes como “racista” para incitar militantes a melarem um debate do qual eu participava na Festa Literária de Cachoeira. Advogados convenceram-me da inutilidade de processar o patife escondido no buraco da imunidade parlamentar.
Políticos ofendem cidadãos comuns à sombra da prevaricação ritualizada de procuradores e juízes. Dias atrás, Rosa Weber extinguiu a interpelação do jornalista Glenn Greenwald a Bolsonaro, que o difamara e ameaçara de prisão. A ministra do STF acatou servilmente a alegação presidencial de que exercitava o “direito constitucional de livre manifestação do pensamento” num mero “discurso político”. São exatamente os pretextos que usaria para o caso de Patrícia Campos Mello, na hipótese improvável de que o procurador-geral Augusto Aras ensaiasse um gesto de cumprimento da lei.
O limite legal da palavra, alternativa democrática à censura, vale para os cidadãos comuns mas, aparentemente, não para os “incomuns” –isto é, os que têm cargos políticos. O certo seria valer para todos, mas não linearmente. O princípio da igualdade perante a lei solicita o tratamento desigual dos desiguais. Autoridades públicas detêm prerrogativas especiais, como as de editar leis, ordenar investigações ou mandar prender. Daí que, quando praticado por autoridades, o crime de ofensa merece punição maior.
Não é o que pensam Aras e Weber. Na sua doce leniência, os dois refletem a herança multissecular brasileira de supremacia do Estado sobre a sociedade civil. O mandonismo do “coronel”, a truculência do agente estatal, o sequestro da lei para benefício da elite política, o desprezo pela cidadania –todos esses traços antiliberais de nossa formação histórica encontram-se sintetizados na dupla omissão.
De curioso, aqui, há o aplauso dos “liberais bolsonaristas” (expressão que condensa uma falácia lógica) à violação estatal dos direitos dos indivíduos. Os leninistas da direita invejam e imitam os leninistas originais, da esquerda.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Demétrio Magnoli: Repórter cometeu o pecado capital de expor fábrica da 'guerra da informação'
Nesse passo, Patrícia Campos Mello mostrou o caminho que a imprensa precisa seguir, se pretende sobreviver
O governo Bolsonaro odeia o jornalismo profissional. No caso da jornalista Patrícia Campos Mello, porém, o caso é visceral. Na campanha de 2018, Bolsonaro declarou uma “guerra” à imprensa, dando a senha para uma enxurrada de calúnias e ameaças à repórter que investigava a máquina eleitoral de difusão de fake news.
Agora, na CPMI das Fake News, Eduardo Bolsonaro apoiou-se nos ombros de um pulha para, num exercício de covardia, atingir sua integridade pessoal. Não é casual: Patrícia cometeu o pecado capital de invadir uma redoma proibida, expondo os contornos da fábrica da “guerra da informação”. Nesse passo, mostrou o caminho que a imprensa precisa seguir, se pretende sobreviver.
Fake news são o complexo de notícias falsas, operações de difamação e campanhas de promoção do ódio que ganhou dimensões inéditas com a universalização da internet. O fenômeno novo é a sofisticação do arsenal empregado na guerra virtual da informação.
No início, mais de uma década atrás, tudo se resumia a blogueiros de aluguel recrutados por partidos políticos para o trabalho sujo na rede. A imprensa, ainda soberana, decidiu ignorar o ruído periférico. Hoje, o panorama inverteu-se: a verdade factual sucumbe, soterrada pela difusão globalizada de fake news.
Os jornais converteram-se em anões na terra dos gigantes da internet. Nos EUA, entre 2007 e 2016, a renda publicitária obtida pelos jornais tombou de US$ 45,4 bilhões para US$ 18,3 bilhões. Em 2016, o Google abocanhava cerca de quatro vezes mais em publicidade que toda a imprensa impressa americana —e isso sem produzir uma única linha de conteúdo jornalístico original.
O novo sistema, baseado na elevada rentabilidade da fraude, descortinou o caminho para a abolição da verdade factual na esfera do debate público.
A fabricação de fake news tornou-se parte crucial das estratégias de Estados, governos, organizações terroristas e supremacistas. A China, que prioriza o público interno, e a Rússia, que se dirige principalmente à opinião pública europeia e americana, são atores centrais nesse palco.
Graças ao Facebook, as forças armadas de Mianmar deflagraram uma eficiente campanha de limpeza étnica contra a minoria rohingya e o governo nacionalista indiano consegue inflamar a xenofobia contra os muçulmanos de Assam.
Perde-se no passado o esforço amador do PT para criar um Pensador Coletivo por meio de núcleos de militantes treinados no que o responsável pelo setor classificou como “guerra de guerrilha da internet”.
Atualmente, no mundo todo, governos e partidos populistas, na direita e na esquerda, empregam aparatos especializados na difusão massiva de fake news. O governo Bolsonaro estabeleceu, com verba pública, dentro do Planalto, um “gabinete do ódio” destinado a coordenar sua “guerra da informação”. No fim, o que está em jogo é o funcionamento da democracia, como explica o jornalista Eugênio Bucci no livro “Existe Democracia sem Verdade Factual?”.
A imprensa também está em perigo, junto com a democracia. Se, no plano dos fatos, verdade e falsidade tornam-se narrativas indistinguíveis, o jornalismo profissional perde seu objeto. Daí, emerge uma nova missão jornalística: pautar as fake news, como se pautam políticas públicas, eleições, debates parlamentares, guerras reais, inundações.
A checagem ritual de notícias falsas, iniciativa útil, é totalmente insuficiente. No campo analítico, trata-se de iluminar os sentidos políticos das campanhas de fake news, evidenciando suas estruturas de linguagem, seus alvos imediatos e suas metas estratégicas. No campo investigativo, é preciso descerrar o véu que cobre as engrenagens de fabricação das fake news, expondo os atores políticos e empresariais envolvidos na guerra contra a verdade. Patrícia engajou-se nisso —e, por isso, virou alvo.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Demétrio Magnoli: O partido rasgado
O plano A é disputar com Sanders, que se descreve como um ‘socialista democrático’ e parece inelegível no panorama político americano
Na noite de 4 de fevereiro, Nancy Pelosi, a democrata que preside a Câmara dos EUA, rasgou as páginas do discurso provocativo de Donald Trump sobre o Estado da União. Simultaneamente, emergiam os resultados da apuração atrasada das primárias democratas de Iowa, evidenciando tanto o duplo triunfo de Pete Buttigieg e Bernie Sanders quanto a humilhante derrota de Joe Biden. O gesto extremo de Pelosi revelou a vontade do Partido Democrata de encerrar a “era Trump”. Iowa, por outro lado, revelou que o Partido Democrata está rasgado, para sorte de Trump.
Os assessores de Trump não fazem segredo da tática que empregam nas primárias do partido rival: concentram o fogo em Biden, o principal candidato moderado, e disseminam o rumor de que a direção democrata trapaceia contra Sanders, o nome mais forte da esquerda. A tese da trapaça cala fundo na ala esquerda democrata, pois é elemento crucial do discurso do próprio Sanders desde a contenda interna de quatro anos atrás com Hillary Clinton.
Sanders compartilha com Trump inclinações políticas isolacionistas e ideias econômicas protecionistas. Mas a preferência do presidente não se deve à comunhão ideológica pontual. O Plano A é disputar a Casa Branca com Sanders, que se descreve como um “socialista democrático” e parece inelegível no panorama político americano. O Plano B é ajudar o esquerdista a caminhar até a convenção democrata, provocando uma cisão tão amarga quanto a de 2016, quando o núcleo de eleitores de Sanders preferiu a abstenção ao voto em Hillary.
A crise dos trabalhistas britânicos, que sofreram sua pior derrota eleitoral desde 1935, ilumina a encruzilhada dos democratas americanos. Há cinco anos, o Partido Trabalhista foi tomado de assalto pelo Momentum, uma organização esquerdista inspirada no exemplo dos partidos Syriza (Grécia) e Podemos (Espanha). O desastre eleitoral é o resultado previsível do giro à esquerda dos trabalhistas.
O ativismo militante do Momentum propiciou a eleição de Jeremy Corbyn como líder trabalhista e o isolamento das lideranças partidárias tradicionais. Sob o seu influxo, o Partido Trabalhista lançou um manifesto eleitoral estatizante e ausentou-se do debate nacional sobre o Brexit. Os conservadores de Boris Johnson, alinhados sobre a política de ruptura completa com a União Europeia, bateram impiedosamente o adversário inviável, subtraindo aos trabalhistas suas antigas fortalezas eleitorais do centro e do norte da Inglaterra.
Sanders não é, exatamente, um Corbyn. O “socialista” americano nunca flertou com o antissemitismo, retirou seus antigos elogios à Cuba castrista e, mesmo hesitante, classificou o regime venezuelano de Maduro como “muito abusivo”. Mas, como Corbyn, ele lidera uma facção esquerdista própria, engajada em combate permanente com o establishment do Partido Democrata.
O paralelo esclarece um fenômeno relevante: a emergência de movimentos esquerdistas capazes de cindir partidos tradicionais de centro-esquerda. O Momentum constituiu-se como expressão da juventude urbana radicalizada, dos campus universitários e de uma expressiva parcela do funcionalismo público. A corrente de Sanders tem raízes sociais semelhantes. Não por acaso, o Sanders da última década abraçou as causas do multiculturalismo e das minorias, enterrando no passado sua aliança prioritária com os sindicatos e seus votos parlamentares anti-imigração.
Corbyn e Sanders são os “Grandes Eleitores” da direita nacionalista. Sem o primeiro, a história do Brexit talvez tivesse outra conclusão. Sem o segundo, a jornada de Trump rumo à reeleição enfrentaria obstáculos incomparavelmente maiores.
Contudo, o britânico e o americano refletem a separação cada vez mais pronunciada entre os eleitores de esquerda das cidades cosmopolitas e a “nação profunda” que teme os deslocamentos sociais engendrados pela globalização. A responsabilidade pelos triunfos da direita nacionalista não é deles, mas dos partidos tradicionais incapazes de se reinventar. Pelosi rasgou o discurso odiento, mas não sabe escrever um texto alternativo.
Demétrio Magnoli: Pandemia do arbítrio representa ameaça maior que o agente biológico do coronavírus
Banimento de chineses não deriva do saber científico, funciona como 'normalização' da xenofobia
A China isolou uma dúzia de metrópoles, 30 ou 40 milhões de habitantes, da província de Hubei. As “medidas extraordinárias diante de um desafio extraordinário”, na descrição elogiosa da Organização Mundial da Saúde (OMS), seriam política e legalmente impossíveis em nações democráticas.
Os EUA proibiram a entrada de estrangeiros que passaram recentemente pela China —e receberam (justas) críticas do regime chinês e da OMS.
Um vírus novo, misterioso, ameaçador entrou na circulação sanguínea de uma tirania totalitária e de um governo xenófobo. A pandemia do arbítrio representa ameaça maior que o agente biológico da doença.
Conceitualmente, o gesto americano não se distingue da “medida extraordinária” chinesa. Se Xi Jinping colocou em quarentena uma província inteira, por que Donald Trump não teria razão ao impor quarentena a um país inteiro? A OMS, que cumpre funções úteis, é um órgão político. Sua glorificação do confinamento compulsório em massa reflete o objetivo de, finalmente, ser admitida como parceira do regime chinês.
Até o momento, o coronavírus provocou menos de mil óbitos, quase todos na China. Segundo estimativas do Centro de Controle de Doenças dos EUA, 8.400 americanos morreram de influenza sazonal só na metade inicial deste inverno. A taxa de letalidade da epidemia de Sars (2002-2003) foi de 9,6%.
Na atual epidemia, estimativas iniciais apontam 2%, uma taxa que cairá bastante pois o número de infecções é fortemente subestimado. No fim, talvez revele-se menor que a das gripes comuns. A política, não a epidemiologia, guia as reações da China e dos EUA.
Do fracasso no combate à Sars, o regime chinês extraiu a decisão de que a humilhação jamais se repetiria. “O coronavírus é um teste do sistema chinês e de sua capacidade de governo”, proclamou Xi Jinping.
Por isso, depois de perseguir o médico que identificou as primeiras manifestações do vírus, o aparato de controle social moveu-se na direção contrária, para proteger a sacrossanta imagem da China. O isolamento de Hubei não evita a difusão do vírus, mas mostra que o Grande Irmão pode tudo.
O hospital erguido em dez dias figurou na mídia mundial como campanha de propaganda do regime totalitário. Enquanto as escavadeiras operavam, centenas de milhares de chineses gripados interpretavam o sentido da mensagem oculta e enfileiravam-se diante de hospitais, intercambiando vírus diversos.
O sistema de saúde de Hubei inclina-se quase exclusivamente para o combate ao coronavírus. Nessas semanas, quantos chineses morrem, por falta de atendimento adequado, de outras moléstias?
“Leprosos” —é assim que a China classifica tacitamente todos os residentes de Hubei. Assim, também, os EUA classificam implicitamente todos os chineses —mas não apenas eles. Sob justificativas genéricas de segurança nacional, Trump baniu, em 2017, a entrada de cidadãos de sete países e, agora, adiciona seis países à lista negra.
O coronavírus não é um ebola. O banimento de chineses não deriva do saber científico: funciona como “normalização” da xenofobia.
A quarentena interna de Hubei e a quarentena externa da China cobrarão um preço econômico incalculável, deprimindo a expansão do PIB chinês e, por consequência, do PIB global. Vida é, antes de tudo, emprego e renda. Qual é o impacto das “medidas extraordinárias” na mortalidade difusa, ao longo do tempo?
O coronavírus não pode ser tratado como algo insignificante pois talvez seja transmitido por indivíduos assintomáticos. A saúde pública exige políticas específicas de contenção: quarentenas focalizadas, restrições de aglomerações, suspensões localizadas de atividades produtivas.
China e EUA preferiram, porém, o caminho do arbítrio estatal ilimitado. O pânico, a histeria servem a Xi Jinping e Trump. Você conhece algum “inimigo do povo” mais perfeito que um vírus?
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Demétrio Magnoli: Democracia americana sairá menor do processo de impeachment de Trump
Líder republicano confessou perjúrio antes da primeira sessão
Os senadores americanos juraram, de acordo com a Constituição, fazer "justiça imparcial" no julgamento de Donald Trump. Mas Mitch McConnell, líder republicano no Senado, proclamou que conduziria sua bancada em "total coordenação" com o próprio Trump. Antes da primeira sessão, McConnell confessou perjúrio: "Não sou um juiz imparcial. Este é um processo político. Impeachment é uma decisão política". A democracia americana sairá menor do processo.
O instituto do impeachment deita raízes na Inglaterra do século 14. Michael de La Poe, ministro de Ricardo 2º, sofreu impeachment, em 1386, por nomear funcionários incompetentes. O bispo John Thornborough foi impedido, em 1604, por escrever um livro controverso sobre a união com a Escócia. Não faltaram casos de impeachment por ofensas como a demissão de bons magistrados ou oferecer conselhos ruinosos ao rei.
Nos EUA, a tradição britânica foi recolhida, mas conheceu restrições. O impeachment só atingiria autoridades acusadas de "crimes e delitos sérios". Contudo nunca foi circunscrito a atos criminosos, na acepção judicial do termo. O critério americano destina-se a evitar que uma alta autoridade tire proveito do cargo para, violando leis, expandir seu poder pessoal ou perpetuar o poder de seu grupo político.
O impeachment é uma ferramenta de última instância de defesa da democracia. Nos regimes presidencialistas, serve como vacina parlamentarista aos excessos do chefe de Estado. McConnell tem razão quando o qualifica como "uma decisão política": o Congresso tem a prerrogativa de avaliar quais atos ajustam-se à definição constitucional. Por aqui, sob esse aspecto, as coisas funcionam do mesmo modo: o impeachment de Dilma, assim como o de Collor, seguiu a Constituição, diga o que disser o PT.
Ao importarem o instituto do impeachment, os arquitetos da Constituição americana tinham em mente, precisamente, casos como o de Trump. O presidente é acusado de chantagear o governo ucraniano, usando a ajuda militar ao aliado como moeda de troca para obter uma declaração desabonadora sobre os negócios de Hunter Biden, filho de seu mais provável desafiante eleitoral. No Brasil, Dilma foi acusada de infringir a lei fiscal, um expediente que lhe propiciou mascarar desequilíbrios orçamentários e autorizar gastos capazes de melhorar suas perspectivas eleitorais.
O impeachment circula na esfera política, mas não é um jogo partidário. O juramento constitucional exige que, durante o julgamento, os representantes do povo suspendam suas lealdades partidárias. O perjuro McConnell, porém, orientou a maioria republicana a impedir a arguição de testemunhas —e quase toda a bancada o seguiu, bloqueando a convocação de John Bolton. O ex-conselheiro de Segurança Nacional testemunharia, como indicam vazamentos de um livro seu ainda no prelo, que Trump coordenou pessoalmente os atos de extorsão. A "justiça imparcial" foi substituída por um cínico processo de acobertamento.
A natureza política do impeachment tem uma dimensão que vai além dos textos legais: presidentes só sofrem impedimento quando perdem as condições para governar. O Congresso rotulou as "pedaladas fiscais" de Dilma como crime de responsabilidade porque as ruas e as pesquisas atestaram que seu governo convertera-se numa pilha de ruínas. Trump, pelo contrário, conserva o apoio de dois quintos dos americanos. As sondagens indicam que uma significativa maioria condena a chantagem contra a Ucrânia “mas, diante da proximidade das eleições, quase metade dos eleitores rejeita seu afastamento do cargo.
Trump fica, pois o impeachment é "um processo político". Deixa como herança a desmoralização do instituto do impeachment, rebaixado pelos republicanos à condição de disputa partidária. Os americanos decidirão, nas urnas, se aceitam a amputação de sua democracia.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Demétrio Magnoli: Regina e o Padre Bernardo
Logo, ela será tachada de ‘imoral’, ‘esquerdista’
O historiador comunista Perry Anderson tinha 29 anos quando, em 1968, clamou por uma espécie de “revolução cultural” na sua Grã-Bretanha: “Sem teoria revolucionária, escreveu Lenin, não pode existir movimento revolucionário. Gramsci adicionou: sem uma cultura revolucionária, não haverá teoria revolucionária.” Há coisas que a atriz Regina Duarte deve aprender antes de concluir sua “temporada de testes” na Secretaria da Cultura.
Só chamamos de presepada o monólogo plagiário de Joseph Alvim porque seu edital do Prêmio Nacional das Artes cingia-se ao valor insignificante de R$ 20 milhões. Goebbels, o original, operava à frente da Câmara de Cultura do Reich, que controlava orçamentos bilionários e tinha o poder de decidir quais produtores culturais seriam autorizados a trabalhar. Na ideia de submeter a cultura ao Estado (isto é, ao Partido) encontra-se um dos muitos traços comuns entre os totalitarismos de direita e de esquerda.
A URSS stalinista pretendia erigir uma “cultura proletária”, na forma do realismo socialista, sobre as ruínas da “cultura burguesa”. A Alemanha nazista almejava criar uma cultura autenticamente “ariana” sobre as cinzas da “arte degenerada”. O imitador tropical caído, “um secretário da Cultura de verdade”, queria “atender o interesse da população conservadora e cristã”, segundo Jair Bolsonaro. Regina pisa sobre as brasas ardentes do desejo governamental de concentrar um poder ilimitado: o de definir o pensamento, as emoções, as sensibilidades e os comportamentos dos brasileiros.
A cruz dos templários, um dos signos do espaço cênico montado por Joseph Alvim, fala tanto ou mais que as linhas do plágio direto. Ironicamente, os templários, uma ordem militar cruzadista, foram dizimados pela Inquisição, esse primeiro grande projeto de dominação cultural.
A Igreja queimava bruxas para, por meio do exemplo, disciplinar as mentes. Jules Michelet explica: “A Missa Negra, em seu primeiro aspecto, pareceria ser essa redenção de Eva, maldita pelo cristianismo. A mulher desempenha todos os papéis no sabá. É o sacerdote, é o altar, é a hóstia de que todos comungam. No fundo, não será ela o próprio Deus?”. A fogueira cumpria as funções de um edital de Joseph Alvim: a supressão definitiva dessa Eva sem rumo, desse Deus sem Igreja. Regina sabe disso, suponho, pois nem sempre foi a doce “namoradinha do Brasil”.
Há 40 anos, Regina representou a lendária cristã-nova paraibana Branca Dias, neta de um judeu converso, presa e executada pelo Santo Ofício, na peça “O Santo Inquérito”, de Dias Gomes. Ela lembra, com certeza, que a acusação era dupla: “judaísmo” e “práticas imorais”. Provavelmente ainda recorda a frase inicial de Padre Bernardo: “Os que invocam os direitos do homem acabam por negar os direitos da fé e os direitos de Deus, esquecendo-se de que aqueles que trazem em si a verdade têm o dever sagrado de estendê-la a todos, eliminando os que querem subvertê-la”. Só não podia ter sido escrita por Bolsonaro pois não contém erros de português.
Digam o que disserem seus detratores, não acredito que a Regina de hoje, “noivinha” de Bolsonaro, resolveu mudar de papel, representando o acusador de Branca Dias. Creio, até prova em contrário, que ela quer mesmo “pacificar a relação da classe com o governo”. É uma ambição menor, corporativista — mas, ainda assim, provavelmente utópica.
Na nossa tradição recente, a pasta da Cultura serve aos interesses dos produtores culturais (a “classe artística”, ou seja, basicamente, os lobbies de músicos e cineastas), não aos interesses públicos. O convite a Regina indica um retorno à tradição, o que implicaria a renúncia ao programa cultural totalitário acalentado pelo núcleo ideológico do governo. A sinalização provocou suspiros de alívio num país de esperanças miniaturizadas. Contudo, que ninguém — sobretudo Regina — se deixe iludir: o recuo é tático, incerto, provisório.
Cachorros loucos babam, porque têm raiva. Logo, Regina será tachada de “imoral”, “esquerdista” — em síntese, bruxa. Na esquina, ansioso pelo lugar dela, espreita o vulto do Padre Bernardo.
Demétrio Magnoli: Decisão de Fux sobre juiz das garantias ilumina os contornos do Partido de Moro
Inimigo dissimulado talvez revele-se mais perigoso para a democracia que o inimigo declarado
A alfabetização básica proporciona a leitura da mensagem direta, explícita e superficial, de um texto. Nesse registro, a liminar de Luiz Fux suspendendo a instituição do juiz das garantias foi lida como evidência do ativismo judicial, da incapacidade do STF de operar como corpo único e da sua inclinação a produzir incerteza jurídica. A alfabetização funcional propicia a interpretação do sentido profundo de um texto. Nesse registro, o ato de Fux deve ser decifrado como elemento da campanha presidencial de Sergio Moro.
A inclusão do juiz das garantias na Lei Anticrime nasceu da Vaza Jato. As provas do conluio entre Moro e os procuradores da força-tarefa evidenciaram o desprezo do juiz por seu juramento constitucional de submissão às tábuas da lei —e o perigo de subversão do sistema judicial. Os parlamentares agiram para assegurar a separação entre Estado-acusador e Estado-julgador, um pilar fundamental da democracia. “In Fux we trust”, escreveu Moro a seu comparsa Deltan Dallagnol numa das mensagens que vieram a público. A decisão monocrática do ministro do STF —um desafio a seu pares, ao Congresso e à separação de Poderes— atesta a confiança nele depositada. Mais que isso: ilumina os contornos do Partido de Moro.
Rússia, Turquia, Hungria e Venezuela contam-nos uma mesma história: a transição do governo populista ao regime autoritário passa, invariavelmente, pela politização do sistema judicial. A Justiça deve render-se à política, para calar as vozes dissonantes. Os diálogos expostos pela Vaza Jato mostraram que Moro e os procuradores não só operavam como parceiros mas também acalentavam um projeto de poder. Quando o juiz com causa metamorfoseou-se em ministro da Justiça, a articulação emergiu à luz do Sol. Moro, o homem que prometeu não se reinventar como político, traía sua palavra pela segunda vez.
Notícias periféricas desnudam as dimensões da articulação. As reclamações ao STF contra o juiz das garantias partiram do PSL, o antigo partido de Bolsonaro, de duas associações de juízes (Ajufe e AMB) e de uma entidade profissional do Ministério Público (Conamp). Numa nota oficial, Moro celebrou a liminar de Fux. Os elogios salpicaram algumas páginas de jornais assinadas por devotos do ex-juiz e as páginas eletrônicas de blogueiros fieis. O Partido de Moro compõe-se de uma sigla partidária e de porta-vozes midiáticos informais —mas, sobretudo, de organizações corporativas de juízes, promotores e procuradores.
Há tempos, a política infiltrou-se nos domínios do Ministério Público. Abertamente, no seu interior, organizaram-se “partidos” de esquerda (MPD, Ministério Público Democrático, fundado em 1991) e de direita (Ministério Público Pró-Sociedade, fundado em 2018). O primeiro, que sofreu uma cisão em 2016, circula na órbita ideológica do PT. O segundo, que apoiou a candidatura de Bolsonaro, gira no campo gravitacional do ministro da Justiça.
As implicações da politização do MP estão à vista de todos: o procurador Wellington Marques de Oliveira, que oferecera uma denúncia vazia contra Felipe Santa Cruz, presidente da OAB, agora reincide na prática da intimidação. O procurador sem limites mira o jornalista Glenn Greenwald, protagonista da Vaza Jato, tentando transformar em crime a exposição de verdades inconvenientes. Sem surpresa, o Ministério Público Pró-Sociedade saiu em defesa do gesto de abuso de autoridade. O Partido de Moro instrumentaliza o sistema judicial antes mesmo de chegar ao poder.
A democracia traça uma fronteira nítida entre as esferas da Justiça e da política. Moro saltou, legitimamente, de uma a outra para, ilegitimamente, demolir a muralha que as separa. Bolsonaro, o nostálgico da ditadura militar, o adulador de torturadores, é um inimigo declarado da democracia. O inimigo dissimulado talvez revele-se mais perigoso.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Demétrio Magnoli: Haddad e os intermediários
Natureza indireta da interferência do MEC na escolha de livros didáticos não a tornou menos contundente
Fernando Haddad assina coluna na Folha, mas terceiriza a assinatura de cartas que escreve ao Painel do Leitor. Na cartinha dirigida a mim (13/1), Nunzio Haddad Briguglio simula não entender o que escrevi (em 11/1), desafiando-me a exibir um caso de ingerência do MEC na seleção de livros didáticos para a compra pública federal. Ofereço-lhe duas respostas: 1) Sob os governos do PT, o MEC interferiu em todos os processos de seleção; 2) Até onde sei, o MEC nunca vetou explícita e diretamente um livro específico.
O truque da cartinha firmada por intermediário tem finalidade óbvia: dependendo das circunstâncias, Haddad pode assumir ou renegar a responsabilidade pelo texto. Na coluna, descrevi a estratégia pela qual, indiretamente, o MEC passou a “esculpir as narrativas pedagógicas”. Expliquei que os agentes da seleção são comissões universitárias de “especialistas” colonizadas por professores-ativistas. Como no caso prosaico da cartinha, a intermediação desempenha seu papel, isentando o governo da função de promover a censura ideológica direta. Nunzio Briguglio, um jornalista experiente, sabe ler —mas ganha para escrever o que lhe solicitam.
A natureza indireta da interferência do MEC não a tornou menos contundente. No alvorecer da “era lulopetista”, em março de 2004, um parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE) estabeleceu uma série de “princípios” a serem seguidos pelas escolas, entre os quais “o fortalecimento de identidades e de direitos”. Segundo o texto, tal princípio “deve orientar para o esclarecimento a respeito de equívocos quanto a uma identidade humana universal”. Aí, na linguagem hermética típica das burocracias, encontra-se a semente de um programa político-pedagógico.
O artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos proclama que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. O parecer é a negação direta da Declaração de 1948. A rejeição da “identidade humana universal” forma a plataforma de uma pedagogia de identidades singulares, “culturais” ou “raciais” —e cria o argumento político e legal para o veto aos livros inspirados pela universalidade dos direitos humanos. A partir do parecer, o MEC publicou livros, resoluções e provas do Enem que conduzem à repulsa da (mal) denominada “história ocidental” e dos valores que sustentam as democracias. As comissões de “especialistas” plantaram no terreno arado pelo MEC.
O tema dos direitos humanos tem relevância fundamental na educação. A “reinterpretação” identitária dos direitos humanos esvazia-os de conteúdo. Dela, nasce o pretexto para classificar as liberdades políticas e individuais como artifícios “burgueses” ou “liberais”. Daí, num único passo, chega-se ao elogio das ditaduras “certas”.
Sob os governos lulopetistas, o MEC rezava no altar dessa estranha “reinterpretação” dos direitos humanos. Sob o governo Bolsonaro, o MEC denuncia a reinterpretação ideológica petista para fazer tábula rasa dos direitos humanos, preparando sua substituição por discursos reacionários e anticientíficos de matriz religiosa. Os dois, porém, compartilham a ideia de que a sala de aula é terreno legítimo para a pregação política.
A simetria é imperfeita. O MEC de Tarso Genro, Aloizio Mercadante e Haddad entrou nas salas de aula pela intermediação dos “especialistas”, num exercício sofisticado de hegemonia. Já o MEC de Weintraub não dispõe de intermediários, pois a extrema direita é repudiada quase unanimemente no meio universitário. Dessa fraqueza surge o impulso de invadir diretamente as salas de aula, num exercício tosco —e menos eficiente— de autoritarismo.
Nunzio Haddad Briguglio escolheu ignorar o que escrevi, propondo-me um “desafio”. Entendo: a gritaria partidária aquece a militância, abafando o diálogo substancial. Weintraub, penhorado, agradece.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Demétrio Magnoli: O Estado que nos educa
Brasil confunde dever estatal de financiar a educação com moldar discurso dos professores
Quando o presidente decidiu pontificar sobre livros didáticos, formou-se um pequeno escândalo sobre o periférico. As opiniões de Bolsonaro, boçais como de costume (um “lixo”, “um montão de amontoado de muita coisa escrita”), não movem nenhum moinho.
Já o principal —a promessa de que, a partir de 2021, os livros escolares “serão feitos por nós”— passou como pretensão legítima. Acostumamo-nos com a ideia de que o Estado tem o direito de educar o povo.
Um quarto de século atrás, não era assim. Os livros didáticos postos no mercado pelas editoras eram submetidos à escolha dos professores. Tínhamos uma saudável diversidade de obras, de qualidade bastante desigual, que refletiam as diferentes abordagens teóricas e pedagógicas em voga nas universidades.
O sistema de mercado, porém, excluía a maioria das escolas públicas, cujos alunos não podiam pagar pelos livros. A solução encontrada —a compra pública federal e centralizada— abriu o caminho das salas de aula às ideologias estatais.
Nos EUA, os livros são patrimônio das escolas e passam de uma turma de alunos à seguinte, em longos ciclos. Por aqui, o Estado preferiu estabelecer ciclos curtos de renovação dos livros. De um lado, a cara opção gera óbvios dividendos eleitorais. De outro, prende a indústria editorial de didáticos à órbita do poder público.
O MEC converteu-se no comprador quase monopolista: o verdadeiro patrão das editoras. Nessa condição, adquiriu a prerrogativa de esculpir as narrativas pedagógicas.
Os governos do PT utilizaram esse poder para conduzir uma revolução em marcha lenta, revestida por uma fina película de saber acadêmico. As comissões de “especialistas” formadas nas universidades federais para selecionar obras “de qualidade” foram, regra geral, colonizadas por professores-ativistas.
As análises “técnicas” contaminaram-se de (pre)conceitos políticos. Aos poucos, num processo que jamais se completou, eliminaram-se inúmeras obras “desviantes”.
A revolução escolar atingiu livros de exatas e biológicas —mas, claro, teve impacto maior nos de humanas. Na era pós-Muro de Berlim, um marxismo outonal, diluído em caldos de anti-imperialismo, terceiro-mundismo e multiculturalismo, passou a impregnar a maior parte dos livros de história e geografia.
Siga o dinheiro: as editoras jamais reclamaram —antes, pelo contrário, assumiram o papel de correias de pressão sobre autores recalcitrantes.
As obras “de qualidade” deviam trafegar pelos circuitos do antiamericanismo ritual, da denúncia da “história ocidental”, da idealização romântica da África pré-colonial. A política identitária desceu como uma sombra sobre os textos escolares.
A escravidão moderna passou a ser explicada pela chave do racismo, não pela lógica do sistema mercantil colonial. A campanha abolicionista foi expulsa do palco iluminado da história brasileira. Zumbi dos Palmares transformou-se no ícone absoluto da luta antiescravista.
Confundimos o dever estatal de financiar a educação pública com o poder abusivo reivindicado pelo governo de invadir as salas de aula e moldar o discurso dos professores.
O Estado-Educador é, sempre e inevitavelmente, o Partido-Educador. Na proclamação presidencial de que os livros didáticos “serão feitos por nós”, o “nós” indica o núcleo ideológico que rodeia Bolsonaro.
A obra “suavizada” dos sonhos dessa turma é um manual nacionalista, autoritário e ultraconservador, anticientífico, de fortes colorações religiosas. Nele, evaporariam tanto a ditadura militar quanto as mudanças climáticas e o lugar do evolucionismo seria ocupado pelo criacionismo.
O projeto provavelmente fracassará, pois Bolsonaro carece das redes de legitimação acadêmica conferidas por brigadas universitárias de professores-ativistas. Mas o risco existe, num país que não aprendeu a separar o Estado da sala de aula.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Demétrio Magnoli: Chamado de Trump brasileiro, Bolsonaro não passa de um imitador vulgar
Que ninguém se engane: o espectro da revolta social ronda o ano dois
Jair Bolsonaro é a manifestação brasileira da onda mundial do nacionalismo populista de direita. Bolsonaro é o “nosso” Trump —o “nosso” Orbán, Salvini ou Erdogan. O diagnóstico anterior tem grãos de verdade, mas erra no que é essencial. Ele não serve como bússola para delinear os rumos do governo e, sobretudo, identificar os riscos potenciais que pesam sobre a democracia brasileira.
Bolsonaro macaqueia o discurso de Trump et caterva. Por meio de Olavo de Carvalho e do filhote 03, costurou pactos com a “internacional dos nacionalistas”. Contudo, no fundo, o fenômeno brasileiro é uma singularidade. Ao contrário de seus ídolos, nos EUA e na Europa, Bolsonaro carece de raízes na cultura política nacional. É, para usar a expressão de Roberto Schwarz, uma “ideia fora de lugar”.
Trump et caterva ascenderam na maré de incertezas, angústia e raiva impulsionada pela recessão global e pelas sucessivas crises do euro e dos refugiados. Bolsonaro, por sua vez, foi transportado ao Planalto nas asas de dois acidentes concomitantes: a depressão econômica manufaturada pelo lulopetismo e o colapso do sistema político precipitado pela Lava Jato. Mais: na hora decisiva, o deputado insignificante beneficiou-se do atentado cometido por um desequilibrado. Jamais saberemos ao certo, mas o incidente dentro do duplo acidente pode ter selado o resultado eleitoral.
Um marxista diria que Bolsonaro é um acaso, não uma necessidade histórica. Trump está ancorado nas sombrias tradições americanas do nacionalismo isolacionista (America First), do nativismo étnico e do racismo legalizado. Salvini, Orbán e Erdogan refletem correntes profundas das histórias italiana, húngara e turco-otomana. Bolsonaro, porém, não passa de um imitador vulgar, um importador de línguas estranhas. Não é que faltem, entre nós, as árvores do ultraconservadorismo ou do autoritarismo. É que a versão olavo-bolsonarista dessas ideias não tem registros no nosso passado. A Aliança pelo Brasil, partido clânico, traça as fronteiras de um gueto político.
A algaravia das redes sociais ilude os militantes e engana os analistas. Bolsonaro não dispõe de sólidas bases populares: equilibra-se, precariamente, no disseminado antipetismo e na monumental incompetência do chamado centro político. A erosão da popularidade do presidente, ritmada pela resistência institucional a seus intentos arbitrários e pelas investigações sobre os laços do clã familiar com o mundo das milícias, ameaça solapar os alicerces do governo. Nessas circunstâncias, mais que nunca, Bolsonaro depende de Paulo Guedes.
FHC tinha uma hiperinflação para destruir. O Plano Real abriu-lhe o caminho à massa do eleitorado pobre —e à reeleição. Lula tinha um superciclo de commodities para financiar políticas de subsídio, renda e consumo. As periferias das metrópoles e o Nordeste garantiram-lhe tanto a reeleição quanto o triunfo da sucessora desastrada. Bolsonaro, um acaso eleitoral e uma singularidade ideológica, não tem nada disso. Precisa, já no ano dois, de um vigoroso crescimento do investimento com amplo impactos nas dinâmicas do emprego e da renda.
Paradoxalmente, é na fragilidade estrutural do governo que mora o perigo. O Brasil não é o Chile, mas 2013 foi aqui. Que ninguém se engane: o espectro da revolta social ronda o ano dois. Sebastián Piñera reprimiu, antes de negociar e recuar, seguindo os roteiros do equatoriano Lenín Moreno e do colombiano Iván Duque. Mas, assim como não é o “nosso” Trump, Bolsonaro não é o “nosso” Piñera. Separa-os, sobretudo, o valor atribuído à democracia. Diante do desafio real, o que faria seu governo?
Ideias fora de lugar podem até deitar raízes, conseguindo naturalização e cidadania. O processo exige adaptação —ou seja, mudança e sincretismo. No ano um, porém, aprendemos que Bolsonaro é sempre igual a si mesmo.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Demétrio Magnoli: Três perguntas sobre o clima
A temperatura média global já subiu 1,1 grau desde a era pré-industrial
Greta Thunberg, 17 anos daqui a quatro dias, personalidade do ano da revista “Time”, tem diversas certezas e nenhuma dúvida. Daí, seu sucesso na era das redes sociais e a esterilidade política de seus alertas dramáticos. A dinâmica do clima global é bastante complexa, mas menos que a intersecção entre ciência e política na qual se inscrevem as iniciativas destinadas a enfrentar as mudanças climáticas.
A ciência do clima sabe o suficiente para acender a luz de alarme vermelho. Dos 20 anos mais quentes do registro histórico, 19 ocorreram desde 2000. A temperatura média global já subiu 1,1 grau desde a era pré-industrial e aproxima-se dos níveis atingidos há mil anos, quando os vikings aportaram num litoral da Groenlândia pontilhado de árvores. Na nossa Era de Estufa, a concentração de CO2 na atmosfera chegou aos patamares de cem mil anos atrás, no último interglacial, quando as temperaturas globais eram 3 graus superiores às atuais e partes da Antártida suportavam florestas.
O objetivo estabelecido em Paris, em 2015, de limitar o aquecimento global a 1,5 grau até 2100 já é considerado quase inviável e até a meta secundária, de conter o aquecimento a 2 graus, parece improvável. Os níveis médios do mar encontram-se no máximo desde o início das mensurações por satélite, em 1993. No ritmo atual, a Terra aquecerá cerca de 3 graus até o fim do século, o que provocaria elevação de meio metro no nível dos oceanos, impondo o abandono de dezenas de metrópoles costeiras.
O teorema científico que sustenta a necessidade de iniciativas drásticas está comprovado. Contudo, eis a primeira pergunta: será a ciência capaz de orientar a política das nações num domínio tão delicado quanto a transição energética? A julgar por Trump, Bolsonaro, Salles e terraplanistas em geral, a resposta é um sonoro “não”. Mas mesmo a União Europeia avança junto com a Rússia na construção do gasoduto Nord Tream 2, que dobrará o fornecimento de gás russo à Europa.
Os obstáculos tecnológicos à transição energética foram superados. Os custos de baterias elétricas para automóveis caíram espetacularmente. O preço da energia solar reduziu-se em 75% desde 2010 e o da energia eólica, em 35%. As fontes de energia renováveis tornaram-se competitivas. Entretanto, as forças econômicas inerciais sabotam a mudança: segundo as projeções correntes, a tríade petróleo/ gás/carvão ainda representará três quartos da matriz energética mundial em 2040. Daí, emerge a segunda pergunta: as economias de mercado serão capazes de promover a vasta intervenção estatal necessária para romper a inércia?
A aceleração da transição energética depende de cortes profundos dos subsídios ocultos que sustentam a hegemonia da economia do carbono. O desvio rumo às fontes renováveis solicita a aplicação de pesados tributos sobre o petróleo e o fechamento em massa de termelétricas a carvão. Os governos precisariam confrontar interesses econômicos poderosos, além de resistências populares.
Na França, a revolta dos “coletes amarelos” foi deflagrada por uma “taxa verde” sobre a gasolina e o diesel que Emmanuel Macron tentou impor. No Equador, no Irã, no Iraque e em outros países, massas de manifestantes tomaram as ruas diante de aumentos nos preços dos combustíveis. Não são apenas as elites que protegem a herança econômica do carbono, sobre a qual ergueram-se as sociedades industriais.
Desde a Rio-92, as emissões globais de CO2 aumentaram em 60%, enquanto o pêndulo da economia mundial deslocava-se para a Ásia. A China responde, hoje, por 29% das emissões globais de CO2, contra 16% dos EUA, cerca de 8% da União Europeia e 7% da Índia. No plano geopolítico, a transição energética exige uma ação diplomática coordenada das potências ocidentais de amplitude suficiente para moldar as estratégias chinesas e indianas.
Na Guerra Fria, o Ocidente formou uma aliança coesa destinada a conjurar o espectro da URSS. A terceira pergunta é: será possível reproduzir a unidade para enfrentar o desafio do aquecimento global? A ascensão do nacionalismo populista, nos EUA e na Europa, não oferece muitas esperanças.