crítica de cinema
Análise | Globo de Ouro, ainda estamos aqui
Lilia Lustosa*
Estamos anestesiados. Paralisados de tanto orgulho. Chocados pela justiça tão rara na indústria hollywoodiana. Extasiados por aqueles poucos segundos que vão deixar uma marca profunda na história do nosso cinema. Embriagados pela vitória de Fernanda Torres no Globo de Ouro, prêmio concedido pela Associação da Imprensa Estrangeira de Hollywood. Reflexo imediato de um eterno complexo de vira-lata? Costume de colonizados? Ou simplesmente hábito de sermos constantemente inviabilizados, fora e dentro de nosso próprio país?
A atriz brasileira chegou mesmo a confessar que estava feliz pelo simples fato de estar ali entre as indicadas. Uma fala bastante comum entre os artistas brasileiros… infelizmente. É chegada a hora de mudar esse discurso!
Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, de fato não repetiu a dose de 1999, ao levar o Globo de Ouro de Melhor Filme Internacional, como aconteceu com seu belíssimo Central do Brasil, de 1986. Mas Fernanda Torres, neste 2025, redimiu sua mãe, que naquele ano deixou escapar o que seria nossa primeira estatueta dourada de Hollywood, prêmio este que foi parar injustamente nas mãos da sem-graça Gwyneth Paltrow. Fala sério!
Fernanda Montenegro - nossa diva maior do teatro, cinema e tv - não levou o prêmio naquele ano, nem teve nunca seu talento reconhecido oficialmente na terra do Tio Sam. Pura ignorância daquela indústria! Fernandinha, por sua vez, que já havia sido reconhecida em Cannes por sua atuação em Eu Sei Que Vou Te Amar (1986), de Arnaldo Jabor, leva agora o prêmio americano, deixando para trás atrizes do peso de Kate Winslet e Tilda Swinton, tornando-se a primeira brasileira a lograr este feito. Vitória para o Brasil. Vitória para a língua portuguesa, última flor do Lácio, língua de Camões, de Eça de Queiroz, de Machado de Assis, de Clarice Lispector e de tantos outros grandes artistas muitas vezes ignorados por aqueles que não dominam nosso idioma.
Em Ainda Estou Aqui, Fernanda Torres interpreta Eunice Paiva, esposa do ex- deputado federal Rubens Paiva, assassinado pela ditadura militar. Baseado na autobiografia homônima escrita pelo filho Marcelo, o filme conta a história dessa mulher que, de um dia para o outro, vê sua vida revirada, tendo que se reinventar para conduzir sozinha a família de cinco filhos, sem seu companheiro de vida, sem renda, enfrentando diariamente o medo e a incerteza de encontrá-lo vivo ou morto. Uma atuação contida, equilibrada e justa, talhada na medida exata para retratar uma mulher de coragem e fibra que, sem fazer escândalo, nunca se calou e nunca aceitou o desaparecimento do marido.
Eunice não apenas sobreviveu à prisão e às consequências da ditadura, como usou-as como força motriz para encontrar um novo caminho. Formou-se em direito, tornou-se uma ativista das causas indígenas e dos direitos humanos dos desaparecidos durante a ditadura civil e militar, tendo sido uma das principais vozes para a promulgação da Lei 9.140/95, que reconhece como mortas as pessoas desaparecidas em razão de participação em atividades políticas durante esse período.
Que este prêmio para Fernanda Torres e o sucesso de Ainda Estou Aqui sejam um incentivo para que o Estado brasileiro siga o caminho da reparação história dos desaparecidos nos anos de chumbo da ditadura militar. E que a bilheteria gerada até agora (mais de 3 milhões de espectadores) seja o impulso que falta para que nossa indústria cinematográfica passe a receber mais e mais investimentos para a produção e a distribuição de filmes de qualidade e que, assim, possa ganhar de vez a confiança dos públicos brasileiro e internacional.
Chega de nos contentarmos em estar na lista de candidatos. Somos bem mais que isso! Temos atores, diretores, roteiristas, produtores e músicos que merecem estar lado a lado com os maiores do mundo. Que o complexo de vira-lata tão bem detectado por Nelson Rodrigues naqueles já distantes anos 50 fique impresso apenas nos jornais e nos livros de história.
*Lilia Lustosa é integrante do Conselho Consultivo da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), vinculada ao Cidadania 23, crítica de cinema, formada em Publicidade, especialista em marketing, mestre e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidade de Lausanne, na França.
O que esperar do novo filme ¡Qué Viva México!
Com o mesmo título do famoso filme inacabado de Sergei Eisenstein, de 1932, o cineasta mexicano Luis Estrada lançou, no mês de março, seu próprio ¡Qué Viva México!, longa-metragem de mais de três horas de duração e que é uma sátira bem ácida da política mexicana atual.
Sátira, aliás, que não é novidade na filmografia do diretor, já que, a cada sexênio, ele lança um filme que detona o governo da atualidade, fazendo ainda uma análise (quase sempre cruel) da "mexicanidade”, ou seja, das idiossincrasias e incoerências do povo mexicano. Isso acontece desde A Lei de Herodes (1999), quando analisava e anarquizava os governos do Partido Revolucionário Institucional (PRI ). Em seguida, com seu Um Mundo Maravilhoso (2006), satirizando o governo de Vicente Fox. Em 2010, com O Inferno, cuja vítima principal era o presidente Felipe Calderón, e, mais recentemente, em 2014, com A Ditadura Perfeita, em que atirava pedras na administração do presidente Enrique Peña Neto. Enfim, há toda uma tradição guerrilheira que faz com que a espera pelo lançamento de seus filmes seja algo prazeroso para alguns e bem incômodo para outros.
¡Que Viva México! não foge à tradição e ataca de frente o governo do atual presidente Andrés Manuel López Obrador, vulgo AMLO, do partido MORENA (Movimento Regeneração Nacional). Um político que se diz de esquerda, à favor do povo e contra a corrupção de qualquer natureza, mas que se rende (como todos) às armadilhas do poder, tendo uma ótima relação com os presidentes dos Estados Unidos, incluindo com o ex Donald Trump. Não podemos esquecer que os vecinos norteamericanos são os maiores parceiros comerciais do México, com as remessas de dólares vindas de lá para cá (dos imigrantes) representando 4% do PIB nacional.
A trama do filme gira em torno de Pancho Reyes (Alfonso Herrera), um homem de classe média (em ascensão), que trabalha dia e noite para atender os caprichos da esposa e dos filhos. De origem humilde, ele prefere esquecer e deixar bem escondido esse passado, até o dia em que recebe, porém, o telefonema de seu pai Rosendo (Damián Alcázar, que atua na pentalogia completa de Estrada), informando que o avô falecera e que era aguardado em seu pueblo para o enterro e para a leitura do testamento.
O que vemos, então, é o retorno à pobreza natal de Pancho, uma viagem ao México profundo, cheio de poeira, pobreza, mas também de alegria, camaradagem, comilanças, bebedeiras, mariachis e, claro, corrupção e espertezas. Tudo é paroxismo, é crítica, é desacato. Um verdadeiro show do politicamente incorreto, que tem irritado muitos espectadores mexicanos, sobretudo, os "Whitexicans" (elite branca do país), que não gostam nada de se ver assim representados na telona.
Mas, verdade seja dita, Estrada não poupa ninguém e aponta sua metralhadora para todos os atores do México contemporâneo, desviando-se assim do modelo maniqueísta que representa pobres como bons e ricos como maus, ou ainda políticos como os únicos seres corruptos e corruptíveis. Em seu filme, ele desenha um microcosmos capaz de representar as várias camadas da sociedade desse país, com seus defeitos e qualidades, mas, principalmente, com suas incoerências. Não à toa, ¡Qué Viva México! vem desagradando priistas, morenistas, panistas, etc, gente de esquerda, de direita e até de centro. Quase uma unanimidade!
Pelos olhos de uma estrangeira, residente no México há pouco menos de três anos, o que vejo é um retrato ácido da sociedade local, obviamente, levado ao extremo. Importante ter em mente que estamos aqui, porém, diante de uma sátira e que, por isso mesmo, os personagens, bem como as situações, são sim exagerados, artificiais e caricatos. Não se pode levar tudo a sério, nem querer interpretar cada diálogo ao pé da letra. O próprio cenário, a trilha e os filtros amarelados usados para representar o México quente e perigoso – como os gringos costumam fazer –, corroboram os excessos da história ali contada. Ao mesmo tempo que vão de encontro à campanha #UnfilterMexico, que a marca de cerveja Corona lançou há pouco, junto com o diretor de fotografia mexicano Emmanuel “Chivo" Lubezki, com o objetivo de acabar justamente com esse estereotipo no cinema.
Por outro lado, entendo a indignação de alguns mexicanos, pois olhar-se no espelho nem sempre é fácil, mesmo que, tantas vezes, necessário. Nosso Brasil bem que precisava de um louco Estrada para espelhar na telona, a cada quadriênio, uma sátira de nossos presidentes e da evolução (ou involução) de nossa sociedade.
Saiba mais sobre a autora
*Lilia Lustosa é crítica de cinema e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL), Suíca.
Revista online | 2013: ecos que reverberam até hoje
Henrique Brandão*, especial para a revista Política Democrática online (46ª edição: agosto/2022)
Desde o início de agosto, encontra-se disponível na Globoplay o documentário Ecos de Junho. Dirigido pelo jornalista Paulo Markun e pela socióloga Angela Alonso, pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), o filme busca mostrar como as gigantescas manifestações de 2013 reverberam, ainda hoje, na vida institucional e política dos brasileiros, quase dez anos depois de terem tomado de assalto as ruas das principais cidades do país.
Na época, as manifestações surgiram em torno do Movimento Passe Livre, que propunha tarifa zero para os ônibus, no momento em que a Prefeitura de São Paulo anunciou o reajuste de R$ 0,20 no preço das passagens.
A passeata inicial foi convocada por fora dos partidos tradicionais da esquerda. À essa convocação se juntaram, de forma difusa, vários outros movimentos, até então sem qualquer representação, que se organizavam por meio das redes sociais. O resultado foi uma manifestação com um perfil diferente do que até então se conhecia: não havia “comando” do ato, as palavras de ordem eram criadas na hora, e as faixas tradicionais foram substituídas por cartazes feitos à mão e trazidos de casa. Surgia, ali, a primeira manifestação de massa convocada pelas redes sociais.
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Se o mote era o reajuste das passagens, os motivos que levaram as pessoas às ruas eram muitos, como ficou evidente nos cartazes improvisados. Os partidos da esquerda socialista foram surpreendidos pelo tamanho da manifestação. Talvez enferrujados pela ausência de reivindicações de rua durante os governos Lula e Dilma, foram tomados pela paralisia decorrente da perplexidade.
O fato é que as manifestações ganharam corpo, não apenas pelo caráter “novidadeiro” da convocação: a atuação desastrada da polícia e sua desmedida repressão, com bombas, farta distribuição de cassetadas e tiros de borracha – uma repórter fotográfica que cobria os atos foi atingida no olho por uma bala de borracha – acrescentaram o fator “solidariedade” às manifestações. A partir daí, os atos ganharam mais força e repercussão nacional, com manifestações se multiplicando por várias cidades do Brasil.
O documentário mostra muito bem os diversos grupos políticos que se uniram em torno das manifestações. Se começou com uma pauta articulada por um grupo de esquerda a favor do passe livre, rapidamente outros de formação diversa aderiram aos protestos. O que havia de comum, e "Ecos de Junho" indica com clareza, era uma insatisfação com o poder público, dirigida aos políticos, em geral, e aos governos do PT, em particular.
Veja, abaixo, galeria de imagens do documentário:
Direita, esquerda, movimento anarquista, grupos identitários, todos foram para as ruas, num movimento variado, onde a reivindicação por passe livre acabou se diluindo em meio à profusão de palavras de ordem. “Não são só 20 centavos”, dizia um cartaz que sintetizou, de maneira emblemática, o espírito dos manifestantes, jovens em sua maioria.
O documentário traz imagens e depoimentos de diversas pessoas envolvidas naqueles acontecimentos. Mostra, por exemplo, como grupos de direita nasceram ou cresceram de algum modo vinculados aos eventos de 2013. São esses grupos que, dois anos depois, deram sustentação, nas ruas, ao impeachment de Dilma Rousseff, apoio político às reformas de Michel Temer e, em 2018, ajudaram a eleger Jair Bolsonaro. Nada disso aconteceria sem a incubadora de 2013.
Independentemente da bandeira política de cada um, o filme tem enorme valor por trazer depoimentos de quem esteve lá no calor da hora e, hoje, uma década depois, pode rever, com certo distanciamento, sua participação nos acontecimentos.
Mas “os ecos de junho” não terminaram. Os choques de posição continuam em jogo. Em entrevista para a Folha de S. Paulo, Angela Alonso, codiretora do filme, afirmou: "Essa disputa, de certa maneira, ainda não acabou. Tem muito de junho de 2013 na atual disputa eleitoral".
Sobre o autor
*Henrique Brandão é jornalista e escritor.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de agosto/2022 (46ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
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RPD || Lilia Lustosa: Nomadland – Crônica de um prêmio anunciado
Quando o envelope com o nome do ganhador do Oscar de melhor filme foi aberto na histórica Union Station de Los Angeles, ninguém ficou surpreso ao ver ali impresso o título Nomadland. Afinal, desde que a temporada de festivais e premiações começou – Veneza, Globo de Ouro, BAFTA, PGA Awards… – só dá ele!
O curioso é que não estamos falando aqui de nenhuma superprodução de 200 milhões de dólares, como foi o caso de Tenet (2020). Nomadland, baseado no livro homônimo de Jessica Bruder e adaptado por Chloé Zhao, custou 5 milhões, não tem efeitos especiais e conta uma história simples por meio de uma narrativa linear, com jeitão mais de documentário do que daquelas ficções estrambólicas que costumam levar as mais prestigiosas estatuetas.
O que faz então de Nomadland uma quase unanimidade em meio a tantos críticos de diferentes nacionalidades e backgrounds?
Vamos lá.
Talvez um primeiro fator a considerar seja o de que 2020 foi um ano de poucas superproduções em função das restrições impostas pela pandemia. Os grandes estúdios preferiram guardar seus maiores trunfos comerciais – os blockbusters – para quando as coisas melhorarem e as pessoas puderem voltar às salas de cinema. Com isso, abriu-se espaço para produções menores, que em geral ficam relegadas aos festivais ou às salas de cinema de arte.
Um segundo ponto que podemos levantar é o fato de Nomadland ser um filme introspectivo, que trata de questões existenciais, com reflexões que vêm ocupando as mentes de quase todos nestes loucos tempos pandêmicos. Quem não parou para repensar a vida durante os mil confinamentos a que fomos submetidos? Quem não se questionou sobre o que de fato importa? O filme de Zhao, embora rodado em grande parte no exterior, em meio a desertos, montanhas e oceanos, é também um roadmovie interior, uma viagem pelos sentimentos de pessoas que escolheram ou foram obrigadas a puxar a âncora e partir rumo a uma vida de incertezas, descobertas, simplicidade e autoconhecimento.
Isso nos leva a um terceiro ponto, que é a mescla de realidade e ficção a partir da qual o filme é construído. Com exceção de Fern – interpretada magistralmente por Francis McDormand (agora detentora de três Oscars) –, e de mais um ou dois personagens, o que vemos ali são histórias reais de não-atores que interpretam suas próprias vidas. Claro que há um roteiro, uma organização e mesmo uma encenação por parte de todos os que compõem a trupe de Nomadland. Mas as histórias e sofrimentos apresentados na tela são genuínos, o que gera grande empatia na plateia, que se sente mais próxima das sensações ali compartilhadas e instigada a refletir sobre suas próprias questões. É quase uma sessão de terapia!
Finalmente, vale ressaltar que, em um ano em que tanto se fala de igualdade de gênero e que tanto se tenta combater a violência contra a mulher – e mais recentemente contra os asiáticos –, o fato de a diretora, roteirista, montadora e coprodutora do filme ser mulher e asiática tem também seu peso. Não que isso diminua o mérito de Nomadland, muito menos o dos louros recebidos até aqui. Mas não podemos ignorar que os prêmios se têm tornado cada vez mais políticos, já não mais bastando apresentar novidades tecnológicas ou temas originais. É preciso defender uma causa, ter um propósito, contribuir de alguma maneira com o bem-estar da humanidade. O que não está de todo errado! E o filme de Zhao, apesar de não focar no político, tem a crise econômica norte-americana de 2008 como ponto de partida e a questão do trabalho (ou da falta dele) como locomotiva da história.
Quem não está gostando nada dessas mudanças nas premiações são os fãs do glamour e do cinema de entretenimento. Alegam que os filmes já não mais divertem, uma vez que preferem apontar o dedo, fazendo-nos sentir culpados pelas atrocidades de todo o mundo. Pode ser. Mas, como afirmava o historiador Marc Ferro, que nos deixou há pouco, os filmes são também um testemunho singular de seu tempo e mostram um lado que nem sempre queremos ver. São permeados de lapsus que nos escapam a olho nu, mas que jamais se escondem das lentes das câmeras, que, como espelhos, revelam o funcionamento real das nossas sociedades.
Que chegue logo o dia em que os filmes possam voltar a ser felizes e despreocupados! As causas? Ah, essas não podem ser deixadas de lado! Porque cinema é arte, mas arte também é política. Que o diga Nomadland e o belo discurso de Chloé Zhao no Oscar, que, com seus cabelos trançados e a cara lavada, fez-nos enxergar o que de fato é luxo nessa vida.
*Lilia Lustosa é formada em publicidade, especialista em marketing, mestre em história e estética do cinema pela Universidade de Lausanne e doutoranda nesta mesma instituição de ensino superior.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
Fonte:
Filme que marca reabertura de cinemas peca ao falar para grupo muito seleto
Em artigo publicado na Política Democrática Online de novembro, Lilia Lustosa analisa Tenet, de Christopher Nolan
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
A crítica de cinema Lilia Lustosa Lilia faz uma análise de Tenet, de Christopher Nolan, filme que marca a reabertura das salas de cinema em quase todo o mundo e leva o espectador a uma jornada que mescla espionagem e ficção científica. Os detalhes podem ser conferidos da edição de novembro da revista Política Democrática Online, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília. Todos os conteúdos da publicação podem ser acessados, gratuitamente, no site da entidade.
Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de novembro!
Na avaliação da crítica de cinema, o diretor britânico parece ter errado a mão desta vez, exagerando na complexidade da trama, através de uma fragmentação excessiva do tempo e da inserção da física quântica como elemento-chave para entender o desenrolar da história. “Passei o filme inteiro tentando assimilar a tal de inversão do fluxo da entropia e nada”, critica.
“Senti-me ignorante do começo ao fim. E olhe que gosto de filmes que exigem do meu intelecto. Mas acho que Tenet peca ao falar para um grupo muito seleto de espectadores, fazendo os demais se sentirem incapazes de adentrar à mente labiríntica do diretor”, emenda.
Segundo Lilia, ao pinçar algumas falas perdidas em meio a tantas balas invertidas, Tenet deixa a pergunta. “O que poderíamos ter feito diferente no passado para evitar chegar onde estamos? Reflexão mais do que apropriada para 2020”, afirma ela, no artigo. “Ora, o que passou passou, mas isso não significa que não podemos tentar reparar erros cometidos. Em nossa real-ficção-científica, o ontem (ainda) não pode ser mudado, mas o hoje e o amanhã, sim”, acrescenta.
De acordo com a crítica de cinema, o filme que simboliza a reabertura de salas de cinema, o blockbuster de Christopher Nolan, Tenet (2020), é “uma mistura de filme de espionagem com ficção científica, que é um verdadeiro quebra-cabeça cinematográfico”, analisa.
No artigo, a autora lembra que o lançamento do filme estava marcado para 17 de julho, mas só chegou às telonas do Brasil no fim de outubro e já ultrapassou os US$ 330 milhões de bilheteria mundial, pouco mais da metade do que estimava sua produtora, a Warner. “As razões me parecem óbvias: salas funcionando abaixo da capacidade, horários reduzidos e alto custo para manter os protocolos de segurança em dia, para atrair espectadores ainda bastante temerosos”, observa Lilia.
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RPD || Lilia Lustosa: Cinema argentino e mobilização
Lilia Lustosa destaca a força do cinema que clama por justiça, ao analisar o filme Crimes de Família (2020), do diretor Sebastián Schindel. Para ela, "um verdadeiro chamamento por condições dignas para trabalhadores domésticos e pelo fim da violência de gênero que afeta tantas mulheres na Argentina, no Brasil e no mundo"
Cinema e psicanálise nasceram praticamente juntos. Muito cedo percebeu-se que a nova arte tinha um poder catártico semelhante ao da nova corrente psicológica que surgia naquele final de século 19. Ao sentar-se em uma sala escura, com a atenção totalmente voltada para a tela, o espectador entrava em uma espécie de estado hipnótico, revivendo sensações do passado, seguidas de um certo alívio ao final da sessão. Um sentimento que muitas vezes terminava por converter-se em ação… ou em transformação.
Em Buenos Aires, tive a oportunidade de constatar esse poder do cinema quando fui assistir ao filme Refugiado (2014), de Diego Lerman, em uma villa (como se chamam ali as comunidades), fruto de uma ação promovida pelo PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento –, em conjunto com uma ONG local. O objetivo era incentivar mulheres vítimas de violência doméstica a se pronunciarem sobre o mal que vinham sofrendo, quem sabe até criando coragem para denunciar seus agressores.
O filme, que conta a história de uma mulher grávida que foge de casa e do marido, levando consigo o filho de 7 anos, despertou sentimentos profundos na plateia. Uma senhora, acompanhada do filho pequeno, declarou haver-se identificado muito com a protagonista, afirmando que o que viu na tela era exatamente o que vivia em seu dia-a-dia. Uma angústia sem fim que ela não queria mais na sua vida nem na de seu menino, que, ali sentado, parecia alheio a todo o mal que lhe cercava quotidianamente. O que essa mãe mais temia era que a criança crescesse tendo aquele modelo de pai, de relacionamento e de vida.
A verdade é que, apesar de já ter lido mil vezes sobre a força catártica do cinema, sobre sua capacidade de sensibilização ou mesmo de persuasão, características tão exaltadas pelos vanguardistas russos ou mesmo pela Igreja Católica com suas encíclicas Vigilanti Cura e Miranda Prorsus, nada se compara a vivenciar seu efeito na vida real.
Crimes de Família (2020), do diretor argentino Sebastián Schindel, lançado em agosto via streaming (Netflix), tem os quesitos necessários para repetir o feito de Refugiado. Tendo como tema central um crime cometido pela empregada doméstica Gladys em seu local de trabalho, numa interpretação comovente da atriz iniciante Yanina Ávila – ela mesma empregada doméstica na vida real –, o filme mostra ainda outros crimes que envolvem o filho da família de seus patrões, papéis interpretados brilhantemente por Benjamín Amadeo, Cecilia Roth e Miguel Angel Solá. De forma labiríntica, essa história forte, instigante e muito bem narrada, vai sendo pouco a pouco construída. À medida que o filme avança, o novelo vai-se desenrolando e vamos entendendo as razões que levaram Gladys a cometer tal monstruosidade.
O roteiro de Crimes de Família, baseado em fatos reais, acabou despertando o interesse de organizações internacionais como a ONU Mulheres e a OIT - Organização Internacional do Trabalho, que resolveram apoiar sua produção por enxergarem ali uma ferramenta de sensibilização para as questões de violência laboral, de gênero e assédio sexual. Quiçá capaz de impulsionar o governo argentino a ratificar a Convenção 190 da OIT, que trata justamente desses temas.
Como mulher e mãe, senti-me muito tocada por um outro aspecto do filme: a maternidade. Há várias mães nessa história, cada uma tentando acertar em seus papéis de educadoras, provedoras e protetoras. Mas, o que fazer quando nunca se teve o amor como modelo? Ou quando se sofre assédio constantemente? O que fazer diante de um filho criminoso? Até onde é possível preservar o tal instinto materno de proteção?
Como historiadora e crítica de cinema latino-americana, senti-me orgulhosa de ver a força de um cinema que clama por justiça. Um verdadeiro chamamento por condições dignas para trabalhadores domésticos e pelo fim da violência de gênero que afeta tantas mulheres na Argentina, no Brasil e no mundo.
Não é a primeira vez que Sebastián Schindel dirige um filme que retrata desigualdades nas relações sociais e trabalhistas. Aliás, este é um tema que o fascina! Com formação de documentarista, esse diretor-idealista costuma basear-se em fatos reais para compor seus roteiros, usando seu trabalho e sua arte como ferramentas de sensibilização, conscientização e chamamento por mudanças. Em 2014, seu O Patrão, radiografia de um crime, também usado pela OIT como bandeira para tratar do tema da escravidão moderna na Argentina, obteve excelentes resultados, levando este país a tornar-se o primeiro da América do Sul a ratificar o Protocolo 29 de combate ao trabalho forçado. Uma prova de que o cinema, além de entretenimento, pode ser também eficaz ferramenta de mobilização. Que mais e mais diretores e instituições tomem partido dessa faceta da sétima arte!
*Lilia Lustosa é crítica de cinema