carlos melo
Professor Carlos Melo: Democracia, desafio de sobrevivência
Para especialista, regime se fundamenta na capacidade de resposta e na promoção de segurança e do bem-estar
Quando a democracia falha em oferecer respostas, como na transição atual do capitalismo, é natural que seja questionada, destaca o professor do Insper Instituto de Ensino e Pesquisa Carlos Melo. Ele também analisa as ameaças aos sistemas democráticos promovidas pelos "governantes incidentais", o perigo da desinformação, a falta de reflexão e de educação política, eleições e a importância dos partidos.
Integrante do Conselho Curador da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), vinculada ao Cidadania 23, Carlos Melo é professor Senior Fellow do Insper e professor de Sociologia e Política (graduação), de Estratégia e Política (mestrado) e do Curso de Relações Governamentais. É coordenador da Trilha de Humanidade e membro do Conselho Acadêmico do Insper.
Mestre e doutor pela PUC-SP, é analista político e pesquisador de liderança política. Foi membro do Conselho Superior do Centro de Estudos de Opinião Pública da Unicamp. Ex-colunista do UOL e da CBN, colabora atualmente com uma série de veículos, como O Globo, o Valor, a Globo News e CNN.
É autor de Collor: o ator e suas circunstâncias (Novo Conceito) e coautor de Decadência e Reconstrução: Espírito Santo, as lições da Sociedade Civil para um caso político no Brasil contemporâneo (Bei Editora).
A seguir, confira a entrevista que o professor concedeu à revista da Fundação Conrado Wessel (FCW):
FCW Cultura Científica – Professor Carlos, os candidatos pitorescos costumavam ter votação inexpressiva e não eram capazes de decidir uma eleição. O que mudou para que um candidato pouco conhecido e com quase nenhum espaço no horário político tradicional tenha provocado tamanho impacto na eleição da maior cidade do país, em um fenômeno que tem se repetido?
Carlos Melo – As eleições brasileiras sempre tiveram candidatos folclóricos, bizarros ou de gozação. A questão é que, atualmente, existem fatores que fortalecem e favorecem esses candidatos. Um fator importante é que estamos passando por um momento de transição no capitalismo. Estamos saindo de um modo de produção baseado na sociedade industrial e na prestação de serviços convencionais, saindo de uma sociedade analógica para uma sociedade digital. Essa é uma mudança que traz muito desconforto, especialmente pela quantidade de profissões que tende a desaparecer. Tenho 59 anos, nasci na periferia de São Paulo, e grande parte dos meus amigos de infância não tem colocação atualmente. Seus empregos desapareceram, e não houve, da parte deles e muito menos do Estado – que deveria se antecipar, pois as instituições existem para isso – um processo para mitigar os efeitos dessas transformações. O cidadão vinha de um cenário com carteira assinada, onde trabalhava diariamente das 8 às 17h, com hora de almoço, descansava nos fins de semana, tinha descanso remunerado, férias, décimo terceiro salário, e, em alguns casos, vale-refeição ou vale-supermercado. Ele saiu dessa realidade protegida para outra completamente desprotegida. É pura estupidez e hipocrisia falar que estamos na sociedade do empreendedorismo. É claro que o empreendedorismo tem um papel importante, mas isso não é empreendedorismo, isso é precarização. O Uber, só para citar um exemplo da nova sociedade digital, é uma precarização – com tendência a piorar, pois em breve o motorista humano poderá nem ser mais necessário. Em resumo, o Estado não se antecipou, as instituições e a política não se anteciparam a essa transformação, e quem está pagando por isso é a democracia. Esse é o pano de fundo que fortalece esse cenário.
FCW Cultura Científica – E quais fatores favorecem o surgimento desses novos tipos de políticos?
Carlos Melo – Um fator importante é a extrema capacidade de difusão de opiniões. Quando as redes sociais surgiram, pensamos que seriam uma maravilha para se comunicar com amigos, articular ideias etc. Elas realmente trouxeram essas possibilidades, mas também serviram para aqueles que descobriram um canal de manifestação da sua fúria. Nas redes sociais, essas pessoas encontraram porta-vozes, que meu amigo Sergio Abranches chama de “governantes incidentais”. Esse fenômeno não está presente apenas nas eleições municipais ou no Brasil, mas em todo o mundo, com muitos exemplos desses governantes, como Donald Trump, Viktor Orbán, o próprio Vladimir Putin, embora tenha surgido um pouco antes, Narendra Modi, Boris Johnson, Hugo Chávez, Nicolás Maduro, Javier Milei e Nayib Bukele. No Brasil, temos Jair Bolsonaro e, mais recentemente, figuras associadas ao bolsonarismo, como Nicolas Ferreira, Carla Zambelli e Pablo Marçal. O interessante, e sobre o qual tenho escrito e falado bastante, é que essas figuras não são lideranças que conduzem um processo; elas apenas identificam e exploram o mal-estar. Esses governantes incidentais, a fúria e o sentimento antissistema estão presentes tanto na direita quanto na esquerda, como no caso da Venezuela. É um fenômeno recente que começou na Itália, na contestação ao crime organizado, com Beppe Grillo, uma história que o Giuliano da Empoli narra muito bem no grande livro Os Engenheiros do Caos.
FCW Cultura Científica – Nessa mudança da sociedade analógica para a sociedade digital, a democracia continua funcionando ou ela é um sistema que favorece apenas os mais ricos, sejam pessoas, empresas, governos ou países?
Carlos Melo – Se a democracia é uma questão de valor ou uma questão pragmática? A democracia é um regime muito recente. Para conhecer sua história, recomendo a leitura de um importante livro do Robert Dahl chamado Sobre a Democracia, que conta como ela surgiu na Grécia, depois desapareceu, voltou, desapareceu novamente, e assim foi até que se consolidou, especialmente a partir da independência dos Estados Unidos, com um grande impulso após a Segunda Guerra Mundial. É, de fato, um regime novo, se considerarmos há quanto tempo a humanidade existe. Além de nova, por definição, a democracia é um regime que requer aperfeiçoamento constante. Em outro livro de Dahl, Poliarquia: Participação e Oposição, ele destaca que a democracia exige que os governos sejam responsivos, ou seja, que respondam às demandas da sociedade. Quando a democracia falha em oferecer respostas, é natural que seja questionada, pois, ao contrário da ditadura, que usa a força para evitar responder, a democracia se fundamenta na capacidade de resposta e na promoção de segurança e do bem-estar. Neste momento histórico, trazer essa segurança e bem-estar é um desafio, pois vivemos em uma época de transição, o que Gramsci, observando o início do século 19, chamou de "interregno". Na passagem do século 19 para o século 20, durante um processo similar de transformação, o mundo enfrentou duas grandes guerras e o surgimento do fascismo e do nazismo. Espero que não cheguemos a tanto, mas, infelizmente, algumas semelhanças com aquele período já parecem bem evidentes.
FCW Cultura Científica – Como a desinformação, vinda principalmente das redes sociais, tem afetado o processo eleitoral?
Carlos Melo – A opinião costumava passar por vários filtros. Lembro bem como foi difícil publicar meu primeiro artigo em um jornal de grande circulação. Primeiro, era necessário realmente ter algo a dizer. Depois, havia uma série de pessoas que tinham algo a dizer antes de você e que diziam melhor. Antes de o seu texto ser publicado, ele passava por edição, revisão e checagem. A comunicação era um processo industrial com muitas etapas. Depois que o texto estava editado, diagramado e fechado, era a hora de imprimir; o jornal era em papel. Ele passava por uma rotativa enorme, onde era impresso e, em seguida, separado e distribuído em caminhões, em um processo frenético para chegar cedo à casa das pessoas. Os assinantes liam ou não, eles não eram invadidos por aquele artigo que você escreveu. O texto estava no jornal, mas se seria lido era outra história. Isso tudo mudou. Hoje, não há mais filtro. Primeiro, surgiram os blogs, que também eram enviados por e-mail e lidos na caixa de entrada; mas, se não quisesse, você poderia simplesmente descartar. Depois, vieram as redes sociais. As pessoas entraram nas redes com a ideia de fazer amigos, como na música do Roberto Carlos, "eu quero ter um milhão de amigos", e, de repente, você tem um milhão de amigos — ou melhor, de influencers, seguidores e contatos — que estão todos ali escrevendo o que pensam, sem filtro, sentados no sofá de casa, com suas angústias e problemas, escrevendo automaticamente, e alguém está lendo. Você até pode bloquear, mas a questão é que, nesse fluxo, você é invadido. Por mais que se considere a opinião de uma pessoa irrelevante, seja sobre política, sociedade, futebol ou qualquer outro assunto, essa pessoa irrelevante ainda passará na sua frente. E, se você decidir participar do jogo e também publicar, entrará nesse fluxo. Sua opinião será difundida e muita gente comenta sobre ela, tendo qualificação para isso ou não. Quando um especialista tenta puxar o freio e dizer que não é bem assim, que aquilo que está sendo transmitido não é verdade — afinal, ele estudou, conhece teoria e ciência — o sujeito do outro lado o chama de idiota, dizendo que ele não sabe do que fala, porque a Terra é plana.
FCW Cultura Científica – Nas eleições, temos visto que esse comportamento é cada vez mais frequente.
Carlos Melo – Durante as eleições, vemos especialistas formados, cheios de títulos, que estudaram a vida toda para falar algo sobre o processo eleitoral, mas que, ainda assim, têm dúvidas sobre o que vão dizer. Isso é natural, afinal, ninguém sabe tudo ou é dono da verdade. Do outro lado, temos os influencers que, por entenderem de timing, de como usar as tecnologias e de quando e como postar, e por saberem como lidar com o mundo digital, de repente se sentem no direito de desqualificar o especialista, que passa a ser desprezado e até odiado. Tanto Giuliano da Empoli como outros autores, como Yascha Mounk, em O Povo Contra a Democracia, discutem essa perda de status dos especialistas. E quem são os especialistas? São advogados, economistas, politólogos, sociólogos, cientistas, técnicos de futebol — todos aqueles que perdem o valor de seu conhecimento, porque a comunicação passa a não ter mais filtro.
FCW Cultura Científica – Um argumento de quem usa as redes para desinformar é que o processo de comunicação se tornou mais democrático.
Carlos Melo – O público que se informava por jornais, revistas e livros era restrito; era uma elite, limitada, qualificada, capaz de avaliar e ponderar. Meu argumento pode parecer elitista — e, de fato, é —, mas quando se diz que hoje as coisas melhoraram e que o acesso à informação está mais democrático, isso não corresponde totalmente à realidade, pois perdemos em qualidade. Costumo comparar essa situação com a de um pequeno vinhedo no interior de São Paulo ou Minas Gerais, que produz um vinho excepcional, mas só consegue fabricar 500 garrafas por ano. O vinho é fantástico com essa produção limitada, pois o solo e todas as condições de produção não permitem fabricar mais do que isso. Mas, com o sucesso, o produtor se empolga e decide aumentar a produção para 5 mil garrafas por ano. O que acontece? A qualidade vai por água abaixo. O produtor passa a viver do rótulo, não mais da qualidade.
FCW Cultura Científica – Com a quantidade enorme de informações e com a velocidade em que chega, somados à falta de filtro e de discernimento, como fica a educação política do cidadão? Ela tem melhorado ou piorado?
Carlos Melo – Na eleição presidencial dos Estados Unidos em 1960, Kennedy versus Nixon, houve uma transformação muito grande que foi nortear as campanhas com base nas pesquisas eleitorais. No Brasil, um marco disso foi a eleição presidencial de 1989, quando o Collor foi eleito. Quem fazia algum tipo de política no Brasil antes de 1989 deve se lembrar de como eram as campanhas. Havia todo um processo fabril no qual se bolava um panfleto, discutia com os seus pares e imprimia em uma gráfica. Depois, distribuía o panfleto na porta da fábrica, na porta da igreja, na feira, na praça, nas ruas. Quando uma pessoa passava, o candidato pedia licença e perguntava se podia conversar um pouco sobre política. Ele ou ela tentava convencer o cidadão da justeza da sua opinião e do que estava escrito no panfleto, tentava ser incisivo mas também didático. Com as abordagens baseadas nas pesquisas eleitorais, o que o candidato pensa e o que fala para o eleitor muda completamente. As campanhas descobrem o que o eleitor quer ouvir. Elas colocam 12 pessoas em uma sala, com um espelho falso para poder analisar as opiniões, classificam aquele grupo em tipos representativos da sociedade mais ampla e começam a compreender o que os diversos setores pensam. É isso que vai fundamentar o discurso político, não é mais a visão ideológica, a opinião, a discussão ou a educação. Mais do que transformar, mais do que educar, o objetivo passa a ser ganhar a eleição, pois o feio é perder. Para ganhar a eleição, o candidato só se importa em saber o que o eleitor quer ouvir. O resultado é que o eleitor, antes na televisão e hoje pelos algoritmos das redes sociais, é invadido com uma determinada informação e pensa: “É isso exatamente o que eu penso! Essa cara me representa”. Só que não é isso. O candidato sabe exatamente o que o eleitor quer ouvir. Não é que ele formulou e você se descobriu a partir do que ele disse. Você disse antes, por meio de seus gostos e de seu uso da internet, como queria ser seduzido e o candidato vai te seduzir com todas as técnicas de marketing. Primeiro pelo rádio e televisão, que vimos nessa eleição municipal que continuam importantes, e depois pelos algoritmos.
FCW Cultura Científica – Qual é o risco de ter apenas a informação, de não ter mais o debate nem a reflexão política, como a conversa que os candidatos faziam nas ruas com os eleitores?
Carlos Melo – Antes, o candidato ia até a porta da igreja e conversava com o seu José, que era conservador, e com a dona Maria, progressista, gastando o mesmo tempo com ambos. Hoje, o candidato conservador vai direto ao seu José, não perde mais tempo com a dona Maria. E o candidato progressista faz o mesmo, ignorando o outro. Hoje, um terço pensa de um jeito e um terço pensa absolutamente o contrário. O terceiro terço é o eleitor ainda sem opinião formada. Não é a terceira via, não é o "estou esperando uma alternativa". Esse terço é simplesmente mais independente, digamos assim. E, por isso, o esforço dos candidatos está em conquistar 50% desse terço, porque as eleições recentes terminam em 51% a 49%, sendo muito acirradas, como ocorreu recentemente no Brasil e nos Estados Unidos. São eleições muito disputadas porque dois terços estão calcificados em posições distintas, e o campo de batalha está no terço que ainda pode mudar de opinião. O resultado é que não há mais programa político, preocupação programática ou visão ideológica, para o bem ou para o mal, porque as visões ideológicas nem sempre são para o bem, elas também são voláteis. O fato é que o candidato não sustenta mais, como antes, uma visão ideológica do mundo, pois ele apenas quer conquistar aquele terço fundamental para ser eleito.
FCW Cultura Científica – Nesse cenário, os partidos políticos ainda importam?
Carlos Melo – Essa é uma boa pergunta. Se partidos políticos não importarem mais, teremos uma pulverização muito grande do sistema e perderemos os interlocutores, algo que já está acontecendo. Por exemplo, quando o governo quer formar maioria no Congresso, antes conversava com meia dúzia de líderes partidários e conseguia essa maioria. Hoje, é preciso negociar com 513 parlamentares, pois cada um é senhor de si próprio. Essa pulverização é ruim, porque o custo de negociação é muito maior e a dispersão, também. Democracia implica a existência de canais de representação, caso contrário, vamos em direção à democracia direta, como a ágora grega, que não tinha partidos políticos, mas era uma sociedade de cerca de 5 mil pessoas, todas ricas e homens. Em uma sociedade complexa, se não tivermos partidos, precisamos de algo que os substitua, pois, do contrário, perderemos a capacidade de interlocução. Não dá para resolver tudo por meio de enquetes nas redes sociais. Os partidos políticos importam, mas precisam se reinventar. Não é que perderam a importância, eles ainda são relevantes, mas perderam a capacidade de organização.
FCW Cultura Científica – Quais são os problemas dessa pulverização político-partidária atual?
Carlos Melo – Uma legislação permissiva que permite a presença de 25 partidos no Congresso Nacional é uma loucura. É preciso ter cláusulas de barreira, é necessário discutir a representatividade. Se, por exemplo, um partido não tiver 5% dos votos em pelo menos nove estados, ele precisa se fundir com outro ou compor uma federação. A minirreforma de 2017 buscou esse caminho, tentando acabar com as coligações proporcionais e, ao longo do tempo, reduzir o número de partidos. Uma quantidade excessiva de partidos não significa mais democracia, significa mais custos de negociação e transação. Grupos específicos que querem representação não precisam criar novos partidos, mas sim se organizar e disputar o poder dentro dos partidos existentes. Quem tem capacidade política se mantém; quem não tem, desaparece. É claro que precisamos reduzir o número de partidos, pois a negociação se torna caótica. E o pior: quando o partido perde importância e representação, cada um pensa apenas em si. A questão torna-se individual, e o parlamentar só quer saber de se reeleger. Ele não quer discutir a questão nacional nem temas que não lhe interessam diretamente. Ele quer recursos para realizar uma obra no seu município e garantir a reeleição, sem se importar com a opinião pública geral. O resultado é a "paroquialização" da política que vemos hoje, evidenciando a fragilidade dos partidos.
Como os partidos não conseguem mais agregar diferentes interesses, cada um se volta para sua própria paróquia. Essa unidade também pouco importa para os partidos. O que interessa é ter uma grande bancada, pois é isso que gera mais recursos. Para a elite partidária, não faz diferença se o deputado José pensa igual ou vota junto com a deputada Rosa. O importante é ter ambos, José e Rosa, e aumentar o fundo partidário, reunindo mais recursos — cuja gestão é, por sinal, um ponto absolutamente obscuro. Em resumo, estamos confundindo democracia com democratismo. Os candidatos passam a vangloriar-se das candidaturas, dizendo que sonhavam com o dia em que cada um poderia ser candidato por si próprio. Muitos defendem candidaturas avulsas, o que é um absurdo. Precisamos, sim, de algum instrumento, que hoje chamamos de partido e amanhã poderá ter outro nome, mas que seja capaz de unir um determinado grupo social ou grupos sociais afins para disputar o poder.
FCW Cultura Científica – Em seu blog no UOL, o senhor acompanhou a eleição presidencial de 2018 e todo o governo de Jair Bolsonaro, um dos governantes incidentais como lembrou no início desta entrevista. Qual é o risco para a democracia quando tais candidatos são eleitos?
Carlos Melo – Recentemente, em uma entrevista para um telejornal, o apresentador me pediu para explicar o que é um regime autoritário e o que é uma ditadura. Temos a teoria, os conceitos e as definições clássicas, mas eu resolvi dizer o seguinte: o regime autoritário ocorre quando o líder no poder quer sufocar a oposição. Se puder acabar com a oposição, ele acaba. Acaba com os mecanismos de checks and balances, de freios e contrapesos, com o Judiciário controlando uma parte do processo, e o Legislativo e o Executivo controlando outras. Se ele puder desmantelar as instituições, ele desmantela; se puder colocar a oposição na cadeia, ele coloca. Se puder fazer tudo o que quiser, ele fará. Esse é um regime autoritário. Já o regime ditatorial é quando o governante já fez tudo isso. O problema da fúria é que ela quer ouvir desses governantes incidentais que eles têm soluções rápidas. A fúria tem pressa. A fúria vive com mal-estar e quer resolver seu problema rapidamente. Mas os canais da democracia são lentos. Na democracia, é preciso fazer um diagnóstico do que está acontecendo, pensar no que pode ser feito, propor alternativas, debater as alternativas, votar, implementar — tudo isso sem a garantia de que dará certo. Enquanto isso, o líder autoritário afirma: “Eu tenho a solução para a segurança pública; é só colocar bandido na cadeia, acabar com a saidinha e armar a população”. Mas, para essas soluções rápidas, ele não pode ter um Congresso, porque o Congresso vai querer debater. Ele não pode ter um Judiciário, porque o Judiciário vai dizer que aquilo não é constitucional. Ele não pode ter uma imprensa livre, porque a imprensa vai contestar. Ele não pode ter oposição nem instituições funcionando.
FCW Cultura Científica – Por que esse tipo de governante e de candidatos parece ser cada vez mais frequente?
Carlos Melo – Na eleição de 2018 no Brasil, havia um mal-estar. A esquerda estava destroçada com o impeachment e, depois, com a Lava Jato e a prisão de Lula. O centro estava desmoralizado, pois o governo Temer foi marcado por escândalos: corridinha com mala de dinheiro, apartamento recheado de notas, presidente gravado na garagem do Palácio. O resultado é que o eleitor queria um outsider, alguém que não estivesse ligado ao sistema político tradicional. Nomes como Luciano Huck e Joaquim Barbosa foram cogitados, mas, após avaliar, decidiram não concorrer. Então, o que restou para a fúria? Um outsider de dentro, por mais contraditório que pareça — alguém que já estava no sistema político, mas que nunca havia participado do poder porque sempre foi irrelevante. O centro desapareceu, o antipetismo era muito forte, e Bolsonaro venceu a eleição em uma onda semelhante à que elegeu o Donald Trump dois anos antes.
Zygmunt Bauman teve uma sacada fantástica, que ele chamou de Retropia, título de seu livro. Quando não conseguimos enxergar o futuro, começamos a sonhar com o passado. Um passado em que os Estados Unidos eram grandes, o famoso “Make America Great Again”. Um passado em que o Brasil crescia, tinha ordem e progresso e parecia menos violento — o que é uma ilusão, pois foi o período da ditadura. Essa retropia também apareceu na esquerda: em 2018, a campanha de Fernando Haddad usava o slogan “O Brasil feliz de novo”, remetendo aos anos de Lula. Assim, a solução não está no futuro, nem no presente, mas no passado. A ideia é que, se voltarmos ao passado, se formos regressivos e estabelecermos uma utopia retrógrada, resolveremos os problemas simplesmente desfazendo tudo que foi feito. Tanto que esses governos incidentais, quando surgem, qual é o objetivo deles? É o que vemos em Trump, Orbán, Bolsonaro. O objetivo é ser destrutivo, não construtivo. Destruir para depois refazer. Aí se propõe um plebiscito e uma nova constituição de acordo com o interesse do líder; fecha-se o Judiciário ou aumenta-se o número de juízes para ter o controle e esmagar as instituições. Se o país tem uma Procuradoria-Geral da República, o governante indica um procurador-geral comprometido com ele e seu grupo, e não com a lei ou a sociedade. O procurador-geral deveria defender a sociedade, mas sonha em ir para o Supremo Tribunal Federal e o governante coloca a cenoura ali na frente dele. Isso não ocorre apenas no Brasil. Os Estados Unidos, que se viam como o grande exemplo de democracia, também se mostraram bastante frágeis. Os chamados "pais fundadores" não imaginavam que a política pudesse sair do controle das elites. Costumava-se dizer que nada era mais parecido com um republicano do que um democrata no poder. Mas isso ficou no passado: a elite perdeu o controle do processo, e não se faz política sem liderança. A grande crise que enfrentamos hoje é de liderança. Quando falo de elite, não me refiro à elite econômica, mas à elite política, que possui qualificações e é capaz de conduzir um processo político. Sem isso, é a barbárie — que é mais ou menos o que já começamos a viver.
Entrevista e edição: Heitor Shimizu
Publicado em: 22/11/2024
Foto do entrevistado: arquivo pessoal
Foto de abertura: Paulo Pinto / Agência Brasil
Carlos Melo: À espera de fatos novos
O governo é incapaz de criar fatos novos, a política não
Carlos Melo / Valor Econômico
Há meses, o governo e seus fiéis indicavam as condições para a vitória de Jair Bolsonaro, em 2022. O crescimento em “V” e o final da pandemia, após vacinação em massa, seriam fatos novos. Não fossem suficientes, haveria o dispositivo de força que permitiria ao presidente “jogar fora das quatro linhas da Constituição” - seja lá o que isso signifique.
Nada disso se confirmou e a fé fundamentalista foi abalada. Em 2022, a economia crescerá 1% do PIB, com desemprego, inflação e aumento de juros. A crise social está nas ruas. Quanto à pandemia, 600 mil vidas não ressuscitarão, o ressentimento ficará; a CPI da Covid foi além do que se supunha e seu relatório terá efeitos importantes dentro e fora do Brasil.
O dispositivo golpista foi, por ora, desarmado: o STF asfixiou as finanças do “7 de setembro”; a hierarquia nas PMs funcionou; as Forças Armadas resistiram às investidas do presidente; os caminhoneiros isolaram a banda bolsonarista da categoria. Num desfecho constrangedor, a carta que Michel Temer escreveu para Jair Bolsonaro assinar foi irrefutável sinal de fracasso.
Ilusório esperar salvação por reformas que alterem o destino do governo. À parte a embromação dos líderes, o Congresso Nacional já funciona em modo eleitoral: sabe que reformas trazem desgastes imediatos e benefícios, quando ocorrem, no longo prazo. A razão imediatista é implacável. Improvável que a articulação política do governo a dobre.
Restará o caminho do aumento de gastos com sinecuras e liberações de emendas, como contraparte ao compromisso da blindagem presidencial prometida pelo Centrão. Também outros - importantes, sim, mas limitados -, como o imprescindível “Auxílio Brasil”, estimularão despesas feitas, antes, pela lógica do populismo eleitoral do que com o objetivo do atendimento de graves problemas reais.
A alternativa do presidente e seu grupo tem sido não se agarrar ao bote salva-vidas da mobilização do radicalismo da base social. Um contingente que rodeia os 20% da população e que pode levar Jair Bolsonaro ao segundo turno da eleição. Na esperança de reviver 2018, conta com um embate contra Luiz Inácio Lula da Silva, de modo a se favorecer, mais uma vez, do antipetismo.
É uma estratégia manjada, que não muda o rumo do processo. Pesquisas indicam de que o clima da eleição de 2022 será anti-Bolsonaro. As sondagens demonstram que, no segundo turno, o presidente perderia para qualquer postulante; sendo Lula, hoje, o maior favorecido pelos erros e pela rejeição ao governo. Na verdade, é Bolsonaro quem o viabiliza.
Com isso tudo, teremos pela frente quase 15 meses de um governo que sangra a caminho da derrota. Sendo a instabilidade política e administrativa que provoca, exatamente, o fator que aprofunda seus problemas. A realidade é que, em pouco menos de três anos de mandato, Jair Bolsonaro criou à sua roda um ciclo vicioso, estéril de esperança.
Agentes econômicos buscam se antecipar e, do seu ponto de vista, a perspectiva que vislumbram lhes atormenta. Precificam um cenário em que atravessam uma montanha íngreme e, do outro lado, exauridos, defrontam-se com um arco-íris em tons de cinza, cujo pote de ouro traz - como assinalou o empresário Pedro Passos - a “inaceitável” reeleição de Jair Bolsonaro ou a “indesejável” volta de Lula ao comando do país.
O primeiro, uma usina de crises incapaz de superar os impasses que cria; o segundo, temido em razão de erros do passado e da incerteza que ainda hoje desperta. “O que será seu governo?”, é a pergunta de nove, em dez, reuniões realizadas por empresários e economistas. Num cenário de desalento, aflitos, operadores econômicos acendem velas pelo milagre da “terceira via”.
Improdutivo especular sobre vias sem nome, que ainda não estão no Waze. Essa hipotética alternativa só terá futuro como “segunda via”; para isso, carecerá de fatos novos. Espremida entre direita e esquerda, terá pouco espaço para se expandir e ir ao segundo turno. Dependerá da fragilização de uma das margens que a oprimem. Pelas pesquisas, o nome de Lula está consolidado. Já à margem direita, pelos motivos acima, nem tanto.
O impeachment é pouco provável. Ao apaniguado Centrão, fiel da balança na Câmara, nesse momento mais interessa o governo frágil e dependente - e mais à frente, será tarde. Há sombras que não se pode descartar: no TSE, se analisa a impugnação da eleição da chapa Bolsonaro/Mourão. Mas, por enquanto, seria ocioso contar com isso.
Contudo, é bom lembrar que mesmo num ambiente de poucas perspectivas, no Brasil, tudo é possível. Ulysses Guimarães alertava que política é feita de fatos novos - consta que, reunido com amigos, mantinha cadeira reservada à “sua excelência, o fato novo”. Ele pode tardar, mas frequentemente aparece. E desorganizam tudo.
Objetivamente, a desidratação política de Bolsonaro seria um desses fatos. E, como sem Bolsonaro não haverá antibolsonarismo, uma nova segunda via poderia ser aberta com as máquinas do antipetismo. A inviabilidade, legal ou política, do presidente se sentaria na cadeira reservada pelo Doutor Ulysses. São lances possíveis, num jogo ainda pouco previsível.
Lula é sabedor disso e dos riscos num eventual governo. Hoje, não se sente pressionado e joga com a ansiedade dos outros. Em 2002, empurrou a divulgação da “Carta ao Povo Brasileiro” até junho. O presente, entretanto, é mais inclemente: mais cedo do que mais tarde, terá que emitir sinais claros do que pretende. A quem o criticava por decidir apenas sob pressão, Ulysses respondia: “sim, eu só decido sob pressão”. Sob pressão, Lula também pode criar um fato novo. É bom ficar de olho no jogo.
*Carlos Melo é cientista político e professor senior fellow do Insper.
Fonte: Valor Econômico
https://valor.globo.com/politica/coluna/a-espera-de-fatos-novos.ghtml
Sem provas, Bolsonaro faz mais uma live eleitoral; não foi bomba, foi traque
Carlos Melo / O Estado de S. Paulo
Como tantas lives, foi instrumento eleitoral onde o presidente esconde a realidade do País. Investiu na fantasia do complô e não entregou nada além do que está no zap das suas redes.
Verdade que nada disso importa ao negacionismo nacional, mas os dados do TSE são transparentes, estudiosos os acompanham em detalhe, há fiscalização de candidatos e partidos, observadores internacionais; tudo pode ser auditado, sim. A acirrada concorrência na imprensa não facilitaria silêncios e conluios. Eventos isolados não constroem um fato; nunca se constatou algo relevante. Ainda assim, depois de muito cobrado, Jair Bolsonaro se dispôs a apresentar sua “bomba” contra a Justiça Eleitoral.
A expectativa era mais de forma que de conteúdo: a versão acima dos fatos. E não foi bomba, foi traque. Como tantas lives, foi instrumento eleitoral onde o presidente esconde a realidade do País. Exibiu falsos brilhantes, silogismos, falou em nome de um povo que supostamente o apoia, mas que as pesquisas não comprovam. Investiu na fantasia do complô e não entregou nada além do que está no zap da sua rede.
Tática de escolher um inimigo, atacou o ministro Luís Roberto Barroso. Fez ilações, mas não apresentou provas. Impedida de contestá-lo, a imprensa séria rejeitou a isca e não lhe deu palco. Aos seus fanáticos, sobraram farrapos e desculpas para que contestem, preventivamente, as urnas em 2022.
Até porque não lhes importa a irrefutabilidade das afirmações, reúnem cacos inverossímeis para construir realidade paralela. A partir disso, aprofunda-se o conflito político. Com o ouro de tolo apresentado, semeia-se confusão que, talvez, favoreça o presidente. Contudo, nada é original. Essa pedra bruta já esteve nas mãos de Donald Trump.
Fraude eleitoral é crime, atentado à democracia e ao pacto político. Há mais de ano, Bolsonaro afirma saber de crimes vinculados às eleições de 2018 – recentemente, também ao pleito de 2014. Crimes que, em tese, seriam continuados pois, após isso, houve eleição em 2020. Fica a questão: se houve fraude, o presidente se omitiu; se não houve, o presidente não atentaria agora contra a eleição?
*Cientista político. Professor do Insper
Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/blogs/carlos-melo/sem-provas-bolsonaro-faz-mais-uma-live-eleitoral/
Carlos Melo: A mentira e a linha de um tempo de absurdos
Precipitadamente, esperava-se que o depoimento de Fabio Wajngarten trouxesse revelações bombásticas e viesse a entregar ex-colegas de governo. Afinal, o ex-secretário viveu os bastidores da presidência de Jair Bolsonaro, foi integrante do núcleo dirigente e, sobretudo, por meio da Revista Veja havia dirigido artilharia pesada contra o Ministério da Saúde.
No entanto, sendo evasivo, Wajngarten buscou se caracterizar como um burocrata distante do centro do poder. Defendeu-se e optou pela fidelidade ao presidente e à sua alma mater, o bolsonarismo. E era mesmo essa a perspectiva mais realista a respeito do depoimento.
Contudo, ele não combinou com a maioria da CPI. Determinados em revelar erros do governo e do presidente da República, os membros não governistas da comissão resolveram apertar o ex-secretário. E assim explicitaram inúmeras contradições em suas declarações. Sobretudo, em relação ao que disse à revista Veja.
Saiu dali a primeira protagonista do dia: as acusações de falso testemunho — Wajngarten mentiu à CPI ou à Veja? A revista liberou o áudio da entrevista e uma acareação entre o ex-secretário e seus repórteres foi posta sobre a mesa. Ficou ali patente o erro estratégico de Wajngarten, o que poderia ter-lhe levado da CPI diretamente à prisão. Não chegou a tanto, mas ficou o recado aos próximos depoentes.
A segunda personagem do depoimento emergiu com a exposição da Carta da Pfizer dirigida aos principais membros do governo. Emitida em setembro de 2020, ela alertava para a urgência da negociação em torno da compra de vacinas. Como se o assunto fosse irrelevante, após dois meses parecia ignorada — medidas efetivas se deram apenas quatro meses mortais mais tarde. Inadvertidamente, Wajngarten explicitou “a linha do tempo de absurdos” que giram em torno da pandemia no Brasil.
A mentira e o desmazelo gritaram alto na CPI. Despreparada, a tropa governista não conseguiu deter a linha do tempo. Nem a história, de onde todos os absurdos transbordam.
*Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/blogs/carlos-melo/a-mentira-e-a-linha-de-um-tempo-de-absurdos/
Carlos Melo: Fragilidade política e ruas definirão jogo
CPI é território em disputa: a oposição quer enfraquecer e, se puder, derrubar o governo; governistas agem na contenção de desgastes do Executivo. As condições iniciais tampouco independem de circunstâncias mais gerais, localizadas no governo e no país. Ao final, serão as condições de contorno – a insatisfação popular e a fragilidade política – que definirão o jogo.
Sempre houve abuso na utilização de CPIS. Oposições sem projeto e oportunismo fisiológico as usaram descoladas do contexto mais amplo. Normalmente, “deu em nada”. Mas, o oposto também se deu: a “CPI do PC Farias” derrubou Collor; a “CPI dos Correios” resultou no mensalão e destroçou promissoras lideranças do PT. Nos dois casos, a insatisfação geral se dava para além do objeto da CPI.
Hoje, a população está recolhida ao isolamento social da pandemia. E, por enquanto, não há mobilização de rua, elemento que potencializa as CPIS. Mas, à parte disso, as condições de contorno são notoriamente insatisfatórias.
Em 60 dias, o País chegará a 500 mil mortes, infelizmente. A situação econômica é deplorável: desemprego e fome tomam o cotidiano das famílias. A base governista é arenosa, como se viu no conflito do Orçamento. O governo está internamente fracionado, ministros sob fogo cerrado. Velhos aliados estão ressentidos e a imagem internacional é péssima.
O presidente e seu séquito são máquinas de disparates. Campeões de tiros nos pés, se desviam a atenção, também agravam a situação. A inabilidade política e a incapacidade de articulação atingem patamares inéditos. Não faltam condições de contorno desfavoráveis para que a CPI prospere.
Faltam as ruas. Mas, quanto mais rápido avançar a vacinação, maior a possibilidade de grandes mobilizações. Arrastar a CPI e estender seus ritos será mais um erro. Com quatro senadores e tudo o que ocorre no País, será difícil dominar o território em disputa.
*Cientista Político, professor do Insper
Carlos Melo: Decisão de Fachin acelera o processo político
A decisão do ministro Edson Fachin traz um fato dentro do fato: foi tomada pelo maior aliado que os ex-membros da Operação Lava Jato possuem Supremo Tribunal Federal; aparentemente, aquele que guarda mais concordância com o que foi feito nos processos que condenaram o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Não foram os tradicionais críticos e desafetos dos procuradores de Curitiba e de Sérgio Moro que se impuseram. Foi Edson Fachin. E isso dá maior força à decisão, tornando-a ainda mais simbólica.
Outra dimensão diz respeito ao jogo político: a condenação de Lula, desde sempre questionada por parcela da comunidade jurídica, mais uma vez se torna elemento de disputa política. Agora, com sinal trocado. Se antes, desafetos do ex-presidente usavam a Justiça para detratá-lo; neste momento, serão seus aliados que evocarão a mesma Justiça para erguer a bandeira de sua vitimização. Isso traz saldos.
Abre-se, assim, um novo campo na cena conjuntural. À parte de erros gritantes, Bolsonaro se dava ao luxo de ainda não ter um antagonista à altura, que se impusesse política e eleitoralmente. Um adversário de carne e osso. João Doria, é verdade, tem tentado. Mas, vindo de um apoio ao presidente em 2018, estava na defensiva. O resto do chamado centro se perde repleto de nomes e sem alternativa clara. Com Lula, é diferente.
O petista reemerge para o jogo político com pelo menos duas vantagens: a primeira, a narrativa do injustiçado, como já se disse. A segunda, beneficiado pelo pior momento e pelo desgaste amplo e geral do adversário. A lista é grande: a condução do governo na pandemia é literalmente uma tragédia, a crise econômica carece de rumo, já é reconhecido o estelionato eleitoral no combate à corrupção e na conversão ao liberalismo; os problemas com os filhos, a mansão de Flávio Bolsonaro, tudo faz sangrar.
Além, é claro, o mau humor da comunidade internacional com o Brasil. O temor do mundo de que o País possa, em razão das atitudes de Bolsonaro, significar o maior risco do planeta na proliferação de novas variantes do vírus.
Num cenário visto assim tão de perto, é difícil afirmar que a liberação de Lula possa de algum modo favorecer a Jair Bolsonaro. Contudo, há que se considerar que, é verdade, o presidente passa a ter a bandeira do antipetismo para empunhar novamente. Seus argumentos serão mais frágeis e sua credibilidade muito mais abalada do que em 2018, mas não deixará de ser oportunidade de um evocação às bases. Uma ordem unida para juntar a tropa.
Evidente que, ainda sob o impacto do fato novo, não se sabe como militares, eleitores e políticos de centro, além de setores da economia, reagirão a esse chamamento. Nem como Lula se comportará nesse primeiro momento: dará vazão ao ressentimento, articulará novos pactos e alianças, ou deixará que, por enquanto, Bolsonaro sangre na soma de seus erros? O certo é que a decisão de Fachin acelerou o processo.
*Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
Carlos Melo: Um ano de pandemia - Um poço sem fundo
O coronavírus se espalhou pelo planeta, causou incomensurável número de mortes de indivíduos e destruição de famílias, além do prejuízo econômico. Afetou a percepção das pessoas em relação a governos. Todavia, no Brasil, seus efeitos sobre os planos de Jair Bolsonaro precisam ser relativizados.
Problemas preexistiam. A crise econômica, por exemplo, após um ano de governo, em 2020, persistia sem solução; o extremismo político, a incapacidade de lidar com a democracia são desde sempre traços estruturais do bolsonarismo. Logo, a pandemia, mais do que criar problemas, os aprofundou; explicitou o mal-estar, talvez, difuso.
E, assim, acelerou o processo de conflitos e desacertos, fazendo disparar o tempo político e eleitoral. O ano de 2020 se desenvolveu como avalanche que invadiu 2021, atravessando-o e lançando o país diretamente em 2022: antecipou a disputa eleitoral, que só não está nas ruas porque as ruas estão forçosamente vazias.
Verdade que o presidente nunca desceu do palanque. Mas, desconfiado e competitivo ao extremo, tornou-se mais ansioso, temeroso e temerário. Desprezando efeitos previsíveis da proliferação do vírus, reforçou sua propensão ao voluntarismo e à beligerância diante de inimigos imaginários e adversários reais. Brigou com a ciência, governadores, instituições públicas e organizações civis; calcinou o discurso moralista e o liberalismo de ocasião, ostentados em 2018. Blindado pelo Centrão, é incapaz de afirmar quem é mesmo base de quem.
Também para parcela da sociedade o tempo acelerou. Se não como ação coordenada, de frente política, pelo menos pelo convencimento a respeito dos problemas do país. Desinteligências explicitadas serviram de alerta para instituições como o STF, por exemplo. Ainda há dispersão, mas já se pode notar disposição – e pressão social – para que se evite fragmentação política e eleitoral para além do inevitável, em 2022. A pandemia mostrou que poço, às vezes, não tem fundo; e que é preciso encontrar um modo urgente de tampá-lo.
*Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
Carlos Melo: Ampla lista de prioridade é não ter prioridade
Vencer eleição não é difícil, sobretudo, com recursos às mancheias. Difícil é satisfazer expectativas: cumprir promessas espalhadas ao ar como confetes, honrar acordos, conciliando interesses; definir prioridades e demonstrar como realizá-las. Passadas as disputas na Câmara e no Senado, os vencedores devem mostrar que estão prontos e sabem o que fazer. Liderança é um estado de prontidão.
Agrega-se a eles nessa obrigação também o Executivo, pois, no limite, foi o presidente da República proclamado como grande vitorioso do processo. Para Jair Bolsonaro será, aliás, um desafio interessante: a partir de agora, não poderá dizer que é impedido pelo Congresso, não poderá atribuir a desafetos a origem de suas dificuldades: ao vencedor, não cabe desculpas.
Nesse sentido, era natural que os principais dirigentes políticos do país viessem a público expressar seus propósitos. No processo eleitoral, Arthur Lira, por exemplo, não conseguiu elaborar nada que extrapolasse o corporativismo, o interesse e as questiúnculas de seus pares do baixo clero. Logo, cumpria mostrar ao que vieram. Foi o que tentaram simbolizar ao trocarem quase protocolarmente cartas de intenção.
Primeiro, Pacheco e Lira enfatizaram o enfrentamento à pandemia na aquisição de vacinas — atribuição do Executivo, diga-se –, apontaram a necessidade do retorno ao Auxílio Emergencial; comprometeram-se com o teto de gastos, mencionaram as “reformas”. Não disseram como.
Depois, foi presidente: numa lista de 35 propostas, Bolsonaro desenrolou um pergaminho de questões ao gosto de uma base eleitoral conservadora e extremista. Para o mercado, houve espaço até para mencionar a retomada do investimento e a questão fiscal.
Mas, é forçoso reconhecer que o rol de questões é perigosamente amplo e genérico. Parece produtivo, mas prima pela falta de objetividade. Em ambiente de escassez, o governar é definir prioridades. No mais, apresentar um plano para realizá-las. Isso, sim, expressaria liderança e sinalizaria caminhos para superação da crise ampla, geral e irrestrita em que o país se encontra.
É certo que em política não há o rigor de uma ordem burocrática, nem movimentos exatos; nada é simples, há conflitos e movimentos de opinião pública podem ajudar ou inviabilizar pautas importantes. É da natureza da atividade que intercorrências possam se interpor aos desejos. Mas, o timing é fundamental: iniciar o processo com clareza, seria importantíssimo. Por definição, ter mais de uma prioridade, é não ter prioridade alguma.
*Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
Carlos Melo: Rodrigo Maia, novos presidentes e grandes desafios
Atividade dinâmica, a política é cruel. Há três meses, o Dem saía das urnas municipais quase consagrado – era o mais vistoso. Rodrigo Maia colhia os maiores louros. O então presidente da Câmara posicionava-se como o aglutinador do chamado “centro”, o “sujeito do diálogo” pelo qual, não sem motivo, muitos clamavam. Com vistas em 2022, Maia seria a ponte desde o centro direita até o centro esquerda. Independente do candidato à presidência desse amplo espectro, certo é que Maia seria um dos articuladores do que se pretendia “uma frente ampla”.
A fama que Maia construiu não foi imerecida: no longo período em que se manteve à frente da Câmara, deu extraordinário salto de importância; interveio no debate nacional, propôs. No mais, não se deixou levar pelo canto que lhe oferecia o lugar de Michel Temer; articulou o teto de gastos e a reforma da Previdência – com todos seus erros, acertos e inevitabilidades –, defendeu as prerrogativas do Congresso Nacional e seu papel de freio e contrapeso ao bolsonarismo.
A possibilidade de continuar no centro da cena, foi-lhe, porém, corretamente negada pelo Supremo. O papel da aglutinação foi-lhe retirado pelos próprios correligionários do Dem, pelos parceiros do PSDB e de outros partidos em que, entre a fidelidade ao líder e a fidelidade a seus próprios interesses, ficaram naturalmente consigo mesmos. Como demonstrou O Estadão (aqui), as verbas do governo tiveram poder irresistível diante do apetite dos parlamentares. Sem conexão com o Executivo, Maia (e Rossi) tornou-se pão dormido; no curto prazo, não apeteceria aquele tipo de paladar; deixou de ser perspectiva de poder.
Para reaver a esperança de exercer papel relevante em 2022, o emotivo ex-presidente terá que se reconstruir. Rapidamente, numa dinâmica mais vertiginosa que sua queda. Como diz a canção, se seu mundo caiu, carece aprender a levitar. E haverá ambiente para isso.
Nesta terça-feira, Câmara e Senado amanheceram com novos presidentes, ambos apoiados por Jair Bolsonaro — quem, um dia, estimulou sua turba a fechar as duas Casas. Terá mudado de ideia? O tempo dirá. O processo político não depende apenas da vontade dos atores; menos ainda das confabulações em torno de cargos e emendas. Bem ou mal, há uma sociedade com expectativas, interesses, desesperos e, às vezes, indignação. Os desafios para contentá-la são gigantes. Já a dimensão do entendimento dos problemas do país e a efetividade da ação governamental para resolver múltiplas crises é ínfima.
A situação interna se deteriora, o respeito externo ao país derrete. Paciência e resignação têm limites; os leões da morte, do desemprego e da fome rugem. E o centrão ouve mal. Tome-se o programa (sic) que Arthur Lira expôs da tribuna, ao defender a candidatura e mesmo as platitudes mencionadas, já eleito: foram discursos de, para e pelo “baixo clero”. No máximo, espumas sobre o país, democracia, autonomia do Legislativo. Nada muito além disso. Não falou para o Povo. Antes, dirigiu-se a seus pares — o seu povo verdadeiro. Ao que tudo indica, isso não bastará. Se houver, o engenho e a arte — que têm faltado — haverá espaço para vários Maias.
*Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
O Globo: 'O governo não vai aprovar tudo o que quiser’, diz o sociólogo Carlos Melo
Para professor do Insper, efeito da pandemia na popularidade de Jair Bolsonaro testará fidelidade dos deputados do centrão ao Palácio do Planalto
Eduardo Salgado / O Globo
SÃO PAULO — Para o professor sênior de Sociologia e Política do Insper Carlos Melo, a possível vitória do deputado Arthur Lira (PP-AL) na disputa pela presidência da Câmara deve sacramentar uma aliança cujo principal objetivo é a “blindagem para evitar um eventual processo de impeachment”. Leia a entrevista com o sociólogo:
Qual é o tamanho do favoritismo de Arthur Lira, apoiado pelo presidente Jair Bolsonaro, em relação a Baleia Rossi (MDB-SP), do grupo do deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ)?
As promessas do governo de liberação de recursos e reforma ministerial indicam uma vitória de Lira. Mas é claro que existem movimentações de última hora. Como é uma votação secreta, pode haver traições.
Na campanha de 2018, Bolsonaro prometia não fazer o que ele chamava de “velha política”. O apoio do presidente a Arthur Lira, expoente do centrão, configura uma quebra de promessa de campanha?
Certamente. Bolsonaro está mordendo a língua. É um estelionato eleitoral. O apoio mostra a inconsistência daquele discurso demagógico. E, em virtude disso, a aliança com o centrão aumenta o desalento em relação aos políticos e ao sistema político. O fisiologismo, desprovido de programa, não tem freio. Quando ouço promessas de acesso a recursos e ministérios, pergunto: a troco de quê? Em troca de blindagem para evitar um eventual processo de impeachment e para proteger os filhos. No máximo, um projeto de poder exclusivamente eleitoral. Não se discute como superar essa crise econômica, social, política e sanitária.
A agenda do governo, inclusive a ideológica, ganha fôlego no caso da vitória de Lira?
O governo não vai aprovar tudo o que quiser. Quando a prática é fisiológica, cada nova votação exige nova negociação e concessão de recursos. Não há fidelidade. Há interesses cruzados. O centrão não devota essa fidelidade a ninguém. Cada parlamentar do centrão é fiel a si mesmo. O desgaste popular do presidente e do sistema tende a continuar. O ex-presidente Tancredo Neves tinha uma frase ótima: “O político vai com o outro até a sepultura, mas não se joga”.
Como essa união entre o governo e o grupo que apoia Lira deve impactar a base de apoio do presidente?
Vamos considerar que o apoio a Bolsonaro seja de um terço do eleitorado. Dentro desse grupo, há uma parcela de extrema direita, que sempre existiu no Brasil. Algo em torno de 15% do eleitorado, talvez. Esse grupo Bolsonaro não perde. Outro setor que ainda está com o presidente são os ultraliberais, que se frustram e se descolam à medida que as respostas para a economia não vêm. Há também um grupo que apoia o presidente por causa do auxílio emergencial, cuja tendência natural é diminuir. Por fim, há os antipetistas. A corrosão do apoio pode, sim, chegar num ponto em que acabe a blindagem popular. Isso aconteceu com Fernando Collor e Dilma Rousseff.
Quais serão os fatores de definirão a longevidade do casamento entre o governo e o centrão?
Enquanto houver uma expectativa de um projeto de poder, o centrão estará com o presidente. O objetivo é ter acesso continuado a recursos públicos. A meta é a reeleição de Bolsonaro e de cada parlamentar do grupo. A eventual eleição de Lira sela o abraço institucional de Bolsonaro no centrão. Agora, se a popularidade do presidente cair e a possibilidade de poder se dissipar, o centrão vai abandonar o navio. Se o país quiser sair dessa crise, vai precisar de uma agenda que exige três quintos dos parlamentares nas duas casas do Congresso, além do apoio da sociedade. Essa maioria é necessária para fazer reformas, criar impostos e reeditar o auxílio emergencial, o que me parece inevitável. Conseguir 257 deputados para eleger o Lira é uma coisa. Chegar a 308 votos na Câmara e 49 no Senado para mudar a Constituição é completamente diferente.
O senhor acredita no apoio voluntário dessa base que sustenta a candidatura de Arthur Lira às reformas?
O que interessa para eles é a dependência de Bolsonaro. Temos um presidente corporativista e sem habilidade política, que amaldiçoa a política, com uma base que demoniza o centrão. Se, lá na frente, Bolsonaro recuperar o apoio popular e plenas condições de governabilidade, quem garante que ele não abandonará seus novos amigos?
Em que medida o sucesso no enfrentamento da pandemia afeta a relação entre o presidente o Congresso?
A pandemia está sem controle. A chance de estancá-la a médio prazo é pequena. O desemprego e o desalento estão elevados e, com o fim do auxílio emergencial, devem aumentar. A pressão por medidas imediatas será muito forte. Já no Congresso, o processo de negociação do fisiologismo é lento porque os recursos são escassos. Uma das possibilidades é que o presidente venha a ter novos abalos na popularidade. Quando o apoio popular cai, a governabilidade mingua. Um influencia o outro. Quanto menos apoio popular Bolsonaro tiver, maior o poder de barganha do centrão. Isso se mantém até que exista oxigênio para combustão. Se acabar o oxigênio, é possível que um processo de impeachment seja votado ou que o Centrão decida não entrar no barco da reeleição de Bolsonaro.
E se Baleia reverter as previsões e ganhar a disputa na Câmara?
Com o Baleia, há um elevado grau de fisiologismo também, mas não da mesma ordem do de Lira. Não tenho ilusão. Baleia não é um estadista. Também não creio que iria facilmente para o impeachment. Mas é verdade que Maia construiu uma agenda, e Baleia poderia ser sua continuidade. Uma agenda de defesa da autonomia do Congresso e da permanência de um núcleo reformista. Maia surpreendeu no período em que esteve no comando da Câmara, salvando Bolsonaro do desastre que o próprio presidente construía. A reforma da Previdência era necessária e foi feita por Maia, a despeito de Bolsonaro. O auxílio emergencial também saiu do Congresso. Com Baleia, a agenda de costumes do presidente não teria chance e haveria algum ambiente para reformas.
Carlos Melo: O governo Bolsonaro precisaria se reinventar, mas isso é muito improvável
Com saída de Rodrigo Maia do comando da Câmara dos Deputados, presidente perde apoio para agenda reformista
Não há o que inventar: à luz dos dados e das evidências, o País precisa de reformas estruturais para sanear o ambiente de negócios e retomar o desenvolvimento econômico e social. Além disso, urge para políticas públicas capazes de mitigar os efeitos da grande crise, recolocando as pessoas no mundo do trabalho e ampliando seus horizontes no futuro. Bem ou mal, 2020 parece ter convencido parte do Congresso Nacional e dos formadores de opinião a esse respeito; percebeu-se que, ainda que não possa nem deva ser abandonada, a agenda fiscal não basta.
Mas nada é simples: mesmo ciente do óbvio, nos últimos anos o País tem ficado pelo caminho se arrastando de crise em crise. Na pandemia, um tolo maniqueísmo que contrapôs a saúde à economia atropelou a agenda e deixou sequelas na inteligência. Na miséria da política e no auge da indigência intelectual, ao final, nem a saúde nem a economia foram poupadas. Restou o pior de três mundos: quase 200 mil mortes, explosão do gasto fiscal e um extraordinário contingente de desempregados e desalentados, dependentes de mais recursos.
No Brasil, o óbvio precisa gritar mais alto: a economia depende da política e a política depende da liderança dos agentes, a começar pelo Poder Executivo. Jair Bolsonaro e seu governo, no entanto, precisariam se reinventar; mas a mostra de dois anos de mandato diz que isso é improvável. Não há curva de aprendizado a considerar, o presidente se mantém atado ao fel do ressentimento, ao negacionismo, ao senso comum; sua obsessão é a reeleição. O imperativo da Grande Política também grita, mas o bolsonarismo, desconhecendo o que é, não pode ouvi-lo.
À exceção de parte da imprensa e da opinião pública, a verdade é que, no Congresso Nacional e no meio empresarial, nenhum outro presidente recebeu tantos gestos de indulgência e tolerância. O Parlamento não apenas impediu erros crassos do governo, como melhorou medidas que, ao final, bancaram a popularidade do presidente, como o auxílio emergencial. O corporativismo e os desatinos vieram de Bolsonaro, não do Congresso. Em 2020, não foram armadilhas da oposição que pesaram, mas a ausência de governo.
A não ser por um possível esgotamento da tolerância e da indulgência, não há sinais de que todo o resto possa mudar. Para 2021, as condições gerais tendem a se repetir e o quadro a ficar mais dramático. Ademais, quando as fichas são depositadas no Centrão, qualquer esperança se dissipa: ao Executivo faltam ideias, iniciativa, habilidade; ao Centrão falta interesse para mudar. No melhor cenário, a estratégia será defensiva: diminuição de prejuízos políticos, no máximo a defesa do teto de gastos ou, paradoxalmente, seu desmoronamento em nome da popularidade, sem riscos de responsabilização do presidente.
Arthur Lira (PP-AL), candidato de Bolsonaro, não é liderança que se fez com ideias, princípios e bandeiras econômicas. Ele e seus aliados têm a oferecer apenas aquilo a que o governo pode recompensar. Não se trata de reformas e, provavelmente, sequer maioria no longo prazo – caso a popularidade despenque. O pacote do Centrão se resume à blindagem política e animação eleitoral, não passa por transformações que firam interesses nos grotões e currais eleitorais. Enquanto houver recursos, a voracidade fisiológica não encontrará saciedade. O “depois” fica para as calendas gregas; o compromisso do fisiologismo é sempre imediato e consigo próprio. Outro óbvio.
Também é óbvio que a vitória de Lira não é trivial; neste início de ano, é mesmo incerta. A despeito do poder da máquina federal, um triunfo de Rodrigo Maia, por meio da candidatura de Baleia Rossi (MDB), é bastante plausível. Evidente que o MDB e seu redor tampouco têm intolerância à lactose dos recursos federais. Mas os preços subirão e a relação será mais dura. Sobre Baleia, haverá maior pressão quanto às prerrogativas da Câmara e algum compromisso com a esquerda será inevitável. Mais que Maia, Rossi será cobrado a se posicionar diante de sandices e excessos. Claro que o debate reformista não estará obstruído, mas óbvio que nada se fará sem o cálculo de perdas e ganhos políticos: 2022 já começou e o bloco de Maia não estará do mesmo lado que Bolsonaro; logo o calor reformista da Câmara, na hipótese de favorecer o governo, obviamente, se abrandará. Mais provável é que crises entre Executivo e Legislativo sejam mais corriqueiras e mais tensas, talvez com maiores consequências do que até aqui.
Ao jogar Rodrigo Maia e seu grupo para a banda da oposição, Bolsonaro dispensou o parceiro da agenda que jamais foi capaz de elaborar. Resultado: perdeu apoio reformista e ganhou pressão fisiológica. A insensatez é o seu Norte. Isso sem mencionar o que arde fora do Congresso: o desastre da pandemia, o agravamento da crise econômica, a barafunda da vacina, a pressão de Estados e municípios, a crise social, as “rachadinhas”, os filhos, a ignorância ideológica; o isolamento internacional, a desinteligência com a China, a desafronta de Joe Biden. Óbvios que também gritam alto.
* Cientista político e professor do Insper
Conteúdo Completo
- A vida de milhões de pessoas vai piorar em 2021
- Os desafios da economia em 2021
- Nunca estivemos tão perto e tão longe da reforma tributária
- Política ambiental é entrave ao crescimento
- Privatização mesmo só veremos nos governos estaduais
- Reforma administrativa é a agenda que precisa caminhar
- O governo Bolsonaro precisaria se reinventar, mas isso é muito improvável
- O grande risco para o Brasil este ano é interno, e não externo
- Política antiglobalista de Bolsonaro tem um preço
- O que é bom para os EUA nem sempre é bom para o Brasil
Carlos Melo: Saldo ainda mais negativo…
O saldo dos dois anos do governo Bolsonaro é trágico: da economia à política, da cultura aos exemplos que os líderes precisam expressar, quase nada do que se fez ou foi prometido pode ser aproveitado. Só não é pior porque muito do que se pretendeu fazer agravaria ainda mais a situação caso fosse efetivado, são os exemplos da pauta de costumes ou da agenda de Segurança Pública, compromissos do presidente com sua base mais fundamentalista e radical. Contudo, é claro, nada do que disse este parágrafo é consenso; e uma questão importante é compreender o porquê.
O presidente e seus aliados argumentam que o saldo negativo deve ser debitado da conta da oposição – que não existiu –, do espantalho de um “globalismo-comunista” (de ficção), da pandemia que paralisou o mundo em 2020. De fato, o ano foi marcante em todo planeta, em virtude da covid-19. Naturalmente, desse choque decorreram crises econômicas e sociais, tornando esse o período mais dramático desde a segunda guerra mundial, pelo menos. Mas, no Brasil, por inacreditável que pudesse parecer, o presidente e os seus conseguiram agravar a situação.
Acelerando o processo, a pandemia escancarou a miséria política nacional e revelou que o Brasil é um país que não apenas não tem governo, como há um grupo que imagina governá-lo, tornando o ambiente ainda mais caótico; fazendo das múltiplas crises questões de difícil superação, como que acreditando que para sair de um buraco é necessário cavar mais fundo. Um grupo que investe na desconstrução do país, sem saber o que edificar para proveito de uma sociedade mais ampla e moderna que seus acólitos.
Assim, o saldo de dois anos de governo revela com crueza algo muito pior do que promessas não cumpridas: 2020 encerra uma década perdida, uma década de desatinos e retrocessos, que chegou ao seu final com o país dirigido por um presidente da República incapaz, que, por conta do desconforto dessa situação, tem sido tratado pelas elites e pelas instituições como inimputável; um parente incômodo e desagradável que não pode ser colocado para fora da festa da família, pois, afinal, existem laços (políticos) que não se quer (ou não se pode) desatar. E que laços seriam esses?
A verdade é que Bolsonaro não está só. Embora evidente, o saldo negativo é tido por uma parcela (delirante) da sociedade brasileira como positivo, e assim o saúda e o defende, sendo irredutível no apoio ao desastre. São setores multifacetados: uns, vítimas da 4ª. Revolução, ressentidos com o Estado, com a democracia e a política que de fato os esqueceu ou os pune, na irredutibilidade da crise econômica, na precariedade do próprio Estado, na ineficiência dos serviços essenciais e das políticas públicas.
Outros que, por índole pessoal e cultural, trazem o gosto de sangue na boca e acreditam nas soluções fáceis e brutas, defendendo o uso irracional da força a partir de um mítico messias gestado no ventre da barbárie social e política. E ainda outros, enfeitiçados pelo canto do ultraliberalismo oco e improdutivo, quando confrontado com os desafios do século 21.
É preciso encarar os fatos, o levantamento mais profundo – que cruza desempenho governamental com dados de pesquisas de aprovação ao governo — demonstra que o saldo desses dois anos é ainda mais negativo do que a evidência das promessas não realizadas. Ele revela o desconforto de um nó político: Bolsonaro não demonstra desempenho administrativo, econômico, social e político que justifique a despesa dos cofres públicos consigo, seu grupo e sua família. Mas, expressando o caos e vocalizando o vazio, é representativo de uma década em que o país se perdeu e que custa a se reencontrar em vista fragmentação e do esfacelamento das demais forças políticas. E isso torna a todos responsáveis.
*Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.