carlos melo

Carlos Melo: Balanço positivo, até aqui

Resultado estaria definido, não fosse política e não fosse São Paulo

A apreensão sobre as eleições de 2020 era legítima. Desde 2014, o clima foi de degradação política, níveis crescentes de conflito, ataques pessoais, e muitas, muitas fake news. A expectativa quanto à extrema-direita, disposta a desqualificar e a maldizer a democracia liberal, também estava presente – a começar pela postura desde sempre beligerante do presidente da República.

Contudo, as eleições terminam com balanço positivo, pelo menos até aqui – infelizmente, a prudência ainda exige o reparo de precaução. Os conflitos ocorreram sob limites impostos pela civilização. À exceção do caso do Rio de Janeiro, onde Marcelo Crivella, no desespero da última hora, resolveu reviver 2018, as divergências foram discutidas em níveis aceitáveis; rusgas políticas e até familiares – caso do Recife – emergiram; denúncias foram feitas baseadas em pelo menos algum indício. De tudo um pouco, mas nada que o tempo e a aceitação dos resultados não superem.

A extrema-direita teve crescimento apenas relativo nas Câmaras, contudo não logrou sucesso nos Executivos. Os candidatos intensamente apoiados pelo presidente Bolsonaro em seu horário eleitoral fake foram solenemente ignorados pelos eleitores. Políticos experientes foram resgatados e a ideia de que a solução dos problemas deve se dar pela via da negociação foi fortalecida.

Também o fim das coligações proporcionais foi importante. O número de Câmaras Municipais com até cinco partidos quase triplicou, já a quantidade de parlamentos municipais com mais de cinco legendas foi reduzida a menos da metade. No geral, os prefeitos terão melhores condições de negociação com as forças políticas, a representação ficará mais nítida; em tese, a sociedade observará sistema mais coeso. Agora, cabe não permitir que, no Congresso Nacional, interesses contrariados anulem avanços nesse campo.

Na maior cidade do País, São Paulo, a eleição transcorreu calmamente, em que pese um ou outro excesso das torcidas. Como informou a jornalista Vera Magalhães, Bruno Covas sabe que Guilherme Boulos não é radical e extremista; Guilherme Boulos reconhece que Covas não é fascista ou bolsonarista.

Na véspera, pesquisa Ibope/Estadão/TV Globo aponta estagnação: o prefeito consolidado nos 48% do total de votos, e o psolista com significativos 36%; indecisos, brancos e nulos ainda podem mudar o quadro. Mesmo assim, o resultado estaria definido, não fosse política e não fosse São Paulo. No primeiro turno, Boulos embolava em segundo lugar; na boca de urna, disparou.

As urnas são soberanas e São Paulo é expressão da diversidade e autonomia da política. Qualquer que seja o resultado, ele será democraticamente válido e reconhecido. Deveria ser óbvio, mas isso tudo é muito positivo.

*Carlos Melo, cientista político e professor do Insper


Carlos Melo: Na ressaca de 2018, Dem e PSOL deixam de ser coadjuvantes…

Necessário ainda pesar todos os números da eleição, nos 5.568 municípios do Brasil, de modo a verificar quem está realmente distribuído em território nacional. Como, por exemplo, ficou o Centrão de Jair Bolsonaro, nos rincões do país. Mas, olhando exclusivamente para resultados de maior visibilidade, já é possível fazer algumas afirmações sobre o saldo da eleição.

Antes de definir vencedores e vencidos, uma questão estrutural já parece clara: em 2020 o eleitor foi às urnas com ressaca do porre político de 2018. Há dois anos, as urnas se moveram pelo ressentimento contra a política – aquilo que os singelos e, também, os espertos chamaram de “velha política”, que na verdade era mais ou menos a política de sempre.

A “nova política” – de resto um clichê – não vingou; foi nada mais que uma cachaça de má qualidade, responsável por considerável dor-de-cabeça, cujo maior exemplo, até aqui, é o destino de Wilson Witzel. Mas, claro, não só: são vários os Witzels que podem ter o mesmo destino.

Desiludido com os frutos de sua própria desilusão, nascida possivelmente lá em 2013, o eleitor de 2020 se manifestou diante do que lhe foi entregue pelo ressentimento de 2018. Parece compreender que não será pela truculência e estupidez que os problemas se resolverão. Nesta eleição, a demagogia e o populismo contaram muito menos – embora, é claro, existam e sempre existirão no reino da Política.

Isto posto, o primeiro balanço é possível. A extrema-direita não teve o êxito que esperava: a vitória em 2018 foi eleitoral, mas não política. Não expandiu os limites de adesão orgânica que vigoram desde o Integralismo, de Plínio Salgado O grande desafio da democracia é manter seu reacionarismo atado à coleira.

Outro ponto: a polarização entre PT e PSDB parece superada. Os dois partidos – como os conhecemos – parecem ultrapassados pela história, embora continuem vivos aqui e acolá. Isso não significa que a velha disputa entre a esquerda e o centro tenha desaparecido. Essa continua, possivelmente com novos atores ou, pelo menos, com uma reviravolta no elenco: coadjuvantes de ontem almejam o protagonismo.

É o que se pode dizer inicialmente de PSOL e Democratas: apêndices de PT e PSDB, se descolaram. A despeito de São Paulo (Capital) onde o Dem nunca teve grande expressão, a jovem-guarda do antigo PFL ganhou corpo em várias e relevantes capitais, se desvencilhou do Centrão, assumiu-se como centro-centro. Já percebido no Congresso Nacional, isso parece ter ganho as cidades.

Por sua vez, o PSOL pede passagem em duas frentes. Na primeira, representando a esquerda nova – mais identitária e cultural, nas jovens periferias do Brasil; gente que vê o PT como “coisa de tios”. Na outra, onde exatamente está boa parte desses “tios”, que buscam no PSOL o PT do passado, na pureza e romantismo perdidos. Isso demonstra a necessidade de reinvenção nesses dois campos: o centro e esquerda. Se os dirigentes não o fizeram, a sociedade o fará. — já começou a fazê-lo, neste domingo.

No mais, como se intuía, os padrinhos perderam: Jair Bolsonaro, como a raposa da fábula, hoje diz que “as uvas estão verdes”, jogando o fracasso para o quintal do vizinho – a esquerda –, camuflando a grande derrota, cujo maior símbolo é a queda expressiva de votação de seu filho, Carlos, como vereador do Rio de Janeiro, e a não eleição de sua ex-esposa. Não há bolsonarismo, mostrou a eleição: há Bolsonaro, seu mito e sua seita.

Lula, que, de última hora, entregou a cabeça de Jilmar Tatto para não se comprometer com a derrota, tenta agora se associar a sucessos esparsos: se de fato era Boulos desde criancinha, por que não contornou interesses e evitou a vexaminosa derrota de seu partido? Já João Doria ou de Ciro Gomes passaram ao largo da eleição, com o governador “explicitamente escondido” por Bruno Covas – uma contradição em termos, mas reveladora. Enfim, 2020 pode demarcar uma interessante inflexão na política nacional. A história dirá.

*Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.


Carlos Melo: O desafio de Joe Biden

Ao longo dos últimos dias, a maior parte do mundo civilizado se pôs entre perplexa e desolada diante da hipótese concreta de mais uma vitória de Donald Trump. Para quem prefere ver o mundo com valores humanísticos, seu desempenho foi assustador. Goste-se ou não, é um forte. Agiu de modo oposto ao recomendável e ao razoável e ainda assim foi longe. Governou com vistas a desunir, não a agregar; se indispôs com a arte, com a ciência com a Grande Política; plantou a discórdia, colheu o desprezo de boa parte do planeta. E, ainda assim, por pouco não foi reeleito.

Já fiz essa pergunta em outro artigo, nesse Estadão, mas ela ainda vale: qual a razão de sua força? Ela não brota de qualidades pessoais, certamente. Trata-se de um homem grosseiro, de carisma duvidoso; rude nos gestos, estreito intelectualmente. Um canastrão, no palco da História Mundial, um Quixote da direita, franco atirador movido pela vaidade pessoal, pelo hedonismo dos novos ricos, inebriado pelo poder. Fosse brasileiro, seria comparada aos barões decadentes que estacionam seus carrões em vagas proibidas, exigem mesas especiais nos restaurantes e ameaçam chamar “o seu delegado” particular.

Por décadas, a humanidade especulará em torno dessa força – como faço agora. O fato é que, após Barack Obama, a maior democracia da história deu vida política a Trump e quase o reelegeu. Quem, no início da década de 1990 assistiu ao cult movie “Um dia de fúria”, sabe que o mal-estar ronda o mundo – como disse Tony Judt – há muito tempo. A revolução tecnológica deu saltos, mas nem todos a puderam alcançar: restaram milhões de deserdados – os “invisíveis” que somente agora o ministro Paulo Guedes percebeu existir.

Eles não têm formação, não têm profissão, não têm emprego; sem futuro, agarram-se a algum tipo de uber, num processo de precarização aparentemente sem fim.

Foi dessa decadência que se fez a noite, desse pântano que emergiu o monstro que deu vida ao Brexit, a Donald Trump e às mancheias de genéricos que carregam o mesmo princípio ativo: a demagogia, posto que há muita espuma em barulho, mas nenhuma providência concreta para resolver problemas reais. Quais as grandes medidas adotadas por Trump – ou por Bolsonaro ou pelo Reino Unido, pós Brexit – capazes de alterar a rota de exclusão e desalento, catalisada pela covid-19?

Da estagnação econômica e da desigualdade brota a degeneração política – e se o original traz essa degenerescência, o que dizer das cópias espalhadas pelo mundo? Enfim, são ecos do desespero, é a nostalgia de um passado idealizado – make America great again –, são a ignorância e o ressentimento que apelam à violência e ao oportunismo que invade a religião e assenhora-se de um deus, como se Deus fosse só seus.

O iluminismo de Barack Obama foi incapaz de estabelecer vínculos e diálogos com essa população brutalizada pela desigualdade cuja arrogância do liberalismo radical e dogmático apenas ampliou. Hillary Clinton foi vítima da própria presunção, natural dos bem-nascidos formados na Yve League, que acreditam poder passar ao largo do mal-estar que espreita pelas janelas e ocupa as esquinas, presa fácil de todo tipo de milícias.

Donald Trump é o líder demagogo surge nos balcões do desemprego e da cabeça baixa dos invisíveis — assim como aquele outro que surgiu dos balcões das cervejarias de Munique, na Alemanha dos anos 1920. Ele expressa o mal-estar da civilização contemporânea. É isso que o levou tão longe. Se é verdade que tem contas a pagar, verdade também são os saldos que tem a recolher se a dívida social não for liquidada. Por detrás de si, há uma horda de desvalidos a procura de um fiapo qualquer de esperança. É preciso ter atenção para isso e qualificar essa esperança.

Esse será o grande desafio de Joe Biden: compreender os problemas de seu país e do mundo; não fugir à responsabilidade de governar para todos; somar e não mais dividir, incorporar os destroços do século 20 aos melhores sonhos do século 21. Estabelecer vínculos e políticas públicas com e para os rejeitados pela 4ª. Revolução. Retirar-lhes do sanatório, abrir-lhes a porta de um abrigo seguro e as janelas das oportunidades. Terá no seu encalço, se não Donald Trump, o seu fantasma. Se fracassar, do caudaloso lago da desigualdade e da ignorância, outro monstro da demagogia poderá surgir. Inviabilizá-lo é seu desafio e o desafio do mundo todo.

*Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.


Carlos Melo: Qual a razão da força de Trump?

A força do mal-estar dos excluídos pela 4ª Revolução é que faz Trump ousar e contestar

Goste-se ou não, Donald Trump é um forte. Pois, posto à sabatina do manuais da política, fez tudo ao contrário do que se pode esperar de um presidente de um grande país: governou basicamente para seus eleitores; fragmentou ao invés de agregar; açulou o ódio racial, o hedonismo, a arrogância. Criou mais confusões do que concórdia, não deu caminhos de solução para os problemas; não apontou saídas para os impasses de uma sociedade perdida na transição entre a velha e a nova economias. E, ainda assim, Donald Trump chegou longe, a ponto de, desde o início da apuração, deixar analistas assustados com a hipótese de mais uma surpreendente vitória. Seu desempenho é melhor do que muita gente esperava.

Qual a razão dessa força de Donald Trump? Seu poder não brota de qualidades pessoais, certamente. Ela não reside no seu carisma duvidoso; na rudeza de seus gestos ou na estreiteza de sua sofisticação intelectual. No palco da grande política mundial, Trump não passa da categoria de canastrão incapaz de ombrear-se com grandes nomes da história – a comparação que tentou forjar com Abraham Lincoln soou risível. Seus atos e seu texto são limitados, voltados para o público do que os próprios americanos chamariam de soap opera, novelas e dramalhões de gosto duvidoso.

E, por tudo isso, mais uma vez a pergunta se faz necessária: qual a razão de sua força? Sua força brota do mal-estar da sociedade; no pouco-caso com que a economia tem tratado milhões de pessoas desalojadas do mundo do trabalho, inviabilizadas para a sociedade do consumo, apartadas dos salões chiques onde se reúnem ricos e intelectuais, despreocupados com o que fazer com toda a desigualdade. Donald Trump e seus genéricos mundo a fora surgem na incapacidade que a política e a democracia têm demonstrado em relação ao futuro.

É certo que Trump tampouco demonstrou saber o que fazer com tudo isso: objetivamente, não tem projeto. Mas, é fato que no seu estilo bruto e sem brilho tem sabido dialogar com essa multidão de esquecidos pela política e pela globalização dos ricos, vocalizando todo seu rancor e sua fúria. Trump fala a língua do desespero.

Há que se admitir que Barack Obama, com suas imensas qualidades – seu charme, elegância e humanismo –, foi incapaz de estabelecer conexão direta com essa população brutalizada pela vida, pela desigualdade, pela incompreensão de um liberalismo dogmático e pela presunção de políticos que acreditam poder passar ao largo do mal-estar do mundo moderno. É essa força que expressa o mal-estar da civilização contemporânea, que faz Trump ousar a contestar uma eleição possivelmente perdida, dentro das regras do jogo.

Esse poderá ser o grande desafio de Joe Biden, se triunfar o democrata: compreender os problemas de seu país – e por que não do mundo –, estabelecer vínculos com os rejeitados pela 4.ª Revolução.

✽Cientista Político, professor do Insper


Carlos Melo: A corrida e os padrinhos

A 15 dias do primeiro turno, a curta corrida eleitoral se aproxima da curva antes da reta final. Com mais de 20 dias de propaganda na TV e no rádio, aumentou a atenção geral. É o momento em que recall importa pouco e a realidade presente se revela. Algo de mais substantivo pede passagem.

Pontua a pesquisa o prefeito Bruno Covas: é incumbente, possui máquina. Explora o maior tempo de TV: a covid-19, o drama pessoal… À parte disso, esconde João Doria, sem abrir crise interna; tem se governado, valendo-se antibolsonarismo e do antipetismo; sonha expressar a frente ampla (contra quem?). Salvo acidente, tem o pé no segundo turno.

Celso Russomanno volta a ser Russomanno. Como em eleições anteriores, seu queixo é de vidro: declarações desastradas o derrubam. Soma a isso o padrinho controverso. As lutas do presidente contra a vacina e o isolamento social, na cidade mais afetada pela covid-19, agradam sua base: têm piso alto, mas o teto é baixo. O bolsonarismo já estaria em ponto de fadiga? O destino de Russomanno será a resposta

Na esquerda, uma guerra particular: o eleitor do PT migra para Guilherme Boulos, que tem ares de “PT de ontem”. Lula ajuda (um pouco) Jilmar, que saltou 50%, mas amarga meros 6%. Foi o tempo em que o ex-presidente separava mares, inventava nomes, elegia candidatos.

Enquanto uns fogem ou buscam padrinhos, Márcio França apela à imagem de independência num personalismo todo seu; busca a confluência dos que rejeitam padrinhos. Pode dar certo, a depender da disputa entre PT e PSOL. Mas, também pode se ver pagão, no eventual segundo turno.

Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.


Carlos Melo: Uma sabatina para não sabatinar

A indicação de Kassio Marques para a vaga no STF é um processo de surpresas e atropelos. Surpresas porque se esperava de Jair Bolsonaro um nome “terrivelmente evangélico” – o que não ocorreu. Atropelos porque, após a indicação, aspectos do currículo do candidato foram revelados, deixando constrangimento para quem se apresenta à vaga, quem o indica e quem o aprovará, em sabatina.

Ao se afastar da promessa que fez à base evangélica, o presidente surpreendeu pelo pragmatismo, incomum no seu caso. Ser “terrivelmente” adepto de qualquer religião não é qualificativo para tribunais em Estados laicos e democráticos. O que se espera de um juiz é estatura jurídica. De sorte que Bolsonaro surpreendeu e indicou alguém com melhores condições do que se esperava.

Mas, também as articulações que levaram ao nome de Marques foram surpreendentes. O noticiário indica que a escolha compreende enfraquecimento da Lava Jato no STF. O futuro ministro pode ter visão jurídica distinta da operação; ser mais ou menos crítico em relação a isso não é um defeito, desde que faça sentido jurídico. Posicionamentos dessa ordem deveriam ser tratados pelos senadores.

O irônico é que ministro com essa inclinação seja indicado por Jair Bolsonaro, que cavalgou na popularidade e no radicalismo lavajatista. Que fez coro a ele, exigindo o fim da “velha política”, e a mais que dura punição, sem remissão, de envolvidos com corrupção. Os ventos mudam de direção: Bolsonaro teria capitulado e conciliado com seus antigos adversários? O certo é que ou errou lá ou erra aqui.

Da indicação para cá, problemas nos certificados de notório saber do futuro ministro foram revelados: títulos que não se confirmam e denúncias de plágio surgiram; imprecisões, enfim, frequentes no atual governo. Mas que, num ambiente de necessário rigor, seriam pontos para reanálise da própria indicação: são questões que comprometem mais do que ser contra ou a favor de teses jurídicas, pois desgastam a imagem de alguém que será guardião inconteste da Constituição. A busca do esclarecimento deveria ser ponto central da sabatina.

Mas isso dificilmente ocorrerá. A sabatina tende a não sabatinar, pois a posição do futuro ministro em relação à Lava Jato parece bastar. A conciliação de interesses apenas aparentemente contraditórios sabe fazer a curva dos ventos e tudo se dissipa na fachada do teatro.

*Carlos Melo cientista político e professor do Insper


Carlos Melo: Antipolarização e novo centro para a disputa

No Brasil, os polos políticos capazes de atrair e agregar várias forças partidárias foram redefinidos em 2018. A “clássica” polarização PT/PSDB — que no país e na cidade de São Paulo, em particular, deu o tom da disputa por tanto tempo – tende a desaparecer nas eleições deste ano. Ao que tudo indica, um ciclo se encerrou dando origem a outro — que, talvez, também já esteja passando por novo processo de transmutação. A vida e a política seguem, como numa noite veloz.

Na eleição presidencial, a crise econômica e a Lava Jato fizeram com que o antipetismo – que nasceu junto com o partido — se expandisse. Com maior afinco e desespero, buscou força capaz de derrotar a até então forte legenda de Lula. O PSDB deixava, porém, de ser a aposta: exposto aos próprios escândalos e diluído no Centrão, os tucanos sucumbiram como alternativa. O vazio, contudo, abriu espaço para a aventura.

Favorecido por esse quadro, o bolsonarismo tomou corpo. (Era também beneficiado pela onda mundial de ressentimento e rancor contra a política e a democracia, originada nos indivíduos abandonados pela revolução tecnológica – os esquecidos, somente agora percebidos por Paulo Guedes. Como em vários cantos do planeta, aqui também o populismo se aproveitou das circunstâncias e se estabeleceu.

Nesses dois anos, o bolsonarismo vem se consolidando para parte da população, mas também se desgastando com outra. Com efeito, a demagogia populista radicaliza e fideliza seu público, mas não consegue dar resposta efetiva a problemas concretos. Por sua vez, o PT vem perdendo o viço, embora Lula mantenha forte lembrança no eleitorado.

São duas forças ainda importantes, mas a excitação constante que exigem tende à fadiga, revelando limites claros, impossíveis de se expandirem para além de suas tropas. Assim, improdutiva e cansativa, essa polarização pode, nesse período, ter-se desdobrado em duas outras forças: o antipetismo e o antibolsonarismo.

O petismo e bolsonarismo se combatem, se anulam e não somam. Já “os antis” criam intersecções, delineando espaço para “candidatos nem-nem” — que nem Bolsonaro, nem Lula. Havendo visão de futuro, programa e energia, um campo distinto do Centrão e não entendido como um centro anódino pode se apresentar como alternativa a polarização bolso-petista.

Estaria inaugurada uma antipolaridade agregadora de não petistas e não bolsonaristas? Pode ser. Sendo capaz romper a fortaleza de um dos polos, chegaria ao segundo turno contra o outro, tendendo a atrair o “voto útil” de quem ficou de fora. Mais uma vez: demandará propostas e posicionamento; ser “Centro”, por si só, não define ninguém. Mas, a lógica e as vantagens do “centro político”, assim como a racionalidade do antigo eleitor mediano, estariam assim reconstituídas. A história dirá.

*Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.


Carlos Melo: Previsível, Bolsonaro é lacuna brasileira no cenário internacional

Na inconstância e no arrebatamento de seu líder, o governo Bolsonaro é previsível e banal. Foge ao modelo de instituições eficientes, capazes de garantir segurança e perspectivas de longo prazo a cidadãos e negócios; não coordena, não conduz, não se antecipa a problemas que, antes, ele os cria.

O esdrúxulo e o voluntarismo são regras consolidadas nas quais pode-se apostar, sem risco. Foi o que se viu no discurso brasileiro na ONU. Novamente, o presidente foi previsível: lavou as mãos em relação à pandemia, vangloriou-se daquilo que não fez, desprezou a ciência. Na questão ambiental, vitimizou-se; grande injustiçado mundial.

Sua “política de tolerância zero ao crime ambiental” foi o ponto mais criativo (e irônico) do discurso.

Voltou a acusar a Venezuela, alvo preferencial de “inimigo externo” – todo regime autoritário precisa de um. Em sua cruzada medieval, denunciou suposta “cristofobia”. Adulou Donald Trump, sapateando sobre as brasas do multilateralismo. Trump exerce enorme fascínio sobre o brasileiro, que o ama e o saúda em continência, com gestos e opiniões clonadas.

Bolsonaro sabe que se Trump for derrotado em novembro, seu governo estará isolado. Por isso, incrementa doses de maior submissão. A troco do quê?

Possivelmente, nem Bolsonaro nem seu chanceler saibam ao certo, pois a reciprocidade de Trump tem sido humilhante para o Brasil. As “bases” aprovam. Mas, agarrar-se a Trump não é solução, mesmo em caso de vitória. No Concerto das Nações, o atrelamento de um país a outro o transforma num garoto de recados, sem importância. Mesmo assim, nada disso é estranho: no caleidoscópio sem lógica do universo bolsonariano, vertigem dá prazer.

✽ Cientista político. Professor do INSPER


Carlos Melo: Um golpe sem dia seguinte

É pouco plausível que tentativa golpista tenha apoio

No Brasil, previsões duram o tempo de uma garoa e só o futuro dirá se os temporais imaginados eram reais ou lágrimas na chuva; a política atropela profetas. Porém, o espectro de um golpe de Estado tramado pelo Poder Executivo ronda o ambiente nacional. A anuência do presidente da República e seus ministros à manifestações do gênero, além de conflitos com o Supremo Tribunal Federal, agitam fantasmas e geram “previsões”. Então, lá vai mais uma: eventual golpe, se houver, não trará dia seguinte.

A história ensina: em 1930, a Revolução se deu de fora para dentro do governo; novas camadas médias urbanas moveram-se contra Washington Luís e a continuidade da oligarquia expressa na eleição de Júlio Prestes. A crise de 1929 colocou fim a uma era, Getúlio Vargas e os tenentes marcharam sobre seus escombros.

Em 1937, o golpe ocorreu de dentro para fora, em favor do governo. Imprensa sob censura, partidos proscritos, comunistas presos; integralistas - bolsonaristas de então - gloriosamente enganados. A ditadura brotou das mãos de Vargas, tipo de raposa hoje extinta. O país se industrializava e a economia dava saltos, condições que favoreciam e fortaleciam o governo.

Em 1964, mais uma vez o golpe se deu de fora para dentro: conservadores e classe média, empresários e militares puseram fim ao curto mandato de João Goulart, o presidente errático que quebrou a hierarquia das Forças Armadas e pagou o preço. Tempos de Guerra Fria de verdade, elevação inflacionária e um governo sem amplo apoio.

Nos dois impeachments, de Fernando Collor e Dilma Rousseff, a crise de governabilidade resultou da perda de controle da agenda do Legislativo, além do fim da tolerância do establishment. A dinâmica política assumiu autonomia, veio a impopularidade e, no caso de Dilma, a teimosia levou à tragédia da recessão.

Impeachments não são passeios na Av. Paulista; são caminhos sem volta.

Na maioria das vezes, os governos desabaram. À exceção de 1937, quando a Fortuna guiou Getúlio, golpes e impeachments se deram contra, não a favor dos governantes - o “Pacote de Abril”, de Ernesto Geisel, ação contra “o golpe dentro do golpe” em nome da “transição lenta gradual e segura”, foi mais tarde seguido pelo fim da censura e pela volta dos anistiados.

Comparadas à história, as condições que rodeiam Jair Bolsonaro o remetem ao campo dos derrotados, não dos vitoriosos.

O desgastado da vez é ele, a impopularidade do momento é a sua; a bomba econômica está no seu colo; as derrotas políticas, em sua conta; o alvo de suspeitas, nas suas costas. Como Vargas em 1954, o embaraçado com parentes é de Jair; outro não é quem ameaça a hierarquia militar se não Bolsonaro. Carregando o ônus pelo desprezo à pandemia e péssimas expectativas econômicas, o presidente é vidraça; não pedra. Nesse quadro, é pouco plausível que tentativa golpista obtenha apoio popular.

Embora falte articulação, a sociedade é complexa, heterogênea, cáustica; há associações, sindicatos, movimentos sociais novos e antigos, novas tecnologias; empresários que não se puseram a bajular o governo. E, ineficazes notas de repúdio à parte, instituições que não se têm intimidado; grupos de comunicação arrostam o governo, a imprensa vocaliza a sociedade descontente. Maior que os cercadinhos ao pé dos palácios, há um povo majoritariamente democrático.

Se isso não bastar, ao campo das impossibilidades acresça a imagem internacional do governo. Nos Estados Unidos, a aliança bolsonarista se deu com Donald Trump e a extrema-direita, não com o Estado americano. O “amigo”, pouco confiável, passa por igual perrengue de isolamento e impopularidade e, aos olhos de hoje, terá dificuldade para se reeleger, em novembro.

Na Europa, de igual princípio ativo, Hungria, Polônia e Ucrânia contam nada diante do resto. Ali, da indisposição fez-se o asco: política ambiental bolsonarista, ataques a direitos humanos e individuais, além do desrespeito à vida repugnam a governos e opinião pública. A diplomacia de Ernesto Araújo salgou o solo e deu ao presidente o título de “o pior líder político do mundo democrático”, na visão da prestigiosa imprensa europeia e americana. O “Ocidente livre e democrático”, como dizem os bolsonaristas, rejeita e seu líder.

Iguais dificuldades no Mundo Árabe, na Rússia, em Israel - prestes a trocar liderança. Quanto à China, maior parceiro comercial, o máximo a esperar será a indiferença a um governo que a pretere e a estigmatiza. No Mercosul, a inamistosa reação à eleição de Alberto Fernández levará o governo argentino a evocar “cláusula democrática”, presente nos acordos do Bloco - irônico é o vinho da vingança.

Quem compara o capitão Bolsonaro ao coronel Chávez desconsidera que na Venezuela foi do assistencialismo, oriundo do petróleo caro e abundante, que se construiu apoio ao governo populista. Pouco provável que, no Brasil, efeitos do “coronavoucher” prosperem no ambiente de penúria fiscal sem arrebentar as contas públicas e aterrorizar o mercado financeiro, um dos últimos bastiões do governo.

Restaria a força e a força se impõe. Com efeito, o poder de estrago não é desprezível e a pouca inteligência para ativá-lo menos ainda. Mas o poder duro, que sufoca a sociedade, tem fôlego curto: sem projeto, sem perspectiva e sem carisma, não dá luz ao futuro. Deixa marcas, espalha sangue, mas se esgota em si; sem apoio e amplitude social, não traz o pão do dia seguinte. Se o quadro acima estiver correto, o eventual golpe não será sustentável.

Claro, nesses tempos, nada garante a tranquilidade: desastres não deixam de ocorrer apenas porque não deveriam acontecer. A razão não conta em tempos de cólera e onde nada há a perder, tem-se muito a ganhar. Tratamos com personagens que olham para o abismo e se encantam quando o abismo lhes sorri. Mas, a impossibilidade do dia seguinte pode servir de alerta e freio a quem guarde responsabilidades, tenha algo a perder e nada a ganhar. Reputações, vidas, negócios e hierarquia militar não são detalhes. O dia seguinte importa e são poucos os que o desprezam.

*Carlos Melo é cientista político e professor senior fellow do Insper.


Carlos Melo: Sob o simples império da lei

Até por gestos e pensamentos, presidentes da República devem prezar a Constituição a que juraram defender. Não podem fazer a interpretação que lhes convém. De acordo com a lei, o guardião da Constituição é o Supremo Tribunal Federal. O título “supremo” não é mera figura de linguagem. É o STF quem arbitra o jogo das leis. Para mudar isso, só por meio de uma Constituinte – talvez.

Assim, o ministro do STF Alexandre de Moraes tem autorizado sindicâncias que atingem aliados do presidente, não por serem aliados, mas por suspeitas e indícios de estarem envolvidos com atos ilegais; não se lhes questiona a liberdade de expressão nem o direito de exercê-la, mas ações concretas que poderiam ir de encontro à lei. Moraes é experiente, tendo passado por várias esferas de poder, nesse campo. Sabe qual ferida tocar e, pelo jeito, tem causado muita dor e receio ao bolsonarismo.

Noutros governos, parlamentares, empresários e operadores políticos passaram por processos semelhantes; foram presos justamente por terem agido fora da lei. O que contou com o entusiasmo do então deputado e de seus aliados, que ora se encontram sob o mesmo rigor, o rigor da lei. Mas, agora, tudo parece causar desconforto e até desalento ao presidente, temeroso de ver ruírem as redes de enfrentamentos às instituições e a imprensa paralela criadas em seu favor e em sua proteção. Além disso, os processos podem chegar ao Tribunal Superior Eleitoral e colocar em risco o próprio mandato.

O que Bolsonaro poderia contra isso? Esperar que os envolvidos, não ele, recorram contra o que considerarem ilegal, nos termos da lei. Politicamente, acionar o Legislativo para alterar a legislação, uma vez que tenha maioria para fazê-lo – o que não tem. Recorrer à “força bruta”, dentro da lei, não pode. E, se não pode, melhor não insinuar. Presidentes da República podem muito, mas não tudo. Milhões de votos não lhes dão a voz do “povo”, apenas responsabilidade perante a lei. São eleitos, não ungidos.

*Carlos Melo, cientista político, professor do Insper


Carlos Melo: Mandetta permitiu que a corda arrebentasse nas bandas do Planalto

A negação da realidade escolheu o pior de dois mundos, os desastres na saúde e na economia.

O desastre principia com a negação da realidade. Como Donald Trump, Jair Bolsonaro é presidente que afronta os fatos porque, para ele, é sempre possível dar o dito por não dito; alegar malentendido e acusar os outros. A prática é manjada, mas rebaixar a pandemia à “gripezinha” foi seu o paroxismo. O vírus se impôs e transformou a pandemia em “crise humanitária”.

Indispondo-se com o mundo e com seu ministro da Saúde, o presidente perdeu elos com nações, com o Congresso, com os governadores e com o Supremo Tribunal Federal. Ficou institucionalmente só, agarrado a radicais e a um paradoxo: sendo contra a quarentena, somente seu sucesso – com poucas mortes – é que reanimaria a tese da “gripezinha”, para que possa dizer “eu disse”.

A queda de braço com Luiz Henrique Mandetta ficará para a história. Sem admitir que salvar vidas e empregos não é incompatível, tentou se impor ao ministro – o que já é estranho – com certo cálculo: como a Economia de Paulo Guedes já patinava, a Saúde e os governadores seriam bodes expiatórios do fracasso econômico.

Até onde pôde, equilibrou-se na ambiguidade e, assim, num dia condescendia, no outro desdizia. “Isso cansa.” Mas, o presidente não percebia lidar com profissionais. O DEM, partido do ministro, é hoje o que mais se assemelha ao antigo PSD – de Juscelino, Valadares, Tancredo e outras raposas –, sabe andar no fio da navalha. Articulado com os seus, o ministro permitiu que o presidente esticasse a corda para que arrebentasse nas bandas do Planalto.

O cálculo se inverteu: se a quarentena obtiver sucesso, será obra do abnegado Mandetta. Já o fracasso será creditado à irascibilidade de Bolsonaro, algoz do ministro. Mas, ao final, não haverá ganho: suspeita-se que muitos morrerão e o desastre econômico será inevitável. A negação da realidade escolheu o pior de dois mundos.

*Cientista político e professor do Insper


Carlos Melo: Riscos à democracia e realinhamento político

Riscos de exaustão dos freios democráticos provém também da sociedade. País carece realinhamentos políticos e alianças

O simples debate a respeito dos riscos à democracia é eloquente sinal do sentimento de parte do país. Num regime consolidado não há dúvida: tudo está sob o controle das leis; a liberdade não é apenas formal, imprensa e grupos de comunicação não são perseguidos nem favorecidos; não se apela à intervenções militares, nem se questiona o sistema de freios e contrapesos do país. Como observou Cláudio Couto, a erosão democrática não se dá aos saltos, mas dia após dia; submetidas a testes frequentes, também as instituições vão à fadiga.

É fato que, no Brasil, o esdrúxulo saltou do noticiário; sucedido por desculpas, repete um deliberado e entediante ciclo de ataques. O acintoso e o patético chocam cada vez menos; o país está anestesiado ou a desesperança venceu. O Legislativo, sim, tem exercido suas prerrogativas; é positivo, mas parece depender de arrimos e fiadores políticos, o que é precário. Já o Executivo, inábil em quase tudo, confunde o público com o privado e familiar. Pleno de conflitos, o Supremo já não consegue dissimular alinhamentos e disputas.

Seria menos preocupante se importantes instituições não fossem lentamente aparelhadas. Política Externa, Meio Ambiente, Educação, Ministério Público, Polícias Federal e Militares, Poder Judiciário e até as Religiões foram envolvidas em projetos de poder. É clara a instrumentalização daquilo que deveria ser impessoal e laico, o Estado.

Mas, de toda sorte, o debate acadêmico está posto por gente qualificada que esgrime bons argumentos a favor ou contra, incorretamente taxados de “otimistas” ou “pessimistas”. Todavia, o deixemos de lado: aqui, cumpre buscar as raízes dos tais riscos. Elas não estão apenas no bolsonarismo, residem também no silêncio e apatia da sociedade, na canibalização de setores democráticos, nos vetos cruzados de movimentos identitários, na ineficácia das lideranças políticas e na dificuldade de o país se reinventar.

A outrora chamada sociedade civil carrega culpas e responsabilidades. A dois anos da eleição, atores se precipitam aos palanques e a plateia se organiza como nos clássicos de futebol: torcidas indóceis, redes sociais que indicam que o país perdeu a elegância e a civilidade. A começar, pelos gritos, a dificuldade de ouvir, estabelecer diálogos e consensos - elementos da arte democrática.

Parte disto se deu em virtude da longa polarização PT/PSDB que, ao final, somou zero atingindo-os mutuamente. Quando se viu, o PSDB já era a direita atropelada pelo bolsonarismo; mutilado de guerra, o PT recolhe-se ao gueto da soberba e do ressentimento. Em paralelo, o centro emedebista sucumbiu ao fisiologismo e aos escândalos em pencas da era Temer. Desorganizado o sistema, a fúria eleitoral de 2018 plantou populismo autoritário e colheu política vazia.

Novos atores tentam emergir do naufrágio. Mas o cenário ainda é pouco promissor: pontes foram queimadas e canais obstruídos. Setores antes afeitos à democracia fecham-se em bolhas. Sem coordenação, interesses específicos se descolam do interesse geral: o velho patrimonialismo campeia e dá vida a novos tipos de corporativismo. Míope, o mercado se basta ao “traderismo” viciado em ganhos e vantagens de curto prazo. Desconhece-se que a democracia é a única forma politicamente sustentável de aprovação e implantação de agendas econômicas.

Noutra ponta, movimentos identitários de justas bandeiras fecham-se em si, ignorando princípios e valores mais amplos, como a necessária unidade política e a democracia como ação coletiva. Luta-se bravamente em vários campos, mas quase sempre de forma isolada, com vetos cruzados de autoritários “lugares de fala”. Também aqui soma-se zero, o que parece ser característico desta quadra histórica.

Enfim, uma marcha para a insensatez tem resultado numa estrada de riscos que sobrecarregam os freios democráticos. Desenvolvimento econômico, bem-estar social, liberdade política, nada disso se fará sem coordenação e cooperação, num sistema destinado à fragmentação e à dispersão. Ambientes de soma zero são assim: deixam todos descontentes e semeiam o canibalismo político. Até que se perceba que todos perdem, todos já perderam de fato.

A pacificação política não é arco-íris pós-tempestades, nem resultado óbvio do crescimento econômico. No longo prazo, o crescimento efêmero pode até agravar conflitos e tornar a comprometer economia. Ilude-se quem acredita que o mundo vive mais um trivial ciclo político ou econômico. Há mudança econômica estrutural, exclusão social e contestação planetária à democracia, com abalos políticos evidentes; basta ter olhos de ver.

No Brasil, setores que estiveram juntos na oposição ao regime autoritário e na transição democrática vivem hoje em discórdia, sob um risco comum. Há miopia e mesquinhez eleitoral. E pouca responsabilidade. A esfera democrática - ou pelo menos a sua defesa - não será assegurada sem realinhamentos políticos e a construção um arco de alianças cuja abrangência se dê do centro democrático liberal à esquerda igualmente democrática e progressista, aberto a quem mais aderir ao trinômio “democracia, políticas públicas e equilíbrio fiscal”.

Já não há Ulysses, Tancredo, tampouco há Nelson Mandela brasileiro - redentor ou mito, não importa. O processo construirá novas referências, mas não cabe idealizá-las. Antes, a sociedade política terá que se recompor e caminhar com aquilo que possui: cidadãos que à parte dos partidos se indagam sobre os riscos à democracia; que calculando perdas fundamentais convencem-se a forçar lideranças de que sentarem-se em torno de mesma mesa é o melhor a fazer - até para que ninguém se aventure a virá-la.

*Carlos Melo é cientista político e professor do Insper