Bruno Carazza

Bruno Carazza: Trump 2024

Engana-se quem acredita que Trump seja carta fora do baralho: Biden venceu, mas o trumpismo sai fortalecido

“I’ll be back”, teria dito o presidente Grover Cleveland ao deixar a Casa Branca depois de perder a reeleição em 1888. E ele cumpriu a promessa. Ao dar a volta por cima em 1892, Cleveland ainda é, até hoje, a única pessoa na história americana a governar o país em dois mandatos não consecutivos (1885-1888 e 1893-1896). Donald Trump pode lhe fazer companhia em 2024.

Cleveland era democrata - e o vínculo partidário não é a única característica que o diferencia de Trump. Discreto, fez da austeridade e da retidão seus principais ativos políticos. Na sua primeira eleição, sofreu uma intensa campanha difamatória na imprensa, com os adversários acusando-o de ter um filho ilegítimo. Ao ser questionado por seus apoiadores sobre qual deveria ser a sua estratégia de defesa, respondeu com uma frase que marcou época: “Tell the truth”. Ao assumir que caiu em tentação e admitir a possibilidade de ser pai da criança, Grover Cleveland mereceu um voto de confiança do puritano eleitorado americano no final do século XIX.

Mas à parte a coloração partidária, a discrição e a postura em relação ao dilema “fato ou fake”, há pontos em comum entre eles. Ambos tiveram uma carreira política meteórica: em apenas dois anos, Cleveland elegeu-se prefeito de Buffalo, governador de Nova York e presidente da República, enquanto Trump… bem, todos sabemos o quão rápida foi sua ascensão.

Os dois presidentes também viveram em mundos muito polarizados. Cleveland chegou ao poder derrotando seu adversário James Blaine por apenas 0,3% dos votos nacionais e se não fosse uma diferença de apenas 1.200 votos no estado de Nova York, teria perdido a disputa no Colégio Eleitoral - assim como Donald Trump venceu Hillary Clinton com margens apertadas e ainda perdendo nacionalmente.

Ao tentarem a reeleição, tanto Cleveland quanto Trump ampliaram seu eleitorado, mas por um triz não conseguiram manter o domínio sobre Estados relevantes, e acabaram sendo derrotados. Em 1888, Nova York e Indiana representaram para Grover Cleveland o que Georgia, Pensilvânia e Michigan foram para Trump em 2020.

Quatro anos depois, o retorno de Cleveland à Casa Branca foi possível pelo agravamento da situação econômica, o acirramento das disputas raciais no país e a ausência de alternativas no seio de seu partido - condições que podem contribuir para a volta de Trump em 2024.

A vitória de Joe Biden vem sendo efusivamente comemorada como o fim de uma era. Analistas chegaram a dizer que “a aventura populista norte-americana chegou ao fim” e que a razoabilidade e a sensatez se impuseram de modo definitivo sobre a truculência das táticas de Donald Trump. Calma lá.

Deixando de lado a teatralidade das acusações de fraude e as ameaças de judicialização do resultado das urnas, Trump poderá deixar a presidência de cabeça erguida. Ele conseguiu mobilizar seu eleitorado para fazer frente à onda azul que se mobilizou desde os protestos em resposta ao assassinato de George Floyd, manteve o domínio republicano em suas bases tradicionais e ainda angariou votos em redutos antes considerados monopólio democrata, como parcelas relevantes do eleitorado latino - tudo isso em meio a uma pandemia e uma crise econômica sem precedentes na história recente.

A derrota trumpista se deu em margens tão apertadas quanto as de 2016, o que evidencia que os Estados Unidos continuam tão divididos quanto antes, tanto geográfica (litoral x interior, cidades grandes x zonas rurais) quanto demograficamente (brancos x não brancos, homens x mulheres, alta x baixa escolaridade). Não é por outro motivo que tanto Joe Biden quanto Kamala Harris, em seus discursos da vitória, usaram a mesma expressão: “curar o país”, como se ele sangrasse em função de tantas divisões.

Amainar diferenças tão acirradas até 2024 será uma tarefa hercúlea, ainda mais se os democratas não conseguirem o controle do Senado. É bom lembrar que nem Barack Obama, com todo o seu carisma e contando com oito anos de mandato, conseguiu vencer resistências, unificar o país e fazer sua sucessora.

Como a Emenda nº 22 da Constituição americana não impede um ex-presidente que perdeu a eleição de candidatar-se de novo, Donald Trump tem à sua frente quatro anos para fazer campanha e azucrinar o governo de Joe Biden pelas redes sociais e manipulando as atenções da mídia.

Outra circunstância que o favorece é a ausência de novas lideranças em ambos os partidos. Do lado republicano, ainda que existam críticas às suas postura e personalidade, nenhum nome lhe faz sombra. Entre os democratas, as primárias deste ano, com um número recorde de pré-candidatos e a escolha recaindo sobre um senhor de 77 anos, dizem muito sobre o deserto de alternativas.

É verdade que o atual presidente tem um passado nebuloso e a perda da imunidade presidencial abre flancos para processos judiciais que podem inviabilizar um plano de retorno ao centro máximo do poder nos Estados Unidos. Nesse caso, ainda lhe restaria um plano B, que atende pelo nome de Donald Trump Jr.

Clãs sempre fizeram parte da política americana: John & John Quincy Adams, no alvorecer da República, e George H. & George W. Bush são duplas de pais e filhos que chegaram à presidência. Outro exemplo é William Harrison (1841-1844) e seu neto Benjamin Harrison, que derrotou Grover Cleveland em 1888. Também tivemos os Dead Kennedys na década de 1960 e o casal Clinton mais recentemente, todos com grande protagonismo. E ainda há Michelle Obama - que nega interesse em entrar no jogo, mas parece ser uma carta guardada na manga dos democratas para o futuro.

Com um perfil super ativo nas redes sociais, papel de comando nas campanhas do pai e tendo participado como consultor na administração que se encerra, não seria surpresa ver Trump Jr., 43 anos, sendo preparado para assumir o bastão do pai caso ele não possa concorrer em 2024.

É muito cedo para especular sobre o que vai acontecer nos EUA daqui a quatro anos. Mas engana-se quem acredita que Trump seja carta fora do baralho. Sua campanha, aliás, já começou.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Bruno Carazza: Dando nome aos bois

Processo sobre imposto sobre doações é exemplo de concentração de renda

No início dos anos 2000, uma notinha da coluna Radar, na revista Veja, contou que um ascendente empresário de São Paulo, mostrando-se interessado em comprar um jatinho Gulf Stream de última geração, perguntou a Abílio Diniz sobre os custos de manutenção da aeronave. O então dono do Grupo Pão de Açúcar teria respondido nos seguintes termos: “Se você se preocupa com esse tipo de questão, certamente ainda não está preparado para ter um avião como esse”.

De acordo com os registros da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), existem 46 jatinhos Gulf Stream voando pelos céus brasileiros. Quatro deles são modelos da sexta geração, cujo preço se situa acima de US$ 60 milhões, e foram comprados ou arrendados pelas famílias Diniz, Oliveira Andrade (Caoa) e Sanchez (farmacêutica EMS), além de uma empresa de táxi aéreo.

O que pouca gente sabe é que a propriedade de jatinhos de luxo não é tributada no Brasil graças a uma decisão do Supremo Tribunal Federal de 2007. Valendo-se de um malabarismo semântico e de uma frágil interpretação da evolução histórica da legislação, o ministro Gilmar Mendes convenceu a maioria de seus pares de que a determinação da Constituição de instituir impostos sobre a “propriedade de veículos automotores” (art. 155, III) só se aplica a veículos terrestres, não devendo ser estendida a aeronaves e embarcações (RE 379.572-4). A partir daí, ao contrário dos pobres mortais que pagam IPVA sobre seus carrinhos, os jatos, helicópteros, iates e lanchas dos multimilionários estão isentos.

Na última sexta (23/10) a instância máxima de nosso Judiciário iniciou um julgamento que pode ratificar uma nova benesse para os 0,001% mais ricos. Amparando-se numa ambivalência de outro dispositivo constitucional (desta vez o art. 155, § 1º, inciso III, alínea a), algumas das famílias mais ricas do Brasil recorreram ao STF para não terem de pagar tributos sobre recursos transferidos ou gerados no exterior por seus patriarcas e que agora retornam ao país na forma de doações a seus herdeiros. Alegando que o Congresso Nacional não aprovou uma lei complementar que deveria tratar da cobrança do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doações (ITCMD) quando o doador tiver residência no exterior, nossos bilionários pretendem ratificar uma lucrativa estratégia de planejamento sucessório.

As alíquotas do imposto sobre heranças e doações no Brasil situam-se na faixa de 4% a 8%, a depender do Estado. Trata-se de um patamar bem inferior ao de países como Japão, Coreia do Sul, França, Inglaterra e Estados Unidos, onde superam 40%. No entanto, são tantas as isenções e regras especiais criadas justamente para beneficiar os mais abastados, que a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) tem defendido sua completa reformulação, mudando sua incidência do doador para o recebedor das transferências de renda intrafamiliares. De acordo com a proposta, o valor recebido como herança ou doação deveria ser considerado renda, e taxado na fonte com alíquotas bem mais altas.

Por aqui, em vez de ampliarmos o debate por uma maior igualdade e progressividade na tributação, as discussões sobre a reforma são interditadas pela gritaria de setores que se dizem prejudicados com as PECs que criam um Imposto sobre Valor Agregado de alíquota única e simplificada, aplicado de forma justa e igualitária para todos os bens e serviços. E enquanto a reforma tributária empaca no Congresso Nacional, o topo do topo da pirâmide de distribuição de renda recorre ao Judiciário para sacramentar seu “planejamento tributário” que envolve remessas de valores para paraísos fiscais e sua posterior repatriação sem imposto, com o consentimento do STF.

Quando estudamos as causas do subdesenvolvimento das nações, as elites econômicas e políticas são frequentemente apontadas como responsáveis pela criação de mecanismos que levam à concentração de renda e de poder nas mãos de poucos, em detrimento de milhões. Mas na maioria das vezes as críticas ocorrem em bases genéricas, sem apontar quem são essas elites e tampouco quais engrenagens elas utilizam.

No caso específico do julgamento do ITCMD sobre as heranças, temos uma rara oportunidade de dar nome aos bois. No parágrafo anterior, onde está escrito “elite econômica”, segundo levantamento feito pelas repórteres do Valor Joice Bacelo, Beatriz Olivon e Adriana Cotias, estamos tratando dos herdeiros das famílias Safra, Depieri (laboratórios Aché), Steinbruch (CSN), Bellini (Marcopolo) e os já citados Diniz, entre outros.

Já no polo da “elite política” estão os onze ministros do Supremo Tribunal Federal, que pode ratificar mais esse episódio de concentração de renda (RE nº 851108). Aliás, o relator Dias Toffoli já votou em parte favorável à tese dos mais ricos - o processo foi suspenso por pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes.

As estimativas indicam que, só no Estado de São Paulo, esse presente para os bilionários pode passar de R$ 60 bilhões. Essa é a medida de mais um episódio explícito de benefícios concentrados para poucos e custos difundidos por toda a sociedade - afinal, todos nós acabaremos pagando o pato por essa perda fiscal, seja por meio do aumento de outros tributos, com juros mais altos ou uma maior inflação.

É bem verdade que nossa Constituição garante a qualquer pessoa recorrer ao Judiciário quando entender que seus direitos estão sendo lesados. Mas quando empresários bilionários se valem da Justiça para pagar menos impostos, eles perdem a legitimidade de reclamar do tamanho da carga tributária no Brasil e de suas distorções, pois eles são ampliados muitas vezes por privilégios criados em seu benefício.

Também não dá mais para admitir que a cúpula do Judiciário se valha de interpretações literais das normas para agravar um sistema de concentração de renda que se perpetua por décadas.

O caso da isenção da cobrança do ITCMD sobre a repatriação de recursos do exterior é mais um exemplo do mecanismo de concentração de renda brasileiro funcionando em toda a sua extensão.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Bruno Carazza: Siga o dinheiro

Caso do senador devia deixar legado para combate à corrupção

A cada escândalo nós atualizamos as medidas. Em 2005, José Adalberto Viera da Silva, então assessor do deputado José Guimarães (PT-CE) foi preso em flagrante no aeroporto de Congonhas com US$ 100,5 mil acondicionados na cueca e mais R$ 209 mil transportados numa sacola. Doze anos depois, a Polícia Federal precisou de sete máquinas e um dia inteiro de trabalho para contabilizar os R$ 51 milhões, em cédulas de dólares e reais, guardados em malas e caixas de papelão guardadas num dos apartamentos da família do ex-deputado Geddel Vieira Lima (DEM-BA).

Na Lava Jato, o executivo Hilberto Silva, responsável pelo setor de pagamentos do departamento de “Operações Estruturadas” da Odebrecht, acondicionava R$ 500 mil em mochilas que eram distribuídas em hotéis e flats a emissários de políticos dos mais variados partidos. Fernando Migliaccio, seu subordinado, chegou a distribuir R$ 35 milhões dessa forma num único dia. “Foi o meu recorde”, confessou ao Ministério Público Federal. Para comprovar a medida de capacidade pecuniária das bagagens, era de justamente meio milhão o valor contido na mala de rodinhas recebida pelo ex-deputado Rodrigo Rocha Loures (MDB-PR) em nome de Michel Temer, no episódio da JBS que decretou, na prática, o fim do seu governo. E tudo isso aconteceu numa época em que a maior nota brasileira era a garoupa, e não o lobo guará.

Os R$ 33.150 encontrados na cueca do senador Chico Rodrigues (DEM-RR) foram motivo de piadas e chacotas, além de ter provocado mal estar na base de apoio de Bolsonaro, de quem era vice-líder. Mas eles representam, sobretudo, nossa incapacidade de aprender com os erros e evitar que eles se repitam.

Traficantes de drogas e armas, terroristas, sonegadores, corruptos e corruptores, entre outros, se valem de pagamentos em espécie para “reciclar” capitais obtidos ilicitamente e tornar mais difícil sua rastreabilidade caso sejam investigados. É por essa razão que organismos internacionais como a Força Tarefa de Ação Financeira (FATF, na sigla em inglês), criada pelos países do G-7 em 1989 para combater a lavagem de dinheiro e o financiamento ao terrorismo, recomendam que transações financeiras envolvendo valores elevados sejam comunicadas aos órgãos de controle para, se for o caso, serem monitoradas mais de perto.

No Brasil, o Conselho de Controle e Atividades Financeiras (Coaf) foi criado em 1998 justamente para cumprir o objetivo de examinar atividades dessa natureza. Desde a aprovação da Lei nº 9.613/1998, instituições financeiras, casas de câmbio, cartórios, joalherias, imobiliárias, concessionárias de veículos e outros estabelecimentos que transacionam bens de luxo devem comunicar ao Coaf operações realizadas por “pessoas expostas politicamente” ou por qualquer cidadão, desde que efetuadas em espécie, em montante acima de R$ 30 mil.

A se julgar pelos casos de corrupção que periodicamente sacodem o país, essas determinações legais não têm sido suficientes. Pouco antes da descoberta de cédulas no cofrinho do senador, a própria família presidencial já vinha sendo assombrada por investigações conduzidas pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro a respeito de diversas transações imobiliárias realizadas em dinheiro vivo que supostamente teriam origem ilícita, seja nas rachadinhas na Assembleia Legislativa fluminense ou talvez em algo até mais grave.

O mais lamentável é que, ao longo de décadas e mais décadas de escândalos de corrupção, avançamos bem menos do que seria necessário para fechar o cerco contra políticos e outros criminosos que se valem de pagamentos em espécie para requentar e ocultar patrimônio obtido de forma ilegal. Ao politizarmos operações como o Mensalão e a Lava-Jato, perdemos a oportunidade de pressionarmos por mudanças legais e institucionais que poderiam tornar mais efetivo o combate a desvios de recursos públicos no país.

E não é por falta de iniciativas legislativas que não tornamos mais efetivo o combate ao “branqueamento de capitais” no Brasil. Ainda em 2011, o PL nº 2.847, do ex-deputado Carlos Manato (PDT-ES), previa a proibição de pagamentos em cash de operações acima de R$ 1.500,00. Já na esteira da Lava-Jato, o PL nº 7.877/2017, do parlamentar paulista Gilberto Nascimento (PSC) atribuía ao Conselho Monetário Nacional a competência para definir um limite a partir do qual só seriam concretizadas transações por meio eletrônico. Mais recentemente, o deputado Rodrigo Agostinho (PSB-SP) acatou uma das “Novas Medidas contra a Corrupção”, elaboradas por um grupo de especialistas a pedido da Transparência Internacional, e apresentou o PL nº 75/2019, que veda o uso de dinheiro vivo para o pagamento de boletos e faturas acima de R$ 5 mil e outras operações superiores a R$ 10 mil.

Limitar o uso de pagamentos em espécie, a princípio, não traria nenhum prejuízo ao brasileiro comum - de um lado, os não bancarizados não dispõem de renda para compras de elevado valor, e de outro as classes média e alta já se habituaram a utilizar cartões de crédito e débito, DOCs, TEDs e transferência bancárias em seu dia-a-dia. A restrição legal só não avança por falta de pressão sobre justamente as “pessoas politicamente expostas” que se beneficiam do sistema atual ou têm conexões com a criminalidade.

Com o advento do Pix e das novas formas de pagamentos eletrônicos, não haveria motivos para o Brasil não aderir a uma tendência internacional que já inclui China, Índia, Estados Unidos, Canadá, Austrália, Portugal e Itália. Todos esses países, em alguma medida, já adotaram ações para restringir transações em dinheiro vivo com o intuito de combater a corrupção, a criminalidade e o terrorismo.

O caso dos reais nas partes íntimas do senador Chico Rodrigues talvez não dê em nada - com muita sorte, levará à sua cassação ou a uma condenação judicial. Melhor seria se deixasse como legado alguma mudança efetiva na legislação para tornar mais fácil investigações no estilo “follow the money” - mesmo que as buscas conduzam, ao final, a um lugar sujo e mal-cheiroso.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Bruno Carazza: Como as economias morrem

Depois do teto, próxima vítima poderá ser a autonomia do Bacen

As ambições de um político o tornam capaz de passar por cima de anos de amizade e a desprezar laços de parentesco mesmo em momentos difíceis de saúde - o que dirá em relação a compromissos com a estabilidade econômica do país.

Em 1959, Lucas Lopes era o ministro da Fazenda do presidente Juscelino Kubitschek. Companheiro fiel desde os tempos da campanha de JK para o governo de Minas, o engenheiro foi o cérebro por trás da criação da Cemig - polo indutor da industrialização mineira, que catapultou JK ao primeiro plano da política nacional - e idealizador do famoso Plano de Metas, o programa desenvolvimentista que prometeu entregar “50 anos em 5”. JK e Lucas Lopes eram tão próximos que seus filhos vieram a se casar.

Depois de presidir o BNDE (o “S” só viria a ser acrescentado no início da década de 1980), Lucas Lopes foi escalado para comandar a economia do país em meio ao desequilíbrio das contas públicas gerado principalmente pela construção de Brasília. Ao lado de Roberto Campos, concebeu o Plano de Estabilização Monetária (PEM), cujo propósito era deter o crescimento do déficit público por meio de um controle mais rígido dos gastos e aprovar uma minirreforma tributária destinada a aumentar a arrecadação, além de reduzir a expansão do crédito para aliviar a inflação. A dupla Lopes & Campos ainda planejava rever a política de incentivos para o café e iniciou negociações de um novo empréstimo junto ao FMI para evitar uma crise cambial.

Qualquer ministro da Fazenda que tenha que defender a austeridade fiscal frente a um presidente que só pensa na sua popularidade vive em permanente estresse - e o de Lucas Lopes era tão grande que ele acabou sofrendo um infarto em 30 de maio de 1959. Com o grande amigo (e futuro consogro) correndo risco de vida, JK não pensou duas vezes: nomeou o expansionista Sebastião Paes de Almeida em seu lugar, rompeu com o FMI, autorizou um reajuste no preço do café e ampliou ainda mais os gastos públicos para entregar a nova capital dentro do prazo. Se o populismo de um político não respeita nem os laços pessoais mais íntimos, não serão as instituições econômicas que o deterão.

Em 2018 foi lançado o best-seller “Como as Democracias Morrem”, escrito por Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, ambos professores de ciência política de Harvard. O argumento central do livro é que líderes autoritários estariam sorrateiramente enfraquecendo as instituições ao rejeitarem as regras do jogo democrático, encorajarem a intolerância e a violência e restringirem as liberdade civis, atacando especialmente a imprensa.

Desde a campanha eleitoral, Bolsonaro vem sendo apontado como o exemplar brasileiro dessa nova safra de governantes que buscam permanecer no poder e impor suas vontades não pelo uso de tanques e metralhadoras, mas por forçarem diuturnamente as grades de proteção da democracia.

A aliança firmada com o Centrão nos últimos meses tende a arrefecer esses temores. Cada vez mais refém da “velha política” para proteger a si mesmo e à sua família de processos e também para ampliar sua aprovação entre a população mais pobre do Norte e do Nordeste, parece que não é mais a democracia quem corre perigo no Brasil - mas sim a economia.

Bolsonaro colheu os frutos imediatos da enorme injeção de recursos públicos para combater os efeitos do coronavírus sobre trabalhadores e empresas. Com a popularidade em níveis recordes, inebriou-se com a perspectiva de uma vitória fácil quando tentar a reeleição. O problema é que 2022 está muito distante.

Os sinais de desequilíbrio na economia brasileira aparecem em todas as frentes. O déficit e a dívida pública estão em trajetória explosiva, elevando o risco-país e afugentando o capital externo. A saída de investidores pressiona a taxa de câmbio, que encarece insumos importados e estimula o agronegócio e indústrias nacionais a direcionarem suas vendas ao exterior. Os índices no atacado já mostram uma forte inflação de custos e os consumidores nos supermercados se assustam com os preços dos alimentos.

Tecnicamente, não há muita dúvida sobre o caminho para recuperar o equilíbrio. Passado o pior da pandemia, caberia ao governo recolher a artilharia fiscal montada para combater a covid e avançar nas causas estruturais de um desequilíbrio que já incomodava desde antes da chegada do vírus: trabalhar pela aprovação das PECs emergencial e do pacto federativo e atacar uma reforma administrativa muito mais corajosa do que a apresentada ao Congresso no mês passado.

O problema é que o receituário técnico entra em colisão com as ambições políticas de Bolsonaro. Um ajuste rigoroso pode abortar a recuperação e inviabiliza a continuidade dos agrados distribuídos aos futuros eleitores de 2022. O teto de gastos parece ser a primeira vítima do populismo fiscal do Palácio do Planalto. Mas é pouco provável que o ataque às instituições econômicas pare por aí.

O abandono do teto e a falta de comprometimento do governo com a sustentabilidade das contas públicas elevarão ainda mais o câmbio ao longo de 2021 e 2022, pressionando a inflação. Estará o presidente preparado para ver o dólar romper a barreira dos R$ 6 ou R$ 7? À medida em que a eleição se aproximar, será que Bolsonaro aceitará passivamente aumentos na taxa de juros?

Uma vez derrubado o teto de gastos, quem entra na mira do populismo presidencial é a autonomia operacional do Banco Central. Para não colocar em risco seus planos eleitorais, não me surpreenderia se Bolsonaro tentasse influenciar o Comitê de Política Monetária por uma maior leniência com a inflação ou até mesmo pela busca de soluções “criativas” para conter a taxa de câmbio, como o uso mais intenso das reservas internacionais ou medidas de controle de saída de capitais.

Nestes novos tempos, são incomuns as grandes rupturas macroeconômicas provocadas por declaração de moratórias, confisco de poupanças ou rompimento com o FMI. O perigo hoje em dia é o sorrateiro enfraquecimento das instituições econômicas por líderes populistas que só pensam em permanecer no poder a qualquer custo.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Bruno Carazza: Vai dar liga?

Surpreendentemente o número de candidatos a prefeito este ano caiu em relação a 2016

O homem começou a desenvolver a habilidade de lidar com metais para produzir ferramentas e objetos na fase final da pré-História, por volta do ano 5.000 a.C. Depois das idades da pedra lascada (paleolítico) e da pedra polida (neolítico), nossa escalada evolutiva passou a ser designada pelos materiais metálicos com os quais aprendemos a trabalhar para facilitar nossa vida: do cobre para o bronze, chegando finalmente ao ferro, fomos nos tornando cada vez mais capazes de extraí-los, fundi-los e manuseá-los.

Na tabela periódica, de um total de 118 elementos, 94 são metais. Graças à sua estrutura atômica, marcada por uma fraca atração dos elétrons mais externos da camada de valência, os metais apresentam uma tendência de se associarem por meio de ligações iônicas com outros átomos, inclusive não-metais. Essa propriedade também colabora para a sua alta condutividade elétrica e do calor.

Ao longo do tempo, a siderurgia e a indústria em geral foram percebendo que poderiam ampliar enormemente seu potencial caso explorassem essa característica química dos metais. Dependendo do uso, poderia ser melhor associar um metal a outro, formando uma liga que teria dureza, ponto de fusão, maleabilidade e resistência completamente diferentes. Ao se alterar o percentual de carbono adicionado ao ferro, podemos obter um aço que terá uma aplicação completamente diferente caso o demandante seja a indústria automobilística, naval ou aeroespacial – tudo vai depender da composição da liga metálica.
Fim das coligações não altera natureza química dos partidos

Desde o final da ditadura, a política brasileira se caracteriza por uma infinidade de ligações formadas por dezenas de partidos com características diferentes. Assim como os metais, as legendas brasileiras em geral possuem um núcleo programático que exerce pouco poder de atração sobre seus integrantes, que ficam orbitando ao seu redor, mas com grande liberdade para formar moléculas com elementos de natureza química às vezes bastante distinta.

As coligações partidárias servem muito bem aos interesses dos políticos, reduzindo os custos de campanha, isolando rivais, tornando mais maleáveis propostas de governo e forjando alianças oportunistas entre antigos adversários a depender do contexto local ou nacional e a situação econômica do país.

É verdade que algumas poucas legendas têm o perfil de gases nobres, mantendo-se fiéis à sua composição ideológica original e rejeitando qualquer aproximação com elementos distintos. Os radicais de esquerda PCO, PCB e PSTU tradicionalmente são pouco afeitos a associações, e mais recentemente o Novo surgiu à direita com a mesma vocação de isolamento e baixa reatividade química.

Para os demais elementos da tabela periódica da política brasileira, porém, a tendência é de formação de aglomerados de partidos, com baixa densidade ideológica, forte resistência à tração exercida pelas cobranças sociais e elevada elasticidade de comportamento moral. Em 2002, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tentou impor limites às coligações partidárias, determinando que elas só poderiam ser fabricadas nacionalmente. Em 2006, contudo, o Congresso Nacional aprovou uma Emenda à Constituição liberando as ligações em qualquer âmbito federativo.

Na esteira da Lava Jato e da corrosão da imagem das coalizões partidárias, em 2017 os parlamentares consentiram em barrar as associações entre partidos, mas só para as eleições legislativas representativas. Neste ano teremos, portanto, a primeira eleição neste novo ambiente químico em que as associações estão liberadas para as disputas para prefeito, mas não para vereador.

Os dados preliminares divulgados no final da tarde de ontem (27/09) pelo TSE indicam que o número de candidatos a prefeito no país subiu apenas 10,9% –o que indica que as coligações se mantêm muito resistentes, apesar da nova regra.

Com relação à composição dessas chapas, a diluição ideológica continua altíssima. Só para se ter uma ideia, PT e PSL, os grandes rivais da última eleição nacional, serão aliados em 462 municípios neste pleito, enquanto tucanos farão parceria com petistas em 830 cidades brasileiras.

33 legendas disputam pelo menos uma prefeitura nas eleições deste ano.

Partidos políticos no Brasil não costumam ter muita identidade ideológica; para a maioria deles, portanto, pouca diferença faz se os tratamos pelas siglas ou pelos nomes. De toda forma, pelo menos como curiosidade, seguem as principais alterações em relação ao último pleito municipal.

De um lado há a moda de tentar modernizar imagem dos partidos por meio da troca de suas antigas siglas por nomes mais simpáticos. Nesse movimento, de 2016 para 2020 o PPS virou Cidadania, PRB é Republicanos, o PTN passou a se apresentar como Podemos, o PEN tornou-se Patriota, o PT do B responde como Avante, o PP chama-se agora Progressistas e o PSDC aparecerá na urna como Democracia Cristã. Houve também duas mudanças de siglas: o PMDB perdeu o “P” de partido e o PR virou PL (não, o Cebolinha não se filiou a essa legenda).

Por fim, como desde 2018 a Constituição exige que as legendas tenham um desempenho mínimo nas urnas para fazer jus às benesses da legislação eleitoral, houve uma tímida redução de concorrentes neste ano. Com a imposição da cláusula de barreira o Patriota deglutiu o PRP, o PHS foi incorporado ao Podemos e o PPL fundiu-se com o PC do B.

Esse resultado, porém, teria sido muito mais forte se a legislação também tivesse condicionado a distribuição do bilionário fundão eleitoral à cláusula de desempenho. Como não o fez, muitos partidos nanicos consideram que vale a pena financeiramente continuar existindo em carreira solo. Neste ano haverá, inclusive, a estreia de mais um: o Unidade Popular (UP) disputa sua primeira eleição com candidatos a prefeito em 29 municípios brasileiros.

Erramos: na versão impressa desta coluna, a variação do número de prefeitos saiu incorreta em função de inconsistências devido a uma leitura incorreta das planilhas de coligações e candidatos fornecidas ao longo do dia no site do Tribunal Superior Eleitoral. O colunista pede desculpas pelos inconvenientes.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Bruno Carazza: Procurando agulha no palheiro

Sistema eleitoral dificulta a seleção de bons quadros

‘Mamãe, não quero ser prefeito, pode ser que eu seja eleito e alguém pode querer me assassinar”. Não existem estatísticas oficiais sobre o número de assassinatos de políticos no Brasil, mas levantamentos realizados pela imprensa indicam que Raul Seixas tinha razão ao gravar Cowboy Fora da Lei em 1986.

No final do ano passado, reportagem de Wellington Ramalhoso no Uol indicava que, entre os prefeitos eleitos em 2016, pelo menos dez haviam sido mortos de modo violento durante o exercício do cargo - quase 0,2% do total, uma probabilidade nove vezes maior do que a de um brasileiro comum ter o mesmo fim. Maiá Menezes e Marcelo Remígio, em texto para O Globo de 23/12/2019, indicaram que, apenas no Estado do Rio de Janeiro, 25 políticos haviam sido assassinados desde 2014 - incluindo o caso mais famoso, da vereadora carioca Marielle Franco, morta em 2017 ao lado de seu motorista, Anderson Gomes.

O medo de amanhecer com a boca cheia de formigas é apenas um dos fatores que afastam da política muitos brasileiros bem preparados, com vontade de contribuir para a coletividade e dotados de boas ideias para melhorar a prestação de serviços pelo Estado. Por temerem seu “lado sujo”, muitos cidadãos acabam canalizando sua energia e sua disposição em servir para atividades de voluntariado, ONGs e movimentos sociais. Outros até tentam concorrer, mas as barreiras à entrada diminuem enormemente as chances de serem bem-sucedidos.

Pesquisa CNI/Ibope realizada em março de 2018 revelou que, apesar de descrente com as eleições, o eleitor brasileiro valorizava candidatos que, idealmente, conhecessem os problemas do país (89%) e possuíssem experiência em assuntos econômicos (77%), boa formação educacional (74%), bom relacionamento com os movimentos sociais (71%) e experiência profissional de sucesso (65%). Do ponto de vista das características pessoais, as mais apreciadas eram honestidade/ não mentir em campanha (87%), nunca ter se envolvido em casos de corrupção (84%), inspirar confiança (82%), ter pulso firme (78%) e ser sério/ ter postura (74%).

Os números acima contrastam com a historicamente baixa confiança da população no Congresso Nacional e nos partidos, e a avaliação ruim de seu desempenho nas últimas décadas. Supõe-se, portanto, que o sistema eleitoral não esteja sendo eficaz ao cumprir a sua missão de selecionar bons quadros para representar os anseios do cidadão brasileiro.

Esta é a última semana para a inscrição de candidatos para as eleições de 15 de novembro. Nas próximas semanas, teremos a difícil missão de escolher, entre centenas ou milhares, um indicado a prefeito e outro a vereador que sejam bem preparados para mudar a realidade social de nossa cidade. E muito provavelmente, ao nos depararmos com a lista de eleitos logo após a apuração, ficaremos com a sensação de que eles não nos representam.

Existem razões institucionais que levam a esse resultado insatisfatório. Para começar, o número muito elevado de candidatos eleva consideravelmente o custo de avaliar seus atributos e definir o voto. Em 2016, 498.302 pessoas batalharam por um lugar ao sol nas eleições nos mais de 5.500 municípios brasileiros (o que significa uma média de um postulante para cada 200 eleitores). Neste ano, com o fim das coligações para vereador, há a expectativa de que o número seja ainda mais elevado. Encontrar o melhor em meio a tantos aspirantes ao cargo é como encontrar uma agulha no palheiro.

Do ponto de vista de quem se propõe a disputar um cargo eletivo, diferenciar-se em meio a essa multidão exige investimentos pesados em publicidade, cabos eleitorais, redes sociais, corpo a corpo com eleitores. Personalidades já conhecidas da política, celebridades e donos de redutos bem definidos (como sindicalistas, líderes religiosos e militares) levam vantagem - assim como pretendentes ricos que dispõem de recursos para arcar com os altos custos.

Três invenções de nossa democracia, em vez de ajudar a nivelar o campo, acabam sendo inócuas ou até mesmo tornando o jogo mais difícil para o concorrente sem vínculos com a política tradicional.

De um lado, os partidos poderiam facilitar a escolha caso tivessem uma linha ideológica e programática bem definida e conhecida. Neste caso, as legendas serviriam como um primeiro filtro para o eleitor, que em seguida só precisaria selecionar, entre seus inscritos, o que melhor correspondesse ao perfil desejado, reduzindo o custo informacional. Porém, no Brasil são dezenas de partidos, e a maioria deles não diz nada à população. No passado dizíamos que os partidos se resumiam a uma sopa de letrinhas, mas eles espertamente estão trocando as siglas por nomes bonitos, mas que também dizem quase nada, como republicanos, democratas, cidadania, rede, patriotas ou novo…

O segundo instrumento que poderia melhorar as condições de competitividade é o horário gratuito no rádio e na TV. Embora essa medida ainda se mostre relevante para a disputa de cargos majoritários em algumas localidades (é verdade que com menor efetividade nestes tempos de TV fechada, streaming e internet), nos pleitos legislativos ele só serve para promover bizarrices.

Por fim, os bilionários fundos eleitoral e partidário, que poderiam suprir a carência de recursos da maioria dos competidores, acabam sendo mais um instrumento de concentração de poder nas eleições. Com a sua distribuição atribuída aos caciques partidários e sem critérios transparentes de alocação entre os candidatos, a maioria das legendas privilegia os amigos do rei (ou seus cônjuges, filhos e netos), reproduzindo feudos e dinastias.

O problema de seleção adversa da política brasileira precisa ser enfrentado com seriedade ao tratar de limites a candidaturas, tamanho dos distritos eleitorais, formas de escolha, redução drástica ou melhores critérios de distribuição dos recursos públicos de campanha e democracia partidária.

Sem eles, a cada dois anos continuaremos com a sensação cíclica de que política não é lugar para gente decente e capacitada para propor soluções para nossos imensos problemas sociais e econômicos.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Bruno Carazza: Chovendo no molhado

Reforma Administrativa precisa de regulamentação, não de PEC

Em Brasília, sempre que um governante ou ministro quer mostrar serviço, ele prepara uma PEC para ser enviada ao Congresso. O anúncio movimenta a mídia, gera discussões entre especialistas, atiça debates entre parlamentares e, principalmente, passa ao público a impressão de que o governo está realmente empenhado em resolver os muitos e graves problemas nacionais. Propor uma PEC sempre faz muito barulho, mas em geral produz pouco resultado.

Se a classe política estivesse realmente empenhada em realizar uma reforma administrativa para modernizar a gestão de pessoal no serviço público, reduzir distorções nas remunerações em relação ao setor privado e eliminar privilégios de carreiras, não seria necessário enviar nenhuma PEC para o Congresso - bastaria ter a coragem de regulamentar aquilo que já foi inserido na Carta Magna pelos constituintes originais em 1988 e depois pelas reformas encaminhadas pelos presidentes Fernando Henrique e Lula na virada do século.

A estabilidade do servidor público acabou há 22 anos, quando o Congresso Nacional promulgou a Emenda Constitucional nº 19, determinando que o servidor público poderia perder o cargo caso não fosse aprovado em avaliação periódica de desempenho.

Já os penduricalhos nas remunerações da elite do funcionalismo público (inclusive magistrados, procuradores, servidores do Legislativo e militares) estão limitados aos subsídios dos ministros do Supremo Tribunal Federal desde 2003, após a aprovação da Emenda Constitucional nº 41.

Desde 1998, também, nossa Constituição define que cada ente federativo deverá estabelecer em lei os requisitos para a entrada no serviço público, os graus de responsabilidade e complexidade dos cargos e os seus respectivos sistemas remuneratórios.

Paulo Guedes pretende submeter os servidores públicos federais à lógica de meritocracia? Pois bem, em 28/11/1998 FHC enviou para o Congresso o PLP nº 248, disciplinando “a perda de cargo público por insuficiência de desempenho do servidor público estável”. A matéria foi aprovada na Câmara em 1999 e, no início de 2000, passou também pelo crivo do Senado. Como os senadores propuseram modificações, o texto retornou à Câmara, onde tramitou lentamente ao longo das duas últimas décadas.

A boa notícia é que a matéria já foi aprovada pelas comissões e agora aguarda somente a votação em Plenário para ir a sanção presidencial. Dependendo apenas da vontade política do governo e de Rodrigo Maia, os maus servidores públicos poderiam iniciar 2021 podendo ser demitidos por insuficiência de desempenho - sem PEC, sem nada.

Agora, se o objetivo for eliminar os adicionais que inflam salários nos três Poderes, fazendo valer, de verdade, o teto remuneratório no serviço público, não é necessário mexer novamente na Constituição, pois essa regra já existe deste 2003. Se o governo realmente quiser extirpar, com uma única canetada, o cipoal de leis e decisões administrativas que concedem toda sorte de acréscimos remuneratórios travestidos de auxílios-moradia, honorários de sucumbência pagos a advogados públicos, bônus de produtividade de fiscais da Receita, ajudas de custos a diplomatas, jetons por participação em conselhos de estatais e por aí vai, só é preciso pressionar pelo avanço do PL nº 6.726/2016.

Elaborado por uma Comissão Especial liderada pelos senadores Antônio Anastasia (PSD/MG) e Kátia Abreu (PP/TO), o projeto que submete todos os agentes públicos aos R$ 39.293,32 mensais recebidos pelos membros da Suprema Corte foi aprovado pelo Senado no final de 2016 e desde o início de 2019 aguarda a decisão do presidente da Câmara para designar a Comissão Especial que vai concluir a sua apreciação, antes de ir a plenário. Já há inclusive um parecer do relator Rubens Bueno (Cidadania/PR) sugerindo a aprovação do projeto, mas a proposta ainda jaz numa das gavetas de Rodrigo Maia.

E mesmo que Bolsonaro não queira afetar a situação dos servidores atuais, Guedes poderia muito bem tirar do armário de seu ministério os anteprojetos elaborados por integrantes de sua equipe econômica ainda no governo Temer e que reformulam as centenas de carreiras do serviço público federal, reduzem a remuneração de entrada e alongam os prazos para promoções. As propostas já estão prontas desde 2018 e bastaria vontade política do atual ministro da Economia para convencer o presidente a enviá-las ao Congresso de imediato.

Mas se o propósito for reduzir as distorções entre as condições de trabalho entre os setores público e privado, ajudaria muito fazer um pente-fino na Lei nº 8.112/1990, que regulamenta o regime jurídico único dos servidores federais. Alguns desses benefícios têm valor quase simbólico - alguns dias a mais de licença em caso de casamento ou falecimento de familiares próximos, por exemplo.

Outras benesses são ainda mais injustificadas, como regimes bem mais generosos do que o oferecido pelo INSS para afastamentos em caso de tratamento de saúde (extensivo a familiares) ou a liberação por até três meses (com remuneração!) para fazer campanha eleitoral caso o funcionário deseje se candidatar a algum cargo eletivo.

Alguns ajustes na legislação dos servidores públicos também poderiam gerar até alguma economia para nossos combalidos cofres públicos, como a restrição da ajuda de custo de até três salários mensais em caso de remoções e a eliminação do auxílio-funeral de um salário extra para a família em caso de falecimento (mesmo se já estiver aposentado). O valor seria irrisório em relação ao monstruoso déficit público atual, mas pelo menos o governo sinalizaria que está realmente empenhado em eliminar distorções que não fazem mais sentido em pleno século XXI.

Bolsonaro e Guedes apenas chovem no molhado ao pensarem que reformularão o serviço público mudando novamente a Constituição. A verdadeira reforma administrativa precisa ser feita via legislação ordinária e complementar. Para isso, não precisamos de PEC, mas sim de coragem para enfrentar as corporações e aprovar projetos que já estão maduros no Congresso Nacional há anos.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Bruno Carazza: Panteras negras

Reserva de recursos para candidatos negros não basta

Passaram-se longos 50 anos até que o Pantera Negra conseguisse chegar às telas do cinema. Quase duas décadas antes da criação do super-herói negro na HQ de Stan Lee e Jack Kirby, em 1947 Jackie Robinson rompeu a convenção que vedava o acesso de atletas de ascendência africana aos times da maior liga de beisebol norte-americana. Eleito o melhor jogador da temporada de 1949, em sua homenagem nenhuma equipe nos EUA utiliza mais o número 42 que o celebrizou - com uma única exceção anual, no “Jackie Robinson Day” (15 de abril) quando todos os jogadores, de todos os times, inclusive os técnicos, envergam 42 nos uniformes.

Nomeado em 1967, Thurgood Marshall foi o primeiro negro na Suprema Corte americana - sucedido por Clarence Thomas, eles são os únicos afrodescendentes num total de 102 pessoas que já ocuparam o cargo mais alto do Judiciário nos Estados Unidos desde 1789. No ano seguinte, em 5 de abril de 1968, um dia após o assassinato de Martin Luther King, James Brown realizou um concerto em Boston. Transmitido ao vivo pela TV pública local, o show serviu para acalmar os ânimos da população negra, que em vez de ir para as ruas protestar ficou em casa assistindo à apresentação do ídolo - o que gerou acusações do movimento black de que Brown estava servindo aos interesses dos governantes brancos contra a causa da igualdade racial. Em resposta, Brown gravou “Say it loud - I’m black and I’m proud”.

Todos esses personagens, vividos no cinema pelo ator Chadwich Boseman, falecido no sábado, revelam como é longa a luta por igualdade de direitos e oportunidades entre negros e brancos nas mais diversas áreas da sociedade. Em pleno 2020, o assunto permanece quente - haja vista os protestos nos Estados Unidos após o assassinato de George Floyd e o histórico boicote dos jogadores de basquete nos playoffs da NBA.

Por aqui, na semana passada o Tribunal Superior Eleitoral decidiu que, a partir das eleições de 2022, tanto o tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na TV quanto os recursos do bilionário fundo eleitoral deverão ser divididos de forma proporcional ao total de candidatos negros que se inscreverem para a disputa. “Há momentos na vida em que cada um precisa escolher em que lado da história deseja estar. Hoje, afirmamos que estamos do lado dos que combatem o racismo e que querem escrever a história do Brasil com tintas de todas as cores”, disse o presidente da Corte, ministro Luís Roberto Barroso.

A política brasileira é repleta de obstáculos à entrada de novos agentes que queiram contestar os donos do poder. Falta democracia interna aos partidos - convenções, prévias e consultas em geral são apenas para inglês ver - e as eleições são extremamente caras, disputadas em territórios muito grandes e com dezenas de milhares de concorrentes. Para se destacar na multidão, é preciso muito dinheiro para se tornar conhecido. Se o aspirante a um cargo público não é rico ou bem conectado com milionários, dependerá dos fundos partidário e eleitoral, mas eles são controlados com mãos de ferro pelos caciques partidários.

Desde a proibição das doações empresariais, em 2015, os políticos têm buscado compensar a queda na arrecadação aumentando o volume de dinheiro público para financiar as campanhas. Espertamente, não se preocuparam em criar regras para disciplinar a distribuição dos valores recebidos dentro de cada legenda. Na ausência de critérios, o TSE tem se encarregado de criá-los, instituindo cotas. Primeiro destinou 30% para as mulheres, e agora exigiu que se respeite a proporcionalidade racial.

Como pode ser visto no gráfico acima, mesmo com a reserva de recursos para as candidaturas femininas, as eleições de 2018 foram marcadas por clivagens de gênero e raça na repartição dos fundos eleitoral e partidário entre os postulantes a um assento na Câmara dos Deputados. Na média, homens receberam mais do que mulheres, e dentro de cada gênero brancos foram agraciados com mais dinheiro do que pardos e negros. Diante desse cenário, cotas tendem a nivelar o campo de disputa eleitoral. No entanto, é preciso ter cuidado.

Assim como acontece com a reserva de vagas em universidades públicas, será preciso atenção com a questão da autodeclaração para se evitar fraudes. Desde que o TSE exigiu que no ato de registro fosse declarada a cor, em 2014, 5.044 candidatos se inscreveram indicando duas ou três raças diferentes nas eleições seguintes. Agora que o apontamento da cor valerá dinheiro, é de se esperar que essas incongruências fiquem mais evidentes.

Também é preciso pensar em resolver o problema da assimetria na destinação de recursos dentro de cada cota. Em 2018, o grosso do montante distribuído para mulheres ficou concentrado em candidatas tradicionais e em esposas e filhas de velhos políticos, sem falar nos casos de laranjas - o que limitou o potencial de democratização de acesso de “cidadãs comuns” aos fundos de financiamento de campanhas.

Por fim, é sempre bom lembrar que mais dinheiro não é garantia nem de mais cadeiras e nem de melhores leis ou políticas públicas para as maiorias subrepresentadas na política brasileira. Ainda precisamos trilhar um longo caminho até atingirmos o objetivo fundamental de promoção do bem de todos, sem preconceitos de qualquer natureza, inscrito no art. 3º, inciso IV, de nossa Constituição.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Bruno Carazza: Não faço mais previsões

Como em tudo o mais, 2020 será imprevisível eleitoralmente

Em 2018 eu passei boa parte da campanha eleitoral argumentando que o fim das doações empresariais e a criação do fundão eleitoral iriam beneficiar os grandes partidos e seus caciques regionais, levando a uma baixa renovação do Congresso. Abertas as urnas, saí com uma lição e um alento. O aprendizado foi que cada eleição tem a sua dinâmica própria, e não é recomendável fazer prognósticos olhando pelo retrovisor. Se algo me serviu de consolo, foi que o oráculo de analistas e cientistas políticos muito mais experientes e gabaritados falhou igualmente - embora não faltem por aí profetas do acontecido que, diante do resultado das urnas, tascam sempre o famoso “eu já sabia”.

Reza a lenda entre políticos e cientistas sociais que as eleições municipais são uma prévia dos pleitos estaduais e federal que ocorrerão dois anos depois. A explicação faz sentido: realizadas no meio dos mandatos do presidente, governadores e congressistas, as escolhas de prefeitos e vereadores funcionam como uma grande pesquisa nacional sobre o desempenho dos mandatários atuais, além de se prestar à construção de plataformas de apoios e articulações locais que serão de grande valia logo à frente.

A partir de segunda-feira (31/8), partidos em todo o país começam a fazer as suas convenções para a escolha dos candidatos. Trata-se do primeiro movimento oficial de um jogo que tem muito a revelar sobre as alavancas e engrenagens da política brasileira atual, com componentes pessoais, institucionais e conjunturais.

Não é que meu palpite para 2018 estivesse totalmente errado. Muitos “donos” de partidos, bem como seus filhos, filhas e esposas conseguiram se eleger. O problema foi a confluência de duas forças que apareceram com potência máxima naquele ano e levaram a uma renovação maior do que eu previa: a indignação popular contra políticos tradicionais, que cobrou seu preço de figurões envolvidos nas investigações da Lava-Jato, e o efeito Bolsonaro, em cuja onda se elegeram dezenas de candidatos novatos e desconhecidos.

Neste ano saberemos a quantas anda o poder desses dois fatores. O efeito midiático das investigações de corrupção, que foi determinante para o desempenho ruim dos maiores partidos da Nova República (MDB, PSDB e PT) em 2018, perdeu muito do seu ímpeto. Por outro lado, o bolsonarismo chega a seu primeiro pleito municipal sem partido - o Aliança pelo Brasil não conseguiu obter as assinaturas necessárias para o seu registro - e sem o elemento surpresa que tanto o ajudou dois anos atrás.

E por falar em Bolsonaro, interessa saber como as redes de transmissão em massa de mensagens pelas redes sociais vão atuar em nível municipal, principalmente depois das ações judiciais e das medidas internas promovidas pelas gigantes de tecnologia sob o pretexto de conter a disseminação de “fake news”.

Outra incógnita diz respeito à conjuntura econômica e social nestes tempos de covid-19. Em que medida a gestão da crise de saúde por parte do presidente, governadores e prefeitos afetará os resultados das urnas? E de que forma os efeitos econômicos gerados pela política de distanciamento social, o alívio dado pelo auxílio-emergencial e as centenas de milhares de mortes vão se relacionar na decisão de voto do eleitor?

Ainda sobre o coronavírus, as eleições deste ano também lançam dúvidas sobre a eficácia das velhas táticas de campanha. Mesmo com a flexibilização gradativa das medidas de isolamento, sem vacina uma parcela considerável da população ainda não se sente segura a aglomerar. Isso afeta bastante o corpo a corpo com eleitores, marcado por comícios, reuniões e visitas. Fazer campanha em tempos de covid será um interessante experimento social.

E já que o assunto é estratégia, não podemos perder de vista o poder de dinheiro nas eleições. Graças ao fundão eleitoral, os campeões de voto em 2018 ficarão com a maior parcela do bolo de R$ 2 bilhões a ser distribuído pelo Tribunal Superior Eleitoral: PT e PSL, cada qual com R$ 200 milhões, estarão bem à frente de MDB (R$ 150 mi), PP e PSD (R$ 140 mi cada), PSDB (R$ 130 mi) e DEM (R$ 120 mi) - para ficar só nos principais agraciados. Transformar dinheiro em votos é a maior missão desses partidos.

Com relação às outras fontes de recursos, temos uma certeza e duas dúvidas. Graças a uma mudança nas regras de financiamento, candidatos somente poderão custear 10% de seus gastos com recursos próprios. Resta saber se isso será suficiente para conter o poderio de candidatos ricos na hora do voto. Aliás, a crise econômica vai limitar o volume de doações de pessoas físicas, de pequenos doadores que doam por vaquinhas virtuais a grandes aportes feitos pelos bilionários donos das maiores empresas brasileiras?
Do ponto de vista institucional, a disputa deste ano traz também uma outra inovação. A proibição de coligações entre partidos para os cargos legislativos deve levar a um número recorde de candidatos a prefeitos e vereadores, causando uma pulverização que tornará a escolha ainda mais difícil para os eleitores.

Por fim, as eleições municipais deste ano serão importantes para aferirmos se haverá crescimento nas urnas de duas forças não partidárias que vêm ganhando importância nos últimos anos e assumiram um importante protagonismo durante o governo Bolsonaro: os “partidos” evangélico e militar. Com ideologia clara, formação de quadros, penetração em diversas legendas e presença disseminada por todo o território nacional, esses dois grupos têm todas as condições para ampliar sua representatividade na política brasileira.

Como não poderia deixar de ser, 2020 será um ano imprevisível também em termos eleitorais. É totalmente incerto como esse conjunto de fatores irá definir o futuro da política brasileira em 2020 e além. Mas eu já aprendi a lição: em eleições, não faço mais previsões.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Bruno Carazza: A aula da Professora Dorinha

Agenda progressista depende de conservadores

Aos 31 anos de idade, recém-chegado à Câmara, o primeiro ato do jovem deputado mato-grossense Dante de Oliveira (PMDB) foi apresentar uma proposta de emenda à Constituição visando restaurar as eleições diretas para presidente da República. Sem exercer o poder do voto para escolher o mandatário máximo do país desde 1960, a população logo abraçou a ideia. Comícios se espalharam pelo Brasil, congregando políticos de diferentes partidos, artistas e celebridades - e um número cada vez maior de pessoas.

No fim de janeiro de 1984, o instituto Gallup apurou que 81% dos brasileiros eram favoráveis às eleições diretas para presidente da República. E dez dias antes da data marcada para a votação da emenda na Câmara dos Deputados, quase 2 milhões de pessoas lotaram o Vale do Anhangabaú, em São Paulo, pressionando pelas Diretas-Já.

No dia 25 de abril de 1984, 298 deputados votaram a favor da emenda Dante de Oliveira. O sonho do retorno imediato das eleições diretas para presidente, contudo, ruiu por apenas 22 votos. Apesar do amplo apoio popular, a proposta foi derrubada graças à resistência do PDS, partido governista herdeiro da velha Arena que apoiava o regime militar: 65 de seus membros votaram “não” e outros 113 se abstiveram ou simplesmente faltaram à sessão de votação.

Com a derrota da emenda Dante de Oliveira, o ciclo autoritário teve que ser encerrado por vias indiretas. No dia 15 de janeiro de 1985, reunidos no Colégio Eleitoral, senadores, deputados federais e delegados estaduais deram a presidência ao mineiro Tancredo Neves (PMDB), que superou Paulo Maluf (PDS) por 480 a 180 votos.

A eleição de Tancredo diz muito sobre o modo de se fazer política no Brasil. Enquanto setores progressistas da sociedade pediam Diretas-Já, o então governador de Minas costurava nos bastidores uma transição mais gradual com as elites partidárias, econômicas e militares de então. Autointitulado um reformista, colocou-se como uma garantia contra os “revolucionários” liderados por Ulysses Guimarães. Fazendo acenos a quem lutava há décadas contra a ditadura, mas principalmente para aqueles que estavam cansados de apoiá-la, Tancredo comandou a transição para a democracia.

Lula demorou um pouco mais para entender essa mensagem. Depois de ver seu discurso radical ser derrotado por três vezes seguidas, só chegou à Presidência quando garantiu em papel passado sua versão mais moderada. Uma vez no Palácio do Planalto, não apenas seguiu à risca as promessas da Carta ao Povo Brasileiro, como tratou de alargar - por meios lícitos e ilícitos - seu apoio no Congresso. No fim do primeiro ano de mandato, apenas quatro partidos estavam oficialmente fora da sua base de governo: PSDB, PFL (hoje DEM), PDT e Prona.

A associação do PT e do PCdoB com partidos conservadores permitiu a Lula - e depois a Dilma, pelo menos em sua fase I - aprovar uma pauta progressista em diversos campos. Tome-se o caso da criação do Fundeb. A sua primeira versão, aprovada no final de 2006, foi elaborada (quem diria?) por Valdemar Costa Neto, e além da relatoria exercida pela petista Iara Bernardi, contou com a colaboração decisiva de ninguém mais, ninguém menos que Eduardo Cunha.

Quase 14 anos depois, a Câmara dos Deputados acaba de aprovar a transformação do Fundeb em instrumento permanente de financiamento da educação pública. A demanda por garantir mais recursos para o ensino básico mobilizou sindicatos de professores, secretários estaduais e municipais de educação, entidades estudantis, organizações da sociedade civil e partidos de esquerda durante toda a tramitação legislativa, mas é preciso reconhecer que a aprovação da PEC nº 15/2015 só foi possível com a entrada em campo de políticos de centro e de direita - sob a liderança do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e da relatora, Professora Dorinha (ambos do DEM).

A sociedade brasileira é conservadora e o Congresso ainda mais - há um emaranhado de regras partidárias e eleitorais que acabam favorecendo a eleição de candidatos avessos a mudanças, principalmente sociais. O sucesso da votação quase unânime do Fundeb - apenas uma meia dúzia de gatos pingados bolsonaristas votaram contra - ensina que, no Brasil, construir alianças com a representação dos setores mais conservadores no Congresso Nacional é condição fundamental para a aprovação de qualquer item da agenda progressista.

Infelizmente ainda são maioria, principalmente na esquerda, os puristas e radicais que rejeitam qualquer estratégia de composição com políticos “do outro lado”. Demonizando alianças eventuais com “inimigos”, preferem o conforto de pregar para convertidos, pescando votos nos seus próprios aquários enquanto sonham com uma vitória nas próximas eleições.

Mesmo com o ativismo das bancadas BBB - bala, boi e bíblia -, há um grande espaço para a aprovação de reformas sociais e econômicas no Congresso atual. Entre ambientalistas e ruralistas existe um amplo espectro de parlamentares que podem ser convencidos de medidas a favor da sustentabilidade. Mas para convencê-los, é preciso deixar o radicalismo de lado e negociar de forma desarmada, abrindo espaço para contrapropostas.

Passado o choque inicial da pandemia, que exigiu medidas emergenciais e um esforço fiscal gigantesco, uma ampla agenda de reformas econômicas e sociais se faz necessária para lidar com o efeito devastador do mundo pós-covid. O Congresso se prepara para discutir as reformas tributária e administrativa, ao mesmo tempo que setores relevantes da sociedade se articulam para discutir propostas de uma renda básica universal e uma nova economia de “carbono zero”.

Apesar de todo o conservadorismo do governo Bolsonaro, é possível construir pontes e estabelecer diálogos em direção a um sistema tributário menos regressivo, um meio ambiente sustentável e gastos públicos focados nos mais pobres mesmo antes das eleições de 2022.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”


Bruno Carazza: A Carta

A agenda sustentável precisa ir além das boas intenções

As bem traçadas linhas do manifesto dos ex-ministros da Fazenda e ex-presidentes do Banco Central por uma economia de baixo carbono são uma bem-vinda convocação feita por economistas de diferentes orientações teóricas e vinculações políticas por uma política econômica ciosa dos impactos ecológicos e comprometida com a redução das emissões de gases de efeito estufa.

Desde sua posse, o governo Bolsonaro tem provocado a união de lideranças políticas e personalidades contra seus desatinos e retrocessos, numa sequência de cartas abertas e notas de repúdio.

Em vez de simplesmente criticar os erros da atual gestão, a “Convergência pelo Brasil”, assinada por aqueles que conduziram a economia brasileira entre os mandatos de José Sarney e Michel Temer, inova por ter um caráter prospectivo, voltando-se para os desafios e as oportunidades que se abrem num mundo cada vez mais consciente dos riscos associados à mudança do clima.

Os signatários da carta colocam-se à disposição para contribuir para a construção de uma agenda concreta para tornar o “futuro mais sustentável, inclusivo e próspero para a atual e as futuras gerações”. Porém, como diria Álvaro de Campos, uma das várias personas do poeta Fernando Pessoa, “todas as cartas de amor são ridículas”.

Apesar de ser extremamente louvável ver figuras ainda centrais no debate público assumindo uma firme posição em prol da transição para uma “economia verde”, faltou aos dezessete subscritores do manifesto admitir que eles próprios contribuíram, por ação ou omissão, para a atual crise ambiental do país.

“Quanta verdade tristonha ou mentira risonha uma carta nos traz”, é a “Mensagem” do samba-canção composto por Cícero Nunes e Aldo Cabral. Ao assumirem seus postos no 5º andar do bloco P da Esplanada dos Ministérios ou no gabinete do 20º andar do edifício-sede Banco Central, os comandantes da equipe econômica dos governos anteriores foram protagonistas, coniventes ou omissos, em muitos dos retrocessos da política ambiental brasileira nas últimas décadas.

Se alguém fizer um trabalho de arqueologia legislativa, vai encontrar as rubricas desses ex-ministros da Fazenda nos normativos que concederam recorrentes estímulos fiscais à indústria automobilística e também nas propostas que instituíram subsídios bilionários à produção e comercialização de combustíveis fósseis pela Petrobras.

Alguns não titubearam em recorrer à queima de carvão e óleo para evitar apagões, enquanto outros se curvaram à pressão dos caminhoneiros e reduziram a tributação sobre a gasolina e o diesel.

Também houve falhas de ex-presidentes do Banco Central e ex-ministros da Fazenda e do Planejamento ao não incorporar condicionantes ambientais nos empréstimos subsidiados concedidos pelo Conselho Monetário Nacional ao agronegócio.

Há quase trinta anos, não importa a coloração do governo, o conservadorismo fiscal é um grande obstáculo a uma política ambiental mais abrangente, assim como o pragmatismo político justifica o aval da equipe econômica a obras faraônicas no coração da Amazônia. E embora tivessem assento em todos os conselhos de política ambiental criados pelos sucessivos governantes, essa área sempre foi um “patinho feio” no Ministério da Fazenda e no Banco Central.

Ainda que seja admirável ver, numa mesma carta de princípios, figuras ligadas a diferentes matizes do espectro ideológico, as ausências não passaram despercebidas. Entre os ex-ministros da Fazenda, aqueles mais ligados aos partidos de esquerda não estão presentes na carta: Ciro Gomes (PDT, à frente do ministério entre setembro de dezembro de 1994) e Antonio Palocci e Guido Mantega (chefes da área econômica em boa parte da administração petista).

Ora, que “Convergência pelo Brasil” é essa em que a esquerda se recusa a participar?

A elogiável intenção de fomentar a geração no país de uma economia de baixo carbono mira o futuro, mas para ser bem-sucedida essa estratégia passa necessariamente pela desconstrução de um passado e um presente avessos à proteção ambiental. Além das belas palavras, precisamos saber o quanto nossos ex-ministros e ex-presidentes do Bacen estão dispostos a arregaçar as mangas e comandar uma revisão dos incentivos com sinais trocados e de uma visão pseudo-desenvolvimentista criada por eles próprios quando estavam no poder.

Oportunidades não faltam para essas importantes lideranças colocarem em prática seus bons propósitos. Não é difícil identificar no Congresso uma extensa pauta de projetos com potencial altamente lesivo ao desenvolvimento sustentável, como o “PL da Grilagem” (Projeto de Lei nº 2.633/2020) e a proposta de flexibilização das normas de licenciamento ambiental (PLS nº 168/2018). No campo da agenda positiva, os debates em torno da reforma tributária são um espaço propício para desarmar os subsídios ao uso de combustíveis fósseis e incentivar a adoção de energias sustentáveis.

Para que o Congresso aprove medidas que contribuam para a consecução dos objetivos da carta dos ex-ministros da Fazenda e ex-presidentes do Banco Central, é preciso que eles próprios se envolvam na árdua tarefa de convencer deputados e senadores a apoiarem as boas propostas e a derrotarem as ruins.

Resta saber se, mesmo longe do poder, essas lideranças econômicas vão devotar à causa da transição rumo a uma economia de baixo carbono o mesmo empenho com que lutaram para a aprovação das leis que aprovaram seus planos econômicos, suas propostas orçamentárias e suas sugestões de aumento de tributos. Só assim teremos a certeza de que a “convergência pelo Brasil” não passa de palavras ao vento.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Bruno Carazza: Lições do Mobral

MEC precisa de mais gestão e menos ideologia

No auge do governo Médici, o ministro da Educação, Jarbas Passarinho, exigiu a demissão da gerente pedagógica da fundação Mobral, Andrea Mandim. A acusação era que sua filha estava envolvida com os movimentos de oposição ao regime militar, além de seu marido ter sido cassado num dos Atos Institucionais por ter sido homem de confiança de Carlos Lacerda.

Mario Henrique Simonsen vinha dando contribuições informais ao governo desde que escreveu, em parceria com Roberto Campos e o jurista José Luiz Bulhões Pedreira, o programa econômico do primeiro-ministro Tancredo Neves, em 1961. Durante o Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG), Simonsen ajudou a conceber a nova regulação do sistema financeiro nacional e criou uma fórmula de reajuste salarial para conter a inflação, além de ser figura central na construção dos primeiros modelos macroeconômicos do recém-criado Ipea (então chamado de Epea, com “E” de “Escritório”).

Após recusar diversos convites para integrar a equipe econômica, Mario Henrique Simonsen decidiu entrar no governo num cargo pouco usual para quem, aos 35 anos, já era considerado o maior economista brasileiro: em 1970, assumiu a presidência do Movimento Brasileiro de Alfabetização, o Mobral. Antenado ao que de mais avançado se discutia em teoria macroeconômica no mundo, Simonsen havia lançado no ano anterior o livro Brasil 2001, em que apontava a educação como um dos grandes gargalos para o crescimento brasileiro. Aceitar a nomeação, portanto, seria a oportunidade de aplicar, na prática, as recomendações de seus modelos teóricos.

O Censo Demográfico de 1970 mostra que, àquela época, havia no Brasil 18.146.977 homens e mulheres com mais de 15 anos que não sabiam ler nem escrever um simples bilhete - o que representava 33,6% da população em idade de trabalhar. A ideia de um programa de alfabetização em larga escala de adultos havia surgido em 1967, mas não saía do papel por falta de orçamento. A solução encontrada por Simonsen foi buscar fontes extraorçamentárias de recursos: articulou para ficar com 30% das apostas da recém-criada Loteria Esportiva e aprovou um incentivo fiscal que abatia do imposto de renda as doações de pessoas físicas e jurídicas feitas em nome do Mobral.

Embora existam críticas em relação ao seu real alcance (aliás, o programa merece ser reavaliado com base nas técnicas mais recentes de análise de impacto), é inegável que os métodos introduzidos por Simonsen e Arlindo Lopes Corrêa, seu braço-direito e sucessor na presidência do Mobral, foram revolucionários para a época - e ainda têm muito a nos ensinar, principalmente nestes dias em que o Congresso volta a discutir a renovação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica, o famoso Fundeb.

O Mobral foi uma das primeiras experiências no Brasil em que a educação deixou de ser um feudo de pedagogos e educadores para ser encarada sob um olhar econômico, medida com dados, diante de seus custos, escala e resultados. Resolvido o problema dos recursos, Simonsen e Lopes Corrêa adotaram a padronização do material didático, implementaram um cursos de capacitação em massa de professores por rádio e TV e valeram-se de um moderno (naquele tempo, claro) sistema de cartões perfurados para coletar informações sobre o tamanho das classes e o nível dos alunos.

A grande inovação do Mobral, porém, estava na opção pela municipalização. Em cada cidade do país foi criada uma comissão encarregada de gerenciar a execução do programa. Ao governo federal cabia fornecer os insumos - inclusive os recursos financeiros para pagamento dos professores, que eram distribuídos em proporção ao número de alunos atendidos -, mas a gestão cabia aos representantes locais, que exerciam esses encargos voluntariamente.

Em poucos anos o Mobral se tornou um dos poucos pontos de contato direto entre o governo federal e a população dos rincões do Brasil. Na esteira do programa, foram criadas bibliotecas, centros culturais e balcões de emprego.

Na última sexta-feira, o presidente Bolsonaro anunciou Milton Ribeiro como novo ministro da Educação. Contando a passagem relâmpago de Carlos Alberto Decotelli, que sequer chegou a tomar posse, trata-se do quarto ocupante do mais alto cargo da gestão educacional do país em apenas dezoito meses de governo. Seus antecessores Ricardo Vélez e Abraham Weintraub foram protagonistas de tantas polêmicas ideológicas que é difícil avaliar se houve qualquer avanço na condução da política do setor.

Um dos maiores exemplos dessa paralisia está nas discussões sobre o novo Fundeb, que precisa ser aprovado pelo Congresso antes do final do ano, sob pena de privar os estudantes da maior fonte de financiamento da educação infantil e dos ensinos fundamental e médio. Por falta de liderança do MEC, desperdiçamos meses de debates e agora precisamos aprovar a toque de caixa uma regulação que ainda está longe de ser unanimidade em termos de fontes de financiamento e critérios mais justos de distribuição de recursos - como mostrou Claudia Safatle em sua coluna no Valor de sexta-feira (10/07).

Voltando ao Mobral, apesar de toda a pressão exercida pelos generais pela demissão de Andrea Mandim, Simonsen não se curvou e manteve a coordenadora pedagógica no cargo, deixando claro que não admitiria que pressões ideológicas comprometessem a condução de seu programa.

Aos 83 anos, Arlindo Lopes Corrêa não vê a hora de passar a pandemia para voltar a jogar seu vôlei de praia nas areias da Barra da Tijuca. Conversando sobre os tempos do Mobral, contou que recentemente uma amiga o questionou sobre como Simonsen e ele haviam construído um programa “tão de esquerda” justamente no período mais duro da ditadura militar.

Esbanjando seu bom-humor carioca, Arlindo conta que as políticas públicas não deveriam ser julgadas por serem de direita ou de esquerda, mas sim se dão resultados bons ou ruins. Que sirva de lição para o novo ministro da Educação.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.