Bruno Carazza

Bruno Carazza: Realidades paralelas

O longo caminho da agenda de Bolsonaro

Imagine-se em 2022. No auge da campanha, o candidato à reeleição é questionado sobre seus feitos durante o mandato. A pandemia atrapalhou muito os seus planos, mas com a vacinação já avançada, o pior havia ficado para trás. E o mais importante: a economia voltara a crescer.

Além disso, graças à sua parceria com os presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco, uma ampla agenda de projetos havia sido aprovada, deixando o país pronto para decolar nos próximos quatro anos.

Aguardada por décadas, a reforma tributária iniciou um processo de simplificação gradual de impostos federais, estaduais e municipais, reduzindo bastante a burocracia. A aliança com o Centrão venceu a resistência das corporações de servidores públicos e, com o novo pacto federativo e a reforma administrativa, seria possível começar a colocar as contas em ordem.

Tantas vezes questionado, Paulo Guedes deu a volta por cima com os novos marcos regulatórios para os setores de petróleo, gás natural, energia elétrica, ferrovias e navegação. Um novo ciclo de crescimento, liderado pelo investimento privado, estava prestes a começar - e a privatização da Eletrobras, anunciada para os próximos meses, não deixava nenhuma dúvida quanto a isso.

Depois que os principais países do mundo controlaram a covid, em meados de 2021, um incrível “boom” de commodities impulsionou a mineração e o agronegócio brasileiros. Com a simplificação do licenciamento ambiental, a regularização fundiária na Amazônia e a autorização para a extração mineral em terras indígenas, as exportações brasileiras bateram novo recorde. A entrada de dólares no país foi beneficiada pelas novas regras no mercado de câmbio e o novo Banco Central independente.

Mas não era só na economia que o presidente tinha resultados a entregar aos seus eleitores. No campo da segurança pública, as forças policiais agora tinham melhores condições de combater o crime com a exclusão de ilicitude nas operações para Garantia de Lei e Ordem. Os agentes públicos puderam se proteger melhor depois que cada um ganhou autorização para adquirir até dez armas de fogo. Cidadãos de bem, associados aos clubes de colecionadores, atiradores e caçadores, também foram beneficiados com uma legislação mais permissiva para a compra de armamento e munição.

Depois de indicar um ministro terrivelmente evangélico para o Supremo Tribunal Federal, Bolsonaro e a ministra Damares Alves anunciaram a abertura das inscrições para o “homeschooling” em 2023. Contra as críticas de que a medida poderia aumentar o número de crianças abusadas sexualmente, eles citaram as novas leis que aumentaram as penas e tornaram hediondos os crimes sexuais contra menores e a pedofilia.

Entre a intenção e a realidade há uma enorme distância: 513 deputados, 81 senadores e dezenas de votações em comissões e no plenário das duas casas legislativas. Soma-se a isso a resistência da opinião pública e de grupos com interesses divergentes influenciando o jogo.

O anúncio da agenda prioritária do governo servirá de métrica para indicar se o novo casamento de Bolsonaro com o Centrão renderá ganhos eleitorais no ano que vem.

Há frutos fáceis de serem colhidos. Na área econômica, a autonomia do Banco Central, os limites mais restritos para o teto remuneratório no serviço público e a nova lei do gás natural já passaram pelo Senado e estão prontos para serem votados na Câmara. Trilhando o caminho inverso, as novas normas para a navegação de cabotagem e para o gás natural aguardam serem pautadas no plenário do Senado, para daí irem à sanção presidencial.

O pacote fiscal de Paulo Guedes, porém, mal começou a tramitar. O trio das PECs emergencial, do novo pacto federativo e dos fundos públicos ainda aguardam parecer do relator - e a reforma administrativa nem relator tem. Para virarem realidade, precisam ser aprovadas em dois turnos por pelo menos 308 deputados e 49 senadores. Até lá ainda haverá audiências públicas, debates em comissões, manobras para adiamento de votação. Enfim, “it’s a long and winding road”.

Pior é o caso da reforma tributária, para a qual não há acordo sobre qual modelo deve prosperar: se o da Câmara (PEC nº 45/2019), do Senado (PEC nº 110/2019) ou a alternativa ainda incompleta de Paulo Guedes (PL nº 3.887/2020). Como diz o velho ditado: nenhum vento é favorável quando não se sabe para onde ir.

Na questão ambiental, tanto a regularização fundiária quanto a mineração em terras indígenas ainda não começaram a andar, embora a proposta sobre licenciamento esteja avançada na Câmara. Todas elas, contudo, enfrentarão forte resistência não só de ambientalistas, mas de países comprometidos com o clima - agora reforçados pelos Estados Unidos, com Joe Biden na Presidência.

Por fim, na pauta de segurança pública e costumes, com a exceção do PL nº 3.723/2019, que facilita a aquisição de armas por policiais e já foi aprovado na Câmara, as demais proposições ainda estão em estágio inicial de análise.

É bem verdade que existe um repertório imenso de possibilidades para se pular etapas e se dispensar exigências do processo legislativo. Tudo depende de uma sintonia fina entre o Palácio do Planalto, os presidentes da Câmara e do Senado e os líderes dos partidos. A vitória de Lira e Pacheco foi um importante passo; porém, como num casamento, Bolsonaro terá que cultivar a relação com o Centrão dia a dia.

Também é importante não ter ilusões. Ainda que as PECs sejam aprovadas, os investimentos não inundarão o país imediatamente, pois em geral se exige regulamentação e, sobretudo, estabilidade política e econômica. Aliás, se a PEC emergencial passar, o presidente terá coragem de cortar despesas mesmo em ano eleitoral?

Se os resultados econômicos podem demorar a chegar, mais armas nas ruas e menos rigor com o meio ambiente, por sua vez, têm efeitos imediatos. E eles, infelizmente, são irreversíveis.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Bruno Carazza: Dinheiro na mão é vendaval

Do ponto de vista eleitoral, auxílio emergencial foi efêmero

Foram R$ 293 bilhões injetados no bolso de quase 70 milhões de pessoas. A maior transferência direta de recursos federais para o cidadão brasileiro na história rendeu dividendos fugazes para Bolsonaro. Foi só anunciar o fim dos pagamentos do auxílio emergencial que a sua reprovação voltou a subir.

É bem verdade que existem outros fatores para explicar a queda de popularidade neste início de ano. Houve também o recrudescimento das mortes pelo coronavírus, o colapso no sistema de saúde de Manaus e os erros do governo no começo da vacinação.

Mas há algumas evidências de que o auxílio emergencial influenciou bastante o humor da população durante a pandemia. Comparando-se o pior momento de Bolsonaro, em junho passado, quando o país sofria a primeira onda da covid-19 em sua força máxima, com dezembro (mês do pagamento da última parcela do benefício para a maior parte dos contemplados), a rejeição ao presidente reduziu-se significativamente em todos os segmentos sociais.

Entre os que se enquadravam como seu público-alvo, porém, o efeito foi mais intenso, com as notas de ruim e péssimo caindo mais fortemente entre os nordestinos (de 52% para 34%), as pessoas que recebem até 2 salários (de 44% para 27%) e quem possui apenas o ensino fundamental (de 40% para 26%). Porém, como diria o príncipe do samba, “dinheiro na mão é vendaval”.

Não se passou um mês do fim do alívio financeiro, e com algumas pessoas ainda recebendo um rescaldo de pagamentos atrasados, o apoio a Bolsonaro voltou a cair fortemente junto ao grupo que foi mais contemplado com os desembolsos. A avaliação negativa de seu governo em janeiro/2021 voltou a piorar junto aos mais pobres (41% de ruim/péssimo), menos escolarizados (35%) e no Nordeste (43%). Entre os desempregados, a desaprovação ao governo já bate em 48%; para se ter uma ideia, há um mês ela estava em 31%.

A deterioração repentina na imagem do presidente junto ao eleitorado aumenta a pressão por uma nova fase da ajuda governamental. Mas não é só isso: as perspectivas de demora na vacinação e as aterrorizantes notícias sobre as novas cepas do coronavírus indicam que a tal recuperação está mais para W do que para V. Assim, independentemente de quem vença as eleições para as mesas diretoras da Câmara e do Senado logo mais, o auxílio emergencial voltará a ser destaque na ordem do dia.

Três possibilidades parecem estar colocadas para Bolsonaro: I) obter um novo decreto de calamidade pública e contratar o gasto extra para reativar o benefício; II) conceder uma nova rodada tendo como contrapartida uma mini-reforma fiscal, aprovando a PEC Emergencial; e III) retomar a ideia inicial de Paulo Guedes, lançando um novo programa de transferência de renda com a extinção de políticas públicas já existentes.

Simplesmente repetir em 2021 a mesma tática do ano passado, como prevê a primeira opção, seria plantar vento para colher tempestade às vésperas do início da campanha para a reeleição. Com a dívida pública batendo em 89,3% do PIB, o espaço fiscal ficou extremamente limitado. Racionalmente, os potenciais efeitos sobre o câmbio, a inflação e aos juros nos próximos meses não justificam a concessão de novas prestações que, como vimos, têm efeitos efêmeros sobre a avaliação do governo.

Na última semana começou-se a discutir a alternativa de condicionar uma nova fase de transferência de renda, mais delimitada e diluída no tempo, à aprovação da PEC Emergencial. Essa opção, contudo, esbarra na falta de credibilidade do presidente em tomar medidas impopulares, como reduzir carga horária e cortar salários de servidores públicos para alocar recursos para o auxílio emergencial 2.0.

Restaria, então, a possibilidade de retomar a ideia inicial de Paulo Guedes, realocando recursos hoje comprometidos com programas sociais menos eficientes (como o auxílio-defeso, o abono salarial e a farmácia popular) num programa mais focalizado e perene que seria chamado de Renda Brasil ou Renda Cidadã. Apesar de Bolsonaro ter torpedeado a ideia em seu nascedouro, avisando que não iria “tirar dos pobres para dar aos paupérrimos”, essa poderia ser uma estratégia viável caso pretenda chegar forte em 2022 e sem explodir o teto. E ele não seria o primeiro a seguir esse caminho.

No final de 2003, Lula empacotou três políticas sociais assistenciais criadas ainda no governo FHC - Bolsa Escola, Bolsa Alimentação e Auxílio-Gás, cada qual com regras próprias, públicos-alvo diferentes e órgãos de execução distintos -, e as consolidou num único benefício social permanente: o Bolsa Família.

Graças a essa mudança - impulsionada também pela política de valorização do salário mínimo -, o líder petista conseguiu fazer a mais impressionante migração de eleitorado da história brasileira. Se no pleito de 2002 Lula extraiu a maioria dos seus votos das regiões metropolitanas do Centro-Sul, onde a população é mais rica e escolarizada, quatro anos depois seus eleitores estavam localizados entre os mais pobres, com menos anos de estudo e moradores do interior do Norte e do Nordeste do país.

Não por acaso, é justamente no público com perfil de beneficiário do Bolsa Família que Bolsonaro tem mais dificuldade de penetração - e onde a ajuda emergencial mais fez diferença.

Na semana passada, o colunista do New York Times Ezra Klein, analisando os desafios do governo Biden, escreveu que, em geral, um presidente nunca é reeleito por políticas que o eleitor não sabe que foi ele quem fez. Acredito que esse pensamento caiba perfeitamente na discussão sobre o dilema da ajuda aos mais atingidos pela pandemia. Um programa permanente, nos moldes de um Bolsa Família turbinado, seria muito mais bem avaliado pela população do que uma miríade de benefícios dispersos, como existem hoje.

Ao lançar-se abertamente na direção do Centrão, Bolsonaro demonstra que, para vencer em 2022, decidiu render-se ao pragmatismo. Ouvir a equipe econômica nesta questão do auxílio-emergencial deveria ser o próximo passo.


Bruno Carazza: Cheiro de reforma no ar

Não importa quem vença, Bolsonaro terá que mudar

Arthur Lira (PP) ou Baleia Rossi (MDB)? Simone Tebet (MDB) ou Rodrigo Pacheco (DEM)? A disputa para o comando da Câmara e do Senado entra na semana decisiva, e o envolvimento direto do presidente da República nas negociações comprova que tudo voltou ao normal na política brasileira.

A Lava-Jato abalou as estruturas do sistema partidário, e a eleição de Bolsonaro foi anunciada como o fim da “velha política”. Apenas dois anos depois, o presidencialismo de coalizão, explicado lá atrás, em 1988, por Sérgio Abranches, dita mais uma vez o ritmo de funcionamento da nossa instável democracia.

A partir da próxima segunda-feira a (01/02) o destino do país estará nas mãos de filhos de políticos tradicionais - Benedito de Lira, Wagner Rossi e Ramez Tebet. Pacheco, por sua vez, vem de uma família de proprietários de empresas de ônibus, um setor tradicionalmente dependente e credor de poderosos. Brasília girou, girou, e parou no mesmo lugar.

Também não é estranho que os quatro principais candidatos à presidência das Casas Legislativas venham de partidos herdeiros dos dois grandes blocos conservadores sob os quais se estruturou nosso sistema político desde a ditadura militar. Enquanto PP e DEM são filhos legítimos da Arena, o MDB de hoje, apesar de ter se despido do “P”, nunca deixou de ser o que restou de mais retrógrado da legenda original de Ulysses Guimarães e Tancredo Neves.

Como um pêndulo, todos os presidentes brasileiros desde a redemocratização tiveram que recorrer aos filhotes da velha Arena ou do velho PMDB para se equilibrar no poder - embora nem todos tenham conseguido completar a travessia sem cair.

Sarney convocou, em diferentes momentos, caciques como Jorge Bornhausen, Hugo Napoleão e Prisco Viana (egressos da Arena) e Iris Rezende (PMDB) para tentar dar base de sustentação ao Plano Cruzado (1986), influenciar a nova Constituinte para obter um quinto ano de mandato (1987/1988) ou abafar uma CPI e um pedido de impeachment (1989).

Quando as denúncias de corrupção começaram a pipocar, no início de 1992, Collor, que se elegeu prometendo que “um novo tempo iria começar”, trouxe para seu governo raposas como Célio Borja, Affonso Camargo e Reinhold Stephanes. Tudo em vão.

Fernando Henrique se elegeu anunciando uma “aliança programática” do PSDB com o PFL (atual DEM). Porém, à medida em que as reformas emperravam, ou a sua popularidade afundava com as denúncias de compra de votos para a reeleição e as crises do Real, teve que ir fazendo concessões e abrigar em seu ministério figuras como Renan Calheiros (Ministro da Justiça), Eliseu Padilha (Transportes) e Ney Suassuna (Integração Nacional).

Lula e o PT também chegaram ao Planalto garantindo renovação, mas já ao fim do primeiro ano tiveram que aceitar Eunício Oliveira e Alfredo Nascimento. Veio o mensalão e embarcaram Saraiva Felipe, Hélio Costa, Márcio Fortes e Silas Rondeau e companhia limitada. No segundo mandato ainda se juntaram Carlos Lupi, Geddel Vieira Lima e Wagner Rossi - tudo em nome da governabilidade.

Dilma já iniciou seu mandato com um amplo ministério que mesclava petistas-raiz com uma ampla base onde cabiam Edison Lobão, Garibaldi Alves, Fernando Bezerra, Mário Negromonte, Carlos Lupi e Alfredo Nascimento. Quando sua popularidade despencou, teve que nomear Marcelo Crivella, Gilberto Kassab, Helder Barbalho, Armando Monteiro e Henrique Eduardo Alves. Nada disso impediu sua queda no início de 2016.

A história brasileira demonstra que crises econômicas, aprovação popular em baixa e dificuldades de sustentação no Congresso sempre forçam o presidente da República a ceder à “velha política” - representada tanto pelo Centrão quanto pelo “pemedebismo”, como diria Marcos Nobre, atual presidente do Cebrap e que por muito tempo ocupou este espaço.

Desde a posse, Bolsonaro mexeu pouco no seu time, na maioria das vezes motivado por intrigas internas (Bebianno, Santos Cruz, Abraham Weintraub e Marcelo Álvaro Antônio) ou desentendimentos com o ex-capitão (Mandetta e Moro). À exceção da nomeação de Fábio Faria, até hoje o presidente resistiu a abrir as portas de seu primeiro escalão para construir alianças partidárias.

Com índices de rejeição em alta e os colapsos na saúde e na economia, Bolsonaro certamente terá que engolir em seco e fazer como todos os seus antecessores para dissipar a tempestade perfeita que se forma no horizonte.

Olhando o ministério atual, há postos cativos de militares, evangélicos, olavistas, agronegócio e da predileção pessoal do presidente - além de Paulo Guedes, que anda bastante sumido ultimamente. Numa eventual reforma ministerial, pastas com grande orçamento em tempos de pandemia e de uma eventual terceira onda do auxílio-emergencial serão bastante cobiçadas pelo Centrão: Saúde, Educação e Cidadania.

Independentemente de quem vença as eleições para as presidências da Câmara e do Senado, Bolsonaro certamente sairá perdendo.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”


Bruno Carazza: Vacina contra a incompetência

Estamos condenados a conviver com a covid e a escassez

A aprovação da Anvisa para o uso emergencial das vacinas produzidas pelo Butantan e pela Fiocruz e a aplicação das primeiras doses na população trazem esperança e alívio, mas estão longe de colocar um fim à tragédia que já levou à morte quase 210 mil brasileiros.

A saga da vacinação contra a covid-19 é mais um reflexo do problema de coordenação gerado deliberadamente por Bolsonaro desde o início da pandemia por motivos políticos e ideológicos. Sem uma gestão unificada para o enfrentamento da crise e a busca de soluções, os governos federal, estaduais e municipais lançaram-se numa corrida na qual toda a população saiu perdedora.

Ao contrário de outras nações, que desde o princípio negociaram com diversos fornecedores para minimizar o risco, o Brasil errou na sua estratégia de apostar todas as fichas em apenas dois laboratórios. As 160 milhões de doses contratadas junto à AstraZeneca e à Sinovac não serão suficientes para atender, em duas rodadas, um país com 210 milhões de habitantes - mesmo que a Fiocruz alcance o objetivo de produzir outras 110 milhões de unidades entre agosto e dezembro.

Segundo o Plano Nacional de Vacinação, haveria ainda a intenção de adquirir 108 milhões de ampolas da Pfizer/BioNTech e da Janssen, mas os contratos sequer foram assinados, e há a promessa de receber outras 42,5 milhões do consórcio Covax Facility, mas sem um cronograma de entrega definido.

É verdade que poderíamos recorrer aos países que pecaram pelo excesso e contrataram além do que precisavam, mas isso seria um feito surpreendente para um corpo diplomático cuja cúpula se especializou em destruir pontes nos últimos dois anos.

Enfim, mesmo no melhor dos cenários, em função do tempo necessário para a entrega, distribuição e aplicação em duas etapas, é fato que teremos que conviver com uma oferta limitada de vacinas por um bom tempo.

‘Contágio’, filme de 2011 dirigido por Steven Soderbergh, tornou-se um caso raro de sucesso tardio de audiência. Ao imaginar uma pandemia que se dissemina rapidamente pelo mundo a partir de uma contaminação em um mercado de alimentos silvestres na China, a ficção fez sucesso no ano passado tamanhas eram as semelhanças com o momento em que vivemos.

Na obra, a tão esperada proteção foi decidida por sorteio, de acordo com a data de aniversário dos indivíduos. Mas a vida, principalmente por aqui, é muito mais complexa do que a arte.

Com uma baixa disponibilidade imediata de doses e uma doença que se alastra em ritmos diferentes tanto em termos regionais quanto em relação a estratos sociais e demográficos, enfrentaremos em breve dilemas difíceis de serem equacionados - e a incapacidade governamental de lidar com eles será exposta de novo.

O plano anunciado pelo Ministério da Saúde estabelece os grupos prioritários (trabalhadores da área de saúde, idosos, aldeias indígenas, ribeirinhos, quilombolas etc); porém, não define os critérios que devem nortear sua distribuição.

Com poucas doses, como será a logística da aplicação das seringas e o seu cronograma de alocação ao longo das próximas semanas e meses? Qual será a “taxa de risco” anunciada ontem pelo ministro Pazuello para priorizar cidades em situação de colapso, como Manaus? E dentro de cada localidade, a quem caberá determinar quem recebe primeiro a imunização no âmbito de cada grupo? Como serão definidas as prioridades entre os prioritários? São respostas para as quais a equipe de Bolsonaro até agora não deu resposta.

Em países como Inglaterra e Portugal, que têm sistemas universais de saúde com prontuários unificados, foi possível organizar a oferta levando em conta as situações de cada indivíduo, de forma que as pessoas estão recebendo por correio, SMS ou email informações com local, dia e hora em que receberão as agulhadas.

Como ao longo de décadas o SUS não recebeu os investimentos necessários para ter tal grau de organização, em breve viveremos os efeitos típicos de uma escassez extrema.

O mais comum deles é a fila. Há poucos meses vimos milhões de brasileiros se aglomerando diante das agências da Caixa Econômica e da Receita Federal tentando resolver problemas relacionados ao auxílio-emergencial. Da noite para o dia “descobriram-se” 40 milhões de “invisíveis” - pessoas que não constavam nos cadastros sociais e estavam à margem do mercado formal de trabalho.

Por não conhecer a imensa maioria de seus cidadãos (onde moram, qual seu histórico de saúde, quem possui comorbidades), a desorganização se repetirá com a vacinação. Como resultado, nas próximas semanas seremos expostos a uma reprise de cenas de pessoas dormindo em filas ou se acotovelando na frente de postos de saúde em busca da imunização.

Sem critérios claros para a distribuição individual, em alguns casos prevalecerá a lei do mais forte (ou do mais próximo). Categorias começam a se articular para pressionar institucionalmente por atendimentos prioritários, como já aconteceu com membros da elite do Judiciário e do Ministério Público. Quando as doses forem entregues aos municípios, é bem provável que muitos espertalhões consigam furar a fila na base de relações de parentesco, amizade ou influência junto a poderosos locais.

A falta de vacinas também gerará oportunidades de corrupção. No país da impunidade, os incentivos estão dados para quem quiser cobrar “por fora” ou condicionar agulhadas a promessas de votos.

Como sempre acontece quando o Estado falha na prestação de seus serviços, florescerá também um vantajoso mercado. Laboratórios e grandes empresas já se movimentam para obter autorização governamental. Com baixos estoques e uma longa espera na rede pública, o setor privado terá condições de discriminar a oferta para quem se dispõe a pagar o preço que for cobrado.

Millôr Fernandes dizia que “o grande erro da natureza é a incompetência não doer”. A gestão da pandemia do governo Bolsonaro comprova que ela não apenas dói, como asfixia e mata.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Bruno Carazza: O tribunal do Facebook

Decisão de banir Trump é o maior fato político dos últimos tempos

Daron Acemoglu e James Robinson, autores do best-seller Por que as Nações Fracassam?, apresentaram uma hipótese bastante convincente para explicar o subdesenvolvimento econômico de povos e países. De acordo com os professores do MIT e da Universidade de Chicago, a concentração de poder nas mãos de elites política e econômica gera os incentivos institucionais para um ciclo vicioso difícil de ser rompido, em que se os mais ricos extraem renda da população e grupos políticos se perpetuam no poder.

Nos últimos anos, um novo debate tem agitado não apenas a academia, mas principalmente os meios políticos e empresariais, e tem a ver não diretamente com o funcionamento dessas engrenagens descritas com farta evidência empírica pelas pesquisas de Acemoglu & Robinson, mas com esse jogo de interação entre variáveis econômicas e políticas. Trata-se do incontrolável poder de influência das gigantes de tecnologia em nossas vidas.

Segundo levantamento do Global Digital Overview 2020, 5,2 bilhões de pessoas possuem celular, o que representa quase 70% da população mundial. 4,5 bilhões de terráqueos têm acesso à internet (59%) e 3,8 bilhões têm contas em redes sociais - praticamente a metade dos habitantes do planeta.

Além da ampla penetração, estamos cada vez mais conectados à rede. Em janeiro de 2020, as pessoas de 16 a 64 anos passavam em média 6 horas e 43 minutos por dia utilizando a internet. No caso brasileiro, estamos em terceiro lugar do ranking global, atrás apenas dos filipinos e dos sul-africanos. Em média, passávamos 9 horas e 17 minutos de frente para a tela - índice que deve ter aumentado ainda mais desde o início da pandemia.

As redes sociais nos fisgaram oferecendo tudo ao alcance de poucos cliques: a interação com familiares e amigos, a oportunidade de nos divertir e ler notícias de vários canais e até mesmo a possibilidade de participar de debates políticos num alcance nunca antes imaginado.

Do ponto de vista comercial, seu modelo de negócios é muitíssimo atraente. O acesso é gratuito, embora ao aderir você aceite abrir mão de seus dados pessoais. Afinal, redes sociais ganham dinheiro com os anúncios. E ele tornam-se melhores à medida em que compartilhamos nossos hábitos de consumo, nossas opiniões e preferências.

Para construírem seu incrível poderio econômico, as grandes corporações do Vale do Silício colocaram toda a tecnologia para explorar ao máximo todos os benefícios de conceitos econômicos há muito mapeados pela teoria. Em essência, as redes sociais são plataformas, também conhecidas como mercados de dois lados.

A ideia não é nova: de imobiliárias a empresas de cartões de crédito, passando pela publicidade de jornais, todos esses negócios buscam conectar compradores e vendedores. Nesses mercados, os efeitos de rede tornam a imobiliária, a empresa de cartão de crédito ou o jornal mais valiosos quanto mais gente recorre aos seus serviços.

No caso das redes sociais, quanto mais gente se conecta, mais elas se tornam valiosas para os usuários (afinal, não faria muito sentido aderir se a maioria dos seus amigos não estivesse lá) e também para os anunciantes. E quanto mais as usamos, mais insumos fornecemos para os algoritmos desenharem o nosso perfil, captarem nossos gostos e identificarem nossos desejos, impulsionando seu valor para a publicidade.

E aqui entram em campo as economias de escala; afinal de contas, quanto maior você se torna, mais atrai usuários. E aí começam a surgir os efeitos deletérios de seu poder econômico sobre os concorrentes. Da mesma forma que motoristas só vão migrar para um novo aplicativo de transporte urbano se houver muitos consumidores conectados a ele e, de maneira reversa, os consumidores só vão migrar se houver uma boa disponibilidade de motoristas perto de você, as redes sociais vão se tornando mais potentes à medida em que se tornam mais presentes no nosso dia-a-dia.

Por outro lado, graças às economias de escopo, esses grandes conglomerados têm maiores condições técnicas e econômicas de investir em mercados contíguos que sejam promissores e, assim, inibir o crescimento de seus rivais - ou simplesmente comprá-los. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a aquisição do YouTube pelo Google ou do Instagram e do WhastApp pelo Facebook. Ou pela decisão do Facebook de arrasar com o Snapchat ao lançar os stories no Instagram.

O grande problema dos tempos atuais surge quando o poder econômico se converte em poder político. Ao longo da história, grandes grupos econômicos sempre se valeram de mecanismos para defender seus interesses e obter benesses em termos de regulação ou tributação favoráveis, seja por meio de doações de campanhas, lobby ou captura de autoridades por dirigentes de grandes empresas.

No caso das redes sociais, sabemos que a política nos mobiliza, nos envolve, nos une e nos divide. A polarização nos mantém mais tempo conectados, seja brigando, seja interagindo com quem pensa semelhante a nós, nas nossas bolhas. E isso é tudo o que as redes desejam, pois quanto mais tempo gastamos discutindo política, mais informações são coletadas - e transmitidas aos anunciantes.

Donald Trump tinha 88 milhões de seguidores no Twitter e 35 milhões no Facebook antes de ser banido pelas duas plataformas. Cassar o seu direito de comunicação com o público levanta dúvidas sobre os limites das gigantes de tecnologia em mediar o debate político.

Redes sociais deveriam ser tratadas como uma infraestrutura digital, por onde transitam ideias, como as estradas ou ferrovias, e como tal deveriam ser reguladas para garantir condições mínimas de acesso a todos os participantes, independentemente de suas visões?

Redes deveriam ser o “livre mercado de ideias”, tão caro aos defensores do direito irrestrito à liberdade de expressão? Ou seria uma contradição defender a intervenção estatal sobre um negócio privado para garantir o direito à liberdade?

Quando grandes empresas conseguem transformar poder econômico em poderio político, nossas preocupações mudam de patamar. O banimento de Trump do Twitter e do Facebook inaugura um debate que vai nortear nossas vidas na próxima década.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”. 


Bruno Carazza: Na surdina

Surpresas no fim de ano de Bolsonaro

Nos oito dias compreendidos entre a véspera do Natal e a virada do ano o Congresso Nacional está em recesso, as redações dos jornais funcionam em regime de rodízio e a população em geral, mesmo em tempos de segunda onda da pandemia, está concentrada nas festas ou em viagens de férias. Em Brasília, é a época perfeita para aprontar.

Em edição extra do “Diário Oficial da União” (DOU), publicada no dia 31 de dezembro, Bolsonaro concedeu benefícios para alguns e desalento para milhões, além de desafiar mais uma vez o Congresso Nacional.

De um lado, medidas provisórias estenderam o regime especial para reembolso de passagens pelas empresas aéreas (de 31/12/2020 para 31/10/2021) e ampliaram em mais dois anos o prazo para os cinemas se adaptarem às regras de acessibilidade para pessoas com deficiência - providências que deveriam ter sido implantadas em 2019; ou seja, antes do novo coronavírus.

Mais grave, Bolsonaro rompeu um pacto com deputados e senadores e, na surdina, determinou a manutenção da restrição de acesso ao benefício de prestação continuada (BPC) somente para idosos e pessoas com deficiência cuja família tenha renda per capita inferior a ¼ do salário-mínimo. É bom lembrar que desde o início da pandemia o Congresso trava uma queda de braço com o Palácio do Planalto tentando ampliar a cobertura do BPC para aqueles que recebem até meio salário-mínimo.

A MP nº 1.023 dá um tempo maior para Paulo Guedes encontrar recursos para uma política assistencial pós auxílio emergencial, mas aliada a dezenas de vetos à Lei de Diretrizes Orçamentárias, também anunciados nos últimos minutos de 2020, representa uma nova afronta ao Congresso.

Mas não foi só no 31 de dezembro que a Imprensa Nacional anunciou novidades. Na véspera do Natal, outra edição extra do DOU veio repleta de presentes em forma de decretos, entre eles a concessão de indulto natalino para militares condenados por crimes praticados em serviço, a criação de uma nova estatal para cuidar da navegação aérea e novas regras para a regularização fundiária em terras da União e na Amazônia.

Aproveitar períodos de baixa atenção do Congresso e da opinião pública para editar medidas impopulares não é incomum na experiência internacional. Em 1994, enquanto todos os olhos dos italianos estavam concentrados no jogo que daria ao país a chance de disputar a final da Copa do Mundo contra o Brasil, o primeiro-ministro Silvio Berlusconi editou um decreto beneficiando centenas de políticos envolvidos na Operação Mãos Limpas. Para continuar no campo futebolístico, Vladimir Putin valeu-se da abertura da Copa da Rússia, em 2018, para, numa canetada, elevar a idade mínima para aposentadoria no país.

Os exemplos acima foram citados por Milena Djourelova e Ruben Durante para justificar sua pesquisa sobre estratégia e timing de atos presidenciais. Com foco dos Estados Unidos, eles analisaram as datas e os contextos das ordens executivas (similares aos nossos decretos) emitidas pelos presidentes americanos entre 1979 e 2016, confrontando-os com dados sobre audiência de notícias na TV.

Assim como no Brasil, os ocupantes da Casa Branca são constantemente criticados por avançar sobre a competência do Congresso ao emitir normas que, sob a desculpa de regulamentar leis, acabam extrapolando e criando direitos e deveres.

A pesquisa de Djourelova e Durante revelou que as ordens executivas dos presidentes americanos têm maior probabilidade de serem emitidas quando a cobertura da mídia está concentrada em outros assuntos, que não a política. Foi o caso, por exemplo, quando Donald Trump perdoou um xerife acusado de injúria racial e baniu soldados transgêneros das Forças Armadas enquanto o país se mobilizava para enfrentar o furacão Harvey, em 2017.

Os dados também indicam que o aproveitamento estratégico da distração pública é mais frequente quando o Congresso é dominado pelo partido rival e quando a medida trata de assuntos não relacionados ao dia-a-dia da administração (como a reestruturação de órgãos ou a execução orçamentária, por exemplo) ou não vinha sendo discutida publicamente nas semanas anteriores - o famoso “efeito surpresa”.

Por aqui isso não é nenhuma novidade. Muito antes de Bolsonaro, todos os últimos presidentes brasileiros aguardaram o período entre o Natal e o réveillon para surpreender.

Sarney aumentou o capital de empresas estatais e concedeu benefícios para seus funcionários, enquanto Collor instituiu uma generosa política de preços mínimos para os usineiros do Nordeste, seu reduto eleitoral. Com o Plano Real em gestação, Itamar Franco lançou um pacotaço de aumento de impostos no último dia útil do ano, prática que foi seguida por seu sucessor Fernando Henrique quando a vaca parecia ir para o brejo no apagar das luzes de 1998.

Mas nem só de medidas amargas foram os finais de ano do governo FHC. Houve também a concessão de benefícios e subsídios para setores específicos, prática intensificada durante a gestão de Lula e Dilma com inúmeros programas de tratamento tributário especial criados ou prorrogados aos 45 minutos do segundo tempo. Sob a administração petista, aliás, também foram frequentes os aumentos salariais para diversas carreiras - sempre por medida provisória e no período entre 24 e 31 de dezembro.

Para fechar o ciclo pré-Bolsonaro, Temer inovou aproveitando as festas de fim de ano para reformular marcos regulatórios, mexendo sem aviso prévio nas regras do jogo aplicáveis aos setores de petróleo, saneamento, imigração, energia elétrica, segurança pública e ambiental.

“Dormientibus non ducurrit ius” é uma antiga regra do direito romano. A experiência brasileira com normas emitidas nos estertores do ano mostra que, quando a mídia e os cidadãos baixam a guarda, os presidentes se aproveitam para conceder benesses ou tungar os contribuintes. Depois não adianta reclamar, pois “o direito não socorre aos que dormem”.

É preciso ficar vigilante o ano todo. Lembremos disso no fim de 2021. Um bom ano a todos!

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Bruno Carazza: Nossas vidas nunca mais serão as mesmas

Em breve superaremos a gripe espanhola em número de mortes

14 de março de 2020. Nesse dia eu tive um pressentimento de que nossas vidas nunca mais seriam as mesmas.

É claro que, como a maior parte dos brasileiros, eu vinha acompanhando as notícias sobre o novo coronavírus. A doença havia chegado há algumas semanas por aqui, e o número de casos confirmados pelo Ministério da Saúde vinha subindo dia a dia - mas ainda eram apenas 362, sem nenhuma morte até então.

Àquela altura a covid-19 já avançava com força na Europa, a ponto de a Organização Mundial de Saúde ter declarado no dia 11 de março que se tratava de uma pandemia. Com quatro “circuit breakers”, a bolsa naquela semana caiu 15,6%, na pior semana desde a crise de 2008, e mesmo assim eu não me abalava.

A ficha caiu quando ouvi uma entrevista de Donald G. McNeil Jr., repórter de ciência do “The New York Times” que já havia feito coberturas sobre epidemias nos quatro cantos do mundo. Ao participar do podcast “The Daily”, o jornalista revelou que, pelo o que havia apurado junto a diversos cientistas, o novo coronavírus poderia ser tão letal quanto a gripe espanhola de 1918.

“Se nada for feito, todos nós perderemos pelo menos uma pessoa próxima por covid-19”, foi a frase que ficou na minha memória.

Naquele mesmo dia 14 de março em que ouvi o episódio com o jornalista do “NYT” compareci à festa de aniversário de um grande amigo - e aquela foi a última vez que fui a um bar. Lá, recebi uma mensagem por WhatsApp informando que a faculdade em que trabalho havia suspendido as aulas preventivamente. Daí pra frente minha vida nunca mais foi a mesma.

Num depoimento dado em 1977, no longínquo ano em que nasci, o artista plástico Abraham Palatnik parecia profetizar o que vivemos em 2020. “O ser humano representa um grande investimento em estudo e aprendizagem ao longo de dezenas de anos. Desprezar esta vantagem seria uma degradação da própria natureza do homem e um desperdício de suas potencialidades.”

O desdém pela ciência, expresso inúmeras vezes pelo presidente da República, cobrou seu preço. “Cenas de terror e tensão, fuga na terra, ira no céu”, cantavam ainda no início da carreira os Titãs, tendo entre eles o punk Ciro Pessoa. “Tomaram tudo o que tínhamos”, clamava o líder Aritana Yawalapati, um dos últimos falantes do idioma tradicional do seu povo, no Alto Xingu.

“Nós estamos órfãos de um projeto nacional. (...) Nós fomos achando que é possível tocar o futuro sem discutir o futuro”, criticou certa vez o ex-reitor da UFRJ e ex-presidente do BNDES Carlos Lessa.

Como o limpador de vidraças do conto “Um discurso sobre o método”, de Sérgio Sant’Anna, estamos suspensos no tempo, sem orientações claras sobre novas medidas de distanciamento social ou ações rápidas para a obtenção de vacinas. “Ele era um homem que vivia nas imediações do presente, pois o passado não lhe trazia nenhuma recordação agradável, em especial, e o futuro era melhor não prevê-lo, de tão previsível”.

Muitos sucumbiram diante da indefinição. Alguns de modo resignado, como na canção de Paulinho do Roupa Nova: “E a hora vai chegar; já não sei como evitar. Eu não vou mais fugir, é tempo de encarar”.

“Daqui dou o viver já por vivido”, sentenciou a poetisa Olga Savary na sua Sextilha Camoniana.

“Pela fresta, é possível ver o céu azul. Acho que atravessei esta porta”. Algodão-doce para você, inesquecível Daniel Azulay.

“Passei o bastão pra vocês, agora sigam e sejam felizes”, disse a atriz Nicette Bruno a seus filhos, mas o conselho serve a cada um de nós.

“Mas sei que uma dor assim pungente não há de ser inutilmente”, nos ensinou Aldir Blanc num hino de outros tempos, mais atual do que nunca. “A esperança dança na corda bamba de sombrinha, e em cada passo dessa linha pode se machucar”.

Enquanto escrevo esta coluna, o Brasil registra 190.795 mortes oficiais por covid-19. De acordo com a última pesquisa Datafolha, 8 em cada 10 brasileiros pegou ou conhece alguém próximo que foi contaminado pelo novo coronavírus.

Estudiosos estimam que as duas grandes ondas de gripe espanhola que atingiram o Brasil entre 1918 e 1919 mataram em torno de 35.000 pessoas. Segundo o IBGE, nesta mesma época o Brasil possuía em torno de 30 milhões de habitantes. Grosso modo, pouco mais de 0,1% dos brasileiros sucumbiram à doença.

Um século depois, o país possui pouco mais de 210 milhões. A continuar o ritmo atual de evolução, em breve a covid-19 terá matado o mesmo tanto que a gripe espanhola, em termos proporcionais.

O descaso com a saúde pública no atual governo jogou por terra todo o avanço de higiene, tecnologia e políticas públicas de um século.

As retrospectivas do ano de 2020, a serem veiculadas nos próximos dias, vão precisar de tempo e espaço extra para retratar tantas perdas inestimáveis - inclusive as dez personalidades que eu mencionei expressamente acima.

No meu caso, a profecia do repórter do “The New York Times” se cumpriu na noite do dia 25 de outubro. Sebastião Fernandes Pereira era um grande amigo da minha família, com o qual convivi desde os meus 10 anos de idade.

De riso fácil e conversa atenciosa, deixou órfãos milhares de pessoas que recorriam a ele para buscar conforto e conselho para suas dores da alma.

Tiãozinho virou estatística da covid, mas a falta que ele deixou não tem medida. Por meio dele homenageio as vítimas da doença que marcou este ano, seus familiares e amigos.

Até 2021.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Bruno Carazza: Saúde, paz, união...e reforma tributária

Reforma tributária não vai sair se todos não cederem

Se acreditassem em Papai Noel, certamente a maioria dos empresários brasileiros desejaria o fim da pandemia e uma reforma tributária em 2021.

Enquanto escrevo este texto, às 16:39h de domingo (20/12), o Impostômetro calculado pela Associação Comercial de São Paulo indicava 1,987 trilhão de reais em tributos pagos neste ano - o que indica que provavelmente ao longo desta semana ultrapassaremos a marca de R$ 2 trilhões arrecadados pelos governos de todos os brasileiros. Trata-se de apenas um de vários indicadores de nossas distorções neste campo.

Pode-se criticar a metodologia de rankings de ambiente de negócios como o Doing Business, do Banco Mundial, ou o índice de competitividade do Fórum Econômico Mundial, mas ninguém discorda que o Brasil seja um dos países que demanda mais tempo e recursos humanos para o cumprimento de todas as exigências tributárias da União, 27 Estados e mais de 5 mil municípios.

Essa complexidade traz consigo uma alta litigiosidade, que congestiona o nosso Judiciário. De acordo com o relatório Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça, apenas no ano de 2019 foram iniciados 5.168.177 novos processos envolvendo impostos, taxas e contribuições - um número que dá a medida da insegurança jurídica no país gerada pelo nosso sistema tributário.

Estimativas de especialistas indicam que em torno de 66% do PIB é alvo do contencioso tributário em nível administrativo (no âmbito das receitas dos três níveis federativos e conselhos de contribuintes) e judicial. São dois terços da produção anual do país que ficam empoçados enquanto não se decide se devem entrar nos cofres do governo ou serem liberados para investimento das empresas.

Qualquer pesquisa que se realize com empresários aponta uma concordância quase unânime de que é necessário reformar todo o sistema, buscando sua simplificação, desburocratização e aumento da competitividade e da transparência - além da redução da carga tributária, é claro.

O problema é que na cartinha para Papai Noel ou nos desejos de Ano Novo do empresariado brasileiro sobram pedidos e faltam compromissos.

Desde 19 de fevereiro uma Comissão Mista do Congresso Nacional discute as propostas na mesa: a PEC nº 45/2019 (“proposta Appy”), a PEC nº 110/2019 (baseada no trabalho do ex-deputado Luiz Carlos Hauly) e o PL nº 3.887/2020, encaminhado pelo ministro da Economia Paulo Guedes.

Ao longo dos últimos meses dezenas de audiências públicas foram realizadas e, a se contar pelas manifestações dos representantes dos principais setores da economia, os consensos se resumem aos seus objetivos gerais. Quando se desce às medidas concretas, é cada um por si e o diabo (que mora nos detalhes) por todos.

Todos querem simplificação de impostos, mas quando se trata de unificar as alíquotas, querem tratamento especial. A Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), por exemplo, defende alíquotas diferenciadas por atividades e produtos, assim como a manutenção do sistema cumulativo como opcional para empresas que trabalham com lucro presumido e prestadoras de serviços. Ora, se for assim, é claro que nosso carnaval tributário vai continuar.

A Confederação Nacional dos Transportes (CNT) pretende fazer rabanadas sem quebrar ovos. No documento “Pilares para a Reforma Tributária”, ele exige que a reforma tributária não apenas mantenha a carga tributária global da economia, como também se comprometa a não elevá-la em nível setorial. Na sua lista de presentes para o bom velhinho há o abatimento de seus gastos com insumos e folha salarial no valor imposto agregado devido, mas tratamento diferenciado na tributação dos negócios em transportes e infraestrutura. Impostos seletivos? Só se forem para não onerar as transportadoras - um dos setores mais poluidores de nossa matriz econômica.

Ideais de justiça e igualdade são valorizados nas mensagens de final de ano, mas quando se trata de reformar o sistema, meu interesse vem primeiro. Em carta aberta enviada ao relator da Comissão de Reforma Tributária, deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), 45 associações de produtores rurais listaram os pleitos do agronegócio brasileiro. Entre elas, a manutenção da desoneração da cesta básica, a imposição de alíquota zero para os insumos agropecuários, tratamento especial para as cooperativas e exclusão dos produtores rurais inscritos como pessoa física.

As entidades filantrópicas, por sua vez, querem continuar a fazer o bem com o chapéu alheio. Um grupo de onze organizações representativas de entidades religiosas, de educação e saúde que se beneficiam de isenções fiscais lançou um manifesto contra a “taxação da solidariedade”. As intenções são as melhores possíveis, mas nenhuma palavra se vê sobre a necessidade de se separar o joio do trigo e dar o tratamento correto a atividades lucrativas travestidas de assistencialismo.

Numa velha tirinha do cartunista Bill Watterson, o garoto Calvin, de 6 anos, se pergunta como o Papai Noel consegue pagar os duendes e os brinquedos que ele distribui. Seu tigre de estimação, Haroldo, arrisca uma responda: endividando-se. O lobby em prol da desoneração da folha de pagamentos, que une setores tão díspares quanto a construção civil e a indústria de tecnologia da informação e o varejo, recebeu seu presente de Natal antecipado em novembro. “O problema é que, mais cedo ou mais tarde, a farra acaba e aí como é que eu fico?”, pergunta Calvin diante da perspectiva de ficar sem presentes no futuro.

Para terminar este texto pré-natalino com um pouco de poesia, fica a dica de Drummond para o empresariado brasileiro (e para cada um de nós): “Para ganhar um Ano Novo que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo, tem de fazê-lo novo. Eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre”.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Bruno Carazza: A sobrevivência dos mais gordos

STF perpetua privilégios e contribui para a crise fiscal

Em frente ao prédio do Supremo Tribunal Federal, na Praça dos Três Poderes, repousa a escultura “A Justiça”, de Alfredo Ceschiatti. “Repousa”, aliás, é uma boa palavra para descrever o estado da obra do artista belo-horizontino: afinal, são raras as representações artísticas em que a deusa da Justiça está sentada. Mas este não é seu único detalhe simbólico.

Através dos séculos, a deusa romana Iustitia aparece em pinturas e esculturas com três componentes praticamente inseparáveis: a venda nos olhos (destacando a impessoalidade), a balança (fazendo referência à isonomia no tratamento das partes) e a espada (realçando a força para impor o direito sobre todos).

A escultura que simboliza o Judiciário brasileiro, porém, não possui balança - como se por lá não fosse necessário contrabalançar argumentos, sopesar direitos, medir consequências e equilibrar a teoria e a prática.

Há quem justifique a falta do instrumento afirmando que a nossa Justiça foi retratada após ter exercido o seu dever; logo, a balança já teria sido usada, e uma vez proferida a decisão, bastaria ter no colo a espada, para ser utilizada caso não a cumprissem. Ora, então não seria melhor que a Justiça estive como a deusa grega Thêmis, de olhos bem abertos para fiscalizar a aplicação de seus mandamentos?

Ceschiatti, um dos artistas recomendados por Oscar Niemeyer para ornamentar a nova capital, esculpiu “A Justiça” em 1961 num bloco monolítico de granito de 3,3 metros de altura e com linhas elegantes e econômicas - características que há bastante tempo passam longe do STF, rachado entre várias correntes e fomentando a irresponsabilidade fiscal.

Duas decisões recentes expõem como os ministros do Supremo Tribunal Federal fecham os olhos para a grave crise econômica que o país atravessa, deixam de equilibrar direitos e deveres e embainham a espada quando se trata de cortar os privilégios da própria magistratura.

Em 1º de dezembro a ministra Rosa Weber deferiu uma liminar determinando que a União deveria avalizar a um empréstimo de mais de US$ 400 milhões para investimentos do governo do Estado do Espírito Santo. Essa operação havia sido travada pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que veda a concessão de garantias federais caso entes subnacionais estejam descumprindo os limites prudenciais de gastos com pessoal. No caso do Espírito Santo, era justamente o Poder Judiciário local quem estava gastando além da conta.

Alegando violação ao princípio da intranscendência - em outras palavras, um Poder não poderia ser punido por uma falha de outro - a ministra Rosa Weber esvaziou a LRF, acrescentou mais um ônus ao sobrecarregado Tesouro Nacional e não impôs nenhuma sanção ao Judiciário capixaba por inflar sua folha de pagamentos. Decisões como essa, aliás, são bastante frequentes nas últimas décadas, e podem ser apontadas como uma das causas para a baixa efetividade da LRF e pelo descontrole orçamentário na maioria dos Estados e municípios.

Pior ainda fez o plenário do STF na semana passada - não, eu não me refiro à decisão sobre a reeleição nas presidências da Câmara e do Senado. Com a exceção solitária do ministro Edson Fachin, que votou contra, a maioria dos ministros considerou inconstitucional parte das Emendas Constitucionais nº 41/2003 e 47/2005 que estabelecia que os juízes estaduais deveriam ter seus vencimentos limitados a 90,25% do que ganham os integrantes do STF.

Novamente, o STF valeu-se de princípios abstratos - no caso, da isonomia e da unidade da prestação judicial - para atropelar normas criadas para manter as contas públicas em dia e evitar distorções. E assim, juízes de todo o país, até mesmo os recém aprovados em concurso, estão definitivamente liberados a ganhar o mesmo que um membro da Suprema Corte. E é bom não esquecer que certamente a decisão terá efeito cascata sobre o Ministério Público e os Tribunais de Contas Brasil afora.

Essa última decisão tomada pelo STF partiu de duas ações diretas de inconstitucionalidade (ADI) movidas, respectivamente, pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e pela Associação Nacional dos Magistrados Estaduais (Anamages).

A Constituição Brasileira de 1988 tornou-se uma das mais progressistas do mundo ao permitir que não apenas entidades políticas (como os chefes do Executivo, do Legislativo e do Ministério Público, além dos partidos políticos), mas até mesmo confederações sindicais e entidades de classe pudessem provocar o STF para, enquanto guardião da interpretação constitucional, se posicionar se uma lei, em abstrato, fere ou não a Carta Magna do país.

Como acontece com frequência por aqui, avanços logo se transformam em abusos. Ao permitir que entidades privadas tivessem acesso privilegiado às ações mais importantes de nosso sistema processual, o controle abstrato das normas tornou-se fonte concreta de benesses. Não é à toa que, desde 1988, a AMB figura como o grupo privado que mais acionou o Supremo para questionar a constitucionalidade de leis - foram 151 vezes, boa parte delas relativa à defesa dos interesses de seus associados. A Anamages, por sua vez, propôs outras 45 ADIs.

No porto de Ringkøbing, uma cidade com menos de 10 mil almas no centro da Dinamarca, encontra-se a escultura de um homem esquálido carregando nos ombros uma mulher bastante obesa. A mulher tem os olhos fechados e carrega nas mãos uma balança desequilibrada - desnecessário dizer a quem ela faz alusão.

Feita em bronze, com 3,5 metros de altura, “Sobrevivência do mais Gordo” (“Survival of the Fattest”) é uma obra dos artistas dinamarqueses Jens Galschiøt e Lars Calmar, inaugurada em 2002. Na sua base, há a seguinte inscrição: “Estou sentada nas costas de um homem. Ele está afundando sob o fardo. Eu faria qualquer coisa para ajudá-lo. Menos descer de suas costas”.

Nada mais exemplificativo sobre o Poder Judiciário brasileiro e a atuação de sua cúpula.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”


Bruno Carazza: São muitos os Brasis

Entender resultado das urnas exige mergulho nos dados

Nas últimas semanas vocês foram inundados com números sobre as eleições municipais. Fechadas as urnas, no calor da apuração, produzimos uma profusão de análises apontando vencedores e derrotados. A partir do sobe-e-desce das prefeituras obtidas por cada partido, generalizamos os resultados e projetamos seus impactos para a eleição presidencial de 2022. E em geral a história termina aí.

Mas o Brasil é muito grande e diverso. Entender o que houve em 2020 e tentar extrair lições para o futuro exige um mergulho nos dados que a maioria de nós não faz - e mesmo os que desejam fazê-lo, esbarram na baixa qualidade dos dados.

O TSE até merece elogios por divulgar os dados das votações na unidade mais desagregada possível (a seção eleitoral). O problema é que as planilhas são extremamente pesadas e de difícil manuseio, além de os dados do perfil dos eleitores não serem atualizados periodicamente - o que os torna inúteis com o passar do tempo, pois as pessoas envelhecem, mudam de cidade, continuam estudando e até escolhem trocar de gênero.

Porém, como muitas cidades brasileiras realizaram o recadastramento biométrico de sua população recentemente, abriu-se uma breve janela de oportunidade para se analisar o comportamento do eleitor no microcosmo de cada seção eleitoral Brasil afora com dados pouco defasados. E quando nos aprofundamos nessa pesquisa, a realidade se mostra muito mais complexa do que os grandes números fazem parecer, como pode ser visto nos gráficos a seguir.

Muito se falou sobre o efeito da pandemia sobre a disposição do eleitor em votar. Analisando o comparecimento às urnas em Belém e Vitória no primeiro turno, podemos constatar que o medo de contrair covid-19 pode ter sido a razão para a alta abstenção na capital do Pará - pois lá houve maior abstenção nas seções com maior presença de idosos -, mas não em Vitória, onde praticamente não se observou essa correlação.

Do ponto de vista da disputa eleitoral, as duas capitais tinham um cenário bastante parecido: em ambas ex-prefeitos de esquerda (Edmilson Rodrigues, em Belém, e João Coser, em Vitória) enfrentaram numa disputa apertada com candidatos apoiados por Jair Bolsonaro - Delegado Federal Eguchi e Delegado Pazolini, respectivamente.

Quando comparamos o desempenho dos candidatos bolsonaristas em cada seção eleitoral no primeiro turno com o nível educacional dos seus eleitores (uma boa proxy para nível de renda), também chegamos a resultados díspares: na capital paraense o preferido do presidente foi menos votado nas seções eleitorais com maior percentual de analfabetos e pessoas com instrução até o ensino fundamental, enquanto entre os capixabas ocorreu justamente o contrário.

Os dados de Belém e de Vitória indicam ser precipitado generalizar se houve um deslocamento da base eleitoral de Bolsonaro dos mais ricos para os mais pobres em função do auxílio-emergencial.

Entender o Brasil não é fácil - e dá trabalho.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Bruno Carazza: O mapa da mina

Encerrado o segundo turno, é hora de fazer contas para 2022

Fechadas as urnas em todo o Brasil (com exceção de Macapá, cuja eleição foi adiada por causa do apagão), é hora de contabilizar vencedores e perdedores, tentando extrair sinais que possam iluminar o caminho da política rumo a 2022.

Diversos rankings podem ser traçados. Em termos de número de prefeituras, o 2º turno não trouxe nenhuma novidade em relação ao que já havia sido definido há duas semanas. O MDB manteve a sua histórica liderança, seguido pelos dois principais representantes do Centrão (PP e PSD) - PSDB e DEM completam o “top five”. Nessa métrica, o que conta é a capilaridade, e aqui a centro-direita vai muito melhor que a esquerda, cujos partidos melhor colocados foram o PDT (em 7º lugar), PSB (8º) e PT (na 11ª posição).

Do ponto de vista regional, entre os partidos que mais foram penalizados em 2018, na esteira da Operação Lava-Jato, vemos o PT cada vez mais reduzido ao Nordeste (seus melhores desempenhos relativos foram no Piauí, no Ceará e na Bahia) e ao seu enclave acreano. Já os tucanos do PSDB mantêm seus domínios em São Paulo e no Mato Grosso do Sul - chamando a atenção o fraco desempenho do partido no RS, onde o governador Eduardo Leite só conseguiu garantir 5% das prefeituras.

Embora tenha mantido seu tradicional posto de dono do maior número de municípios no Brasil, o MDB se vê cada vez mais reduzido aos seus clãs, com domínio forte no Pará dos Barbalhos (43% das prefeituras), na Alagoas dos Calheiros (37%), no Rio Grande do Sul de Eliseu Padilha (28%) e do Norte dos Alves (23%), além do Amazonas de Eduardo Braga (22%). Mas nem tudo são flores: com exceção da vitória de Sebastião Melo em Porto Alegre, o MDB perdeu em todas as capitais desses Estados.

E já que estamos falando de feudos políticos, eles também estão presentes no campo das esquerdas. Partidos fortemente personalistas, em que famílias influenciam as eleições por décadas, ainda têm grande dificuldade de ampliar seus domínios Brasil afora, como é o caso do PSB da família Arraes, ainda encastelado em Pernambuco (onde venceu quase um terço das disputas municipais, inclusive no Recife, onde o bisneto João Campos venceu a neta Marília) e os irmãos Gomes do PDT, que apesar de terem ganhado 40% das prefeituras no Ceará, ainda têm baixa penetração em outros Estados (exceção feita ao Maranhão).

Na tão comentada centro-direita, vemos o DEM se posicionando muito bem no cinturão da soja, obtendo os seus melhores resultados em Goiás (25% dos municípios do Estado), Mato Grosso do Sul (19%), Mato Grosso (17%), Tocantins (19%) e Rondônia (16%). Já o Progressistas (antigo PP) e o PSD de Kassab tiveram seu melhor desempenho não apenas no Nordeste (principalmente no Piauí, Bahia, Alagoas e Sergipe), mas também no Sul, com o primeiro se dando bem no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, enquanto os pessedistas destacaram-se no Paraná.

Muito se disse que a onda de renovação na política brasileira perdeu força, mas os números indicam que 16% dos municípios brasileiros escolheram prefeitos que nunca haviam disputado uma eleição antes - a maioria empresários, produtores rurais, advogados e médicos. E aqui também se nota como as legendas mais à direita do espectro político continuam conseguindo atrair mais novatos com viabilidade eleitoral, numa tendência já observada em 2018, quando Bolsonaro chegou ao poder. Entre os partidos que conseguiram emplacar neófitos nas prefeituras, destacam-se o MDB (104), PP (93), PSD (92), DEM (69) e PSDB (64), com os partidos mais à esquerda vindo bem atrás, com PDT (57, em 7º lugar), PSB (39, 9º lugar) e PT (23, no 12º lugar).

Mais do que atrair candidatos novatos com boas chances de estrear com vitória, os partidos da centro-direita também se notabilizaram por conseguir “roubar” políticos de outras legendas. Mergulhando nos dados sobre vinculação partidária dos prefeitos vencedores em 2020, é possível verificar que entre os dez partidos com o maior número de prefeituras, o Republicanos foi o campeão na atração de candidatos de outras legendas - nada menos que 56% dos novos prefeitos disputaram sua última eleição por outro partido. DEM e PSD também tiveram em torno da metade dos candidatos vencedores no pleito atual foram captados em hostes adversárias, principalmente MDB e PSDB.

Se levarmos em conta a população que passará a ser governada a partir de primeiro de janeiro nos municípios, a vitória de Bruno Covas sobre Guilherme Boulos na cidade mais populosa do Brasil garantiu aos tucanos a maior fatia do “mercado eleitoral” deste ano, com mais de 16% dos brasileiros. Num patamar abaixo, na faixa de 11% a 12% vêm, pela ordem, MDB, DEM e PSD.

O resultado do segundo turno jogou uma ducha de água fria nas pretensões dos partidos de esquerda de sair da disputa com algumas vitórias importantes. É verdade que houve o que comemorar, como a vitória do cirista Sarto e do psolista Edmilson Rodrigues sobre candidatos bolsonarista em Fortaleza e Belém, respectivamente. Mas as derrotas de Boulos, Manuela d’Ávila e Marília Arraes acrescentam um gosto amargo a um indigesto resultado das esquerdas neste ano.

Tudo somado, subtraído, dividido e multiplicado, o que podemos extrair de todos esses números? Em primeiro lugar, ainda que Bolsonaro não tenha lançado o seu próprio partido, o fato de que os poucos candidatos que ele apoiou terem sido derrotados pode indicar um arrefecimento do bolsonarismo enquanto movimento. Por outro lado, para quem não deseja vê-lo no Palácio do Planalto a partir de 2023, uma inclinação para a centro-direita parece ser um caminho muito mais seguro do que uma guinada à esquerda.

Os resultados deixam muito claro que se consolidou no Sul, São Paulo e Centro-Oeste uma forte resistência ao PT e a seus antigos partidos satélites. Por outro lado, o avanço dos partidos de Centrão no Nordeste sinalizam que o último bastião do petismo pode ter caído.

De eleição para eleição, todas as atenções a partir de agora se colocam sobre as articulações dos partidos da centro-direita. As composições em torno das escolhas para as mesas diretoras da Câmara e do Senado podem ser um boa prévia do que pode acontecer até 2022.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Bruno Carazza: Em busca de sinais

Eleições mornas dificultam leitura dos resultados

“Que lições podemos tirar destas eleições?”, pensava eu enquanto voltava para casa depois de cumprir minha obrigação democrática, esta coluna esperando para ser escrita. Seções sem filas, nenhum cabo eleitoral distribuindo santinhos nas imediações do local de votação, ruas desertas como num feriado qualquer - nem parecia dia de eleição.

A pandemia foi apontada por muitos como a principal razão para o desinteresse demonstrado pelo eleitor com o pleito deste ano. Certamente o medo da contaminação e as medidas de distanciamento social tiveram sua importância, mas o novo coronavírus está longe de ser a única explicação.

Nos últimos meses os governos locais flexibilizaram as restrições às atividades econômicas e sociais, e muitos de nós também relaxamos as limitações auto impostas de circulação. Dados compilados pelo aplicativo Waze e disponibilizados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) mostram que a taxa de congestionamento de trânsito nas regiões metropolitanas brasileiras, que chegaram a cair mais de 80% em abril, já estavam “apenas” 8% menores na última semana. O relatório de mobilidade urbana do Google também vai na mesma direção, indicando que a frequência a locais de trabalho, que atingiu -34% na última semana de março, já havia recuperado para -5% no dia 10, na média nacional.

Com bares lotados, comércio reaberto e até atividades de lazer e interação social (como clubes, academias e cultos) liberadas, seria muito raso atribuir à pandemia a culpa pelas eleições mais mornas de nosso passado recente. Afinal, se as campanhas não ganharam as ruas, tampouco agitaram as redes sociais. Depois de tudo o que se falou sobre o poder dessas novas mídias em 2018, a disputa entre Biden e Trump teve repercussão imensamente superior nos grupos de WhatsApp e no Twitter dos brasileiros do que o pleito atual.

Embora careça de comprovação científica a hipótese de que as eleições municipais são uma prévia das disputas gerais a serem realizadas dois anos depois, sempre houve uma conexão entre o local e o nacional, seja olhando para frente ou para trás.

Em 1992, o processo de impeachment de Collor impulsionou a vitória de muitos candidatos da esquerda (PT e PDT), e a implantação do Plano Real foi fundamental para o sucesso dos partidos da base de apoio de FHC em 1996.

Na sequência, os três principais partidos da redemocratização dominaram também o poder na maioria das cidades brasileiras na primeira década do século, com MDB, PSDB e PT angariando a maioria das prefeituras do país (e não só nas capitais).

Mas eleições municipais também funcionam como pequenos sismos que podem anunciar grandes terremotos políticos sendo gestados nas entranhas do território nacional. Foi assim em 2000, quando a vitória do PT em seis capitais importantes, nas cinco regiões geográficas, sinalizou que o partido abria caminho para alçar seu voo mais alto, com a eleição de Lula dois anos depois. Da mesma forma, o efeito devastador da Lava-Jato, o impedimento de Dilma e a crise econômica aplicaram uma surra nos petistas em 2016, permitindo o avanço de um discurso anti-establishment e conservador que desaguou na onda bolsonarista de dois anos atrás.

Em 2020, porém, nada disso parece ter ocorrido. Os grandes figurões da política nacional abstiveram-se de vestir a camisa e entrar com vontade no campo municipal. Bolsonaro, Lula, Ciro, Doria, Moro e Huck - nomes que vêm sendo apontados como prováveis nas urnas em 2022 - ou tiveram atuação pontual nas disputas (em geral com resultados bem ruins, como Lula e Bolsonaro), não se envolveram (Moro e Huck) ou até mesmo foram ignorados por correligionários (caso de Bruno Covas e Doria).

Com isso, as eleições deste ano perderam muito de seu apelo como previsão meteorológica do clima político no futuro próximo. Para completar, o auxílio emergencial ainda deixa a população anestesiada quanto aos efeitos econômicos da covid-19 (que chegarão com força em 2021), também impedindo a nacionalização da disputa. Isso não quer dizer, porém, que não possamos extrair algumas tendências para serem monitoradas a partir dos resultados eleitorais de ontem.

A maioria dos analistas tem criticado a fraqueza de Bolsonaro como cabo eleitoral (principalmente por causa do fracasso de Russomano em São Paulo), mas a recuperação de Crivella na véspera da eleição no Rio e o bom desempenho de candidatos evangélicos e militares Brasil afora mostram que o presidente mantém forte influência sobre boa parte do eleitorado brasileiro.

No outro extremo, o mau resultado nas capitais comprova a tendência, já visível em 2018, de enfraquecimento do petismo em favor de outras legendas que costumavam girar ao seu redor. Assim, a esquerda entra no jogo das próximas eleições presidenciais dividida entre um partido com estrutura, mas com forte resistência do eleitorado (PT), e novas lideranças com um discurso mais atraente principalmente para os jovens, mas sem musculatura nacional (Psol, PDT e PCdoB). Unir-se numa frente única ou seguirem independentes pelo menos no primeiro turno será o grande dilema a atormentar a esquerda daqui pra frente.

Para aqueles que esperam contar com uma opção viável entre Bolsonaro e um adversário de esquerda em 2022, os resultados de ontem indicam que o eleitorado pode se inclinar mais à centro-direita do que à centro-esquerda. As vitórias (ou lideranças provisórias) de candidatos do DEM, PSDB, PSD e demais partidos do Centrão nas capitais mais populosas e no Nordeste - onde se deu a resistência de Haddad em 2018 - indicam que a construção de uma opção nesse campo pode ter condições de furar a polarização atual. Resta saber se essas forças de direita, menos extremas que o bolsonarismo, conseguirão chegar a um denominador comum ou entrar fragmentados (e assim, fadados à derrota) como foi há dois anos.

A falta de empolgação do eleitor e a prevalência de fatores locais sobre os nacionais tiraram o brilho da disputa de ontem. Isso, porém, não reduz a importância do seu resultado. Pelo contrário, analistas e principalmente lideranças políticas levaram um bom tempo deglutindo os números das urnas.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”