Brexit

Boris Johnson renuncia cargo | reprodução/Flickr

A carreira de controvérsias de Boris Johnson

Brasil de Fato*

Boris Johnson abusou da sorte ao longo de sua carreira, driblando uma sucessão de contratempos e escândalos que facilmente teriam afundado políticos menos perspicazes. Mas a sorte de um homem que chegou a ser comparado a um "porquinho azeitado", por sua capacidade de escapar de controvérsias, finalmente acabou, após uma série de ministros e secretários de Estado terem renunciado em protesto pelos seguidos escândalos.

A saída de nomes importantes do gabinete na terça-feira, como os chefes das pastas das Finanças, Rishi Sunak, e da Saúde, Sajid Javid, enfraqueceu ainda mais o premiê no momento em que ele mais precisava de aliados.

A renúncia nesta quinta-feira ocorre apenas três anos depois que ele sucedeu Theresa May em uma disputa interna da liderança conservadora e após meses de escândalos, que inclusive levaram Johnson a ser multado pela polícia e criticado por permitir festas na sede do governo durante a pandemia.

Há um mês, ele havia superado uma moção de desconfiança em seu partido, mas saiu com o poder enfraquecido da votação, que mostrou insatisfação de 41% dos parlamentares conservadores com sua gestão.

Sob pressão, Johnson exortou seu partido e o país a "seguirem em frente" e se concentrarem na economia em dificuldades do Reino Unido e na guerra da Rússia na Ucrânia. Mas as alegações de má conduta sexual contra um alto funcionário do partido selou o destino de um político que demonstrava grande resiliência.

Maioria recorde desde Thatcher

Nas eleições gerais antecipadas em dezembro de 2019, Johnson conquistou a maior maioria parlamentar conservadora desde o apogeu de Margaret Thatcher na década de 1980. Isso permitiu que ele desbloqueasse anos de paralisia política após a votação do Brexit em 2016, para tirar o Reino Unido da União Europeia em janeiro de 2020.

Johnson vinha enfrentando críticas desde então, desde as sua gestão da pandemia de coronavírus até alegações de corrupção e clientelismo. Alguns traçam paralelos entre seu estilo de governo e sua caótica vida privada de três casamentos, pelo menos sete filhos e rumores de uma série de casos.

Sonia Purnell, ex-colega de Johnson do tempo em que ele trabalhava para o Daily Telegraph, sugeriu que Sunak e Javid podem ter percebido o que ela e outros perceberam antes deles. "Quanto mais perto você chega dele, menos você gosta dele e menos você pode confiar nele", disse ela à emissora Sky News. "Ele realmente decepciona todo mundo, em todos os momentos ele realmente engana você."

"Regras são para os outros"

Alexander Boris de Pfeffel Johnson teve uma ascensão convencional ao poder para um político conservador: primeiro o colégio de elite Eton College, depois a Universidade de Oxford.

Em Eton, seus professores lamentavam sua "atitude arrogante" em relação aos estudos e a sensação que ele dava de que deveria ser tratado como "uma exceção".

A aparente atitude de Johnson de que as regras foram feitas para os outros foi amplamente demonstrada em 2006, quando ele inexplicavelmente derrubou o jogador adversário usando um golpe de rugby durante um jogo de futebol beneficente.

Sua relação elástica com a verdade foi forjada em Oxford, onde foi presidente da Oxford Union, uma sociedade de debates fundada na retórica e na réplica, e não no domínio de fatos frios e duros. Seu grupo privilegiado no covil da política estudantil forneceu muitos integrantes do movimento que levou ao Brexit.

Logo depois de Oxford, ele se casou com sua primeira esposa – sua colega de faculdade Allegra Mostyn-Owen – apesar das dúvidas da mãe dela. "Não gostava do fato de ele estar à direita", disse a ex-sogra Gaia Servadio, que morreu no ano passado, segundo o biógrafo de Johnson, Tom Bower. "Mas acima de tudo, não gostava do caráter dele. Para ele, a verdade não existe."

Após a universidade, ele foi demitido do jornal The Times depois de inventar uma citação, e em seguida juntou-se ao Telegraph como correspondente do jornal em Bruxelas.


Johnson em uma das festas que teriam contrariado as regras da pandemia / UK Cabinet Office

Euroceticismo

A partir daí, ele alimentou o crescente euroceticismo conservador da década de 1990 com "euromitos" regulares sobre supostos planos da UE para um megaestado que ameaçava a soberania britânica. Seus rivais descreviam alguns de seus artigos como "bobagens completas".

Johnson foi se tornando conhecido desde Bruxelas, com aparições satíricas em programas de perguntas e respostas na televisão, colunas de jornais e revistas.

Desde então, muito de seu jornalismo foi amplamente citado, particularmente suas visões sobre questões de mães solteiras, passando por homossexualidade ao colonialismo britânico.

Ele tornou-se deputado em 2004, e o líder conservador na época, Michael Howard, o demitiu de seu gabinete paralelo por mentir sobre um caso extraconjugal.

De 2008 a 2016, foi prefeito de Londres por dois mandatos, promovendo-se como liberal pró-UE, postura que abandonou assim que o referendo do Brexit foi lançado.

Figura de proa do Brexit

Johnson tornou-se figura de proa da campanha pelo Brexit, capitalizando sua imagem como um personagem não convencional mas simpático como o caminho mais rápido para o poder.

Seu ex-editor do Telegraph, Max Hastings, descreveu-o como alguém que só se importa "com sua própria fama". Na quarta-feira, enquanto os pedidos de saída de Johnson aumentavam, Hastings escreveu no The Times que o primeiro-ministro "quebrou todas as regras de decência e não fez nenhuma tentativa de buscar uma agenda política coerente além do Brexit".

Mas ressaltou que ele continuava "o mesmo falido moral de quando o partido conservador o escolheu, tão caótico em sua conduta do cargo quanto na gestão de sua vida". "Agora precisamos de um primeiro-ministro que restaure a dignidade e o respeito próprio ao país e à sua governança", afirmou.


Martin Wolf: Um acordo para pôr fim às ilusões do brexit

Saída do Reino Unido da UE é equivalente à promessa de Trump de 'tornar a América grande novamente'

Depois de quatro anos e meio dolorosos, chegamos ao fim do início do brexit. Temos um acordo. É, inevitavelmente, um acordo prejudicial para a economia britânica, comparado a continuar na União Europeia. Mas é muito melhor que a estupidez de nenhum acordo. Acima de tudo, ele mantém um relacionamento funcional com os vizinhos próximos e principais parceiros econômicos do Reino Unido.

Nenhum governo responsável deixaria poucos dias para as empresas se adaptarem às complexidades dessa nova situação. E o faria ainda menos no meio de uma pandemia. Esse continuará sendo um divórcio tolo e desnecessário. Mas a realidade do brexit poderá até trazer alguns benefícios.

A UE já deve ter visto alguns deles. Ela quase certamente teria sido incapaz de aprovar seu fundo de recuperação da pandemia de 750 bilhões de euros (R$ 4,9 trilhões) se o Reino Unido tivesse continuado à mesa. De agora em diante, a UE poderá avançar mais depressa na direção de seus objetivos comuns.

Para o Reino Unido, também, o brexit trará o grande benefício de separar a realidade da ilusão.
Algumas ilusões já desapareceram. Os defensores do brexit disseram ao país que seria fácil garantir um excelente acordo de livre comércio com a UE, porque ele tinha "todas as cartas na mão". Na verdade, mostrou-se bem difícil fazer isso, e o Reino Unido teve de fazer duras concessões desde 2016, notadamente sobre o dinheiro que devia à UE, a fronteira irlandesa e as exigências europeias de um "campo de jogo nivelado".

Essas ilusões eram sustentadas por outras. Entre elas estava a ideia de que o Reino Unido e a UE negociariam como "soberanos iguais". Sim, a UE e o Reino Unido são igualmente soberanos. Mas não são igualmente poderosos. A economia britânica é menos de 20% da europeia; 46% das exportações de mercadorias britânicas foram para a UE em 2019, enquanto apenas 15% das exportações europeias (excluindo seu comércio interno) foram para o Reino Unido.

A relação econômica entre a UE e o Reino Unido é mais como a do Canadá com os Estados Unidos. Como indica Jonathan Portes, do King's College, o acordo comercial imposto por Washington ao Canadá e ao México é bastante intrusivo.

A realidade é assimétrica. Este continuará sendo o caso nas muitas negociações com a UE que virão. Quando se lida com potências estrangeiras, especialmente mais poderosas, "recuperar o controle" é algo teórico.

Mas esse slogan também é ilusório em alguns outros aspectos. Em defesa, educação, habitação, saúde, desenvolvimento regional, investimento público e assistência social, o Reino Unido já tinha amplamente o controle. Mas a população britânica está prestes a perder valiosas oportunidades de fazer negócios ou viver, estudar e trabalhar na UE. Eles não vão "recuperar o controle" de suas vidas, mas perdê-lo.

Mesmo onde o controle será recuperado, em teoria, a realidade poderá chocar os partidários da saída da UE. Considere a imigração. Nos 12 meses que terminaram em junho de 2016 (o mês do referendo), a imigração líquida da UE mais fontes não europeias foi de 355 mil (com a emigração líquida de britânicos ignorada). Nos 12 meses que terminaram em março de 2020, a imigração líquida foi de 374 mil. A imigração líquida da UE despencou de 189 mil para 58 mil. Mas a do resto do mundo –sempre teoricamente sob controle britânico– explodiu, de 166 mil para 316 mil.

O Reino Unido preservou de fato um acesso relativamente favorável (embora marcadamente pior) para as indústrias, em que ele tem uma desvantagem comparativa, enquanto aceitou um tratamento substancialmente pior para serviços, em que tem uma vantagem comparativa. Na verdade, lutou mais duramente pelo controle da pesca, que gera 0,04% do Produto Interno Bruto britânico, do que por serviços, que geram o grosso do PIB.

Johnson prometeu que o país vai "prosperar poderosamente" mesmo sem um acordo. Mas virtualmente todos os economistas concordam que o Reino Unido ficará significativamente mais pobre em longo prazo, mesmo sob esse tipo de acordo, do que se tivesse continuado membro da UE.

Até mesmo a sobrevivência do Reino Unido está em dúvida. A Escócia e a Irlanda do Norte poderão deixar a União, a primeira para aderir à UE, afirmando que também quer "recuperar o controle", e a segunda para se unir à Irlanda e, portanto, também à UE. A Inglaterra poderá então ter uma fronteira com a UE no mar da Irlanda e no rio Tweed.

O brexit é, de muitas maneiras, o equivalente inglês à promessa de Donald Trump de "tornar a América novamente grande". Uma grande diferença é que, ao contrário do tempo de Trump como presidente, o brexit é para sempre. Parece quase certo que prejudicará permanentemente a prosperidade e a influência do Reino Unido. Mas só agora poderemos descobrir. Vamos olhar e aprender.

*Martin Wolf é comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves


Mathias Alencastro: Impossível não ver brexit como deflagrador da emancipação europeia

Europeístas que caricaturavam acordo como uma aventura chauvinista precisam rever sua posição

Longe vão os tempos da Europa paralisada pelas suas contradições sociais e subordinada aos imperativos dos aliados estratégicos. Horas depois de concluir o brexit, Bruxelas avançou para um amplo acordo de investimento com a China. A mensagem para a Presidência de Joe Biden é cristalina: a ordem ocidental não existe mais, e a União Europeia pretende triangular com as duas potências globais.

Impossível não ver o brexit como o elemento deflagrador da emancipação europeia. Desde que o Reino Unido decidiu a sua partida num referendo realizado no auge do vandalismo digital, a UE, entre outros feitos, selou um até então impensável acordo para a federalização da dívida dos países membros.

Isso posto, os europeístas que caricaturavam o brexit como uma aventura chauvinista precisam rever a sua posição.

Com o passar das emoções, o brexit deixou de ser visto como uma contingência e apareceu como uma inevitabilidade provocada pelas tensões ideológicas do Partido Conservador, a posição ambígua do Reino Unido dentro do mercado interno europeu e a experiência histórica dos britânicos com o imperialismo, que continua sendo o motor da sua identidade nacional.

Isso não salva a biografia de Boris Johnson, um bufão que provavelmente será varrido na próxima eleição. Mas seu legado será muito mais robusto do que o de Donald Trump ou de Jair Bolsonaro.

Aos trancos e barrancos, Boris assegurou ao Reino Unido uma rede respeitável de acordos comerciais.

O tratamento secundário conferido ao mercado financeiro nas negociações com a UE e a adesão unilateral a objetivos climáticos ambiciosos revelam que Boris ambiciona para o Reino Unido algo mais do que um paraíso fiscal sobre a Tâmisa.

Mais importante ainda, os últimos episódios da novela China mostram que os valores humanistas europeus ficaram do lado britânico do canal da Mancha. Bruxelas não hesitou em trocar promessas vagas sobre o trabalho forçado em Xinjiang pelo acesso da indústria franco-alemã ao mercado de consumidores da potência asiática. Entretanto, Londres já concedeu três milhões de passaportes para os cidadãos de Hong Kong, oprimidos por Pequim.

Alertas sobre uma implosão iminente do Reino Unido são fantasistas. A adesão de um país à União Europeia depende da aprovação de todos os Estados membros. Para a Espanha, em plena decadência monárquica, aceitar a integração de uma Escócia independente seria a melhor forma de provocar a secessão da Catalunha.

Com efeito, no que toca à coesão interna dos Estados, os britânicos, apesar dos seus problemas, seguem na frente dos europeus. A despedida de Angela Merkel, agendada para este ano, será um mergulho no desconhecido para a Alemanha.

Emmanuel Macron, cada vez mais isolado na Europa, perdeu o controle do seu governo. A França é o único membro do Conselho de Segurança que fracassou no desenvolvimento da vacina. Lenta e errática, a campanha de imunização é rejeitada pela maioria da população.

Se a arquitetura da União Europeia saiu reforçada da pandemia, o mesmo não se pode dizer da coesão interna das suas nações.

*Mathias Alencastro é pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Brexit e União Europeia: o que muda? Veja análise de Joan del Alcázar

Em artigo publicado na revista Política Democrática online, historiador diz que bloco deve buscar unidade 

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

“Há importante déficit de liderança na Europa, sobretudo se recordarmos os líderes que tivemos no passado”. A avaliação é do historiador Joan del Alcázar, catedrático em História Contemporânea da América Latina da Universidade de Valencia, na Espanha. Em artigo produzido exclusivamente para a nova edição da revista Política Democrática online, ele analisa o Brexit, que é a saída do Reino Unido da União Europeia, e diz que os europeus deverão tomar medidas para reforçar as instituições continentais.

» Acesse aqui a íntegra do artigo na 15 edição da revista Política Democrática online 

Com colaboração de renomados especialistas e pesquisadores, revista mensal Política Democrática online é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), vinculada ao partido político Cidadania. Todos os conteúdos podem ser acessados de forma gratuita no site (www.fundacaoastrojildo.com.br) e na página da fundação no Facebook.

De acordo com Alcázar, em momentos como o atual, os cidadãos devem assumir suas responsabilidades e saber transmitir aos mais variados dirigentes políticos que não resta outra opção, a não ser reforçar a União Europeia. “A Europa, mais concretamente o território da União Europeia, é a região mais habitável do planeta Terra, e com diferenças, como verificaram todos e cada um dos que viajaram a qualquer outro continente nas últimas décadas”, analisa o autor, em outro trecho.

Considerando a segurança na cobertura social e a cultura de liberdades individuais como parâmetro, conforme o artigo publicado na revista Política Democrática online, a Europa permite uma qualidade de vida a seus cidadãos superior à de qualquer outra região. “Infelizmente, como deixou patente nas últimas eleições britânicas – além dos resultados tanto para a Escócia como para a Irlanda do Norte –, a ideia da unidade europeia não é tão hegemônica como nos conviria”, afirma o historiador.

Segundo o autor, essa unidade é necessária, imprescindível, e não só para os cidadãos. “Fez-se evidente na Cúpula do Clima, reunida em Madri, apesar dos desacordos sobre a obrigação de endurecer a redução de emissões”, escreve ele.

Alcázar também é autor de diversos livros, dentre os quais Política y utopia en América Latina - las izquierdas en su lucha por un mundo nuevo (Tirant humanidades, València, 2019). Além disso, ele é responsável pelo blog El cronista periferico (elcronistaperiferico.blogspot.com).

Todos os artigos desta edição da revista Política Democrática online serão divulgados no site e nas redes sociais da FAP ao longo dos próximos dias. O conselho editorial da publicação é composto por Alberto Aggio, Caetano Araújo, Francisco Almeida, Luiz Sérgio Henriques e Maria Alice Resende de Carvalho.

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O Estado de S. Paulo: Brexit começa e Reino Unido busca negócios com EUA

Britânicos deixam nesta sexta-feira a UE e iniciam negociações para um acordo de livre-comércio que compense a perda de mercado europeu

LONDRES - Um dia antes de o Reino Unido deixar a União Europeia (UE), o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, recebeu nesta quinta-feira, 30, o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, que enfatizou os “enormes benefícios” para os dois países do acordo comercial pós-Brexit que eles estão prestes a negociar.

LEIA TAMBÉM: O que vai mudar após o Brexit em 1º de fevereiro

Três anos e meio após a decisão britânica de deixar a União Europeia, o Reino Unido experimenta uma situação econômica paradoxal: os investimentos caíram e o crescimento é lento, mas o desemprego está em um mínimo histórico. A aproximação com os EUA é uma aposta de Johnson para compensar as perdas do Brexit. É difícil saber quanto a saída da União Europeia custou ao Reino Unido até agora, mas é certo que o crescimento da economia tem patinado: de 1,8%, em 2017, para 1,4%, em 2018, de acordo com o Escritório de Estatísticas Nacionais (NSO). A reunião de Johnson e Pompeo, em Londres, durou meia hora.

Ao sair, o chefe da diplomacia americana disse que tinha sido um encontro “fantástico”. “Estou otimista, porque havia coisas que o Reino Unido tinha de fazer como membro da UE e agora eles podem fazê-lo de maneira diferente”, disse Pompeo. “Tudo isso será visto no acordo de livre-comércio que queremos começar a negociar imediatamente. Quando você olha pelo espelho retrovisor, verá os enormes benefícios para nossas duas nações.” Depois que o Parlamento Europeu ratificou o acordo de saída, na quarta-feira, o Reino Unido deixará o bloco hoje à meia-noite (20 horas de Brasília), embora na prática quase nada mude durante o período de transição planejado até o final de dezembro.

Londres encerrará quase 47 anos de relacionamento com a UE, que, pela primeira vez em sua história, perderá um membro e conquistará um poderoso concorrente comercial e financeiro à sua porta.Um dos principais argumentos dos defensores do Brexit tem sido – desde a campanha do referendo de 2016 em que ele foi decidido por 52% dos votos – recuperar o controle de sua política comercial para negociar livremente acordos com outros países.É certo que a esmagadora vitória de Boris Johnson nas eleições legislativas de dezembro deu ânimo à economia. A primeira estimativa dos índices que medem o crescimento da atividade econômica indicou na semana passada uma recuperação em um nível que não era visto desde setembro de 2018, após cinco meses de queda.

PARA ENTENDER

A cronologia do Brexit

Decisão de sair da União Europeia deixou os britânicos com a tarefa de conduzir o processo sem fazer um rompimento brusco; relembre

Além disso, uma pesquisa publicada pelo principal sindicato patronal, o CBI, mostrou uma recuperação do otimismo entre os empresários. A confiança aumentou para 23% no período de três meses encerrado em janeiro, algo que não ocorria desde 2014, em comparação com 44% negativos da pesquisa anterior.

Prioridade

O presidente americano, Donald Trump, considera “uma prioridade absoluta” alcançar um ambicioso acordo de livre-comércio com o Reino Unido, e seu secretário do Tesouro, Steven Mnuchin, disse que espera concluí-lo ainda neste ano.Mas Washington e Londres terão percalços. A decisão britânica de permitir que a fabricante chinesa de telecomunicações Huawei participe, mesmo que limitadamente, de sua rede 5G é uma das principais.Washington acusa a gigante tecnológica chinesa de ser espiã do governo de Pequim, o que a empresa nega. Com esse argumento e em um contexto de rivalidade comercial, ele pediu a seus aliados que excluíssem a Huawei do desenvolvimento da próxima geração de sua rede de internet móvel de alta velocidade.“O Partido Comunista Chinês representa a principal ameaça do nosso tempo”, afirmou Pompeo em Londres. Johnson havia defendido o direito dos britânicos de acessar a tecnologia de ponta da Huawei, e disse que isso não vai prejudicar a cooperação com os Estados Unidos.

Europa

Ao mesmo tempo em que costura acordos com Washington, Johnson deve negociar o futuro relacionamento com a UE após o Brexit. Até agora, seus 27 parceiros temem que o Reino Unido se torne um concorrente injusto, exigindo que respeitem um certo número de normas de direitos trabalhistas, ou ecológicas, para acessar o mercado europeu. Esse exercício será delicado. Nas negociações com os EUA, Londres poderá ter de aceitar, por exemplo, produtos com padrões menos rígidos para a saúde, ou para o meio ambiente, em relação aos alimentos, do que os impostos pela UE.

Entre outras questões que complicam as relações anglo-americanas, estão o projeto britânico de taxar gigantes da internet, a recusa dos EUA em extraditar a mulher de um diplomata envolvido em um acidente de trânsito que matou um adolescente na Inglaterra, assim como a denúncia de um procurador de Nova York de que o príncipe Andrew, filho da rainha Elizabeth II, não estaria cooperando com uma investigação do FBI sobre o pedófilo Jeffrey Epstein, morto em agosto. / AFP e EFE

O Brexit chegou, mas a parte complicada está apenas começando

Parlamento da UE aprova acordo do Brexit

Reino Unido quer fechar acordo com Mercosul até dois anos após Brexit

 


Política Democrática || Juan del Alcázar: Ganhou o Brexit. Falta reforçar a União Europeia

Com a proximidade do desfecho do Brexit, integrantes da União Europeia devem tomar medidas para reforçar as instituições continentais e, ao mesmo tempo, cobrar-lhes mais presença, eficiência e maior implantação no dia a dia dos cidadãos

Depois da vitória esmagadora de Boris Johnson e do Partido Conservador nas eleições britânicas, e estando próximo o desfecho do Brexit, com prejuízos incalculáveis para todos, os europeus convencidos deverão tomar medidas para reforçar as instituições continentais e, ao mesmo tempo, cobrar-lhes maior presença, maior eficiência e maior implantação no dia a dia dos cidadãos da União.

A Europa, mais concretamente o território da União Europeia, é a região mais habitável do planeta Terra, e com diferenças, como o verificaram todos e cada um dos que viajaram a qualquer outro continente nas últimas décadas. Considerando a segurança na cobertura social e a cultura de liberdades individuais como parâmetro, a Europa permite – a despeito de todos os problemas que comporta, que não são poucos – uma qualidade de vida a seus cidadãos superior à de outras regiões. Infelizmente, como deixaram patente as últimas eleições britânicas – além dos resultados tanto para a Escócia como para a Irlanda do Norte – a ideia da unidade europeia não é tão hegemônica como nos conviria.

Essa unidade é necessária, imprescindível, e não só para os cidadãos. Fez-se evidente na Cúpula do Clima, reunida em Madri, apesar dos desacordos sobre a obrigação de endurecer a redução de emissões. Também o será na hora de negociar com Londres as condições da saída da EU. E, além de temas concretos, por mais relevantes que sejam, e o são, sem dúvida, a unidade dos europeus é imprescindível para evitar que os gigantes que disputam o controle do planeta – Estados Unidos, Rússia, China e, em menor escala, Índia – nos conduzam ao desastre total.

Malgrado as fortes tensões endógenas e os inimigos internos e externos, que esfregam as mãos cada vez que a União Europeia exibe sintomas de debilidade, os europeus temos a obrigação de nos entendermos, e não só por razões culturais ou econômicas. A Europa, assolada por duas guerras totais no século XX, com uma longa história de enfrentamentos brutais entre os territórios que a integram, ainda é a região do mundo em que se alcançaram os mais altos níveis de liberdade individual; cujos Estados lograram assegurar a mais elevada capacidade redistributiva da riqueza; a região que estabeleceu as mais altas quotas de proteção social; a que atingiu os mais altos níveis de segurança pessoal; a que manteve o Estado mais emancipado do confessionismo religioso.

A União Europeia é, indiscutivelmente, o marco jurídico e legal mais adequado, mais operativo, para resolver problemas internos dos diversos estados nacionais e plurinacionais, como é o caso da Espanha. Tendo a Europa como perspectiva, torna-se mais tangível uma compreensão mais objetiva dos problemas internos de cada país, na medida em que as instâncias ou instituições que os forem resolver não estão maculados por interferências, imposições, obstrução ou má vontade dos diretamente afetados por eles.

A Grã-Bretanha partirá logo; abandona a União Europeia. Teremos de negociar essa saída, e parece que, com a nova composição do Parlamento das Ilhas, será mais fácil celebrar acordos bilaterais, mas será necessário que a União Europeia tenha uma única voz. Teremos também de observar com atenção o que ocorrerá particularmente com a Escócia, bem como na Irlanda do Norte, que votaram em um sentido diferente dos que apoiaram o Brexit.

Em relação ao ocorrido com a Grã-Bretanha, temos, ainda, de ser conscientes de que, dentro da União Europeia, há muitos inimigos que a desestimam, em especial a extrema direita populista, xenófoba e racista. Devemos, também, reconhecer que interesses poderosos, de Washington a Moscou, tudo farão para fortalecê-los. Temos, portanto, não só de não baixar a guarda, mas também fortificar a Europa, unir a Europa, construir mais Europa.

É um momento de fato difícil, mas é em tempos complexos que se tem de demonstrar fortaleza. Há importante déficit de liderança na Europa, sobretudo se recordarmos os líderes que tivemos no passado. Mas, em momentos como o atual, os cidadãos devem assumir suas responsabilidades e saber transmitir aos mais variados dirigentes políticos que não nos resta outra opção do que a Europa, a Europa e a Europa. Agora, que a União sofreu o golpe do Brexit, é exatamente quando devemos reforçá-la. Temos muito em jogo.

*Catedrático em História Contemporânea da América Latina da Universidade de Valencia, Espanha. Autor de diversos livros, dentre eles, Política y utopia en América Latina - las izquierdas en su lucha por un mundo nuevo (Tirant humanidades, València, 2019). Dirige o Blog “El cronista periferico” (elcronistaperiferico.blogspot.com).

 


Bruno Carazza: Happy New Years and Years

A onda é de direita, mas a maré pode virar

A vitória acachapante de Boris Johnson nas eleições britânicas reforçou as referências a “Years and Years”, a distópica coprodução da BBC com a HBO que retrata uma família britânica, os Lyons, em meio às reviravoltas políticas, econômicas e tecnológicas do mundo num futuro próximo - a primeira temporada se passa entre 2024 e 2029.

A conexão com nossa realidade atual se deve principalmente a Vivienne Rook (Emma Thompson), uma mulher de negócios sem papas na língua que, com um discurso radical nacionalista e contrário à política tradicional ascende de forma meteórica de deputada a primeira-ministra. Impossível não associar a carreira meteórica de Rook à onda que levou ao poder de Trump a Bolsonaro, passando pela vitória conservadora no Reino Unido na semana passada. Mas a força de “Years and Years” não está em captar essa mudança política e especular sobre seus efeitos futuros. O que mais me impressionou na série foi a mudança ocorrida nas pessoas.

Os Lyons podem ser vistos como a idealização da família inglesa contemporânea: bem-sucedidos profissionalmente, progressistas nos costumes (com seus relacionamentos homoafetivos e interraciais) e engajados politicamente com causas como a preservação ambiental, a inclusão de deficientes físicos e o acolhimento de refugiados políticos. Não por acaso, os Lyons eram eleitores tradicionais do partido trabalhista inglês. Mas à medida em que as circunstâncias políticas e econômicas vão mudando suas condições financeiras e as crises delas decorrentes vão chegando cada vez mais perto, suas convicções vão sendo revistas, uma a uma.

Entre 10 e 14 de junho, o podcast “The Daily”, do jornal New York Times, apresentou uma série de cinco episódios (“The Battle for Europe”) sobre a onda de nacionalismo que varre a Europa nos últimos anos, culminando com uma votação massiva nos partidos de direita nas últimas eleições para o Parlamento Europeu. Para entender as raízes dessa crise do liberalismo europeu, a chefe do escritório do jornal em Berlim, Katrin Bennhold, realizou uma viagem de dez dias pela França, Itália, Polônia e Alemanha, entrevistando pessoas comuns que decidiram se envolver com a política de diferentes formas.

Manifestantes de coletes amarelos no norte da França, uma jovem da Toscana que se tornou a primeira prefeita do movimento A Liga na Itália, além do caso da mulher de um político que foi assassinado depois de participar de uma parada LGBT e decidiu enfrentar os partidos de direita na Polônia - por meio de um mosaico de visões sobre as crises na Europa, o programa discute as causas da falência do modelo político europeu.

Com a mesma temática, um dos livros mais importantes do ano foi “O Povo contra a Democracia: por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la”, do professor Yascha Mounk, professor da Universidade Johns Hopkins, nos EUA. Impressionado com o crescimento do radicalismo de direita na Alemanha, sua terra natal, Mounk apresenta, numa linguagem muito clara, como a perda de ilusões quanto ao futuro e o sentimento de desamparo diante do sistema político têm colocado a democracia liberal em risco no mundo todo.

O esfacelamento da estabilidade financeira e até mesmo emocional dos Lyons na distopia de “Years and Years” casa-se perfeitamente com os relatos reais dos entrevistados do podcast do New York Times sobre sua descrença na política, seus medos quanto à invasão de imigrantes e a queda do seu padrão de vida em relação a seus pais e avós. Na visão de Yascha Mounk, esse caldo que mistura estagnação econômica, crise de identidade nacional e manipulação da opinião pública por tecnologias cada vez mais intrusivas contribuem para a ascensão de políticos e movimentos populistas que pregam uma democracia sem direitos, ou uma nova era de direitos sem democracia.

Sem dar spoilers sobre os desfechos da série, do podcast e do livro, fica claro que o sistema político atual, com seus partidos e políticos preocupados apenas com o jogo do poder, não estão sabendo ouvir a mensagem dada pelos eleitores nas urnas. Vale para a Europa, para os EUA, e também para o Brasil. E não se trata aqui de uma mera questão entre direita e esquerda.

Nenhum político brasileiro foi tão eficaz em captar a mensagem das ruas desde junho de 2013 do que Bolsonaro. A população questionava os partidos e os políticos num grito de “não me representa”, então o deputado de baixo clero com quase 30 anos de mandato se travestiu de outsider “não político”. Enquanto as relações pessoais passaram a ser mediadas pelas redes sociais, foi lá que o ex-capitão concentrou seus esforços de comunicação direta para conquistar eleitores. Havia uma crise de confiança nas instituições, com as entranhas do funcionamento do sistema político sendo expostas pela Lava Jato? Bolsonaro soube como ninguém se apropriar do discurso anticorrupção, e ainda construiu uma campanha barata.

Mas há uma dimensão dos protestos de 2013 que não foi incorporada na estratégia eleitoral de Bolsonaro e que tampouco tem recebido ênfase no seu governo: a dimensão social, da redução das desigualdades e do oferecimento de melhores serviços públicos, principalmente em saúde e educação (“Queremos escolas e hospitais padrão Fifa”, diziam os cartazes). As poucas medidas concretas apresentadas nesses dois ministérios, a ideologização das políticas públicas (principalmente na gestão Weintraub) e a proposta de canibalização de recursos orçamentários entre essas áreas elaborada por Paulo Guedes já colocaram no radar do governo a possibilidade de que a onda de protestos que chacoalha diversos países, inclusive em nossos vizinhos da América Latina, acabe desaguando por aqui em 2020.

Numa sociedade cada vez mais conectada e dispensando intermediários, engana-se quem acredita que basta o discurso populista de direita. No Reino Unido, nos EUA ou no Brasil, o eleitor mudou de lado porque o Estado deixou de lhe oferecer estabilidade e boas perspectivas quanto ao futuro. Se essas demandas não forem atendidas no curto prazo, a maré vai virar novamente. E assim continuará, por anos e anos.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


O Globo: Eleição britânica e avanço do Brexit confirmam fim de uma era de comércio global

Decisões políticas recentes indicam que sistema comercial global está entrando em um estado no qual interesses nacionais têm prioridade sobre preocupações coletivas

Peter S. Goodman, do New York Times

LONDRES — Durante mais de sete décadas, as potências globais atuaram a partir do princípio de que uma maior integração econômica equivale a progresso histórico. Mas essa era chegou ao fim, como eleitores britânicos deixaram claro.

maioria decisiva assegurada pelo primeiro-ministro Boris Johnson e seu Partido Conservador quase garante que o país irá seguir com seus planos de deixar a União Europeia.

Outra complexa fase do enrolado processo de divórcio está à frente — negociações sobre os termos da futura relação econômica do Reino Unido com a Europa. Mas, de uma forma ou de outra, o mantra de “entregar o Brexit” prometido por Johnson marca uma profunda mudança no sistema comercial do mundo.

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Depois da Segunda Guerra Mundial, os Aliados vitoriosos promoveram uma ordem internacional construída a partir do entendimento de que, quando países trocam bens, eles se tornam menos inclinados à artilharia.

A saída do Reino Unido da União Europeia é a mais clara manifestação de que este princípio não tem mais um apelo decisivo. Ainda assim, a decisão está longe de ser o único sinal de que o sistema comercial global está entrando em um estado no qual os interesses nacionais têm prioridade sobre preocupações coletivas.

Ainda que a guerra comercial entre Estados Unidos e China tenha chegado a uma trégua na sexta-feira, os dois países chegaram a um estado de tanta rivalidade que possivelmente irão continuar buscando alternativas à troca de bens e investimentos. As empresas que produzem bens na China irão enfrentar pressão para explorar outros países, o que apresenta uma ruptura na cadeia global de suprimentos.

O meio tradicional de arbitragem em disputas comerciais internacionais, a Organização Mundial do Comércio, se aproxima da irrelevância, à medida que países passam por cima de seus canais para impor tarifas.

O desgaste dos acordos comerciais internacionais tem sido impulsionado pela crescente irritação pública em muitos países com o aumento da desigualdade econômica e a percepção de que o comércio tem sido generoso com os executivos, enquanto deixa o povo comum para trás.

No Reino Unido, comunidades em dificuldades usaram o referendo de junho de 2016 que deu início ao Brexit como um voto de protesto contra os banqueiros de Londres que haviam desencadeado uma catastrófica crise financeira, e depois forçaram a população a absorver os custos através de uma rígida austeridade fiscal.

Nos Estados Unidos, a base política do presidente Donald Trump se uniu à sua guerra comercial, inclinada a vê-la como um corretivo necessário para a destruição da economia industrial americana por fábricas chinesas.

Da Itália à França e Alemanha, movimentos populares furiosos miraram no comércio como uma ameaça aos meios de subsistência dos trabalhadores, enquanto ao mesmo tempo abraçam respostas nacionalistas e nativistas que prometem cessar a globalização.

— A era dos mercados livres e do liberalismo está acabando — disse Meredith Crowley, especialista em comércio internacional da Universidade de Cambridge, na Inglaterra. — As pessoas sentem que aqueles que ditam as políticas estão, de alguma maneira, fora de seu alcance.

Incertezas

O Reino Unido envia quase metade de suas exportações para a União Europeia, um fluxo de bens possivelmente em perigo por conta do Brexit. A saída do Reino Unido do mercado comum europeu pode mudar a história do país como sede de diversas multinacionais.

Análise:Eleição dá a Johnson legitimidade que muitos diziam não ter

Desde que o Reino Unido chocou o mundo ao votar para deixar o bloco, suas instituições políticas tentam decidir o que fazer com o nebuloso mandato de saída. Algumas empresas pararam de contratar e de investir, esperando os detalhes dos futuros termos de comércio.

Embora a eleição de quinta-feira tenha dado clareza sobre o Brexit, variáveis significativas ainda permanecem. Assumindo que o plano de Johnson para o Brexit seja aprovado pelo Parlamento, o Reino Unido precisa negociar os novos termos da relação com a Europa antes do fim de um período de transição que vai até o final de 2020 — uma tarefa colossal.

Johnson descartou uma extensão do prazo final, renovando a perspectiva de que o Reino Unido pode novamente flertar com a ideia de deixar o bloco europeu sem um acordo. Esta ameaça pode fazer novamente que empresas armazenem bens e implementem complicados planos de contingenciamento.

Segundo alguns analistas, porém a eleição aumentou a possibilidade de Johnson seguir uma forma mais flexível de Brexit, que mantenha o Reino Unido mais perto do mercado europeu. Sua maioria no Parlamento também é confortável o suficiente para que ele não tenha que se preocupar com a linha-dura conservadora, que defende uma ruptura total com a Europa.

Mas há mudanças à frente. Se a incerteza do Brexit tem sido prejudicial, o que a substitui é a quase certeza de um crescimento econômico mais fraco e da queda nos padrões de vida. O mandato dado a Boris Johnson para "retomar o controle do país" terá custos.


Demétrio Magnoli: Esses liberais que adoram o brexit

Liberais britânicos giraram 180 graus e se transformaram em seita anti-Europa

Um Reino Unido atordoado vai às urnas em dezembro. Boris Johnson, o primeiro-ministro conservador, definiu sua campanha como um levante do “povo”, pelo brexit, contra a “elite” que impede uma ruptura radical com a União Europeia (UE).

Os liberais britânicos —isto é, a maioria do Partido Conservador e o Partido do Brexit, de Nigel Farage— transformaram-se numa seita anti-Europa. É mais um sintoma da degradação do pensamento liberal.

Os liberais britânicos giraram 180 graus. Entre 1985 e 1994, quando o francês Jacques Delors conduziu as negociações que concluíram a arquitetura do Mercado Único Europeu, eles ocuparam a linha de frente na batalha contra as resistências protecionistas nacionais. Hoje, renegam o que fizeram, entrincheirando-se num nacionalismo de nítida coloração populista.

No Foro da Liberdade, meses atrás, escutei as razões de um fanático do brexit, o economista Andy Duncan. Ele acusava a então primeira-ministra, Theresa May, e o líder opositor Jeremy Corbyn de subserviência à “elite europeia”. E, desafiando o que sugere o registro histórico, assegurava que Margaret Thatcher teria completado sem demora o serviço do brexit.

Tive, então, que recordar à plateia brasileira o primeiro plebiscito sobre o brexit, realizado em 1975, quando a conservadora Thatcher defendeu a adesão à Comunidade Europeia e o trabalhista Corbyn adotou posição contrária.

O economista ultraliberal reproduziu os discursos de campanha de Farage, que classificou como seu “herói”. Estados grandes representariam, invariavelmente, ameaças às liberdades dos cidadãos. A Europa ficaria melhor se fragmentada em microestados como Andorra, Liechtenstein ou Monaco. A UE seria um superestado opressor, uma burocracia “globalista” determinada a suprimir as liberdades britânicas.

Duncan situa-se numa franja extrema do espectro partidário, mas seus argumentos esclarecem a gramática política que impulsiona o brexit. A “liberdade” dos modelares microestados de Duncan é a liberdade de circundar impostos: os três são paraísos fiscais.

O brexit veicula a utopia reacionária de rebaixar os padrões sociais e ambientais britânicos, pela ruptura com as regras comuns europeias. Na sua nova encarnação, os liberais sonham com uma Inglaterra bucaneira: um Chipre com armas nucleares.

Os grandes Estados europeus são diversos e relativamente abertos à imigração. A campanha do brexit concentrou-se na ideia de retomar o controle das fronteiras, abolindo o livre trânsito de cidadãos europeus e erguendo uma muralha frente aos fluxos imigratórios. A “liberdade” de Farage e Johnson é a liberdade de definir a nação à base do sangue. O brexit veicula a utopia nativista de um retorno aos tempos dourados de uma Pequena Inglaterra exclusivamente branca e anglicana.

A proteção das liberdades públicas e políticas foi a mola que, lá atrás, quando assentava a poeira da guerra mundial, impulsionou o projeto europeu. Na origem da UE encontram-se os imperativos de evitar o ressurgimento do nacionalismo alemão e de traçar uma fronteira geopolítica diante do bloco soviético.

A Europa fragmentária idealizada pelos maníacos do brexit é o cenário estratégico perfeito para a Rússia, o maior dos Estados europeus. Em 2014, Farage nomeou Vladimir Putin como “o líder mundial que mais admiro”. Há um claro motivo político para o voto pró-europeu de Thatcher em 1975.

O Reino Unido navega rumo às águas turbulentas do brexit, um ato voluntário de autoagressão poucas vezes visto na história das nações. Os liberais convertidos ao nacionalismo xenófobo pilotam o navio, mas partilham a responsabilidade com os trabalhistas, que se recusaram a tentar mudar o curso. É que Corbyn, o líder esquerdista do partido, votou pelo brexit em 1975 por enxergar o projeto europeu como uma monstruosidade inventada pelos liberais...

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Carlos Pereira: Por que tamanho desconforto?

O mal-estar decorre da polarização de preferências e não do desenho institucional

Em visita recente à Inglaterra tive a oportunidade de interagir com vários cientistas políticos e economistas britânicos. Chamou a atenção o mal-estar generalizado proporcionado pela grande incerteza sobre os rumos que o Reino Unido poderá tomar em relação a União Europeia. Tanto os favoráveis como os contrários ao Brexit não conseguem sequer saber se o Brexit vai de fato ser implementado; se com ou sem acordos comercial, aduaneiro e fronteiriço; quais os termos desses acordos; e quais as consequências econômicas e políticas desta decisão.

O grau de incerteza é tamanho que alguns têm argumentado que a democracia britânica estaria ameaçada, especialmente após a decisão do primeiro-ministro, Boris Johnson, de suspender as atividades do Parlamento até meados de outubro, próximo da data limite (31/10) da decisão sobre o Brexit.

Este cenário é surpreendente porque o sistema político britânico, conhecido como Westminster, foi historicamente desenvolvido para ser gerador de estabilidade, previsibilidade e governabilidade. Esse sistema unificado de poderes é considerado “majoritário puro” por possuir um número muito reduzido de vetos institucionais e partidários. Além disso, o Reino Unido não tem uma constituição escrita, é um país unitário, é de facto unicameral e todo o poder deriva do Parlamento. Uma vez que uma maioria seja forjada, o governo teria amplas condições de governar de forma decisiva e diligente.

A despeito de todas essas características institucionais favoráveis à estabilidade política, o povo britânico viu nos últimos três anos a instabilidade tomar conta do seu país, com três mudanças de primeiro-ministro: David Cameron, Theresa May e, atualmente, Boris Johnson. Essas sucessivas mudanças de governo aconteceram desde que o Brexit foi vencedor no referendum em junho de 2016.

Diferentemente do parlamentarismo do Reino Unido, o sistema de separação de poderes baseado na representação proporcional do Brasil não privilegia a eficiência governativa, mas a inclusão do maior número possível de interesses da sociedade no jogo político. Daí o sistema partidário ser altamente fragmentado. Além disso, o País possui uma grande quantidade de instituições (federalismo, bicameralismo, Judiciário com poder de controle de constitucionalidade, etc.) com a capacidade de vetar iniciativas de mudança. Por isso que é tão difícil aprovar e implementar reformas no Brasil.

A fórmula encontrada pelo constituinte de 1988 para lidar com os potencias problemas de governabilidade gerados por esses elementos de consenso foi delegar poderes constitucionais, orçamentários e de agenda para que o Executivo se transformasse no coordenador do jogo político. Um presidente poderoso poderia atrair apoios e construir coalizões pós-eleitorais majoritárias e estáveis e, assim, ter condições implementar sua plataforma de reformas.

Para além do sistema político, a unificação ou a divisão de preferências em uma sociedade é uma outra dimensão fundamental para se entender o funcionamento de um determinado país. Por exemplo, se os poderes são separados, mas as preferências entre os atores políticos muito semelhantes, levaria a uma redução drástica do número de pontos de veto, dado que as várias instituições estariam trabalhando com o mesmo objetivo. O consenso em torno da reforma da Previdência recentemente aprovada na Câmara é um bom exemplo. O inverso também seria verdadeiro; ou seja, a combinação de poderes unificados com polarização de preferências tem o potencial de gerar impasses, instabilidades e, até mesmo, paralisia decisória, como tem sido o caso do Brexit no Reino Unido.

Portanto, o mal-estar político sentido no Reino Unido e no Brasil não seria decorrente de problemas de desenho institucional, mas sim, fundamentalmente, da forte polarização de preferências políticas nos dois países. Diante dessa polarização crescente, os eleitores medianos tornam-se reféns das opções extremas e tendem a equivocadamente identificar como razão de seu desconforto o funcionamento das instituições ao invés da distribuição de preferências.


Hélio Schwartsman: O mundo é complicado

Série sobre desigualdade apresenta dados para satisfazer otimistas e pessimistas

A bela reportagem especial publicada nesta terça, que dá início a umasérie sobre a desigualdade, traz dados que satisfazem tanto os otimistas como os pessimistas.

Para os que gostam de ver o mundo sob lentes leibnizianas, nunca tantas pessoas saíram da miséria quanto nos últimos 40 anos. Especialmente na China e na Índia, mas também em outros países emergentes, contingentes expressivos da população ganharam inaudito acesso a alimentos e bens. O abismo entre as nações ricas e as pobres se reduziu.

Essa sensação de que há algo dando certo é reforçada por trabalhos como o de Deirdre McCloskey, que mostra que, ao longo dos últimos dois séculos, o habitante médio do planeta viu sua riqueza multiplicar-se por dez, chegando a 30 nos países desenvolvidos. Também experimentamos quedas brutais nos índices de violência e melhoras comparáveis em estatísticas de saúde.

Só que os partidários da hiena Hardy do desenho animado (a referência é só para os mais velhos mesmo) também têm motivos para sentir-se justificados. Nos países mais avançados, houve um achatamento da classe média que, sentindo que ficou para trás, vem flertando com a extrema direita populista, num movimento que já originou retrocessos democráticos em várias partes do planeta.

Se isso já é ruim, leituras complementares dão vontade de tomar Prozac na veia. Uma delas é Gregory Clark (“The Son Also Rises”), que analisou a repetição de sobrenomes em cargos e profissões de prestígio ao longo de séculos em vários países e concluiu que a própria mobilidade social é um fenômeno mais raro do que gostaríamos de acreditar. Outra é Walter Scheidel (“The Great Leveler”, que também já comentei aqui), que sustenta que a desigualdade interna só cai de forma notável diante de grandes catástrofes sociais como epidemias, guerras e o colapso do Estado.

A conclusão, inescapável, é que o mundo é um lugar complicado.


Luiz Werneck Vianna: Impasses da hora presente

Não se pode ocultar que se vive tempo sombrio, mas há o outro lado da Lua, até mesmo aqui

Fazer a roda da História girar para trás não é um exercício fácil, mas é esse o movimento tentado aqui e alhures. No cenário europeu com o Brexit do Reino Unido, nos EUA com o trumpismo, que recusa o fenômeno da globalização, dos grandes movimentos migratórios e da agenda ambiental, e em nuestra America, com o Brasil que refuga não só a história de construção da sua soberania como nação para se atrelar à política e aos objetivos do poderoso país do norte do nosso continente, como também conquistas civilizatórias na agenda comportamental, tais como na emergente questão feminina, que afeta tanto o mundo do trabalho como variadas dimensões da vida social, sujeitando-as a um nefasto patriarcalismo, uma das raízes do nosso autoritarismo político.

Esse movimento em marcha à ré, embora sua magnitude atual, não conta com bases sociais capazes de manter sua sustentação, uma vez que ele é mais uma construção de ideólogos e políticos que identificam no estado de coisas no mundo sinais de uma mudança de época que erodem a sua forma de domínio e suas fontes de reprodução. À margem do plano da consciência, contudo, vive-se uma mutação nas camadas mais fundas das estruturas sociais que não tem como ser revertida pelos esforços da política do presidente norte-americano, mesmo com os recursos de que dispõe.

O labirinto sem saída do Brexit testemunha a dificuldade que essa via retrô tem encontrado, assim como os embaraços que o próprio Donald Trump encontra em seu país para a edificação do muro com que pretende barrar o fluxo migratório dos latinos em seu território, principalmente em razão da resistência parlamentar a esse projeto xenófobo, na contramão de suas instituições democráticas. Na verdade, o que se pode qualificar como a política de Trump não passa de uma tentativa de deter os processos que estão em curso no mundo e sinalizam no sentido de impor limites, como na questão ambiental, à expansão de um capitalismo sem freios cujos efeitos perversos já se fazem sentir no clima e nos riscos de desaparição de espécimes vitais para a reprodução da vida humana.

Não por acaso, a ONU, instituição que alerta para a gravidade desses riscos e atua para conter os perigos a que todos estamos expostos, tornou-se um dos alvos principais do trumpismo, que, em nome de um nacionalismo anacrônico e de uma crença igualmente anacrônica na panaceia de que o bem-estar social virá da expansão das forças produtivas materiais do seu país, opera no sentido da corrosão da sua legitimidade. Mas o cenário de Trump não é de céu de brigadeiro nem internamente, onde conhece uma renhida oposição, e tampouco no plano externo, quando se defronta com rivais do porte da Rússia e seu poderoso arsenal bélico e da emergente China, mais os aliados de ambos, que não são poucos – nada, entretanto, que comprometa a hegemonia americana nos negócios do mundo, apenas a expõe a maior competição.

Tal contexto, longe de apontar para perigos que reclamem guinadas na posição do País em suas relações internacionais, se apresenta, ao contrário, como uma janela de oportunidades para sua afirmação na economia do mundo, tal como ocorreu nos anos 1930, quando soube aproveitar-se das disputas geopolíticas entre as grandes potências da época para implantar as bases da moderna industrialização, com a criação em Volta Redonda do nosso parque siderúrgico. Nesse sentido, um alinhamento automático do País aos Estados Unidos, como certos círculos oficiais alardeiam em nome de um espírito de cruzada em favor da defesa de um Ocidente de fantasia, desserve aos interesses nacionais.

A agenda comportamental recessiva, inspirada por um cediço fundamentalismo religioso, uma das fontes principais da votação que elegeu Jair Bolsonaro, aplica-se no mesmo movimento de girar a roda da História para trás, não só na questão feminina, como na vida privada em geral, com ênfase em simplórias concepções sobre a complexa sexualidade humana, denunciadas em voto histórico proferido pelo ministro Celso de Mello em julgamento recente sobre o tema no Supremo Tribunal Federal. Tais esforços, por mais ingentes que sejam, não têm o condão de devolver as mulheres à sua condição de subordinação na ordem patriarcal brasileira de outrora, minada, entre outras e ponderáveis razões, por um mercado de trabalho que as incorpora massivamente, assim como as exigências crescentes desde a Ilustração por autonomia pessoal de homens e mulheres. Ideais por autonomia que ao longo do tempo como que se incorporaram ao DNA da nossa espécie, o que a faz repelir, na construção da personalidade de cada qual, interferências do Estado e das religiões.

Não se pode ocultar que se vive tempo sombrio e que a atual corrida armamentista traz maus presságios. Mas há o outro lado da Lua, até mesmo aqui. O atual governo, em sua composição heteróclita, embora contenha em si um componente marcadamente ideológico, de raiz metafísica, exemplar no chanceler Ernesto Araújo, que desafia abertamente as tradições da política externa brasileira em suas concepções de soberania – vide notável artigo de Celso Lafer neste espaço –, admite outras presenças com distinta formatação histórica e diversas concepções do mundo, entre os quais os personagens do mercado e da corporação militar, esta quantitativamente a mais expressiva.

Essa mistura não dá boa química e será testada severamente, entre outras questões, na da Venezuela e das nossas relações com os países do Oriente Médio, clientes privilegiados do agronegócio, quando o mundo bruto dos interesses será confrontado com os da pura ideologia. Os impasses que daí surgirem vão nos defrontar com uma encruzilhada: uma via nos levará a uma ruptura radical com nossa História e nossas tradições de nação soberana, a outra, a retomar o seu leito, em novas circunstâncias, certamente mais complexas. O articulista aposta nesta última.