Mathias Alencastro: Impossível não ver brexit como deflagrador da emancipação europeia

Europeístas que caricaturavam acordo como uma aventura chauvinista precisam rever sua posição.
Foto: TOLGA AKMEN/AFP/Getty Images)
Foto: TOLGA AKMEN/AFP/Getty Images)

Europeístas que caricaturavam acordo como uma aventura chauvinista precisam rever sua posição

Longe vão os tempos da Europa paralisada pelas suas contradições sociais e subordinada aos imperativos dos aliados estratégicos. Horas depois de concluir o brexit, Bruxelas avançou para um amplo acordo de investimento com a China. A mensagem para a Presidência de Joe Biden é cristalina: a ordem ocidental não existe mais, e a União Europeia pretende triangular com as duas potências globais.

Impossível não ver o brexit como o elemento deflagrador da emancipação europeia. Desde que o Reino Unido decidiu a sua partida num referendo realizado no auge do vandalismo digital, a UE, entre outros feitos, selou um até então impensável acordo para a federalização da dívida dos países membros.

Isso posto, os europeístas que caricaturavam o brexit como uma aventura chauvinista precisam rever a sua posição.

Com o passar das emoções, o brexit deixou de ser visto como uma contingência e apareceu como uma inevitabilidade provocada pelas tensões ideológicas do Partido Conservador, a posição ambígua do Reino Unido dentro do mercado interno europeu e a experiência histórica dos britânicos com o imperialismo, que continua sendo o motor da sua identidade nacional.

Isso não salva a biografia de Boris Johnson, um bufão que provavelmente será varrido na próxima eleição. Mas seu legado será muito mais robusto do que o de Donald Trump ou de Jair Bolsonaro.

Aos trancos e barrancos, Boris assegurou ao Reino Unido uma rede respeitável de acordos comerciais.

O tratamento secundário conferido ao mercado financeiro nas negociações com a UE e a adesão unilateral a objetivos climáticos ambiciosos revelam que Boris ambiciona para o Reino Unido algo mais do que um paraíso fiscal sobre a Tâmisa.

Mais importante ainda, os últimos episódios da novela China mostram que os valores humanistas europeus ficaram do lado britânico do canal da Mancha. Bruxelas não hesitou em trocar promessas vagas sobre o trabalho forçado em Xinjiang pelo acesso da indústria franco-alemã ao mercado de consumidores da potência asiática. Entretanto, Londres já concedeu três milhões de passaportes para os cidadãos de Hong Kong, oprimidos por Pequim.

Alertas sobre uma implosão iminente do Reino Unido são fantasistas. A adesão de um país à União Europeia depende da aprovação de todos os Estados membros. Para a Espanha, em plena decadência monárquica, aceitar a integração de uma Escócia independente seria a melhor forma de provocar a secessão da Catalunha.

Com efeito, no que toca à coesão interna dos Estados, os britânicos, apesar dos seus problemas, seguem na frente dos europeus. A despedida de Angela Merkel, agendada para este ano, será um mergulho no desconhecido para a Alemanha.

Emmanuel Macron, cada vez mais isolado na Europa, perdeu o controle do seu governo. A França é o único membro do Conselho de Segurança que fracassou no desenvolvimento da vacina. Lenta e errática, a campanha de imunização é rejeitada pela maioria da população.

Se a arquitetura da União Europeia saiu reforçada da pandemia, o mesmo não se pode dizer da coesão interna das suas nações.

*Mathias Alencastro é pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra).

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