RPD || André Amado: A página de abertura dos romances

Com exemplos de três universos culturais distintos, mas que convergem na técnica, André Amado nos brinda, em seu artigo, sobre como os grandes escritores procuram transformar os leitores em seus cúmplices na construção de uma obra de ficção.
Foto: Revista Veja/Reprodução
Foto: Revista Veja/Reprodução

Com exemplos de três universos culturais distintos, mas que convergem na técnica, André Amado nos brinda, em seu artigo, sobre como os grandes escritores procuram transformar os leitores em seus cúmplices na construção de uma obra de ficção

Sou dos que se deixam impressionar pela página de abertura de um romance. Como diz David Lodge, é fronteira que separa o mundo que imaginamos do que o romancista imaginou. Ilustro com três exemplos.

Vejam como o argentino Ernesto Sábato ambienta o começo de Sobre héroes y tumbas:
A esa hora en que comienzan a oírse los pequeños murmullos, en que los grandes ruidos se van retirando, como se apagan las conversaciones demasiado fuertes en la habitación de un moribundo; y entonces, el rumor de la fuente, los pasos de un hombre que se aleja, el gorjeo de los pájaros que no terminan de acomodarse en sus nidos, el lejano grito de un niño, comienzan a notarse con extraña gravedad. Un misterioso acontecimiento se produce en esos momentos: anochece.


Agora é a vez do britânico Ian McEwan, em A balada de Adam Henry, outra brilhante tradução de Jorio Dauster, que nos faz esquecer estarmos lendo um livro, cujo original não foi escrito em português:

Londres. Sessões do tribunal encerradas havia uma semana. O templo implacável de junho. Fiona Maye, juíza do Tribunal Superior, em casa na noite de domingo e deitada numa chaise longue, olha além de seus pés calçados com meia para o fundo da sala, uma pequena litografia de Renoir, representando uma mulher no banho, comprada trinta anos atrás por cinquenta libras. Provavelmente falsa. Abaixo da gravura, no centro de uma mesa redonda de nogueira, um vaso azul. Nenhuma recordação de sua origem. Nem de quando pusera flores nele pela última vez. Havia um ano a lareira não era acesa. Gotas de chuva enegrecidas caíam de forma irregular no suporte de ferro da lareira, estalando ao se chocarem com as folhas de jornal amarrotadas que já começavam a amarelar com o passar do tempo. Um tapete Bokhara cobrindo as largas tábuas enceradas. Na margem de seu campo de visão, um piano de cauda curta sobre cujo tampo negro e reluzente se viam fotografias da família em molduras de prata…


Complemento com Venenos de Deus, remédios do diabo, do moçambicano Mia Couto:

O médico Sidónio Rosa encolhe-se para vencer a porta, com respeitos de quem estivesse penetrando num ventre. Está visitando a família de Bartolomeu Sozinho, o mecânico reformado de Vila Cacimba. À porta, a esposa, Dona Munda, não desperdiça palavra, nem despende sorriso. É o visitante quem arredonda o momento, inquirindo:
– Então, o nosso Bartolomeu está bom?
– Está bom para seguir deitado, de vela e missal…
A voz rouca parece distante, contrariada como se lhe custasse o assunto. O médico acredita não ter entendido. Ele é português, recém-chegado à África. Refaz a questão:
– Perguntava eu, Dona Munda, sobre o seu marido…
– Está muito mal. O sal já está todo espalhado no sangue.
– Não é sal, são diabetes.
– Ele recusa. Diz que se ele é diabético, eu sou diabólica.
– Continuam brigando?
– Felizmente, sim. Já não temos outra coisa para fazer. Sabe o que penso, Doutor? A zanga é a nossa jura de amor.

São todos trechos retirados das primeiras páginas das obras de referência. Ernesto Sábato seduz o leitor pela maneira como lida com a noção de tempo, maestria literária que é uma promessa de que a repetirá mais adiante na narrativa. Ian McEwan recorre a jogo mais sutil. Com o apoio de detalhes, em geral secundários, do ambiente doméstico, opõe o melancólico ao sofisticado e deixa no ar a questão: será o presente estéril ou ainda haverá esperança de futuro. Já Mia Couto retrata, também de entrada, a vida de um casal, cuja rotina consiste em suportar-se. Aqui a pergunta não é tanto se, mas como as relações haverão de evoluir.

Três escritores procedentes de universos culturais tão distintos convergem na técnica de, no início, não mais do que insinuar a história que desenvolverão, quando, então, passam a convidar o leitor a se sentar a seu lado, para acompanhá-lo na textura da trama, no traçado dos personagens, na solução dos conflitos, no afivelamento dos fios soltos da narrativa. É assim que os grandes escritores procuram transformar os leitores em seus cúmplices na construção de uma obra de ficção. Eles têm plena consciência de que, em literatura, o leitor é fisgado pela intriga, pela curiosidade, até mesmo pela aspiração – em muitos casos, inconfessa – de querer ser o coautor do que está sendo concebido.

*André Amado é embaixador aposentado e diretor da revista Política Democrática Online.

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