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Cristiano Romero: Estabilidade não evitou corrupção no Estado

“Pedalada fiscal” é exemplo de interferência

Preocupados com a interferência partidária na gestão de políticas públicas, os constituintes consagraram na Constituição de 1988 a estabilidade dos funcionários públicos no emprego. O ambiente em que o assunto foi debatido não poderia ser pior. O país vivia grande efervescência política, partidos de esquerda e entidades da sociedade civil saíram da clandestinidade - a UNE (União Nacional dos Estudantes) foi legalizada em cerimônia no Palácio do Planalto - e a imprensa respirava ares mais democráticos.

Estávamos no governo de José Sarney (1985-1990), o primeiro presidente civil depois de 21 anos de ditadura militar. O momento era de transição de regime, uma vez que Sarney fora o vice da chapa eleita pelo Congresso Nacional. Tancredo Neves, o cabeça de chapa, adoeceu na véspera da posse (15 de março de 1985) e não assumiu, vindo a falecer em 21 de abril.

Pausa para o cafezinho: Tancredo não tomou posse, mas, oficialmente, sim; ele foi o primeiro presidente da Nova República. Sua eleição resultara de acordo firmado entre os generais e a oposição, na ocasião liderada pelo então deputado Ulysses Guimarães. Este os militares não admitiam que assumisse a Presidência na transição, por isso, rejeitaram a possibilidade de eleição direta naquele momento. No fim, a candidatura da oposição era encabeçada por um integrante da chamada resistência democrática (Tancredo, do PMDB) e por um prócer da ditadura (Sarney). Com a impossibilidade de posse de Tancredo, generais da linha-dura quiseram impedir que Sarney tomasse posse. Por pouco, o epílogo do regime militar não foi postergado…

Com a liberdade que lhe foi suprimida durante longos 21 anos, a imprensa cumpriu papel crucial no início da Nova República. Brasileiros tomaram conhecimento todo dia pelos jornais, canais de televisão e rádios de casos de corrupção. A impressão, absolutamente equivocada, era a de que, num governo civil, isto é, no regime democrático, a corrupção grassa com desprendimento.

A resposta dos constituintes foi estabelecer na lei máxima do país o direito de todos os funcionários, e não apenas dos ocupantes de carreiras típicas de Estado (diplomata, auditor da Receita Federal, funcionário do Banco Central, juiz, procurador etc), à estabilidade no emprego. Esta vale, portanto, para servidores da atividade-meio dos órgãos públicos e prestadores de serviço (segurança, limpeza etc).

Além da estabilidade, a Constituição premiou o funcionalismo com o direito à aposentadoria integral e à paridade, que garante a aposentados os mesmos reajustes salariais de quem está na ativa. A aposentadoria integral foi extinta pela reforma proposta pelo governo Lula (2003-2006 e 2007-2010) e regulamentada pela gestão Dilma Rousseff (2011-2014 e 2015-2016).

A Carta Magna prevê a demissão de funcionários estáveis, mas todos sabemos que isso só ocorre em casos de comprovado envolvimento do servidor com corrupção.

A estabilidade assegurada após estágio probatório de dois anos é privilégio e não direito adquirido ou benefício concedido por mérito. Estabilidade deveria ser conquistada ao longo da carreira, cumpridos critérios objetivos de desempenho.

A pergunta que não cala é a seguinte: a estabilidade no emprego evitou a corrupção e a interferência de inquilinos do poder em políticas típicas de Estado? A resposta é não.

Duas instituições de excelência viveram, recentemente, situações de interferência política, sem que tenham reagido a tempo de evitar os problemas decorrentes da ação governamental. Foi no caso das chamadas “pedaladas fiscais”, expressão cunhada pelo jornalista e colunista Ribamar Oliveira, do Valor, para a prática irregular usada pelo governo Dilma Rousseff.

A pedalada consiste no seguinte: em vez de transferir aos bancos federais recursos orçamentários para o pagamento de programas federais, o governo ordenou que as instituições bancassem essas despesas; agindo dessa forma, o então Ministério da Fazenda escondia a verdadeira dimensão do déficit das contas públicas, uma vez que esses pagamentos não apareciam como despesa primária; por conseguinte, isso lhe permitia gastar mais, com vistas a melhorar o desempenho da economia, o que por sua vez atenderia ao objetivo político de reeleição da presidente em 2014.

Essa manobra foi realizada durante dois anos. O distinto público só tomou conhecimento da verdadeira situação das finanças governamentais depois do período eleitoral, em novembro de 2014. Num seminário promovido em São Paulo pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), o então ministro da Fazenda, Guido Mantega, mostrou tabela com os “novos” números do déficit fiscal. Este saltou de 3% para 7% do PIB.

Como até o dia anterior, o conhecido eram os 3%, um ilustre integrante da mesa daquele evento - o ex-ministro e ex-deputado Delfim Netto - comentou ao ouvido do titular desta coluna: “O Guido errou. O número não é esse”. Infelizmente, tendo tomado conhecimento do valor correto um dia antes, o colunista disse: “Está certo, ministro, é isso mesmo”. Delfim fez silêncio por um instante, olhou para Mantega e comentou baixinho, com seu forte sotaque paulistano-italiano: “Eles quebraram o país”.

Pano rápido. Nos bastidores da tragédia, uma grande lição: a estabilidade no emprego não fez com que funcionários do Tesouro Nacional, do Banco Central, do Banco do Brasil (BB) e da Caixa denunciassem a manobra feita nas contas públicas com objetivos político-eleitorais. Antes que se afirme que empregados do BB e da Caixa não tenham à estabilidade, pense duas vezes. De fato, a lei não lhes assegura estabilidade, mas é o que eles têm de fato. Alguém já testemunhou a dispensa de algum funcionário do BB, da Caixa, do BNDES, do Banco do Nordeste e do Banco da Amazônia por incompetência?

A cultura patrimonialista da Ilha de Vera Cruz é tão arraigada que servidores públicos agem como se fossem donos do Estado. Isso precisa mudar, do contrário, o nobre projeto de nação inscrito na Constituição de 1988 jamais será implementado.


Murillo Camarotto: Fogo no Parquet

Ascensão de Moro deixou Lava-Jato ao relento institucional

A tempestade perfeita chegou de vez ao parquinho da Lava-Jato. Em pouco mais de dois meses, o cenário, que já era difícil, se aproximou perigosamente da implosão, na esteira de uma sequência de reveses sofridos pelas forças-tarefa. Entre os dissabores mais recentes, a demissão coletiva dos responsáveis pela investigação em São Paulo. Dias antes, o principal ícone do grupo, Deltan Dallagnol, abdicou da República de Curitiba envolto em punições disciplinares.

A deterioração, é verdade, começou mais cedo. Integrantes das forças-tarefa reconhecem em reserva que o pecado capital foi a ascensão do superjuiz Sergio Moro a superministro de Jair Bolsonaro. Ao topar a mudança para Brasília, Moro teria empurrado sobre a Lava-Jato uma nuvem de desconfiança antes circunscrita a petistas inconformados e políticos abertamente fisiológicos.

À derrocada lavajatista também contribuiu o vazamento das mensagens trocadas entre Moro e os procuradores, mas foi a ruidosa saída do ministro da Justiça que degringolou o quadro. Para os procuradores envolvidos na investigação, a forma escolhida para sair de cena aumentou bastante o rol de inimigos poderosos da Lava-Lato.

“A partir do momento em que o Moro se torna um potencial adversário eleitoral do presidente, ele expõe a Lava-Jato a ataques, ‘fake news’ e todo o tipo de prática típica do modus operandi bolsonarista”, disse um procurador.

O respaldo político definhou ainda mais com a aliança entre Bolsonaro e o Centrão - que se arrepia só de ouvir falar em combate à corrupção. “Tirando um ou outro parlamentar, hoje quase toda a classe política está contra, da esquerda à direita”, completa o mesmo procurador.

Quando se olha para o outro lado da Praça dos Três Poderes, o contexto também é de desalento. Há duas semanas, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a parcialidade de Moro em um processo referente ao Banestado e anulou a sentença. A decisão sinaliza que condenações impostas ao ex-presidente Lula podem caminhar para o mesmo fim.

Importante lembrar que esse resultado só foi possível devido ao empate na votação da turma, desfalcada do decano Celso de Mello. Os procuradores, ainda assim, avaliam que o STF poderia ter adiado os julgamentos mais polêmicos até o quórum estar completo ou mesmo ter permitido que outro ministro participasse, garantindo o desempate.

Apesar de a posse do ministro Luiz Fux na presidência da Corte ser vista com bons olhos pelos procuradores, a possibilidade de Dias Toffoli ser incorporado à Segunda Turma é um contraponto de peso correspondente - ou maior.

Dentro de casa, a conjuntura é mais alarmante. O termo parquet, que em tradução livre poderia ser definido como “cercadinho”, remete às origens do Ministério Público, na França Antiga. Naquela época, os chamados “procuradores do rei” ocupavam uma área apartada nos tribunais.

A existência de um “procurador do rei” é justamente o que tira o sono da Lava-Jato. A escolha de Augusto Aras por Bolsonaro - por fora da lista tríplice - foi um mau presságio que se materializa no dia-a-dia. Em Curitiba, São Paulo e no Rio, investigadores têm convicção de que o procurador-geral da República trabalha para, no mínimo, desmontar o conceito conhecido de força-tarefa.

A estratégia passa pelo estabelecimento de uma hierarquia na estrutura do MPF, algo impensável para a maioria absoluta dos procuradores e sua sacrossanta autonomia funcional. O traço mais marcante do plano é a criação da Unac, um órgão central, baseado em Brasília, para onde deverão convergir todas as informações colhidas nas investigações dos Estados.

Além da Lava-Jato, o MPF conta hoje com outras 22 forças-tarefa ativas, que investigam das queimadas na Amazônia ao desastre de Brumadinho. O esvaziamento de uma investigação conjunta passa principalmente pela retirada da exclusividade dos integrantes, que ficam obrigados a acumular outras funções. Na força-tarefa de São Paulo, uma procuradora terá que cuidar de uma comarca no do Mato Grosso do Sul.

“Se ele tiver sucesso, acabou o Ministério Público como conhecemos desde 1988”, salientou outro procurador.

O estrangulamento do apoio administrativo é mais um procedimento denunciado. Demissionários da força-tarefa paulista lembram que tiveram que pagar do bolso as passagens aéreas para um encontro - “muito improdutivo” com Aras.

Nem mesmo a OAB é vista como trincheira aliada. A crise com a entidade é resultado dos anos de queixas de criminalistas aos inegáveis abusos da Lava-Jato. Nessa seara, quando instados a praticar a autocrítica tão cobrada de seus alvos, especialmente do PT, os procuradores respiram fundo.

Até admitem que “power points”, palestras remuneradas, entrevistas e conduções coercitivas passaram do ponto. Argumentam, contudo, que decisões difíceis tiveram que ser tomadas sob grande pressão, e que a perseguição sofrida é reflexo dos acertos, e não dos erros. Alguns também culpam a Polícia Federal de ter “botado pilha” na espetacularização. “A PF gosta de show”, costumam dizer.

Em meio à maior crise nos seus quase seis anos, a Lava-Jato ainda tem muito o que fazer. Com a prisão recente de Dario Messer, o “doleiro dos doleiros”, a força-tarefa do Rio está apenas começando uma devassa no setor financeiro. As primeiras impressões são de que os grandes bancos foram lenientes ou falharam muito nas políticas de compliance. Cerca de 3 mil offshores em mais de 50 países já estão mapeadas. “Um mundo. De dezenas e dezenas de bilhões”, garante um investigador.

O ministro Teori Zavascki costumava dizer que, na Lava-Jato, “cada vez que você puxa uma pena, vem uma galinha inteira”. Se considerado somente o que já está dito em delações premiadas, é trabalho para mais alguns anos. Resta saber se a operação terá algum respaldo institucional ou se vai voltar para o “cercadinho”.


Valor: Parte do PSDB “namora” o presidente, diz FHC

Para o ex-presidente, atual chefe de Estado é forte politicamente, sabe se comunicar com a população e que tem chances reais de se reeleger em 2022

Por Cristiane Agostine, Valor Econômico

SÃO PAULO - O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso afirmou ontem que um dos maiores problemas do PSDB para fazer oposição ao governo Jair Bolsonaro é que parte do partido “namora” o presidente. FHC disse que Bolsonaro é forte politicamente, sabe se comunicar com a população e que tem chances reais de se reeleger em 2022.

Fernando Henrique cobrou mudanças na forma de lideranças do partido se comunicarem com a população e defendeu a escolha de um nome tucano para liderar a oposição a Bolsonaro, com vistas à próxima eleição presidencial.

“Há um pressuposto que pode levar ao autoritarismo em nome da salvação nacional, de um projeto grandioso, em nome do bem-estar da maioria. Temos que fazer isso de forma democrática, antes que façam de forma não democrática. Há esse risco. Há risco real de que isso aconteça no Brasil. Bolsonaro é um sintoma disso aí”, disse FHC.

“[O presidente] É candidato. Bolsonaro pode ganhar a eleição de novo, dependendo da forma como atuemos. Se ficarmos só com as nossas ideias e só entre nós, ele ganha”, afirmou o ex-presidente, ao participar de um debate sobre “Brasil e o mundo pós pandemia”, promovido pelo PSDB e pelo Instituto Teotônio Vilela, do partido.

O ex-presidente afirmou que Bolsonaro sabe falar com o “homem comum”, explora o discurso da defesa da ordem, que é um desejo da população, e tem o domínio das redes sociais. “Ele [Bolsonaro] chegou lá porque ele é o homem comum. Ele estoura, fala bobagem de uma maneira rude. Isso toca a pessoas, que são a maioria, que é parecida com esse estilo”, disse o tucano. Para FHC, a população está com “raiva” dos políticos e isso abre espaço para a demagogia e o populismo de direita, que tende ao autoritarismo.

Fernando Henrique disse que o PSDB precisa ter identidade e construir um discurso de oposição ao governo. “Temos que ver como ser contra Bolsonaro”, disse. “Temos que ter uma posição. Isso depende de muito de quem vai falar em nosso nome. É fundamental. Quem vai falar e o que vai falar. Um problema é que parte do PSDB namora o Bolsonaro. Temos que falar em nome do interesse do Brasil contra o Bolsonaro. O enigma político é esse. Temos que unificar nossa linguagem nessa direção.”

Ao falar com lideranças nacionais do PSDB, FHC disse que o partido precisa de “pessoas que guiem e deem o caminho”. “Precisa de pontos de referência. A escolha de quem vai ser candidato é sempre importante. Quem fala orienta os demais”, afirmou, sem defender um nome para a eleição presidencial de 2022. O tucano disse ainda que o PSDB precisa “expressar o sentimento que não seja da classe dominante”. “Não precisa de muitas ideias, precisamos de pessoas capazes de simbolizar essas ideias. Ver quem é que tem essa capacidade”, afirmou. “Temos que unificar nosso discurso e ter consciência de que sozinhos não vamos chegar lá. O homem [Bolsonaro] é forte.”

Durante o debate, o senador Tasso Jereissati (CE) reforçou que o partido perdeu sua identidade. “Agora não somos nada porque não somos nem uma coisa nem outra. Dentro de nossos quadros existe uma salada de frutas muito grande. Uma mistura de muita gente completamente diferente e que não tem absolutamente nada a ver com nossos princípios”, disse. “Precisamos começar tudo de novo, se é que queremos sobreviver.”


César Felício: Administrativa em alta; tributária em baixa

Frente Parlamentar comemora o simples envio da matéria

A maior qualidade da reforma administrativa apresentada pelo governo é o simples fato de ela ter se materializado. Não se esperava nem mesmo isso do governo de Jair Bolsonaro. Afinal, foi exatamente pela falta de prioridade ao tema que o ministro Paulo Guedes perdeu um importante auxiliar há menos de um mês.

Concorreu para o cavalo de pau o beco sem saída proporcionado pelo teto de gastos. Muitas enormidades são ditas e praticadas em defesa de âncoras de expectativas. Assim foi no passado com a âncora cambial, no Brasil e em outros países, assim é com esta âncora fiscal que um dia - esta é uma questão de fé, mais do que de resultados aferidos - trará a relação dívida/PIB para um nível inusitadamente baixo.

Em nome da âncora fiscal, o Congresso hoje se depara com um conjunto de PECs e propostas, em que estão não só a reforma administrativa como a PEC dos gatilhos (que, em si, embute uma minirreforma do funcionalismo), e, por que não?, uma reforma tributária em que o aumento da carga está claro. Também foi essa âncora fiscal que impulsionou a reforma da Previdência.

Se o teto de gastos foi ou não um grande erro é uma discussão que não cabe neste espaço. O fato é que detonou um sentido de urgência que move toda a agenda reformista dos últimos anos.

A partir do momento da chegada da reforma administrativa, ela só avançará se profundamente modificada pelo Congresso. É inapelável diante do fato de que este é um governo de minoria parlamentar, com maiorias circunstanciais organizadas por um conjunto amorfo e fragmentado de legendas a que se convencionou chamar Centrão.

Do texto apresentado ontem, de pronto não é razoável acreditar que o Legislativo abrirá mão de prerrogativas. Portanto são escassas as chances de se aprovar uma norma para que Bolsonaro possa extinguir ou fundir autarquias por decreto, sem passar pelo Congresso. Essa é uma novidade que tem todo o aspecto de estar lá apenas como moeda de troca.

Se depender da frente parlamentar que está envolvida no tema, a reforma administrativa terá acréscimos. Na véspera do envio, a senadora Kátia Abreu (PP-TO) preconiza, por exemplo, a criação de uma agência reguladora, com mandato, para organizar todas as regras do funcionalismo de ora em diante. Seria algo como um super-Dasp (Departamento Administrativo do Serviço Público), órgão criado no Estado Novo, com grande autonomia, que tinha como missão dar racionalidade e método às máquinas governamentais. “Nós temos que ter o servidor ao nosso lado. Fazer um muro de contenção da interferência política, depois do fim do regime jurídico único”, comentou.

Essa e outras questões, como a possibilidade de ter contratações diferentes para carreiras diferentes, corte de vantagens absurdas e ofensivas para quem está no setor privado, a vinculação da remuneração a uma análise de desempenho, serão temas de exclusivo debate parlamentar. Bolsonaro e Guedes participarão delas do mesmo modo como participaram da reforma previdenciária. Foram coadjuvantes. “O que precisamos de Bolsonaro é que apenas assine o projeto e o envie”, dizia na véspera da entrega o deputado Thiago Mitraud (Novo-MG), também integrante da frente.

Haverá também pressão parlamentar para que a proposta seja desidratada. “Este governo age de certa forma de uma maneira lunática”, comentou a presidente da CCJ do Senado, Simone Tebet (MDB-MS), horas antes da divulgação da proposta. “É preciso ter em mente que a autonomia dos Estados e municípios precisa ser integralmente respeitada e que tudo que o servidor atingido puder judicializar, ele o fará e o juiz vai dar”, disse.

Simone vê um entrelaçamento da reforma administrativa de ontem, de impacto fiscal ainda desconhecido, com as PECs que criam gatilhos para cumprimento do teto de gastos, de uso imediato, e com a reforma tributária, que em sua opinião deveria caminhar para o segundo plano.

“A imensa maioria dos servidores é estadual ou municipal e não ganha muito. Você acha que um senador vai votar alguma coisa que possa levar à redução de vencimentos de um servidor municipal? Esse povo não conhece o Brasil. Eles acham que podem tudo e não conseguem nada”, fala a emedebista.

Para Simone Tebet, tanto a reforma administrativa quanto a dos gatilhos para o teto avançam melhor se o Congresso criar uma barreira que preserve os que ganham até R$ 5 mil, ou algo assim.

Em um ano em que as campanhas eleitorais estão começando exatamente nesta semana, a realidade política deve se impor ao Congresso. É uma circunstância que ameaça sobretudo a reforma tributária. Não é um tema popular.

É difícil divulgar que a reforma trará ganhos futuros com a racionalização do sistema. E muito fácil, por outro lado, provocar terror projetando impacto nos preços do fim da isenção da cesta básica, e na renda dos setores médios com disparadas das mensalidades escolares, dos planos de saúde e das tarifas de transporte com o aumento da oneração de serviços. O mal é bem visível. O bem, intangível.

Isso não sugere que a reforma tributária será simplesmente abandonada, mas o tema é agreste e o que passar na Câmara terá bastante dificuldade de ser endossado no Senado.

A entrada do governo com a proposta da CBS, em regime de urgência, só tornou tudo mais nebuloso. “Matou a reforma”, na opinião da emedebista. Parece um exagero, mas permite se ter um certo ceticismo em relação à aprovação do tema este ano.

Saudade
Um dos maiores empreiteiros do Brasil, delator ilustre da Lava-Jato, andou tendo encontros com articuladores políticos no momento mais agudo de crise de popularidade do presidente Jair Bolsonaro. Procurava medir a chance de um impeachment e especulava sobre quem seria digno de sua aposta na eleição presidencial de 2022. Ele se queixava de não ter mais interlocução no governo federal. Elogios foram feitos, entretanto, ao ministro Tarcísio Freitas.


Valor: Diminuição de auxílio vai gerar frustração e aversão a Bolsonaro, diz Sérgio Abranches

Para Sérgio Abranches, vive-se hoje no tempo dos governos incidentais, que representam rupturas, mas com tendência de serem efêmeros

Por Diego Viana, Valor Econômico

SÃO PAULO - Em 2017, o cientista político Sérgio Abranches se referiu à atualidade, no título de um livro, como a “Era do Imprevisto”, por ser uma fase de transformações profundas. Em política, o imprevisto leva à emergência de um personagem particular, que se traduz como “O Tempo dos Governantes Incidentais” (Companhia das Letras, 304 págs., R$ 69,90). Com os sistemas políticos desadaptados às mudanças velozes, esses líderes surgem das franjas do sistema, com um discurso fomentado pela frustração e alicerçado na aversão aos políticos estabelecidos. No entanto, como prometem transformações que não são capazes de entregar, essa mesma base afetiva os torna efêmeros.

O “governante incidental” é marca de um período de “interregno”, quando uma ordem global perdeu o vigor sem que sua substituta esteja em pleno funcionamento. Em parte, esse estágio transitório explica traços comuns a muitos incidentais, como o negacionismo climático. A formação de novas lideranças, capazes de gerar propostas adequadas aos novos tempos, é o caminho para superar o momento das lideranças incidentais, para Abranches.

No entanto, o cientista político aponta que o Brasil é um país em que o surgimento de novos quadros é lento, em razão do caráter oligárquico e enrijecido dos partidos e outros centros de formação. Essa é uma vantagem do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Ao mesmo tempo, o apoio recém-conquistado graças ao auxílio emergencial é uma faca de dois gumes: reduzi-lo para garantir equilíbrio fiscal causaria novas frustrações; expandi-lo pode levar à perda da simpatia dos mercados.

A pandemia de 2020 acelera alguns processos em curso. Um deles é a percepção de que políticas sociais e de bem-estar não podem ser inteiramente abandonadas, mesmo com a ênfase no equilíbrio fiscal. Outro é a gradual adoção de algo como o projeto americano do Green New Deal, um conjunto de investimentos para acelerar a transição rumo à economia verde e, ao mesmo tempo, garantir empregos e justiça social.

Veja a seguir os principais tópicos tratados na entrevista.

Governantes incidentais
“A ascensão desses políticos é mais do que uma manifestação da era do imprevisto. É uma reação a ela. As eleições que produzem vitórias dos incidentais representam rupturas com os padrões eleitorais. As sociedades estão reagindo com medo, insegurança, incerteza e ressentimento às mudanças estruturais que os países atravessam. Não é trivial que parte da classe média americana branca tenha se empobrecido por conta da destruição de empregos qualificados tradicionais. Quando buscam o bem-estar social, essas pessoas encontram um sistema que não está sintonizado para o branco.

De repente, chega muita gente da classe média branca querendo cheque de desemprego ou entrando nos outros serviços de proteção social, que estão calibrados para os negros e latinos. Essas pessoas ficam ressentidas de ter de entrar em uma fila com gente que consideram inferior. Gente que antes trabalhava para eles. Produz-se, assim, um setor da classe média branca americana raivoso, uma das bases eleitorais de Donald Trump.”

Ruptura eleitoral
“Um elemento central da ruptura eleitoral é a frustração constante. Já há algum tempo, os ciclos econômicos são tais que as expectativas nunca são cumpridas. Os eleitores ficam frustrados, porque o que imaginavam estar comprando com o voto não é entregue. Além de produzir vitórias incidentais, a frustração garante que esses líderes são efêmeros. Eles geralmente vêm da margem ou de fora da política, mas também geram expectativas que não se realizam. E produzem frustração. É quase uma lei da política: a frustração das expectativas eleitorais se transforma em aversão e rejeição, ou seja, em voto contra, na fase seguinte. Na Itália, o afastamento de [Matteo] Salvini levou os populistas do Movimento 5 Estrelas a se alinharem à política clássica. Mas eu me preocupo com o caso brasileiro, porque não estamos produzindo novas lideranças. No próximo ciclo eleitoral, tudo indica que vamos ter mais do mesmo e pode estar se criando o espaço para que surja um novo populista.”

Bolsonaro e Guedes
“Trump não recuperou a popularidade, mas Bolsonaro, sim, por efeito do auxílio emergencial. No meio de uma grande recessão, com uma taxa avassaladora de desemprego, de repente o governo despeja dinheiro nas mãos das pessoas, e ele faz a diferença, de fato. Mas quanto isso dura? O governo não tem fôlego fiscal para manter esse nível de auxílio. Pode prorrogá-lo por mais dois meses, a um custo alto, mas não pode continuar no ano que vem. Pode tentar mudar o nome do Bolsa Família, para marcar como concessão pessoal de Bolsonaro, mas vai ser um valor menor. Quando o governo dá algo e depois reduz a dádiva, gera frustração e aversão.

Quando cair de R$ 600 para R$ 300, ainda mais com um processo de recuperação duvidoso, isso vai produzir frustração, voltando ao ciclo de gerar expectativa e entregar frustração. Já o apoio do mercado financeiro é essencial para Bolsonaro. Significa a garantia de ter fluxo de investimento. A pergunta é até que ponto o mercado vai crer religiosamente no liberalismo do governo, que já deu seguidas demonstrações de que não é liberal, nem tem compromisso com o rigor fiscal.”

Governo e mercado
“As âncoras de Bolsonaro com o mercado ainda são Paulo Guedes e Roberto Campos Neto. Mas o conflito permanente entre o gastador e o austero sempre acaba produzindo a saída de alguém. Não tem como sustentar por quatro anos um atrito permanente. Por outro lado, Guedes tem uma atitude ambivalente. Em geral, defende a austeridade para certas plateias. Mas quando fala para plateias mais políticas, tem um discurso populista. ‘Vamos gastar para eleger o presidente’… Qual é o Guedes que vai prevalecer? Ele também cria mais expectativa do que pode entregar. Na fábrica de reformas do ministro, tem muito menos do que é prometido. O discurso é de reforma tributária e descentralização; na prática, o projeto é mudar dois impostos e recriar a CPMF.”

Presidencialismo de coalizão
“O modelo do presidencialismo de coalizão não acabou. Ele gera efeitos para Bolsonaro. O fato de não ter uma coalizão tem consequências políticas para ele. Falhou o projeto de usar a relação direta com a população para forçar o Congresso a fazer o que ele quer. A aproximação com o Centrão é um ponto de inflexão pessoal, não político. Bolsonaro se aproxima do Centrão quando as investigações sobre a rachadinha ameaçam sua família. Ele vai em busca de uma aliança com o Congresso pela imunidade, contra um pedido de impeachment. Enquanto Rodrigo Maia (DEM) não vir os evidentes crimes de responsabilidade que o presidente comete em série, não tem impeachment.

Bolsonaro tem que manter alguma relação amistosa com ele para manter sua imunidade. Com isso, teve que desarmar, dentro da estrutura do governo, o aparato da Lava-Jato. Houve uma janela aberta para um impeachment, mas ela não foi aproveitada. Agora, certamente a probabilidade diminuiu. Mas pode ressurgir. Como as investigações continuam pressionando a família Bolsonaro, ele precisa de uma base no Congresso que seja capaz de vetar um pedido de autorização para ser processado.”

Pauta de costumes
“Bolsonaro tem perdido todas as disputas nas suas pautas mais caras, dos chamados ‘costumes’, por exemplo. Armas, religião, moralismo. Nas políticas públicas, o que ele tem feito é se aproveitar do que o Congresso faz. Ele não fez nenhuma grande proposta. As reformas da previdência e a do saneamento básico estavam prontas. O saneamento só foi salvo porque Tasso Jereissati (PSDB) resolveu assumir a liderança do processo. O auxílio emergencial também. O Congresso se tornou o gerador de políticas públicas, que depois Bolsonaro assume como se fossem dele.”

Relação com os EUA
“A presença de Trump na Casa Branca é indispensável para Bolsonaro por várias razões, a primeira sendo que ele o copia o tempo todo. Com Joe Biden, Bolsonaro perderia seu modelo. Outro ponto é que, se Biden for eleito, os EUA retornam imediatamente ao Acordo de Paris. O Brasil não chegou a sair do acordo, mas sua atitude se tornou hostil. A volta dos EUA nos deixaria na posição de pária, com Arábia Saudita, Bolívia, Venezuela. Está em jogo a projeção internacional do Brasil, que já vinha em declínio acelerado por conta do desmantelamento do Itamaraty, da saída de cena dos diplomatas profissionais, que sempre foram um recurso fundamental de influência internacional do Brasil.

O Brasil tinha uma reputação internacional muito boa por causa do ‘soft power’. A ciência brasileira se destaca com ilhas de excelência importantes, participando dos principais projetos científicos globais. A diplomacia brasileira era uma das mais profissionais, conferindo uma capacidade de intermediação e negociação internacionais e uma presença global muito fortes. Com esse declínio, se os EUA mudam de posição e deixam de dar cobertura, o Brasil perde muito. O mesmo vale na questão comercial. Trump, pelo menos, tem um discurso de boa vontade com o Brasil, embora seja duvidoso na prática. Com um governo Biden, vai ser como é com a Europa. O acordo com a União Europeia já subiu no telhado. Se o governo americano também decretar que só tem tratado comercial com proteção da Amazônia, acabou.”

Pós-pandemia
“Alguns eventos ainda em curso vão ser determinantes. O que podemos ver agora é como as sociedades estão reagindo. Nos EUA, a popularidade de Trump caiu fortemente. Parece que a onda populista que o elegeu (e que já começava a declinar) vai ser interrompida. Outra coisa que estava em declínio e parece a caminho de ser superado é o processo de austeridade. Não a ponto de romper com a ideia de que deve haver equilíbrio fiscal. Mas a austeridade que vinha sendo imposta era ultraliberal, cortando direitos sociais básicos. Vimos que os países que se deram melhor na pandemia foram os que deixaram a saúde pública funcional, como Portugal e Alemanha.

No Reino Unido, o primeiro-ministro conservador declarou que sua vida foi salva pelo serviço nacional de saúde. E os conservadores vêm enfraquecendo esse sistema desde o tempo de Margaret Thatcher [primeira-ministra de 1979 a 1990]. A Espanha, que enfraqueceu muito seu serviço de saúde, se saiu mal. Nos EUA, ficou claro que o sistema estritamente privado não funciona em casos assim. Em Nova York, ele não resistiu a 15 dias de pandemia. Ficou claro que é preciso preservar serviços sociais e redes de proteção, neste mundo cheio de imprevistos. Não é só uma questão de justiça social: tem custos econômicos e políticos.”

Green New Deal
“O Green New Deal é uma combinação de duas coisas. O lado ‘new deal’ é a necessidade de uma rede de proteção social que alcance os novos desprotegidos, que não estão contemplados pelas redes tradicionais. Tem um processo de mudança nos empregos e negócios em que a destruição é mais rápida do que a criação. Só se diz isso no campo do emprego, mas é verdade também para empresas: os novos negócios, como os novos empregos, exigem qualidades distintas das tradicionais. A sociedade está enfrentando o desafio de se reeducar, seja para ser empresário, seja para ser trabalhador. É um processo demorado, com muitas perdas no caminho. Algum tipo de proteção para esse contingente, que fica inesperadamente fora do jogo, vai ser necessário para evitar uma convulsão social.

A parte do ‘verde’ se impõe pelo fato de que a mudança climática está aí. Nos EUA, a indústria de seguros se deu conta de que estava no meio do caminho da mudança climática, não quando um furacão atingiu New Orleans, porque atingiu a parte pobre, que não era segurada, mas quando uma tempestade atingiu Chicago e Nova York. As seguradoras passaram a exigir dos clientes mais responsabilidade climática e transparência com o risco climático.”

A economia e o clima
“Era inevitável que os fundos de investimentos dissessem: sem cuidado com a mudança climática, não invisto. A poupança da indústria de seguros e previdenciária é a grande fonte de recursos financeiros. É indissociável a questão econômica da climática. Ao mesmo tempo, a mudança estrutural torna indissociável a questão social das carências que essas transformações produzem. Assim se associam o ‘green’ e o ‘new deal’. Tecnicamente, temos condições de atingir carbono zero no curto prazo. Se os países quisessem fazer uma transição rápida, poderiam. Temos a tecnologia para isso.

O problema é a resistência de parte do grande capital, associado à indústria fóssil. Nos EUA, as Indústrias Koch são grandes financiadoras do trumpismo porque sabem que seu negócio está com os dias contados. Temos substitutos funcionais para o petróleo na energia: carros elétricos, vento, sol, biomassa. Podemos ter uma matriz energética diversificada, deixando o petróleo só como matéria-prima, onde tem muitas aplicações ainda em que ele não é substituível.

O fato é que poderíamos estar fazendo a transição muito mais rápido. Não estamos por causa das condições políticas. Há um descompasso entre o poder e a influência política que as novas forças têm, ligadas por exemplo, à energia eólica ou solar, e as velhas, ligadas à siderurgia ou ao petróleo. São décadas de lobby. Esse descompasso trava a mudança.”

Novas lideranças
“Mobilizações como a de Greta Thunberg têm um poder importante, porque geram novas lideranças. Uma coisa é certa: quando ocorrer a transição de geração no poder, o mundo vai ser sustentável. Os valores já mudaram na base da sociedade, só que eles ainda não têm poder político. As novas gerações ainda não estão no poder. Esses movimentos estão ampliando o espaço de criação de lideranças. No mundo inteiro, e no Brasil desde a época da ditadura, os centros tradicionais de formação de lideranças se tornaram centros de perpetuação de oligarquias. Quem está produzindo novas lideranças são os movimentos sociais, sobretudo os ambientais, assim como o movimento negro e outros. O problema é que produzem lideranças com muita identidade própria, mas pouca capacidade de aglutinar forças. Esse processo ainda está em curso.

No Brasil, desde o princípio, nossa democracia não se preocupou com a formação de lideranças. Mesmo hoje, os movimentos fora da estrutura partidária de criação de lideranças, dos quais saíram nomes importantes, são vistos com preconceito nos partidos, seja porque têm influência econômica ou outra razão. As oligarquias resistem. O surgimento de novas lideranças significa a circulação das elites: uma parte sai do poder para que ele seja ocupado por uma nova liderança. No Brasil, os canais foram obstruídos, e os partidos estão oligarquizados.

Mas esse também é um problema nos outros países. Pelo menos têm surgido lideranças novas fora da estrutura partidária dominante, como os Verdes na Europa. Na Espanha, o vice-primeiro-ministro veio dos movimentos de rua. Esse processo é universal. A democracia tem ciclos de realinhamento partidário. A partir de determinado momento, a estrutura partidária fica tão ossificada que novas forças buscam rompê-las. Esse processo está em curso no mundo inteiro.”


Cristiano Romero: Corporações distanciam povo do Estado

Constituição de 1988 fomentou corporativismo

Na saída do regime militar, em 1988, a sociedade brasileira repactuou seu “contrato social” por meio da nova Constituição. Chamada de “cidadã”, esta criou as bases para a fundação de uma nação. O projeto de nação, inscrito na Carta Magna, se caracteriza pela garantia inédita, a cidadãos brasileiros e estrangeiros que residam aqui, de direitos e garantias fundamentas perante o Estado.

Cláusulas pétreas da lei fundamental do Brasil, esses dispositivos constitucionais determinam, entre outras coisas, que, neste pedaço do planeta, não se pode discriminar um cidadão sob qualquer justificativa (etnia, origem, gênero, opção sexual, idade etc); o regime político é a democracia e o sistema econômico, o capitalismo; a censura é terminantemente proibida; a liberdade de expressão está assegurada; o Estado deve oferecer serviço de saúde gratuito a todos e educação obrigatória até o ensino básico.

Para os que maldizem a Constituição com assiduidade e desprendimento, uma palavrinha de um dos nossos maiores constitucionalistas, o professor Oscar Vilhena, diretor da Faculdade de Direito da FGV-São Paulo. “Estou de pleno acordo que, apesar de todas as suas idiossincrasias, a Constituição de 1988 representa nosso maior esforço civilizatório. Também creio que graças à sua resiliência nossa democracia ainda não sucumbiu”, disse ele em mesagem enviada a esta coluna.

A característica comum a qualquer nação é a igualdade de oportunidades, assegurada pelo Estado por meio de políticas que ajudem a formar cidadãos capazes de se inserir numa economia de mercado. Isto demanda a existência de um serviço público que nunca tivemos na Ilha de Vera Cruz. Aqui, o Estado é dominado por grupos de interesse específico, enquanto sua missão constitucional é zelar por interesses difusos.

O serviço público em países da União Europeia e nos Estados Unidos atende muito mais aos interesses difusos do que no Brasil. Nesse aspecto, a Constituição de 1988 abusou na quantidade de equívocos transformados em leis.

Entre outras barbaridades, os constituintes consagraram a estabilidade dos funcionários públicos no emprego, inclusive, dos que haviam ingressado até então sem concurso, e asseguraram o direito dos funcionários ao recebimento de aposentadoria integral. Além disso, estabeleceu a paridade, isto é, a aplicação às aposentadorias do mesmo percentual de reajuste dos salários do pessoal da ativa.

A regulamentação da Constituição nos anos seguintes a 1988 piorou as coisas ao instituir, por exemplo, o Regime Jurídico Único, a isonomia salarial entre as carreiras, como se a natureza do trabalho de um agente da Polícia Federal seja comparável à de um funcionário do Banco Central ou de um auditor fiscal da Receita.

Os incentivos criados definitivamente não melhoraram a qualidade dos serviços prestados pelo Estado brasileiro, mas serviram para afastar o funcionalismo da essência de sua missão, que é ser o anteparo do cidadão perante os inquilinos do poder, um princípio inscrito na Constituição, mas que jamais foi respeitado.

O que se fomentou, com o modelo de serviço público vigente, foi o fortalecimento de corporações voltadas, em geral, para a defesa permanente de seus interesses específicos, como a equiparação salarial com outras carreiras, a concessão de reajustes salariais automáticos com base em anuênios e quinquênios, o recebimento de auxílio-moradia (uma forma disfarçada, logo, ilegal, de complementação salarial), direito a licenças-prêmio (período sabático sem exigência de contrapartida de formação acadêmica ou profissional) etc.

Ora, essa miríade de direitos e vantagens a ser defendida permanentemente desvia qualquer profissional de sua missão primordial. Esse tipo de distorção é visto também no setor privado, especialmente, nos momentos em que há bolhas financeiras - executivos, incentivados pelos generosos bônus atrelados a desempenho das ações das empresas, preocupam-se mais com a alta do papel no curto prazo do que com a sustentação dos resultados adiante; lembremo-nos do estrago que a turma que operava com crédito “subprime” em bancos americanos e europeus provocou na economia mundial na primeira década deste século.

O problema do “subprime” era dos acionistas dos bancos que quebraram e, em última instância, das sociedades americana e europeia. O corporativismo das carreiras do Estado na Ilha de Vera Cruz nos afeta a todos - cidadãos, consumidores, empresas.

Nas sempre ruidosas campanhas salariais e também nos protestos em defesa de direitos que ocupantes do Palácio do Planalto de vez em quando ameaçam extinguir, as corporações alegam que querem proteger, na verdade, o Estado, contra a sanha de empresários interessados em obter benesses - estes existem, mas não estão do outro lado do balcão; são, na verdade, companheiros das corporações na categoria de “donos do poder”.

Não é verdade. A luta das corporações é e sempre será em defesa da própria corporação, nem que essa luta incorra em prejuízo da maioria silenciosa.

Não se trata aqui de demonizar os funcionários públicos porque, na verdade, eles atuam no escopo definido. Os critérios de excelência exigidos pelos concursos públicos criaram uma elite de servidores públicos de alta qualidade, como, talvez, o país jamais tenha visto. Mansueto Almeida, Marcos Mendes, Pedro Jucá Maciel, Waldery Rodrigues Júnior, Nelson Barbosa, Ivan Monteiro, Paulo Caffarelli, Alexandre Abreu, Marcelo Abi-Ramia Caetano, Manuel Pires, entre muitos outros, são quadros de excelência comprada, formados pelo Estado brasileiro.

Mas, só isso não resolve o problema. O corporativismo, atrelado ao fato de que Brasília, uma cidade naturalmente dominada por autarquias, distanciou o funcionalismo do restante do país, tornou o serviço público muito caro. O titular desta coluna não está entre os que comparam salários do setor público aos do setor privado.

A comparação é indevida por várias razões. Não se pode comparar o ofício de um funcionário do Banco Central (órgão regulador do sistema financeiro) com o de um banco privado (regulado), nem de um advogado da União ou de um promotor com o de um advogado comum. O que dizer, então, da comparação entre o que ganha um juiz e o advogado que defende o réu em sua côrte. O problema vai além disso.


Fernando Exman: Novas bandeiras para o presidente Bolsonaro

Estabilidade social e ordem pública preocupam Planalto

Tem início nesta semana uma nova fase da estratégia de combate aos efeitos socioeconômicos da pandemia. Ela ocorre num momento em que o governo sinaliza que não tentará prorrogar o estado de calamidade pública a partir de janeiro, reduzindo as “últimas camadas” do auxílio emergencial, enquanto espera que a ajuda já anunciada chegue com mais força na ponta.

O valor do auxílio emergencial, que passará para R$ 300 até o fim do ano, terá papel central neste novo momento. O mesmo vale para o lançamento da nota de R$ 200, a qual pode, na visão do governo, ajudar a ativar a economia sem gerar riscos inflacionários.

Para implementar esta nova etapa, as necessidades fiscais e os possíveis impactos econômicos das iniciativas foram esquadrinhados pela equipe do ministro Paulo Guedes, da Economia. Mas, as possíveis consequências negativas para a área de segurança pública só serão conhecidas na prática. Isso preocupa - e muito - alguns setores do governo.

A segurança pública é motivo de apreensão no Palácio do Planalto desde o fim do primeiro trimestre, quando o coronavírus começou a se espalhar pelo Brasil. O temor do presidente Jair Bolsonaro e de seus ministros mais próximos era que, com a covid-19, também avançasse uma onda de violência urbana sem precedentes na história do país. Havia um receio de que ocorressem saques, tumultos nas ruas com atos de vandalismo, um aumento incontrolável de invasões de residências.

No cenário mais crítico, as pessoas estariam confinadas, sem fontes de renda e sem ter o que comer. Poderiam ser “vítimas de desespero”, como dizem auxiliares do presidente, e partir para a violência urbana em busca de uma solução.

Isso até agora, felizmente, não ocorreu. Não deixa de ser curioso o surgimento desse novo olhar em um governo formado por muitos que até então negavam a existência de uma correlação entre questões sociais e os índices de criminalidade. O aumento da popularidade do presidente, impulsionada sobretudo pelo alívio garantido pelo auxílio emergencial a milhões de brasileiros, deve ter contribuído para essa mudança de concepção.

De todo modo, o Executivo pode comemorar, sim, o fato de o auxílio ter mantido o consumo da população de baixa renda e um ambiente de paz social. No Planalto, ouve-se que o auxílio emergencial custa muito aos cofres públicos, mas que por causa dele o país não “colapsou”. Existe também no governo o reconhecimento de que sem o Congresso a situação poderia ser bem pior. Afinal, inicialmente o Executivo queria que o benefício fosse de R$ 200 mensais, mas acabou elevando-o para R$ 600 cada parcela da primeira fase.

Alguns dados levantados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada são citados para demonstrar o poder dessa política pública. Eles apontam, por exemplo, que tanto em junho quanto em julho 6,5 % dos domicílios brasileiros sobreviveram apenas com os rendimentos recebidos do auxílio emergencial. Isso representa cerca de 4,4 milhões de domicílios. No universo das famílias de baixa renda, os rendimentos cresceram em relação às rendas habituais obtidas antes da pandemia.

Somam-se a esses indicadores percepções coletadas pela área jurídica do governo com interlocutores do Judiciário e dos órgãos de segurança. Elas revelam uma redução significativa da prática de roubos e furtos de residências em diversas cidades. Nada mais natural, uma vez que grande parte das pessoas ficou longos períodos dentro de casa, em isolamento social, e isso dificultou a vida dos gatunos. A diminuição do fluxo de pessoas também levou a um declínio no número de vítimas pelas ruas. Por outro lado, ainda de acordo com essas fontes, os crimes cibernéticos aumentaram e a demanda por dinheiro vivo não para de crescer.

Também por isso o Banco Central anunciou o lançamento da nova nota de R$ 200, a despeito das preocupações entre especialistas no combate à corrupção e à lavagem de dinheiro com uma suposta facilitação do transporte e da posse de grandes volumes à margem dos mecanismos de controle. A oposição aproveitou esses argumentos e judicializou a questão no STF, mas o BC afasta qualquer risco.

Ao Supremo Tribunal Federal, apresentou explicações técnicas e usou a situação da Caixa Econômica Federal como exemplo por ela ser a maior demandante de numerário e a principal responsável pelo pagamento do auxílio emergencial. A Caixa indicou ao BC estimativas crescentes de saques semanais em sua rede de agências e correspondentes. Em julho, por exemplo, teve saques semanais que superaram R$ 2 bilhões. Essas operações devem chegar a cerca de R$ 5 bilhões semanais entre o fim de agosto e o início de outubro, passando a R$ 4 bilhões semanais a partir daí e de no mínimo R$ 3 bilhões semanais até o fim do ano. Na peça que protocolou no STF, o BC informou que “foi estimada demanda adicional de numerário para o período de agosto a dezembro de 2020 na ordem de R$ 105,9 bilhões”.

Essa cifra não corresponde apenas às necessidades da Caixa nem dizem respeito só aos valores do auxílio emergencial, mas dá uma dimensão do que o ministro da Economia quis dizer quando mencionou, em audiência no Senado, “uma enxurrada de dinheiro” que chegará aos Estados e municípios até o fim do ano. Segundo Guedes, isso se dá em razão do tempo necessário para que os recursos do auxílio cheguem de fato ao beneficiário.

Há relatos no Planalto de que em alguns municípios o meio circulante triplicou. A nota de R$ 200 será estampada com a imagem do lobo guará e, dessa forma, poderá acabar se transformando em mais uma marca do governo Bolsonaro em seu esforço de combater os efeitos da pandemia.

Não há como prever com precisão, neste momento, o impacto dessas medidas nos índices de violência e de criminalidade. A aposta no governo, contudo, é que pelo menos não ocorram maiores danos à imagem do presidente.

Desde o início da crise, setores da oposição defenderam a emissão de dinheiro como uma forma de o Estado alcançar os mais pobres. Essa crítica está, pelo menos do ponto de vista do discurso político, neutralizada.


Bruno Carazza: Panteras negras

Reserva de recursos para candidatos negros não basta

Passaram-se longos 50 anos até que o Pantera Negra conseguisse chegar às telas do cinema. Quase duas décadas antes da criação do super-herói negro na HQ de Stan Lee e Jack Kirby, em 1947 Jackie Robinson rompeu a convenção que vedava o acesso de atletas de ascendência africana aos times da maior liga de beisebol norte-americana. Eleito o melhor jogador da temporada de 1949, em sua homenagem nenhuma equipe nos EUA utiliza mais o número 42 que o celebrizou - com uma única exceção anual, no “Jackie Robinson Day” (15 de abril) quando todos os jogadores, de todos os times, inclusive os técnicos, envergam 42 nos uniformes.

Nomeado em 1967, Thurgood Marshall foi o primeiro negro na Suprema Corte americana - sucedido por Clarence Thomas, eles são os únicos afrodescendentes num total de 102 pessoas que já ocuparam o cargo mais alto do Judiciário nos Estados Unidos desde 1789. No ano seguinte, em 5 de abril de 1968, um dia após o assassinato de Martin Luther King, James Brown realizou um concerto em Boston. Transmitido ao vivo pela TV pública local, o show serviu para acalmar os ânimos da população negra, que em vez de ir para as ruas protestar ficou em casa assistindo à apresentação do ídolo - o que gerou acusações do movimento black de que Brown estava servindo aos interesses dos governantes brancos contra a causa da igualdade racial. Em resposta, Brown gravou “Say it loud - I’m black and I’m proud”.

Todos esses personagens, vividos no cinema pelo ator Chadwich Boseman, falecido no sábado, revelam como é longa a luta por igualdade de direitos e oportunidades entre negros e brancos nas mais diversas áreas da sociedade. Em pleno 2020, o assunto permanece quente - haja vista os protestos nos Estados Unidos após o assassinato de George Floyd e o histórico boicote dos jogadores de basquete nos playoffs da NBA.

Por aqui, na semana passada o Tribunal Superior Eleitoral decidiu que, a partir das eleições de 2022, tanto o tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na TV quanto os recursos do bilionário fundo eleitoral deverão ser divididos de forma proporcional ao total de candidatos negros que se inscreverem para a disputa. “Há momentos na vida em que cada um precisa escolher em que lado da história deseja estar. Hoje, afirmamos que estamos do lado dos que combatem o racismo e que querem escrever a história do Brasil com tintas de todas as cores”, disse o presidente da Corte, ministro Luís Roberto Barroso.

A política brasileira é repleta de obstáculos à entrada de novos agentes que queiram contestar os donos do poder. Falta democracia interna aos partidos - convenções, prévias e consultas em geral são apenas para inglês ver - e as eleições são extremamente caras, disputadas em territórios muito grandes e com dezenas de milhares de concorrentes. Para se destacar na multidão, é preciso muito dinheiro para se tornar conhecido. Se o aspirante a um cargo público não é rico ou bem conectado com milionários, dependerá dos fundos partidário e eleitoral, mas eles são controlados com mãos de ferro pelos caciques partidários.

Desde a proibição das doações empresariais, em 2015, os políticos têm buscado compensar a queda na arrecadação aumentando o volume de dinheiro público para financiar as campanhas. Espertamente, não se preocuparam em criar regras para disciplinar a distribuição dos valores recebidos dentro de cada legenda. Na ausência de critérios, o TSE tem se encarregado de criá-los, instituindo cotas. Primeiro destinou 30% para as mulheres, e agora exigiu que se respeite a proporcionalidade racial.

Como pode ser visto no gráfico acima, mesmo com a reserva de recursos para as candidaturas femininas, as eleições de 2018 foram marcadas por clivagens de gênero e raça na repartição dos fundos eleitoral e partidário entre os postulantes a um assento na Câmara dos Deputados. Na média, homens receberam mais do que mulheres, e dentro de cada gênero brancos foram agraciados com mais dinheiro do que pardos e negros. Diante desse cenário, cotas tendem a nivelar o campo de disputa eleitoral. No entanto, é preciso ter cuidado.

Assim como acontece com a reserva de vagas em universidades públicas, será preciso atenção com a questão da autodeclaração para se evitar fraudes. Desde que o TSE exigiu que no ato de registro fosse declarada a cor, em 2014, 5.044 candidatos se inscreveram indicando duas ou três raças diferentes nas eleições seguintes. Agora que o apontamento da cor valerá dinheiro, é de se esperar que essas incongruências fiquem mais evidentes.

Também é preciso pensar em resolver o problema da assimetria na destinação de recursos dentro de cada cota. Em 2018, o grosso do montante distribuído para mulheres ficou concentrado em candidatas tradicionais e em esposas e filhas de velhos políticos, sem falar nos casos de laranjas - o que limitou o potencial de democratização de acesso de “cidadãs comuns” aos fundos de financiamento de campanhas.

Por fim, é sempre bom lembrar que mais dinheiro não é garantia nem de mais cadeiras e nem de melhores leis ou políticas públicas para as maiorias subrepresentadas na política brasileira. Ainda precisamos trilhar um longo caminho até atingirmos o objetivo fundamental de promoção do bem de todos, sem preconceitos de qualquer natureza, inscrito no art. 3º, inciso IV, de nossa Constituição.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


César Felício: Não vale o escrito

Da forma como pode ser feita, mudança corrói democracia

O acordado prevalece sobre o legislado. Esse é o espírito, tão em sintonia com os novos tempos, da argumentação que o Senado apresentou ao Supremo Tribunal Federal (STF) em defesa da reeleição para as presidências das Casas do Congresso. A Constituição, em seu artigo 57, parágrafo 4, é um tanto quanto explícita: o mandato dos presidentes do Senado e da Câmara é de dois anos, “vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente”.

No parecer do secretário-geral da Mesa do Senado, esta norma não pode ser levada a ferro e fogo. A peça constata uma obviedade: circunstâncias políticas fizeram com que na Constituição de 1988 se mantivesse o princípio criado no regime militar de se impedir a reeleição indefinida dos presidentes das duas Casas, porque é disso que se trata. A partir dessa constatação, a de que o Congresso constituinte criou normas não porque Deus as esculpiu em uma pedra, mas por circunstâncias políticas, chega-se ao desfecho surpreendente: como as circunstâncias políticas são outras, o texto do parágrafo quarto do artigo 57 merece ser declarado caduco.

A reeleição, seja de quem for, presidente da República, da Câmara, do Senado, governador ou prefeito, já não é algo saudável para um dos pilares básicos da democracia, que é a competição política. Da forma como querem fazer, contudo, é pior. Muito pior. Corrói outros princípios.

A Constituição sempre é um produto de sua época, mas com regras que precisarão necessariamente valer para outros tempos. Por isso tanto é melhor quanto mais enxuta for, o que não é o caso da brasileira. O pecado da prolixidade em 1988 é remediado pela emenda constitucional, e o texto da Carta já foi modificado mais de cem vezes.

A ninguém havia ainda ocorrido argumentar no Judiciário que, como 32 anos se passaram, a regra estabelecida não vale mais. É o que prega o Senado. Se a tese emplacar, por que outros limites constitucionais precisarão ser obedecidos? Por que o presidente só pode se candidatar a reeleição uma vez? Por que os ministros do Supremo precisam se aposentar aos 75 anos? Tudo dependerá da existência ou não de justificativas do ponto de vista histórico ou político para que se diga se o escrito vale ou não.

Um dos argumentos dos defensores da tese é que já houve uma interpretação criativa do texto constitucional em 1999, quando Antonio Carlos Magalhães (1927-2006) se reelegeu na presidência do Senado.

Foi o primeiro a cruzar esta fronteira, mas tratava-se de uma legislatura diferente. Abrir a exceção para a mesma legislatura significa criar a possibilidade de se eternizar o comando.

O acordo que pode se forjar para que se acolha no Supremo a tese de reeleição dentro da mesma legislatura é uma possibilidade concreta, porque seria tentador para as cúpulas dos Três Poderes.

O Supremo hipertrofiaria ainda mais seu status, porque ganharia a faculdade de decretar que dispositivos constitucionais perdem a validade porque a banda agora toca diferente.

O presidente também teria ganhos potenciais. Presidentes da Câmara e do Senado que são eternos candidatos à reeleição podem ter menos interesse em se indispor com a base governista.

Quanto à cúpula do Legislativo, não há nem muito o que dizer. Um presidente da Câmara que pode se reeleger ganha um poder de fogo imenso frente a seus rivais. É um pouco fantasioso achar que Davi Alcolumbre e Rodrigo Maia não concorreriam em situação de imenso favoritismo.

Talvez mais importante do que esses fatores seja o enfraquecimento mútuo do sistema de contrapesos. Legislativos, Executivo e Judiciário podem se tornar feudos, em jogo permanente de defesa e proteção mútua.

Falta alternativa
Um dos 18 pré-candidatos a prefeito de São Paulo, a ser oficializado no dia 5, o deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP) é acima de tudo realista e pragmático. “Essa eleição municipal para a oposição será um momento de acúmulo de forças”, diz. Silva concorre em São Paulo de olho em 2022, momento em que o PCdoB será submetido às novas regras de cláusula de barreira e as forças contra o presidente Jair Bolsonaro terão escolhas difíceis a fazer.

“Pelo andar da carruagem, Bolsonaro chega em 2022 competitivo. E essa competitividade tem a ver com a ausência de uma alternativa crível a ele ”, diz.

Para Silva, a oposição estará fadada a conversar em 2021 para fornecer ao país esta tal alternativa crível. “Uma temporada de diálogo vai se abrir para uma gestação, que precisa de uma abertura”, aposta.

“O bolsonarismo está ancorado na antipolítica. Uma nação precisa de uma estratégia e isso nós não temos na mesa”, afirma.

O pré-candidato pensa que o PT que sairá das urnas municipais não terá como fornecer uma saída para o problema. “Considero que o PT cumpriu sua missão. Eu aplaudo a trajetória do PT e penso que é necessário construir uma alternativa renovada. O PT pode participar, mas já teve a oportunidade de ser protagonista”.

Já em relação ao PDT, o tom é bem menos assertivo. “O PDT e o Ciro não tiveram as oportunidades que o PT teve de governar o país. Mas não é de bom tom que nessa fase sentemos à mesa para discutirmos nomes”.

Com respeito ao próprio partido, eternamente ameaçado pela cláusula de barreira, Silva pensa que será de interesse geral na Câmara estudar uma saída para o fim das coligações proporcionais e “redesenhar o sistema político do Brasil”.

Refazer o sistema político é criar brechas para permitir a coligação por outros meios, como por exemplo a federação partidária, no modelo uruguaio da Frente Ampla. A montagem de blocos unidos tanto na eleição como no exercício do mandato poderia se dar inclusive em torno de um nome independente, sem filiação partidária.

É algo que pode interessar as siglas fora do ambiente da esquerda. Partidos tradicionais, como o DEM, podem ter redução de bancada. Siglas vocacionadas para o Legislativo, como o PSD, estarão diante de um dilema. Do mesmo modo a mudança pode interessar aos novos amigos de Bolsonaro, como PP, Republicanos e PL, que teriam assim como embarcar na canoa da reeleição e receber dividendos na eleição de deputados e senadores.

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Cristiano Romero: Projeto de nação sem Estado para executá-lo

Constituição de 1988 lançou um projeto de nação

A sociedade brasileira deu um passo enorme em seu processo civilizador ao incluir em sua Constituição direitos e garantias fundamentais que, até então, eram relevadas pelo Estado brasileiro.

Direitos e garantias fundamentais têm como objetivo proteger o cidadão da ação do Estado, além de assegurar o mínimo para que todas as pessoas que vivem neste imenso território, brasileiras e estrangeiras, tenham uma vida digna.

A Constituição de 1988 se inspirou claramente na Declaração dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), anunciada em 1948, fruto do trauma provocado pela Segunda Guerra Mundial. Aquele conflito decorreu da ascensão de movimentos e grupos políticos extremistas de direita, cujo ideário rejeitava os princípios da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, escrita durante a Revolução Francesa de 1789, a primeira tentativa de universalização dos direitos humanos.

O objetivo da Carta Magna brasileira foi conferir dignidade à vida humana e proteção dos indivíduos frente à atuação do Estado, que é obrigado a garantir e prezar por tais direitos e garantias.

Não é fácil a luta das sociedades contra o absolutismo de grupos políticos absolutistas e de Estados fundados em princípios autoritários.

O documento da ONU, do qual o Brasil é signatário, baseou-se no da Revolução Francesa. Somente 199 anos depois, a Ilha de Vera Cruz consolidou um marco legal - a Constituição de 1988 - para universalizou direitos e proteger o cidadão da sanha autoritária de grupos que, mesmo minoritários, decidem a seu bel prazer os destinos do país.

A Carta Magna, entre outras inovações, universalizou o acesso gratuito da população à saúde e à educação. Dois outros exemplos precisam ser mencionados, entre tantos outros: a instituição da aposentadoria rural e a criação de um benefício social - o BPC - que, recentemente, tem sido objeto de acalorado debate.

No primeiro caso, trataram os constituintes de 1988 de entender que o Brasil não poderia ignorar o fato de que, até a década de 1960, a maioria da população vivia no campo. Tendo sido a economia que cresceu de maneira mais rápida na história da humanidade entre as décadas de 1950 e 1970, o processo de urbanização se deu forma acelerada, gerando enorme desigualdade, entre outros problemas sociais de difícil solução. A aposentadoria rural, sem a exigência de contribuição dos beneficiários, foi o reconhecimento de que milhões de brasileiros que trabalhavam no campo não poderiam ser deixados ao relento.

O Benefício de Prestação Continuada (BPC) foi adotado para atender basicamente a dois públicos: as pessoas que, por deficiência física ou mental, não conseguem trabalhar, e aqueles que, aos 65 anos, vagam pelas cidades, principalmente, as capitais, sem emprego, sem vínculo familiar, sem registro de identidade, muitos, sem memória… A Civilização diz que esses cidadãos têm direito a receber um salário mínimo por mês.

O Brasil escolheu a democracia como regime político e a economia de mercado como regime econômico. Os dois sistemas de convivência humana, organização social, são imperfeitos por definição.

Em ambos, a mercadoria mais valiosa é a informação (usada aqui no seu conceito mais amplo, isto é, sem estar restrito a notícias jornalísticas).

Quem detém mais informação, mais formação, tende a ter vantagens tanto no regime democrático quanto na prosperidade econômico. A democracia e a economia de mercado são uma espécie de corrida - em tese, cabe ao Estado atuar para que todos os “corredores” partam da mesma posição.

À medida que alguns avancem a ponto de ficarem muito distantes dos “retardatários”, cabe ao Estado atuar para diminuir essa distância, em prol do “contrato social” que assegure a sobrevivência da democracia.

Nos regimes democráticos, quem tem poder econômico possui também mais poder políticos sobre os demais cidadãos. É por essa razão que democracia avançadas não permitem, por exemplo, a existência de oligopólios no setor produtivo e financeiro. Porque têm um poder desmedido que torna qualquer democracia num simulacro do que deveria ser.

As alternativas ao binômio democracia-economia de mercado são muito piores. Basicamente, porque negam a característica inerente a todo ser humano, que é o direito à liberdade.

O que tudo disso tem a ver com a previdência rural e o BPC? Ora, nos dois casos, trata-se do reconhecimento de que há falhas nas democracias e em suas respectivas economias de mercado com as quais precisamos lidar. Não é possível que alguém ainda veja mendigos nas ruas e pensem: “São vagabundos que não querem trabalhar”. Nota do redator: a maioria trabalhava em empresas que sucumbiram à sucessão de malfadados planos econômicos; ademais, se esses brasileiros ao menos soubessem da existência do BPC…

Aprendemos, no Brasil, a conviver com a desigualdade e achar que está tudo certo, afinal, o livre arbítrio deve prevalecer sobre todas as coisas. A Constituição diz que não deveríamos pensar assim. Gente de bem neste país, a maioria, se questiona: por que nossas escolas não ensinam às crianças, desde a tenra idade, os princípios civilizadores consagrados por nossa Carta Magna?

A Constituição de 1988 encerra um belo projeto de nação, da nação que não somos. Mas, essa ambição só terá a chance de se materializar quando dotarmos o Estado brasileiro de características que, hoje, ele não tem (este tema será tratado aqui de forma exaustiva daqui em diante). O Estado que temos, concentrador de renda e absolutamente desprovido de instrumentos para exercer seu papel, precisa ser reformulado imediatamente.


Fernando Exman: A fórmula bolsonarista em busca da reeleição

Desafio é conseguir manter a bandeira anticorrupção

O governo vai avançando, no discurso e na prática, em seu plano de ampliar o eleitorado disposto a reeleger o presidente Jair Bolsonaro.

A operação se dá em duas frentes e a primeira é voltada a expandir a base, além dos redutos sob a influência de aliados do Palácio do Planalto e da população ao alcance das novas políticas públicas federais. Em segundo lugar, a tarefa é evitar que eventuais desilusões com a atual administração aproximem os chamados “bolsonaristas raiz” de uma candidatura alternativa no campo conservador nos costumes, liberal na economia e identificada com o combate à corrupção.

No círculo mais próximo do presidente está claro que a aversão à política e o desgaste dos partidos com seguidos escândalos de corrupção, principalmente os protagonizados pelo PT, ajudaram-no a subir a rampa do Planalto. O desafio, a partir de agora, é manter a imagem do governo preservada, ao mesmo tempo em que o Executivo tenta se beneficiar da ampliação de sua base no Parlamento por meio de alianças com algumas dessas mesmas siglas.

A aproximação dos partidos do Centrão também pode facilitar, na visão de integrantes do governo, o trânsito de Bolsonaro nos redutos eleitorais nordestinos. Isso tende a beneficiar ambas as partes, uma vez que em 2018 ele se saiu comparativamente bem em praticamente todos os segmentos do eleitorado, mas pode melhorar muito seu desempenho na região.

Para aliados do presidente, o eleitor nordestino não tem, em geral, preferência partidária. Busca em grande parte dos casos estar próximo do poder público por necessidade e conveniência, ou seja, tende a ser receptivo em relação a quem pretende expandir sua atuação política nesses Estados e possui a máquina em mãos.

Por isso o futuro anúncio do Pró-Brasil e o lançamento do Casa Verde e Amarela podem ser vistos como parte de um esforço de refundação que está em curso no governo. A tentativa de construção de novos parâmetros no relacionamento com os outros Poderes também está nesse contexto.

O lançamento do Casa Verde e Amarela garante desde já, ao presidente e a seus aliados, um instrumento poderoso para sustentar o discurso de que as pessoas, sobretudo as mais carentes, passaram novamente ao centro das preocupações do poder central. O programa reduz a taxa de juros do programa habitacional, permite a renegociação de dívidas e promove um grande esforço de regularização de imóveis.

O poder eleitoral de uma escritura não pode ser menosprezado, assim como não passa despercebido que o programa tenha o ano de 2024 como prazo. As regiões Norte e, claro, Nordeste terão um tratamento diferenciado.

O governo fortalece seu discurso sobre o enfrentamento do deficit habitacional e faz um contraponto ao Minha Casa, Minha Vida petista.

Já o Pró-Brasil tende a propiciar ao governo um reposicionamento em outros campos estratégicos, como as discussões sobre o combate ao desemprego, a redução das desigualdades sociais, o uso mais eficiente dos recursos públicos e o tamanho do Estado.

Se por um lado esse pacotão pode conter o programa social que tentará deixar para trás a marca do Bolsa Família, o Renda Brasil, ele também deve contemplar medidas que buscam reduzir os custos de contratação e visam o aquecimento do mercado de trabalho. A recuperação da economia está no centro dos debates sobre o Pró-Brasil.

Num outro braço do pacote, Bolsonaro pode finalmente atender a uma crescente demanda de congressistas aliados e do setor privado para que envie ao Congresso uma reforma administrativa.

Neste caso, como costuma dizer, a bola passaria a estar com o Legislativo. Os ônus políticos seriam divididos e, num cenário extremo, ele até poderia novamente responsabilizar deputados e senadores por não conseguir implementar sua agenda.

É isso o que autoridades do Executivo têm feito para justificar aos bolsonaristas mais fiéis a demora na entrega de algumas promessas de campanha.

O governo pouco apresentou quando se olha para as pautas de costumes e de ampliação do acesso a armas e munições. Por diversas vezes o Planalto viu suas medidas provisórias ou projetos de lei serem retirados de pauta ou nem entrarem em discussão. Um exemplo recente ocorreu no Senado, que adiou a análise das propostas que alteram regras do Código de Trânsito como o prazo de validade da habilitação, a suspensão da carteira e o uso de cadeirinha para crianças.

Agora, o governo quer aproveitar esta nova fase de relacionamento com os presidentes da Câmara e do Senado para tentar convencê-los a pelo menos colocar em votação os projetos de autoria ou interesse do Executivo, mesmo que eles estejam fadados à derrota. Em outras palavras, defendem que a maioria do Parlamento possa impor sua vontade sobre cada tema e não se dependa da vontade dos presidentes das duas Casas do Legislativo.

O governo sabe que a pauta armamentista enfrentaria dificuldades. Mesmo assim, esse seria um jeito de dar satisfação ao eleitor cativo de 2018, que, por outro lado, assiste ainda impassível ao noticiário sobre as movimentações financeiras realizadas pelo ex-assessor parlamentar Fabrício Queiroz para as contas de integrantes da família do presidente.

Este assunto tira o presidente do sério em suas interações com a imprensa, mas é um tema do qual dificilmente conseguirá fugir quando a campanha se intensificar.

Os governistas intensificaram a estratégia de comunicação para mostrar que nos últimos 600 dias não houve um grande escândalo de corrupção. Eles também têm procurado dar visibilidade aos resultados de operações policiais e esperam poder se beneficiar das dificuldades enfrentadas na Justiça pelo ex-ministro Sergio Moro, que deixou o governo criticando a atuação de Bolsonaro na área. Isso tudo pode não ser suficiente para neutralizar o impacto das notícias relacionadas à atuação de Queiroz. A eleição está longe, mas a disputa ganha cada vez mais forma.


Sergio Lamucci: Os riscos da acomodação

O que se passa em áreas como educação, saúde, ambiente e relações exteriores está longe de ser normal

Com a atitude menos beligerante de Jair Bolsonaro desde junho e o aumento recente da popularidade do presidente, os graves equívocos e retrocessos do governo em diversas áreas começam a ficar em segundo plano. As políticas para setores como educação, saúde, ambiente, relações exteriores e cultura continuam preocupantes, mas esses temas têm perdido destaque, num momento em que a discussão se concentra nos contornos da política fiscal de 2021 e na formatação do Renda Brasil, um programa de transferência de renda mais amplo que o Bolsa Família. A iniciativa deve ser lançada depois do fim do auxílio emergencial - o principal fator por trás da melhora da aprovação de Bolsonaro.

O futuro do teto de gastos e o desenho de um programa como o Renda Brasil são assuntos sem dúvida importantes, que terão papel relevante na definição da segunda metade do atual governo. No entanto, além do impacto negativo de curto prazo, as políticas para áreas como educação, saúde e ambiente terão grande influência nas perspectivas de longo prazo do país, e o que se vê nesses segmentos é grave.

A educação, por exemplo, será decisiva para o país enfrentar o problema crônico da baixa produtividade. A saída do inacreditável Abraham Weintraub do ministério foi uma boa notícia, mas Milton Ribeiro, o novo ministro, ainda não deixou claro qual será a sua orientação para a área. Ribeiro não deverá buscar o confronto ideológico aberto e sem sentido como fazia Weintraub, mas por ora não há indicações de que ele vai concentrar esforços em temas cruciais, como os problemas de aprendizagem na educação básica. Com mais de um ano e meio de governo, o ministério segue sem norte numa área em que o Brasil não pode perder tempo, dada a péssima qualidade do ensino na maior parte do país.

A falta de rumos é ainda mais clara no Ministério da Saúde. Depois de substituir Luiz Henrique Mandetta, Nelson Teich ficou menos de um mês como ministro, tendo pedido demissão em 15 de maio. No meio da pandemia, a pasta é tocada por um interino que não é da área, o general Eduardo Pazuello. Bolsonaro minimizou o tempo todo a gravidade da covid-19, defendendo o uso da cloroquina, um medicamento sem eficácia comprovada para combater a doença.

O país já registra quase 115 mil mortes pela covid-19, número que poderia ser menor se houvesse uma maior coordenação das autoridades dos três níveis de governo. Isso não existiu principalmente devido à atitude de Bolsonaro de não dar importância ao problema e pressionar o tempo todo pela reabertura da economia. Há sinais de redução da quantidade de óbitos, mas eles ainda permanecem em nível elevado.

No ambiente, a situação é crítica. De agosto de 2019 a julho de 2020, o desmatamento na Amazônia cresceu 33,3% em relação aos 12 meses anteriores. Empresários e investidores do Brasil e do exterior têm mostrado descontentamento com a política ambiental brasileira, pedindo ao governo que combata as queimadas na floresta, como na carta enviada por CEOs de grandes empresas ao vice-presidente Hamilton Mourão, presidente do Conselho Nacional da Amazônia Legal.

Além dos efeitos desastrosos sobre o ambiente em si, essa política pode afetar as exportações do agronegócio e afastar parte do investimento estrangeiro do país, num quadro em que empresas e fundos exibem preocupação cada vez maior com a sustentabilidade. Há também o risco para acordos comerciais, como o fechado entre o Mercosul e a União Europeia (UE). Na sexta-feira, foi a vez de a chanceler da Alemanha, Angela Merkel, manifestar dúvidas sobre o acerto, dada a situação da Amazônia.

Na visão do governo brasileiro, a Alemanha seria um dos países europeus que teriam uma visão mais favorável ao acordo, que encontra oposição mais forte em nações como a França e a Holanda, por exemplo. Agora, a própria Angela Merkel indicou ter resistências ao tema.

A política externa é outra fonte de problemas. O alinhamento automático de Bolsonaro ao governo de Donald Trump pode ser prejudicial ao país. Se o democrata Joe Biden ganhar as eleições deste ano nos Estados Unidos, o Brasil deverá ter dificuldades no relacionamento com a nova administração americana. A política ambiental brasileira, por exemplo, seria vista com maus olhos por um governo comandado por Biden.

Os conflitos gratuitos com a China também são preocupantes. Entrar em confronto com o principal destino das exportações brasileiras não é obviamente uma estratégia das mais inteligentes.

Além dessas quatro áreas, há problemas graves nas políticas do governo para a cultura e para minorias. Esse inventário aponta para questões conhecidas, mas que parecem atrair hoje menos atenção, ainda que sigam preocupantes.

Bolsonaro passou a evitar os confrontos quase diários que marcaram grande parte de seu governo, embora ontem tenha tido uma recaída, ao atacar um repórter de “O Globo”, ao ser perguntado sobre depósitos feitos por Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro (ler mais em Presidente ataca repórter por pergunta sobre Queiroz). De todo modo, sem o presidente entrar em conflito frequente com o Judiciário e o Legislativo e com a imprensa, parece haver uma acomodação quanto a políticas do governo que causam problemas para o país em áreas sensíveis. E, com o auxílio emergencial de R$ 600, a popularidade do presidente voltou a melhorar.

Nesse cenário, as discussões têm se concentrado principalmente no futuro do teto de gastos e no novo programa de transferência de renda. São temas de fato muito relevantes - a política fiscal a partir de 2021 será essencial para a sustentabilidade das contas públicas e para o crescimento, enquanto o Renda Brasil poderá ser uma nova etapa das políticas sociais num país extremamente desigual, nos dois casos com grande impacto sobre as eleições presidenciais de 2022.

O que se passa na educação, saúde, ambiente e relações exteriores, porém, está longe de ser normal. Dar menos atenção ao que ocorre nessas áreas tem e terá um custo elevado para o país.