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Luiz Carlos Mendonça de Barros: Choque liberal. Um sonho?

O ministro se dispôs a abandonar a natureza radical de seu programa e adaptá-lo ao que é possível realizar

O analista que acompanhou o início do mandato do presidente Bolsonaro sempre teve dúvidas sobre a viabilidade política do choque liberal na economia prometido pelo ministro Paulo Guedes. Afinal, o histórico parlamentar do novo Presidente da República - inclusive sua origem militar - apontava em outra direção. Mas, a composição da equipe econômica feita com total autonomia parecia contradizer os mais pessimistas em relação a esta questão.

Eu me incluía neste grupo, principalmente por experiências vividas na minha carreira profissional por mais de cinquenta anos. Afinal, foi no ambiente de um verdadeiro choque liberal que iniciei a caminhada no mercado financeiro brasileiro em 1967. Mais ainda, meu primeiro patrão foi Roberto Campos, avô do atual presidente do Banco Central e considerado até hoje como uma referência de modelo liberal de gestão da economia.

Recém-formado pela Escola Politécnica da USP e novato em questões econômicas fui educado, nos primeiros anos de minha carreira, pelo professor Roberto Campos, como era chamado por nós funcionários do Investbanco. À época já era possível sentir em algumas de suas palavras - amargas - um forte ressentimento em relação às mudanças que ocorriam no modelo econômico criado por ele no mandato tampão do general Castelo Branco. Sob o comando de outra geração de presidentes militares e nas mãos de um economista de outra escola de pensamento - Delfim Netto - o choque liberal sonhado inicialmente se transformava, segundo ele, em algo pastoso e sem forma.

O general Costa e Silva - novo Presidente da República - e posteriormente seu sucessor Garrastazu Médici, vinham de outro grupo de oficiais do exército, formados fora da Escola Superior de Guerra - que se chamava então de Sorbonne - e à qual pertencia Castelo Branco. Formação profissional diversa, marcada pelas experiências de comando de tropa, mas principalmente com valores econômicos que se antagonizavam com os de Roberto Campos.

Ao longo de meus quatro anos no Investbanco, nos momentos em que tive a felicidade de ouvir o professor Campos comentar sobre economia e política, pude acompanhar de perto sua frustração com a desmontagem do sonho liberal construído com competência entre 1965 e 1967. A economia brasileira respondia com vigor às reformas realizadas e crescia a taxas de quase 10% ao ano, mas agora sob o comando inteligente - mas pragmático - do novo czar da economia, Delfim Neto.

Em 1973, na transição para um novo general presidente, a economia brasileira estava exausta e com problemas graves associados ao fim de um ciclo econômico que tinha se expandido acima de seu potencial. Sob o peso de um choque externo, representado pelo aumento brutal dos preços do petróleo, a inflação saía de controle e nossas contas externas estavam próximas do colapso.

Nesta transição para a presidência do general Geisel, um outro grande nome dos economistas liberais do Brasil - Mario Henrique Simonsen - foi chamado para comandar a economia com a missão de colocá-la novamente nos trilhos da estabilidade macroeconômica. Mas Geisel não era Castelo Branco e Simonsen não chegava perto de Roberto Campos como estadista. Colocado diante de um plano econômico ortodoxo de ajustes nos desequilíbrios cíclicos que vivíamos, Geisel negou-se a aceitar uma recessão como caminho a ser trilhado. Conta a história que teria dito a seu Ministro da Fazenda: “ Por que no meu mandato? “

Simonsen cometeu então um erro gravíssimo ao aceitar as limitações estabelecidas por Geisel e o Brasil mergulhou em quase dez anos de crise inflacionária e que levaria ao fim do regime militar em 1984 com a eleição de Tancredo Neves para a Presidência da República.

Mas Tancredo Neves, político conservador e cauteloso, escolheu para assumir o Ministério da Fazenda seu sobrinho Francisco Dornelles. Dornelles tinha uma formação econômica liberal e muito ligado ao pensamento da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, de onde também tinha origem Mario Henrique Simonsen. E em uma destas armadilhas que a história prega a todos nós, a cartilha de Roberto Campos e Bulhões voltava a ser o norte da política econômica no governo civil de Tancredo Neves.

Mas a morte do presidente eleito e sua substituição por José Sarney criaram uma armadilha fatal para o segundo choque liberal da nossa história republicana. O velho político do Maranhão, guindado por acaso à presidência da República, seria a última pessoa a bancar o torniquete fiscal e monetário criado por Dornelles e sua turma de jovens economistas, todos com a faca entre os dentes para resgatar o nome de Mario Henrique Simonsen.

Uma pequena e interessante nota histórica é que Paulo Guedes foi convidado a fazer parte desta equipe, mas desistiu para iniciar um caminho solo no mercado financeiro.

Este novo choque liberal na economia durou apenas seis meses e abriu o caminho para o nascimento de outra escola de pensamento econômico, sem o radicalismo da anterior, e que se consolidaria como hegemônica por mais de 8 anos com o sucesso do Plano Real e a eleição de Fernando Henrique Cardoso.

Vivemos agora um ajuste entre o choque liberal radical, prometido por Paulo Guedes e sua equipe, e a dura e complexa realidade do funcionamento das instituições políticas de nosso país. Parece, visto de hoje, que o ministro entendeu a natureza deste conflito e se dispôs a abandonar a natureza radical de seu programa e adaptá-lo ao que é possível realizar.

Aliás, opção que várias gerações de economistas brasileiros foram obrigadas a fazer em seu tempo de comando da economia para deixar um legado positivo na busca de uma economia mais eficiente em nosso país. Como aconteceu entre 1964 e os dias de hoje.

*Luiz Carlos Mendonça de Barros, engenheiro e economista, é presidente do Conselho da Foton Brasil. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações.


Bruno Carazza: Procurando agulha no palheiro

Sistema eleitoral dificulta a seleção de bons quadros

‘Mamãe, não quero ser prefeito, pode ser que eu seja eleito e alguém pode querer me assassinar”. Não existem estatísticas oficiais sobre o número de assassinatos de políticos no Brasil, mas levantamentos realizados pela imprensa indicam que Raul Seixas tinha razão ao gravar Cowboy Fora da Lei em 1986.

No final do ano passado, reportagem de Wellington Ramalhoso no Uol indicava que, entre os prefeitos eleitos em 2016, pelo menos dez haviam sido mortos de modo violento durante o exercício do cargo - quase 0,2% do total, uma probabilidade nove vezes maior do que a de um brasileiro comum ter o mesmo fim. Maiá Menezes e Marcelo Remígio, em texto para O Globo de 23/12/2019, indicaram que, apenas no Estado do Rio de Janeiro, 25 políticos haviam sido assassinados desde 2014 - incluindo o caso mais famoso, da vereadora carioca Marielle Franco, morta em 2017 ao lado de seu motorista, Anderson Gomes.

O medo de amanhecer com a boca cheia de formigas é apenas um dos fatores que afastam da política muitos brasileiros bem preparados, com vontade de contribuir para a coletividade e dotados de boas ideias para melhorar a prestação de serviços pelo Estado. Por temerem seu “lado sujo”, muitos cidadãos acabam canalizando sua energia e sua disposição em servir para atividades de voluntariado, ONGs e movimentos sociais. Outros até tentam concorrer, mas as barreiras à entrada diminuem enormemente as chances de serem bem-sucedidos.

Pesquisa CNI/Ibope realizada em março de 2018 revelou que, apesar de descrente com as eleições, o eleitor brasileiro valorizava candidatos que, idealmente, conhecessem os problemas do país (89%) e possuíssem experiência em assuntos econômicos (77%), boa formação educacional (74%), bom relacionamento com os movimentos sociais (71%) e experiência profissional de sucesso (65%). Do ponto de vista das características pessoais, as mais apreciadas eram honestidade/ não mentir em campanha (87%), nunca ter se envolvido em casos de corrupção (84%), inspirar confiança (82%), ter pulso firme (78%) e ser sério/ ter postura (74%).

Os números acima contrastam com a historicamente baixa confiança da população no Congresso Nacional e nos partidos, e a avaliação ruim de seu desempenho nas últimas décadas. Supõe-se, portanto, que o sistema eleitoral não esteja sendo eficaz ao cumprir a sua missão de selecionar bons quadros para representar os anseios do cidadão brasileiro.

Esta é a última semana para a inscrição de candidatos para as eleições de 15 de novembro. Nas próximas semanas, teremos a difícil missão de escolher, entre centenas ou milhares, um indicado a prefeito e outro a vereador que sejam bem preparados para mudar a realidade social de nossa cidade. E muito provavelmente, ao nos depararmos com a lista de eleitos logo após a apuração, ficaremos com a sensação de que eles não nos representam.

Existem razões institucionais que levam a esse resultado insatisfatório. Para começar, o número muito elevado de candidatos eleva consideravelmente o custo de avaliar seus atributos e definir o voto. Em 2016, 498.302 pessoas batalharam por um lugar ao sol nas eleições nos mais de 5.500 municípios brasileiros (o que significa uma média de um postulante para cada 200 eleitores). Neste ano, com o fim das coligações para vereador, há a expectativa de que o número seja ainda mais elevado. Encontrar o melhor em meio a tantos aspirantes ao cargo é como encontrar uma agulha no palheiro.

Do ponto de vista de quem se propõe a disputar um cargo eletivo, diferenciar-se em meio a essa multidão exige investimentos pesados em publicidade, cabos eleitorais, redes sociais, corpo a corpo com eleitores. Personalidades já conhecidas da política, celebridades e donos de redutos bem definidos (como sindicalistas, líderes religiosos e militares) levam vantagem - assim como pretendentes ricos que dispõem de recursos para arcar com os altos custos.

Três invenções de nossa democracia, em vez de ajudar a nivelar o campo, acabam sendo inócuas ou até mesmo tornando o jogo mais difícil para o concorrente sem vínculos com a política tradicional.

De um lado, os partidos poderiam facilitar a escolha caso tivessem uma linha ideológica e programática bem definida e conhecida. Neste caso, as legendas serviriam como um primeiro filtro para o eleitor, que em seguida só precisaria selecionar, entre seus inscritos, o que melhor correspondesse ao perfil desejado, reduzindo o custo informacional. Porém, no Brasil são dezenas de partidos, e a maioria deles não diz nada à população. No passado dizíamos que os partidos se resumiam a uma sopa de letrinhas, mas eles espertamente estão trocando as siglas por nomes bonitos, mas que também dizem quase nada, como republicanos, democratas, cidadania, rede, patriotas ou novo…

O segundo instrumento que poderia melhorar as condições de competitividade é o horário gratuito no rádio e na TV. Embora essa medida ainda se mostre relevante para a disputa de cargos majoritários em algumas localidades (é verdade que com menor efetividade nestes tempos de TV fechada, streaming e internet), nos pleitos legislativos ele só serve para promover bizarrices.

Por fim, os bilionários fundos eleitoral e partidário, que poderiam suprir a carência de recursos da maioria dos competidores, acabam sendo mais um instrumento de concentração de poder nas eleições. Com a sua distribuição atribuída aos caciques partidários e sem critérios transparentes de alocação entre os candidatos, a maioria das legendas privilegia os amigos do rei (ou seus cônjuges, filhos e netos), reproduzindo feudos e dinastias.

O problema de seleção adversa da política brasileira precisa ser enfrentado com seriedade ao tratar de limites a candidaturas, tamanho dos distritos eleitorais, formas de escolha, redução drástica ou melhores critérios de distribuição dos recursos públicos de campanha e democracia partidária.

Sem eles, a cada dois anos continuaremos com a sensação cíclica de que política não é lugar para gente decente e capacitada para propor soluções para nossos imensos problemas sociais e econômicos.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Maria Cristina Fernandes: O discurso de Guedes aos intocáveis do Executivo

Ao dizer que os salários da alta administração são baixos, o ministro da Economia dá discurso a categorias aquinhoadas que aprofundam a desigualdade no serviço público

“Os salários da alta administração são baixos. Vejo aqui o ministro Bruno Dantas, que em qualquer banco pode ganhar US$ 4 milhões por ano. Vai ser difícil convencê-lo a ficar no TCU [Tribunal de Contas da União]. Ele vai receber muitas propostas. Já levaram o [Nelson] Jobim [ex-ministro do STF, hoje diretor do BTG Pactual]. Vão levar todo mundo…. Estou vendo aqui Ana Carla Abrão, que tentei manter mas foi abduzida pelo Santander. Tá ganhando cinco vezes mais do que ganharia aqui, certo?”.

Errado. Ana Carla Abrão, sócia da consultoria Oliver Wyman, corrigiu educadamente o ministro da Economia. Paulo Guedes entrou e saiu tão de supetão numa “live” promovida na semana passada pelo Instituto de Direito Público (IDP), do ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, que confundiu Ana Carla com Ana Paula Vescovi, ex-secretária do Tesouro e hoje economista-chefe do Santander.

O ministro da Economia, que não ouviu a preleção de nenhum dos outros participantes da “live”, nem ficou para o debate depois que acabou de falar, chegou mesmo a dizer que o funcionalismo tinha uma distribuição salarial “quase socialista”. Nos últimos meses, o ministro perdeu vários colaboradores, como o ex-secretário do Tesouro Mansueto de Almeida, hoje economista-chefe do BTG, e o ex-diretor da Secretaria Especial do Ministério da Economia Caio Megale, hoje economista-chefe da XP. A mágoa parece ter enviesado sua visão sobre o tema.

Mal Guedes desapareceu da tela, Ana Carla, uma das economistas de mais longeva militância pela reforma administrativa no país, tomou a palavra e analisou os males da desigualdade no serviço público que o ministro demostrara ali firme disposição em aumentar.

Ana Carla citou pesquisa do economista Ricardo Paes de Barros que, baseado em dados de salários públicos e privados entre 2001 e 2015, concluiu que o coeficiente de Gini (índice de concentração de renda) do setor privado havia caído 0,44 para 0,37. No mesmo período, o Gini do setor público permanecera quase estagnado, passando de 0,48 para 0,46.

O descasamento entre a desigualdade do setor privado e a do setor público aconteceu, principalmente, ao longo dos governos petistas, quando houve a recomposição salarial de carreiras, inclusive na elite do funcionalismo, como a Advocacia-Geral da União, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e a Receita Federal. Esse divórcio, que começou na administração Lula, foi preservado na gestão Temer e encontrou porto mais do que seguro sob Jair Bolsonaro.

O governo que acaba de enviar uma proposta de reforma administrativa com a qual pretende cortar R$ 300 bilhões da máquina pública em dez anos é o mesmo que mandou para o Congresso a regulamentação do bônus de produtividade da Receita e resistiu a limitar o da AGU e da PGFN ao teto constitucional.

Aprovado pelo Congresso no limbo entre os ex-presidentes Dilma Rousseff e Michel Temer, o bônus da Receita foi abraçado pelo ministro Paulo Guedes a despeito de contestações por todos os lados. O bônus já foi contestado pelo Tribunal de Contas da União tanto pela inexistência de previsão orçamentária quanto pela extensão a aposentados, condição em que, por óbvio, o funcionário deixa de ser produtivo para a instituição.

O acórdão do TCU não impediu o governo de enviar para o Congresso uma medida provisória (899) em que embutiu a regulamentação do bônus. A MP foi aprovada pela Câmara e, no Senado, ficou sem o jabuti sob a justificativa de que o bônus poderia levar a um acréscimo de até 80% nos vencimentos de mais de 15 mil funcionários. Salários de R$ 30 mil poderiam vir a ser acrescidos de mais R$ 21 mil, o que estoura o teto constitucional de R$ 39 mil

Enquanto não é regulamentado, os funcionários da Receita continuam a receber “apenas” R$ 3 mil de acréscimo. Desde que começou a ser pago, em 2018, o bônus tem levado a questionamentos sobre a procedência das autuações da Receita, uma vez que, quanto maior o valor cobrado, maior seria a vantagem auferida pelo auditor.

Com o discurso da meritocracia com o qual defende a reforma administrativa, Paulo Guedes pretende aliar o bônus por eficiência da Receita à sua visão de Estado. Sugere convergência ao que é, sobretudo, uma concessão a servidores cujas greves, como a de 2018, paralisou a arrecadação e implantou o caos nas aduanas.

O mesmo se aplica aos honorários de sucumbência que, previstos desde a aprovação do novo Código de Processo Civil, em 2016, acrescentaram, por mês, a mais de 12 mil advogados da União e procuradores da Fazenda, uma média de R$ 6 mil a salários que chegam a R$ 27 mil.

Os honorários reproduzem, para o serviço público, a lógica inerente à advocacia privada, que cobra percentuais sobre causas ganhas. O benefício é de mão única. Não se aplica, com supressão de vencimentos, quando a União perde a causa e é obrigada a pagar à parte que a acionou na Justiça.

No ano passado, uma emenda do Novo à Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) fez com que os honorários advocatícios se somassem aos vencimentos dos funcionários para efeito de aplicação do teto constitucional. O presidente Jair Bolsonaro resistiu, mas o Congresso driblou a indisposição do governo e o dispositivo limitante passou a valer a partir de janeiro. Como a LDO só tem validade de um ano, porém, a limitação acaba em dezembro.

Os penduricalhos dessas categorias foram instituídos numa época de baixo desemprego e forte valorização das carreiras públicas nos governos petistas, quando muitos servidores deixaram seus cargos atraídos por uma vaga no Ministério Público ou no Judiciário. A paralisação dos concursos públicos, o congelamento de salários e, principalmente, a crise no mercado de trabalho fez sumir as circunstâncias que, um dia, serviram de justicativa para os penduricalhos.

A proposta do governo os contorna, bem como deixa de lado os vencimentos de carreiras sobre as quais o Executivo pode legislar mas não o faz, como o Ministério Público - graças, em grande parte, ao crédito que o Procurador-Geral da República tem hoje no Palácio do Planalto - e a magistratura.

O argumento de que o Executivo não pode se debruçar sobre essas carreiras não se sustenta. O governo não teve o mesmo “pudor”, diz o consultor legislativo e professor da FGV, Luiz Alberto dos Santos, quando enviou a reforma da Previdência que alterou direitos previdenciários de servidores e magistrados, embora tenha preservado - e ampliado - as prerrogativas dos militares.

Foi por pressão de procuradores e magistrados que o Congresso congelou a proposta que tramita desde 2016 e regulamenta a submissão de todos os servidores públicos do país, de todos os Poderes e entes da Federação, ao teto constitucional dos vencimentos dos ministros do Supremo.

Já há, no entanto, gestões, no entorno do presidente, para que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, coloque em pauta o projeto que acaba com os penduricalhos gerais da nação. A iniciativa tende a indispor o governo e o Congresso com corporações poderosas. No Judiciário, por exemplo, o novo presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, Luiz Fux, um dos dois únicos ministros da Corte que percorreu toda a carreira da magistratura (a outra é a ministra Rosa Weber), foi um baluarte na defesa do auxílio-moradia.

A magistratura, de acordo com Ana Carla Abrão, já rompeu o limite de gastos estabelecidos pelo Orçamento para o Judiciário e, apesar de ter salários médios que ultrapassam o dos ministros do Supremo, não sinaliza disposição de abrir mão de seus benefícios extra-teto.

Nem mesmo os ministros sem vínculos com a corporação, como Dias Toffoli, são capazes de impor uma agenda de enxugamento. No apagar das luzes de sua gestão no colegiado, Toffoli presidiu a sessão que aprovou um benefício equivalente a um terço dos vencimentos dos juízes para aqueles que forem responsáveis por mais de uma comarca. De acordo com o CNJ, a remuneração média dos magistrados brasileiros é de R$ 50 mil, 28% a mais do que o teto constitucional.

Relatora da comissão por onde tramitou a proposta que poda os benefícios extra-teto, a senadora Katia Abreu (MDB-TO) atribui a criação de penduricalhos à fixação de um salário alto para o ingresso em algumas carreiras públicas. A rápida progressão faria com que os funcionários atinjam o topo da remuneração com muitos anos de serviço pela frente, estimulando a busca por indenizações extraordinárias..

Se a desigualdade no serviço público é ainda maior do que aquela do setor privado, os penduricalhos puxam ainda mais o desequilíbrio na Federação. Nas contas de Katia Abreu, dos 11,4 milhões de servidores públicos do país, 57% (6,5 milhões) estão nos municípios, 32% (3,6 milhões) estão nos Estados e 11% (1,1 milhão) estão na União.

Esses servidores consomem R$ 928 bilhões em recursos, sendo que cada instância da Federação abocanha, grosso modo, um terço desse valor. Nas contas da senadora, os servidores municipais têm salários equivalentes aos da iniciativa privada. Os estaduais ganham de 35% a 40% a mais e aqueles da União têm vencimentos 98% superiores aos daquelas funções exercidas no mercado privado.

Todos, a princípio, concordam com a submissão ao teto constitucional, mas unicamente para consumo externo. Se presidente, equipe econômica e Congresso estivessem, de fato, empenhados em "não tirar dos mais pobres para dar para os paupérrimos" já teriam encarado a trama dos privilégios e prerrogativas das carreiras mais aquinhoadas da República.


Ribamar Oliveira: Bolsonaro disse não a Guedes duas vezes

Resta a questão de saber por que o ministro voltou a insistir na proposta dos 3 Ds, mesmo depois de ela ter sido vetada pelo presidente

A decisão do presidente Jair Bolsonaro de não aceitar a proposta de deixar sem correção os benefícios previdenciários e assistenciais, manifestada de forma agressiva em rede social na terça-feira, terá consequências importantes na política fiscal do governo. Bolsonaro rejeitou, pela segunda vez em menos de um ano, a proposta dos 3 Ds do seu ministro da Economia, Paulo Guedes, que deseja fazer a desindexação das despesas orçamentárias, a desvinculação das receitas e desobrigar o governo a realizar gasto.

Em novembro de 2019, o governo encaminhou ao Congresso Nacional o que chamou de Plano Mais Brasil, constituído de duas PECs que tratam de novas regras fiscais. Guedes tentou incluir nelas a desindexação do salário mínimo e dos benefícios previdenciários e assistenciais. O piso salarial e os benefícios não teriam correção por dois anos, o que abriria espaço no teto de gastos da União para mais investimentos públicos.

Bolsonaro foi contra a medida, como o próprio ministro da Economia revelou na época. Por isso, os textos da PEC Emergencial (186/2019) e da PEC do Pacto Federativo (188/2019) estabelecem, explicitamente, que será preservado o poder aquisitivo do salário mínimo.

Agora, o ministro e sua equipe voltaram a insistir na tese dos 3 Ds, negociando diretamente com o relator da PEC 188, senador Márcio Bittar (MDB-AC), para incluir na proposta a desindexação dos benefícios previdenciários, pelo mesmo prazo de dois anos, que tinha sido apresentada ao presidente Bolsonaro em novembro do ano passado e rejeitada.

A diferença é que, na nova versão dos 3 Ds, a desindexação dos benefícios previdenciários foi apresentada como uma maneira de garantir espaço no teto de gastos para o novo programa social do governo Bolsonaro, chamado de Renda Brasil - uma espécie de Bolsa Família turbinado.

É impressionante que uma autoridade do Ministério da Economia tenha proposto a criação de uma nova despesa obrigatória de caráter continuado (o Renda Brasil) mesmo com o governo tendo que reduzir, todo ano, os investimentos públicos para manter o teto de gastos em pé, pois as despesas obrigatórias não param de aumentar.

Originalmente, o objetivo dos 3 Ds era abrir espaço no Orçamento da União para ampliar os investimentos e sustentar o teto de gastos por mais alguns anos. Fazer a desindexação dos benefícios previdenciários para criar nova despesa obrigatória é uma contradição em si.

Resta a questão de saber por que o ministro Paulo Guedes voltou a insistir na proposta dos 3 Ds, mesmo depois de ela ter sido vetada pelo presidente Bolsonaro no ano passado. A explicação mais plausível é que o ministro da Economia não vê ganhos de espaço no teto de gastos apenas com as medidas de ajuste fiscal que estão definidas na PEC 188. Elas recaem, basicamente, sobre os servidores públicos.

Se as despesas obrigatórias ultrapassarem 95% do total das despesas primárias do ano (não incluem o pagamento de juros e as amortizações da dívida), nenhum dos poderes da República poderá conceder aumento de salário, reajuste ou qualquer tipo de vantagem aos servidores, criar cargos, alterar estrutura de carreira, realizar concurso público, criar ou majorar auxílio e criar qualquer despesa obrigatória, entre outras medidas, de acordo com a PEC 188.

Dito de forma mais direta, os representantes do Judiciário teriam que adotar as medidas de ajuste da PEC 188, pois o teto de gasto é individualizado por Poder e por órgão. As medidas restritivas, como a não concessão de reajuste ou qualquer outra vantagem se aplicariam também a juízes, procuradores e militares. Ou seja, não apenas os servidores civis dos três Poderes seriam penalizados. É fácil entender a dificuldade política para a aprovação da PEC.

A decisão de Bolsonaro ao rejeitar a ideia de não corrigir os benefícios previdenciários terá, portanto, impacto direto sobre o teto de gastos. Aprovada a PEC 188, com o seu texto original, o presidente terá que impor sacrifícios aos servidores, incluindo os militares, se quiser preservar o teto de gastos. As medidas terão que ser tomadas com urgência, pois, pelos cálculos de quase todos os analistas, para manter o teto de gastos já em 2022 as despesas discricionárias (investimento e custeio da máquina administrativa) terão que ser cortadas ao nível de paralisia dos serviços públicos.

Há pessoas otimistas acreditando que, mesmo com a oposição de Bolsonaro, o Congresso poderá manter a proposta da desindexação dos benefícios previdenciários no novo texto da PEC 188, que deverá ser apresentado pelo relator Márcio Bittar. É difícil acreditar que os senadores e deputados possam ser mais realistas do que o rei, ou seja, que aceitem o ônus de uma medida impopular, mesmo contrariando o presidente da República. Tudo isso, às vésperas das eleições municipais.

De olho na inflação

O Ministério da Economia alterou algumas de suas previsões para a economia neste ano. De acordo com o Boletim MacroFiscal, da Secretaria de Política Econômica (SPE), a previsão para a inflação medida pelo INPC subiu de 2,09% para 2,35%. Este dado é de grande relevância para as despesas públicas, pois o INPC corrige o salário mínimo, que é a base dos benefícios previdenciários e assistenciais. Corrige também os benefícios previdenciários acima do piso.

O anexo de riscos fiscais do Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) para 2021 estima que para cada aumento de 0,1 ponto percentual do INPC, a despesa da União sobe R$ 768,3 milhões. Como a previsão da SPE para o INPC subiu 0,26 ponto percentual, a despesa da União no próximo ano foi elevada em mais de R$ 1,9 bilhão.

É um acréscimo significativo, principalmente porque as despesas orçamentárias para 2021 estão no limite do teto. Isto significa que, se a previsão da SPE se confirmar, o Congresso terá que cortar ainda mais o investimento e o custeio programado no Orçamento do próximo ano para manter as despesas dentro do teto.


Maria Cristina Fernandes: Bolsonaro terceiriza o apuro em que se meteu

Presidente esmera-se no seu melhor papel, o de confundir

O presidente da República esmera-se no seu melhor papel, o de quem, ao mesmo tempo, faz e desfaz. Diz e desdiz. Confunde e embaralha para reinar sobre o apuro fiscal em que se meteu. Sempre foi assim e não deixará de ser enquanto tiver um Congresso subserviente a esta bipolaridade.

Em 48 horas, Jair Bolsonaro tomou uma decisão contra bem aquinhoados (o veto da anistia fiscal às igrejas isentas), recomendando ao Congresso que a derrubasse, gravou vídeo dando cartão vermelho à turma “sem-coração” do Ministério da Economia e dizendo que desistira de um programa de renda básica em favor do Bolsa-Família. Por fim, ressuscitou o Renda Brasil, pediu que o relator o incluísse no Orçamento e elogiou o ministro Paulo Guedes e sua equipe.

Em qual desses Bolsonaros se deve acreditar? Em nenhum e em todos eles. Como não sabe como fazer caber o Brasil dentro do PIB e não aceita arcar com as consequências das alternativas que lhe são apresentadas, o presidente se compraz em terceirizar uma responsabilidade que é sua.
Ao acender o fogareiro para o ministro da Economia, não significa que queira fritá-lo. Ao apagá-lo não pretende salvá-lo. O vaivém é inócuo. Para a agenda que move suas obsessões, Paulo Guedes hoje tem um papel decorativo. É, porém, mais útil do que nunca a um presidente que precisa se mostrar em guerra contra seu próprio governo.

E não apenas contra Guedes. Por um lado, Bolsonaro precisa dosar as ambições dos parlamentares aderentes para mantê-los como sócios de sua recondução em 2022. Por outro lado, tenta preservar o apoio daqueles que apostam na agenda do ministro, não somente para conter a pressão sobre a dívida pública, mas também para evitar que ponham um pé em outra canoa precipitadamente. Por tudo isso, Paulo Guedes pode continuar a fingir ser quem é.

É claro que o presidente não se move apenas pela intuição. Do monitoramento das redes sociais, conclui-se, por exemplo, que o deputado que acorda e vai dormir falando de auxílio emergencial, André Janones (Avante-MG), teve 55 milhões de interações em suas redes sociais nos últimos 30 dias (levantamento da Bites), mais do que o próprio Bolsonaro (36 milhões). Por isso, o presidente avança e recua no tema para não perder o bonde.

Ao jogar a viabilização de um programa de renda mínima para o colo do Congresso, Bolsonaro parece confiar na agenda fiscalista do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que inibe uma alternativa fura-teto. Parece acreditar que se não for viabilizada uma saída orçamentária para o programa, o problema poderá ser debitado na conta do Congresso. Ou não.

Assim como os louros do auxílio emergencial alavancam a popularidade presidencial, sua redução, com posterior interrupção, também podem vir a ser debitados na sua conta. Por isso, a estratégia do presidente ainda está longe de lhe abrir as portas do paraíso, apesar de acenar àqueles que vão ficar sem auxílio emergencial ou renda básica, com o inferno.

A criação de novos impostos, como insiste o ministro Paulo Guedes, esbarra no Congresso. Por isso, já há quem se mobilize, no entorno do gabinete presidencial, em buscar alternativas para encorpar o Bolsa-Família. Depois do vídeo, um colaborador começou a fazer as contas do quanto o governo poderia abrir de espaço fiscal se passasse um pente fino no custeio (contratos de aluguel e mão-de-obra terceirizada, diárias, combustível, passagens aéreas, alimentação, uniforme e manutenção).

Um corte de 30% nos contratos de custeio, desde que extensivo a todos os Poderes, proporcionaria uma economia próxima a dois dígitos com a qual se viabilizaria um Bolsa Família mais robusto. Não lhe faltam, porém, obstáculos. Desde a oposição de grandes usuários deste custeio, como as Forças Armadas, até intermediários desses contratos que hoje estão no time de líderes do governo no Congresso Nacional.

O relator do Orçamento, que recebeu a incumbência de arrumar um lugar para um programa de renda básica, é o mesmo da proposta de emenda constitucional que estabelece um gatilho quando os gastos atingirem 85% da receita. Uma alternativa ao corte linear seria a tesoura nos penduricalhos, extensiva a todos os Poderes.

Estivesse disposto a encará-la, porém, Bolsonaro a teria incluído na proposta de reforma administrativa. O medo de paralisação de corporações que movem a máquina do Estado, como a Receita Federal, e contas que o presidente e sua família têm a ajustar com a justiça o afugentam da pauta.

Mais fácil é fazer economia em cima de serviços cujo dano é tão extenso quanto inofensivo. Tome-se, por exemplo, a paralisia da perícia para a concessão de benefícios do INSS por conta do coronavírus. A regulamentação existente da telemedicina é suficiente para que a perícia seja realizada.

O álibi da pandemia, no entanto, faz com que o governo represe silenciosamente a concessão de benefícios. O passivo já atingiu dois milhões de pessoas este ano, entre aposentados, doentes e acidentados, os mesmos que, Bolsonaro, no vídeo, disse que “jamais” prejudicaria, na ilusão de que a bomba fiscal possa ser retardada.

A resistência a medidas do gênero “choque de gestão” empurra, cada vez mais, Bolsonaro para o papel em que ele parece se sentir mais confortável na disputa de 2022, o de “capitão dos pobres”. Capitaneia uma máquina pública carcomida e desigual, mas aposta que nenhum dos adversários que virão pelo meio, é capaz de encabeçar uma proposta viável, eleitoral e politicamente, de reforma do Estado que venha a desafiá-lo. Parece acreditar que seja mais fácil se acomodar no lugar que ainda pertence ao PT, como provedor do mais amplo e permanente programa de renda do país.

Ainda não se sabe com que dinheiro pretende fazer isso. Por enquanto, com o Pantanal em chamas, uma imagem internacional esfarinhada, um arroz pelos olhos da cara e milhões de brasileiros com a vida à deriva em 2021, resta ao presidente confundir - sem remediar.


Cartão bolsa família | Foto: Agência Brasil

Maria Cristina Fernandes: Bolsonaro joga para substituir o PT e isolar ministro da Economia

Não se trata mais de mitigar o benefício que ele criou por conta da pandemia, mas de manter o programa petista, de preferência com um aumento no valor ou um alargamento da base de beneficiários

Ao rifar o Renda Brasil, dizer que vai manter o Bolsa Família e descartar o congelamento de aposentadorias ou salário mínimo, o presidente da República, numa jogada, deslocou dois de seus obstáculos. Goste-se ou não, marcou em cima do lance. O primeiro é o desgaste advindo da redução do auxílio emergencial de R$ 600 para R$ 300 até janeiro e de quanto mais ainda não se sabe a partir de janeiro. Ao manter o Bolsa Família, Jair Bolsonaro dribla essa redução.

Não se trata mais de mitigar o benefício que ele criou por causa da pandemia, mas de manter o programa petista, de preferência com um aumento no valor ou um alargamento de sua base de beneficiários. Hoje o valor médio pago ao Bolsa Família é de R$ 190, um programa melhor e mais bem desenhado que o Renda Brasil. Mantê-lo, portanto, é uma decisão acertada. Ao tomá-la, o presidente converge com recomendações insuspeitas como a da Frente Brasileira pela Renda Básica. Mas ao manter o programa Bolsonaro vai além.

Sinaliza que seu objetivo não é mais competir com o PT, mas substituir o partido numa disputa que ele parece acreditar que vai se acirrar mais com adversários centristas. A segunda jogada decorre da primeira. Para ser capaz de substituir o PT como a opção preferencial dos mais pobres, a Bolsonaro não resta outra saída senão desautorizar as gestões do Ministério da Economia em suas gestões para manter o teto furando o piso.

Era isso que estava escrito nas manchetes de jornal lidas pelo presidente no vídeo divulgado em suas redes sociais na manhã desta terça-feira: congelamento de aposentadorias e do salário mínimo, além da redução do Benefício de Prestação Continuada.

O presidente repetiu aquilo que já havia dito quando a mesma equipe econômica sugeriu o fim do abono salarial. Não pretende tirar dos pobres para dar para os miseráveis. Ninguém sabe ainda como o presidente vai fazer caber tudo isso no Orçamento sem furar o teto de gastos, especialmente se quiser superar o PT com um Bolsa Família mais encorpado.

O que ficou claro com o vídeo do presidente foi sua estratégia clara de sair da encruzilhada em que se encontra plantando nela o ministro Paulo Guedes e o maior partido de oposição do país. Pretende sair dela se livrando das convicções do ministro e abraçando bandeiras do partido contra o qual ascendeu à Presidência. Guedes e o PT certamente tomarão rumos distintos, mas, no momento, estão paralisados pelo enxadrista que hoje ocupa o Palácio do Planalto.


Andrea Jubé: Dom Quixote contra a reforma tributária

Há quase 500 anos, Cervantes opôs os livros às armas

Em movimentos paralelos, quem sabe, coordenados, governos estaduais e federal editaram recentemente leis, decretos e portarias para facilitar o acesso às armas. A despeito da crise econômica aguda, alguns Estados até zeraram impostos sobre a compra de escopetas, carabinas e afins.

Em impressionante sintonia, deputados e senadores preparam-se, em outra frente, para instituir a cobrança de impostos sobre os livros, o que dificultará o já tortuoso acesso à leitura no Brasil.

Essa perversa sincronicidade atualiza e transporta para a era Bolsonaro um debate levantado pelo escritor Miguel de Cervantes, no início do século XVII, sobre o valor das armas e dos livros em uma sociedade. Simultaneamente, coloca à prova os pilares sobre os quais essa sociedade se edifica, ou oscila.

No vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, o presidente Jair Bolsonaro disse que gostaria que todo “o povo se arme”. Em nenhum momento de sua gestão ele manifestou o desejo de representar uma população instruída, com amplo acesso à literatura e outras artes, embora um nível sofisticado de leitura seja atributo de países desenvolvidos.

Erra quem se reporta aos livros como inutilidades, ou “coisa da elite”. A leitura é um dos critérios do Pisa, exame internacional aplicado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), clube dos países ricos no qual o Brasil sonha ingressar.

No quesito leitura, o último relatório do Pisa, divulgado há nove meses, afirmou que a performance média dos brasileiros “parece flutuar em uma tendência horizontal”, ou seja, estagnou. Apenas 2% dos estudantes brasileiros alcançou nível alto de proficiência.

Os brasileiros pontuaram 413 em leitura, onde o número 500 é referência. Os chineses pontuaram 555, os canadenses, 520, e os americanos, 505. Os chilenos registraram 452 pontos, para citar um vizinho.

Mesmo diante desse desempenho, na votação da reforma tributária, o Congresso caminha para taxar em 12% a receita bruta das editoras.

O ministro Paulo Guedes disse que livro é produto da elite. Falso, já que a pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”, o mais abalizado levantamento sobre o tema, divulgado na semana passada, mostrou que a maior queda no nível de leitura ocorreu entre os mais ricos e escolarizados: 12% contra 4% na média nacional.

Uma leitura míope de dois capítulos do clássico “Dom Quixote de la Mancha” entusiasmaria, a princípio, os devotos da bandeira armamentista. Nos capítulos 37 e 38, o engenhoso fidalgo sustenta a primazia das armas sobre as letras: “Tirem da minha frente os que afirmarem que as letras levam vantagem sobre as armas, pois direi a eles que não sabem o que dizem”.

Segundo Dom Quixote, os partidários das letras alegam que as armas não se sustentam sem elas, porque a guerra também tem suas leis e está sujeita a elas, sendo que leis são o território das letras. Os armamentistas retrucam que as leis não se sustentam sem as armas, porque estas defendem as repúblicas, conservam os reinos, protegem as cidades, limpam os mares de piratas.

A arenga prolonga-se num fluxo de argumentos incompatível com o espaço limitado da coluna. Mas o que se pretende aqui é explorar a espantosa atualidade de um debate provocado por Cervantes há quase meio milênio (a primeira edição de “Dom Quixote” remonta a 1605), diante de uma conjuntura nacional em que se articula a flexibilização do acesso às armas, em contraponto ao aumento do preço dos livros.

“Esse momento do Brasil mostra o desprezo pelo livro e o valor das armas, mas o valor da arma de fogo, e o da justiça que cada um faz pelo impulso, pelo uso indiscriminado das armas, sem nenhum princípio de direitos humanos”, critica a professora Maria Augusta da Costa Vieira, titular de literatura espanhola da Faculdade de Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP).

Especialista em Cervantes, a professora Maria Augusta ressalva que é preciso situar historicamente o que Dom Quixote defendia ao invocar a primazia das armas sobre as letras. Na tradição medieval, o modelo do herói conciliava a força e a sabedoria, e suas armas eram a espada e a lança, manejadas com a força do braço.

Maria Augusta sublinha que Dom Quixote tinha pavor de armas de fogo, introduzidas nas guerras no século XVI, em que Cervantes atuou. “Quixote era um leitor inveterado, tudo o que ele fez na vida foi ler. Ele defende armas que enaltecem o valor do guerreiro, e não aquelas que podem destuir o inimigo apertando um dedo, e nada mais”.

A professora acrescenta que pode haver também uma crítica velada do próprio Cervantes às armas de fogo, porque o escritor foi atingido por uma bala na Batalha de Lepanto, em 1571, que lhe tirou os movimentos da mão esquerda. Foi com uma mão imobilizada que Cervantes escreveu as mil páginas de uma das obras fundadoras do romance moderno.

Por isso, é revelador que, ao fim do capítulo 38, o cavaleiro andante condene as armas de fogo, e ao mesmo tempo, exalte o poder de sua lança: “abençoados sejam aqueles séculos que careceram da espantosa fúria desses instrumentos endemoniados de artilharia”.

Nesse trecho Quixote afirma que a artilharia de fogo “permitiu que um braço infame e covarde tire a vida de um cavaleiro corajoso e que, sem que se saiba como ou vinda de onde, chegue uma bala perdida”. Concluiu: “Me deixa receoso pensar que a pólvora e o chumbo poderão me impedir de me tornar ilustre e famoso pelo valor de meu braço e pelo fio de minha espada”.

Maria Augusta alerta que o discurso de Dom Quixote sobre armas e letras não pode ser interpretado sem uma visão ampla, no contexto do personagem, até porque contém uma dose da reconhecida ironia cervantina.

“Dom Quixote é a encarnação dos maiores valores humanos que a gente reconhece, como o amor, a verdade, a fé e a justiça. Ele era um humanista, no sentido pleno do termo”, arrematou.


Gustavo Loyola: Bancos Centrais não operam milagres

Não se pode ter a vã ilusão de que juros baixos por longo período seja a receita certa para o crescimento econômico

Em sua última reunião, o Comitê de Política Monetária do Banco Central colocou a taxa Selic em seu mais baixo patamar histórico - 2% ao ano - e ao mesmo tempo, como “forward guidance”, sinalizou para a manutenção da política de estímulo monetária pelo menos até o final do ano de 2022. Contudo, por mais que as ações da autoridade monetária afetem o comportamento da demanda agregada no curto prazo, seria equivocado contar com os juros baixos como instrumento para elevar de modo sustentado a taxa de crescimento da economia brasileira nos próximos anos. Quando muito, a política monetária expansionista facilitará a recuperação cíclica da economia no pós-pandemia.

De início, deve ser registrado que ter os bancos centrais como pilares do combate aos efeitos econômicos da pandemia foi uma tendência global que abrangeu não apenas as economias maduras como também as emergentes. Não poderia ter sido diferente. A crise sanitária criou um formidável “gap” entre as receitas e despesas operacionais das empresas e provocou uma queda abrupta e substancial na renda disponível das famílias.

No curto prazo, o alívio passaria necessariamente, como de fato passou, pela expansão do crédito para os agentes econômicos de modo a lhes permitirem enfrentar a fase mais aguda da crise, quando a necessidade do distanciamento social enfraqueceu a atividade econômica de maneira substancial. Coube aos bancos centrais, nesse contexto, o papel de prover a necessária liquidez aos mercados, por meio da expansão de seus balanços, entre outras medidas.

Contudo, igualmente como tendência global, os bancos centrais não estiveram solitários na tarefa de enfrentamento da crise. A política fiscal também foi largamente utilizada, por meio de programas de transferência direta de renda para as famílias e empresas, alívio de impostos e garantias em operações de crédito. Aqui no Brasil, também não foi diferente, tendo o Tesouro Nacional praticado uma política fortemente expansionista, que deve elevar o déficit primário de 0,9% do PIB em 2019 para quase 10% do PIB em 2020, segundo projeções de mercado.

Como mencionamos numa coluna anterior, o esforço fiscal no Brasil deixou as contas públicas extremamente vulneráveis, pelo crescimento da dívida pública para quase 100% do PIB. Tal fato indica a necessidade de contenção fiscal nos próximos anos, de maneira a recuperar o equilíbrio das contas primárias e afastar o risco de insustentabilidade do endividamento público. Daí a necessidade da preservação das regras fiscais - como o teto constitucional de gastos - e simultâneo esforço de reforma em várias frentes para reduzir a rigidez orçamentária, de forma a viabilizar ao longo do próximo quinquênio a restauração da saúde no campo das finanças públicas.

As implicações do atual estado sofrível das contas públicas para a política monetária são de várias naturezas. De um lado, a necessidade da prática de uma política fiscal contracionista, ainda que gradualista, nos próximos anos, coloca sobre os ombros da política monetária o papel solitário de estimular a demanda agregada, com vistas a fechar o hiato do produto que se formou os últimos anos com as crises recessivas de 2015-2016 e 2020.

De outro, o risco associado à precariedade fiscal impõe um limite para as quedas das taxas de juros de longo prazo, tendo em vista o prêmio de risco exigido pelos credores da dívida pública. Aqui se tem a velha questão da dificuldade, ou mesmo incapacidade, de os bancos centrais afetarem os juros de longo prazo, o que cinge sua atuação à região curta da curva de juros. Portanto, a própria efetividade da política monetária é amortecida pela situação fiscal.

Ademais, no caso de o Banco Central ter que elevar a taxa de juros, em aderência ao arcabouço do regime de metas para inflação, pode ressurgir o temor da ocorrência de uma situação de dominância fiscal, como ocorreu brevemente no segundo semestre de 2015, caso paradoxal em que o aperto monetário faz piorar as expectativas inflacionárias.

Desse modo, a manutenção dos juros baixos depende da preservação da responsabilidade fiscal, além, é claro, da credibilidade do Banco Central construída nos últimos anos no bojo do regime de metas para inflação.

Porém, mesmo que as condições apontadas no parágrafo anterior prevaleçam nos próximos anos, o crescimento mais acelerado e sustentado da economia brasileira não estará assegurado. Como aponta a teoria econômica consagrada, o crescimento da produtividade é que, em ampla medida, determina a capacidade de crescimento de uma economia no longo prazo.

Obviamente, a contribuição dos bancos centrais não é desprezível nesse particular, pois cabe a eles assegurar a estabilidade da moeda que é um dos pilares essenciais para o bom funcionamento da economia. Contudo, não se pode ter a vã ilusão de que a manutenção de juros baixos pelo BC por longo período seja a receita certa para o crescimento econômico. Esse tipo de ilusão serve apenas para diminuir o apoio da sociedade à imprescindível agenda de reformas que conduza à aceleração do crescimento da produtividade no país.

Gustavo Loyola, doutor em Economia pela EPGE/FGV, ex-presidente do Banco Central, é sócio-diretor da Tendências Consultoria Integrada, em São Paulo


Valor: 'Não há futuro com Trump', diz Jeffrey Sachs

Para Jeffrey Sachs, eventual derrota do “pior presidente da história” dos EUA interromperia um ciclo de ódio, mentira e risco para o mundo

Por Ricardo Lessa | Valor Econômico

“A desigualdade é uma das razões pelas quais não funcionamos direito como país. É por isso que temos que voltar a uma maior normalidade na política”, diz Jeffrey Sachs

SÃO PAULO - “Vigarista”, “irresponsável”, “trapaceiro”, “desequilibrado mental”, “fraudulento”, “mentiroso”, “despreparado”. Quase não faltam adjetivos no vocabulário do economista Jeffrey Sachs, Ph.D. em Harvard, para dedicar ao presidente dos Estados Unidos, o republicano Donald Trump. Diretor do Centro para o Desenvolvimento Sustentável na Universidade Columbia, Sachs considera difícil pensar em qualquer futuro para o planeta, antes que o presidente americano deixe o poder.

Conselheiro de Bernie Sanders, que disputou a indicação à Presidência pelo Partido Democrata, Sachs, de 65 anos, atribui a classificação de extremista do senador ao exagero dos meios de comunicação que apoiam Trump, “que querem meter medo nas pessoas, divulgam mentiras e incitam o ódio”.

Para o economista, consultor-sênior desde 2001 do secretariado-geral da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável, as eleições de novembro são cruciais porque “os Estados Unidos são um país muito importante e também muito perigoso, em termos dos efeitos para o resto do mundo”.

O fracasso no combate à pandemia, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil se deve, segundo Sachs, à desigualdade: “Temos várias subnações e, quando um líder é divisionista, joga um grupo contra outro”.

Na entrevista a seguir, o economista que já foi qualificado como um dos três mais influentes do mundo pela revista “The Economist”, autor de livros como “O Fim da Pobreza” e “A Era do Desenvolvimento Sustentável”, traça outros paralelos entre os Estados Unidos e o Brasil.

Valor: O senhor imagina que o mundo possa ter alguma mudança depois da pandemia?

Jeffrey Sachs: Pode, porque há mais gente decente do que vigaristas neste mundo. Assim, Trump, por exemplo, que é uma pessoa absolutamente horrível e tem um comportamento horroroso, mentiroso, um trapaceiro, uma fraude, tem o apoio de um terço do eleitorado americano. Isso é muito triste. É gente muito ingênua. E Trump tenta apelar para o ódio deles. Especialmente contra os negros. Mas ele não tem a maioria o apoiando. Por outro lado, ele é um tipo traiçoeiro, que se envolve em fraudes e trapaças. Não é fácil tirá-lo do poder. Vamos ter uma grande eleição dentro de pouco tempo, em novembro. Muito crítica, crucial. Muitos já disseram nos últimos dias, e é importante pensar nisso, que a democracia nos Estados Unidos está em risco.

Valor: É possível imaginar um futuro antes de passar pela eleição de novembro?

Sachs: É difícil imaginar ir para frente com esse homem ainda na Casa Branca. Porque é uma posição muito poderosa. Provavelmente mais ainda do que no Brasil. Trump governa por decretos. Eu não sei em quantos lugares na nossa legislação há essa regra que permite essas medidas de emergência. É um tipo de ditadura entre eleições. Porque Trump assina seguidas “executive orders” [equivalentes a decretos], que não submete ao Congresso. Isso é realmente chocante: tanto poder concentrado num homem só. É como se os Estados Unidos fossem um império, e o poder imperial fosse para uma só pessoa.

Valor: Isso é uma brecha na Constituição americana?

Sachs: Se eu fosse reescrever a nossa Constituição, iria para o parlamentarismo. Não para o presidencialismo. Porque um primeiro-ministro, como Trump ou Bolsonaro, já teria sido afastado por voto de desconfiança do Parlamento há muito tempo. Como presidentes, eles têm mais poderes. Mas acho que Trump tem mais poder do que Bolsonaro. Porque Bolsonaro ainda tem que ir ao Congresso algumas vezes. Enquanto Trump só assina “executive orders”. É um sistema terrível. Presidencialismo é um sistema ruim de início.

Valor: A desigualdade social é uma semelhança entre os dois países. O número de óbitos em relação à população na pandemia também é bem próximo. O senhor relaciona um fato ao outro?

Sachs: Sim, uma das principais razões pelas quais Brasil e Estados Unidos foram tão horrivelmente no combate à pandemia foi que os dois países são muito desiguais. Brasil, um dos mais desiguais no mundo, e Estados Unidos, o mais desigual entre os países ricos. Há tantas subnações diferentes dentro dos Estados Unidos e no Brasil. Quando tem um homem de ódio no poder, isso cria maiores divisões entre os grupos. A desigualdade é uma das razões pelas quais não funcionamos direito como país. É por isso que temos que voltar a uma maior normalidade na política. Com uma sociedade menos desigual, nossa sociedade vai funcionar melhor e as divisões poderão ser reduzidas.

Valor: A troca de gerações pode ajudar?

Sachs: Há uma promissora mudança geracional, pelo menos nos Estados Unidos. Os mais jovens tendem a ser menos racistas, mais tolerantes, mais comprometidos com a responsabilidade social do que as pessoas mais velhas. A maior base política de Trump é de pessoas brancas mais velhas que sentam diante da televisão e assistem à Fox News contando mentiras para elas. Quando tivemos os protestos neste verão, tivemos jovens brancos ao lado de jovens negros protestando contra o racismo da polícia. Eles protestaram juntos. A mudança geracional pode ser um fator impulsionador, porque os jovens já cresceram numa sociedade multirracial. Isso pode ser de grande ajuda.

Valor: Essa fragmentação de reivindicações, por gênero, raça, sexo, que foi importante para a derrota da ex-senadora Hillary Clinton em 2016, pode atrapalhar os planos dos democratas?

Sachs: Não acho que essa divisão pode ser um problema. A oposição vai ficar unida. Trump não vai conseguir puxar esse eleitorado para seu lado. A grande questão nos Estados Unidos é se essas pessoas vão votar. Muitos dos que não gostam de Trump não acreditam que a eleição possa mudar alguma coisa. Além disso, o governo Trump está tentando impedir os votos de muitos eleitores. Está procurando ativamente afastar muitos eleitores, bloqueando os votos pelo correio. Está tentando trapacear para ficar no poder.

Valor: Até agora, a pandemia não parece ter favorecido grandes mudanças no sistema econômico…

Sachs: Na verdade, esta pandemia piorou a acumulação de riquezas e renda dramaticamente, especialmente porque as pessoas que trabalham nas lojas, nas ruas, perderam seus empregos. As pessoas que têm seus negócios on-line viram sua riqueza aumentar. Então os ricos ficaram mais ricos. Os pobres ficaram mais pobres. Jeff Bezos, dono da Amazon, só neste ano aumentou sua fortuna em US$ 8 bilhões. Só uma pessoa, só neste ano, nesta crise. Total da sua fortuna hoje é em torno de US$ 190 bilhões. Ninguém ouviu dele nenhuma palavra sobre o que pretende fazer com esse dinheiro. Falou-se que ele podia ir para Marte, porque não presta muita atenção sobre o que acontece com as pobres pessoas aqui na Terra.

Valor: Esperava-se uma mudança de consciência maior em relação ao ser humano?

Sachs: Essa é uma grande a questão - até agora, a crise piorou as coisas -, se as pessoas vão se conscientizar que num mundo de riqueza não há necessidade de haver tanto sofrimento. Mas as pessoas que possuem as riquezas precisam compartilhá-las. Essa é a questão básica que vai ser o eixo da luta política mais para frente. Tenho certeza de que estaremos no meio desse debate nos próximos anos, num profundo debate, possivelmente até numa disputa política.

Valor: O senhor acha que a lógica do mercado financeiro, concentrado em poucas pessoas e instituições, esteja para mudar?

Sachs: Os mundos das finanças e da alta tecnologia não vão mudar por eles mesmos. Eu conheço Wall Street porque vivo em Nova York e conheço os principais líderes de Wall Street. Não pensam sobre a sociedade. Pensam na riqueza deles. Isso não vai mudar em qualquer momento próximo. A indústria “high-tech” da Califórnia é o que chamamos politicamente de “libertarians”, o que no Brasil se chama neoliberal. Eles agem como se dissessem “É nosso dinheiro, venha pegar, fazemos o que queremos com ele”. A reforma não virá de dentro. Virá quando as pessoas e a sociedade chegarem à conclusão de que essa não é uma boa maneira de se organizar a sociedade. Para poucas pessoas acumularem centenas de bilhões de dólares de riqueza e dezenas de milhões de pessoas no mundo não ficarem com qualquer dinheiro ou ainda estar devendo. Mas é o que temos atualmente nos EUA, o mesmo é verdade no Brasil.

Valor: Por que os presidentes dos Estados Unidos e do Brasil mantêm bases fiéis de apoio?

Sachs: Essa é realmente uma realidade muito intricada. Temos nos Estados Unidos e no Brasil presidentes com problemas mentais, irresponsáveis, que têm algum apoio entre as pessoas que precisam de ajuda, os mais pobres. Trump de alguma maneira tem algum apoio em trabalhadores que sofrem muito. Eu não entendo direito a mentalidade dessas pessoas. Pode ser porque Trump é racista, se os apoiadores dele são brancos, pobres, trabalhadores de classe média. Isso explicaria o ódio contra os afro-americanos. Se são evangélicos, os pastores dizem: “Deem 10% dos seus salários, e Jesus vai salvá-lo”. E eles dizem que Trump vai defender Jesus. É inacreditável. É um tipo de fraude. É muito triste. Difícil entender essa mentalidade. Mas é verdade. Ao mesmo tempo, é uma minoria da população. Assim, se a maioria que pensa que Trump é horrível e for votar, usar seu poder politicamente e a democracia for defendida, então a gente pode estar logo numa situação diferente.

Valor: Mas não vão resolver todos os problemas de uma hora para outra…

Sachs: Claro que, se Trump perder, há grandes interesses financeiros poderosos que apoiam a outra parte. Ainda haverá muita disputa, mas não será tão louca como atualmente. Porque Trump é o pior presidente que já tivemos. Provavelmente Bolsonaro é um dos piores da história do Brasil. Mas é bem interessante, porque no Brasil parece que as pessoas não ligam Bolsonaro com a epidemia, mesmo que ele tenha assumido tanta responsabilidade por todas as mortes. Mas as pessoas continuam apoiando mesmo assim, ignorando tantas mentiras. Isso é nossa experiência também com Trump. Por isso é um problema tão intrigante, quando as pessoas não se dão conta de seus interesses muito claramente. [Procurado pela reportagem, o Planalto não comentou as declarações.]

Valor: No Brasil também há uma grande base de evangélicos em apoio a Bolsonaro. Como essa parcela da sociedade agiu durante a pandemia nos Estados Unidos?

Sachs: Temos experiência com os evangélicos brancos aqui nos Estados Unidos. Os pastores disseram em suas igrejas: “Não usem máscaras, venham para os cultos, não façam distanciamento social”. Depois que os fiéis compareceram aos cultos e ficaram doentes, os pastores continuaram rindo daqueles que usam máscaras, dizendo que eram esquerdistas. É uma mentalidade muito louca e realmente antissocial. Na verdade é o oposto de Jesus, não tem nada a ver com cristianismo. É só um tipo de corrupção. É atordoante.

Valor: Nessas eleições ouvimos falar muito do crescimento dos socialistas como Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Lopez, a mais jovem deputada da história, eleita com 29 anos. Que tipo de socialismo estão propondo para os EUA?

Sachs: Conheço muito bem esse assunto, porque fui conselheiro do senador Bernie Sanders. É o socialismo do tipo que existe nas sociais-democracias dos países do norte europeu, como Dinamarca, Suécia, Noruega, Finlândia e Islândia. Esses são os modelos para os Estados Unidos. Naqueles países, a ideia é que todas as pessoas na sociedade devem ter assistência de saúde, educação de qualidade, trabalhos decentes, direito a férias. Em outras palavras, todas as coisas boas da vida, básicas, devem ser para todos. Não importa que sua diferença de riqueza vá influenciar na escola que você vai frequentar, a assistência de saúde que vai receber, porque isso são direitos humanos, não algo que a riqueza de cada um deva influenciar. São coisas que os países do norte europeu proveem a seus cidadãos. E isso pode funcionar de forma muito eficiente em economias de mercado. São países de alto nível de vida e muito eficientes como economia. Já nos Estados Unidos não temos nem sequer o básico. Em família com crianças, uma entre cinco dessas famílias tem fome atualmente - e isso aqui, um dos países mais ricos do mundo. Temos muita riqueza, mas se uma pessoa tem bilhões de dólares e dezenas de milhões não tem nada, a gente acaba numa sociedade perversa. Isso é o que Bernie Sanders defende.

Valor: Bernie Sanders, porém, é descrito como um radical socialista.

Sachs: Claro que a mídia corporativa tenta caracterizá-lo como extremista. Não é extremista. Mas a mídia corporativa também está cheia de propaganda. Se você diz que todos devem ter assistência médica nos Estados Unidos, você é chamado, por essa mídia, de comunista. Se você diz que todos devem ter educação de qualidade, é chamado de extremo-socialista. É um jogo para assustar as pessoas. E é basicamente o que acontece neste país.

Valor: O que chama de mídia corporativa?

Sachs: A pior pessoa na mídia nos países de língua inglesa é Rupert Murdoch, magnata australiano. Nos Estados Unidos, ele é proprietário do “Wall Street Journal” e da Fox News. E tem também tabloides no Reino Unido e na Austrália. Ele é uma pessoa repugnante. É uma força muito, muito destrutiva, nos países de língua inglesa. Controla muitos meios de comunicação, que enchem os leitores de mentiras diariamente. Eu sei porque eu leio o “Wall Street Journal” diariamente, tenho que ler para meu trabalho. As páginas de opinião são muito repulsivas, pelas mentiras que contam. Mas isso é como as coisas estão funcionando hoje em dia. Os seguidores do Trump assistem às notícias da Fox News. Ele capturou aquelas pessoas brancas, mais velhas, evangélicas, que recebem essas notícias cheias de ódio, na estação que pertence a Rupert Murdoch. Essa é uma parte importante de sua base política. É um fenômeno impressionante. É uma coisa tão perversa, que o filho de Murdoch, James, demitiu-se da cadeia de comunicação do pai, tão contrariado que estava. Deixou o comando das empresas recentemente porque considera que seu pai não faz nada além de divulgar propaganda de mentiras e ódio, só para ganhar dinheiro. [Até o fechamento desta edição, a Newscorp não havia se manifestado.]

Valor: Qual será o futuro se Trump ganhar, por exemplo, as eleições?

Sachs: O futuro é o seguinte. Primeiro a gente se livra do Trump. Porque até que ele esteja fora do poder político, vamos estar numa situação maluca. Teremos uma eleição em novembro. É extremamente importante que Trump seja derrotado por Joe Biden e pela senadora Kamala Harris [candidatos a presidente e vice pelo Partido Democrata]. Se ele for derrotado, o que acho que há uma grande chance que ocorra, isso pode iniciar um processo para que tenhamos um país mais normal de novo. Onde possamos não mais ficar ouvindo mentiras e mensagens de ódio do presidente todo dia. Depois disso, a gente vai ter muitos desafios nos Estados Unidos: recorde de desigualdade, pandemia, economia baseada no petróleo em vez de energia renovável, mudança climática - muitos problemas. Mas não podemos resolver esses problemas com mentiras e ódio na Casa Branca. Primeiro estamos numa crise política. Segundo, numa crise moral. Precisamos entender que a ética do egoísmo e da ganância deixou os EUA de joelhos. Precisamos de um princípio ético diferente, de uma sociedade mais partilhada, em que o bem comum seja defendido. Se a gente resolver o problema político e abordar a questão da crise moral, há soluções práticas que são muito razoáveis: para sistema de energia mais sustentável; gastos na cobertura da assistência médica; a taxação dos mais ricos. São medidas práticas que podemos tomar se tivermos oportunidade para isso. É realmente uma luta, primeiro política e depois ética.

Valor: O senhor vai estar envolvido num governo democrata, se vitorioso?

Sachs: Não vou estar dentro do governo. Certamente estarei presente com sugestões, ideias e discussões o tempo inteiro. Trabalho tanto com tantos governos ao redor do mundo e quero contribuir para uma solução global, não a de um só país. Mas quero que os Estados Unidos fiquem melhor. São o meu país, onde moro com minha mulher, onde estão meus filhos. É muito importante e também um país perigoso, em termos dos efeitos para o resto do mundo. Se temos um líder ruim, como Donald Trump, ele cria um grande sofrimento em outras partes do mundo. Gostaria que os Estados Unidos parassem de criar tantos danos em outros países.

Valor: O senhor faz uma campanha desde 2005 para que os países ricos doem parte do seu Produto Interno Bruto aos países pobres. O que aconteceu desde lá?

Sachs: Venho implorando há anos aos países ricos por uma pequena parcela de sua riqueza para os pobres e famintos. Infelizmente, os países ricos, especialmente, têm ficado cada vez mais e mais gananciosos. Mais corruptos, mais egoístas. Os Estados Unidos, atualmente, repartem menos do que há dez anos. Se é que doa realmente alguma coisa. Trump teve como lema “America First”. Mas isso significa realmente Trump em primeiro lugar. Ele é tão nojento, vulgar e corrupto, que não liga o mínimo para o resto do mundo. É interessante que uma das ligações entre Trump e Bolsonaro, o empresário e estrategista político Steve Bannon, foi preso por fraude, porque estava levantando recursos e roubando o dinheiro. Esse é o tipo de gente que estamos lidando: vigaristas, vagabundos, gente suja. Um ser humano pode implorar ajuda, mas vão simplesmente rir na cara deles.

Valor: Qual era a percentagem do PIB dos ricos que o senhor pedia?

Sachs: Apenas 0,1% do PIB dos países ricos seria suficiente para garantir saúde básica para todas as crianças pobres do mundo, já asseguraria que todas fossem para a escola básica. Um pouco mais, 0,7%, seria suficiente para atingir todas as Metas de Desenvolvimento do Milênio daquele tempo. E agora seria o suficiente para alcançar as Metas Sustentáveis do Milênio. Mas posso garantir, porque tenho feito isso por um longo tempo, que implorar por uma fração de 1% da renda de países que são mais ricos do que o imaginável é tremendamente difícil. Porque a política está nas mãos dos mais egoístas oligarcas, e tudo que eles fazem é se preocupar com eles mesmos. Eles são egoístas e corruptos. E isso é uma combinação muito ruim.


César Felício: Distância regulamentar

Luiz Fux frisou que deferência a outros Poderes tem limite

A interlocutores nos últimos meses, o ministro Luiz Fux já havia indicado que pretendia demarcar uma certa distância em relação ao presidente Jair Bolsonaro. A convivência prometida iria muito pouco além da protocolar. Não haveria ambiente para visitas inesperadas, ou encontros no fim de semana.

Este não foi um traço de seu antecessor no cargo, Dias Toffoli, como ficou patente anteontem, com a irrupção de Bolsonaro em sessão do Supremo, para o assombro dos demais ministros.

Aboletado ao lado de Toffoli, a seu convite, Bolsonaro fez questão de lembrar que chegou onde chegou porque foi votado por milhões de eleitores. Ao passo que Toffoli e seus pares lá estavam por indicação presidencial. O momento não foi uma fotografia que colocou o Supremo em uma posição altiva, para dizer o mínimo.

Ao tomar posse ontem como novo presidente da Corte, Fux demonstrou o tamanho da distância regulamentar, ainda que o presidente estivesse ao seu lado, conforme manda o ritual.

Ele se mostrou disposto ao jogo político, ao deixar claro que quer ser “minimalista” e “pragmático” ao julgar ações de outros Poderes.

“O STF não tem o monopólio das respostas. Os demais Poderes devem resolver internamente seus próprios conflitos, em que a decisão política deve reinar”, disse em seu discurso. É algo que pode ter soado alentador aos ouvidos do presidente do Senado, que estava presente e sonha com uma reeleição explicitamente vedada pela Constituição.

Dentro da teoria consequencialista pela qual se rege ao tratar de temas econômicos, ele sempre estará disposto a ouvir os argumentos do Ministério da Economia ao pautar temas fiscalmente explosivos, um aceno para o Executivo.

Isso posto, Fux foi explícito em indicar que pode terminar aí a “deferência aos demais Poderes” que prometeu. “Deferência”, afirmou em seu discurso, “não se confunde com contemplação e subserviência”.

“O Judiciário não hesitará em decisões exemplares para a preservação da nossa democracia e nem mediremos esforços para o combate à corrupção. Não admitiremos recuo. Aqueles que apostam na desonestidade como meio de vida não encontrarão em mim condescendência, tolerância ou mesmo uma criativa exegese do direito”.

Não há outra interpretação possível que não seja a de ter sido feito um sinal de advertência ao presidente Jair Bolsonaro e seu entorno.

Não faz muitas semanas que a revista “Piauí” publicou uma matéria, sem revelar as fontes, em que se relata a disposição do presidente de intervir no Supremo, seja lá o que isso significa, caso fosse obrigado a entregar para perícia o seu telefone celular.

O esgoto da internet açulado pelo bolsonarismo bombardeia de maneira incessante os ministros de Supremo e Fux há tempos é um alvo importante de ataques ao rés do chão. Em sessão recente no STF, o ministro classificou este tipo de militância virtual como terrorista.

A referência à Lava-Jato é uma sinalização de que, no que depender de Fux, não haverá interesse em garantir blindagem a integrantes de outros Poderes. O novo presidente do Supremo Tribunal Federal não fez referências às suspeitas que pesam contra o próprio Judiciário, amplificadas anteontem pela operação desencadeada por ordem do juiz Marcelo Bretas.

Fux fez menção expressa à importância de se preservar a liberdade de imprensa, foco de explosões constantes de ira presidencial, e prestou logo no início de seu discurso tributo aos quase 130 mil mortos pela covid-19, que raramente recebem homenagens de Bolsonaro.

Se o seu antecessor buscou a assessoria de generais, Fux promete como um de seus primeiros atos como presidente da corte a criação de um Observatório de Direitos Humanos no âmbito do Conselho Nacional de Justiça. Em política, às vezes, um gesto é tudo.
Deriva

Tivesse o ex-ministro da Justiça Sergio Moro mais desenvoltura para articulações partidárias não faltaria a ele oportunidades para ser protagonista nestas eleições municipais. Moro está em segundo ou terceiro lugar nas pesquisas de intenção de voto para 2022, e há uma corte de admiradores do ex-ministro que estão disputando o pleito. A vinculação deles ao bolsonarismo é hoje tênue. Poderiam ser candidatos “moristas”.

Em São Paulo, a deputada Joice Hasselmann (PSL) disputa a eleição magoada com Bolsonaro e batendo em literalmente todas as forças políticas do Estado. Joice foi autora de uma hagiografia de Sérgio Moro, no auge da Lava-Jato. Se há uma vertente em que continua se ancorando é a do combate à corrupção.

Também seria uma “morista” em potencial a candidata do Podemos à Prefeitura do Recife, delegada Patrícia Domingos, que manifesta reservas a Bolsonaro e é só elogios ao ex-ministro da Justiça.
Nada indica, entretanto, que o ex-ministro partirá para este tipo de semeadura nos próximos dois meses. A notícia que existe é que ele começa na próxima semana a dar aulas virtuais no curso de direito do UniCEUB, uma faculdade particular em Brasília.

Desde que saiu do governo, causando desgaste ao presidente, Moro colecionou percalços. Enfrenta uma ofensiva de advogados para que seja impedido de exercer a atividade e está sob o fio de lâmina no Supremo, que há de um dia julgar a sua suspeição no processo que condenou Lula. A Operação Lava-Jato que tanto o projetou está nas cordas. Reúne contra si praticamente a unanimidade do mundo político.

São circunstâncias que tolhem seus movimentos. Moro será um ator importante no cenário político a depender de mudanças de variáveis que não controla. Ele está distante da costa, o que torna mais incerta a rota a seguir. Pra chegar no destino vai depender do vento.


Ribamar Oliveira: Para furar o teto, só com restos a pagar

Questão é saber se há disposição política de seguir um caminho que tem riscos jurídicos envolvidos

Neste momento, senadores e deputados discutem alternativas que possibilitem a criação de um programa de renda básica para vigorar a partir de janeiro do próximo ano, a ampliação dos investimentos públicos, o fortalecimento necessário do SUS após a pandemia e a manutenção da desoneração da folha de salários para 17 setores da economia. Como acomodar tudo isso no Orçamento de 2021, mantendo o teto de gastos da União? A resposta simples seria cortando outras despesas. Esse caminho, no entanto, é considerado por muitos como politicamente difícil e esbarra em obstáculos constitucionais e legais.

Os parlamentares ficaram interessados em um artigo publicado na “Folha de S.Paulo”, no domingo passado. Nele, os economistas Felipe Salto, Daniel Couri, Paulo Bijos, Pedro Nery e a professora Cristiane Coelho, do IDP, sugerem que uma saída, ao menos temporária, é romper o teto de gastos, ou seja, colocar no Orçamento do próximo ano despesas em valor superior ao limite permitido, o que acionaria os gatilhos previstos na própria regra do teto, definida pela Emenda Constitucional 95. O texto foi exaustivamente lido por deputados, senadores e seus assessores nesta semana.

Toda a discussão gira em torno de dois parágrafos do artigo 107, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Um deles diz que a proposta orçamentária elaborada pelo governo precisa demonstrar o cumprimento do limite da despesa fixado para o ano. O outro estabelece que as despesas autorizadas na lei orçamentária aprovada pelo Congresso Nacional não poderão exceder os valores máximos estabelecidos pela regra do teto.

Em linguagem mais simples: o governo não pode enviar para apreciação de senadores e deputados uma proposta orçamentária que fure o teto de gastos e eles, por sua vez, não podem autorizar despesas que excedam os limites estipulados pela EC 95. Outro parágrafo proíbe a abertura de crédito suplementar ou especial que amplie o montante total de despesa autorizado.

Se não há como estimar nem autorizar despesa acima do teto, como os gatilhos de medidas de ajuste serão acionados? Esse é um problema até aqui sem solução. Para acomodar o aumento contínuo das despesas obrigatórias, o governo está sendo obrigado a cortar cada vez mais os investimentos públicos e o custeio da máquina administrativa, que está chegando a ponto de ameaçar a execução de serviços públicos essenciais - o chamado “shutdown”.

A tese central do artigo publicado na “Folha” é que não se pode fazer uma análise literal e isolada dos dois primeiros parágrafos citados aqui (3º e 4º do artigo 107 da ADCT) e esquecer o princípio do realismo orçamentário, que exige fidedignidade das estimativas de receitas e despesas públicas. “Sem projeções realistas, o Orçamento se confunde com peça de ficção”, diz o texto.

E perguntam: “O que devem fazer os Poderes Executivo e Legislativo quando as leis em vigor demandarem dispêndios superiores ao teto? Deixar de encaminhar e votar o PLOA? Maquiar a estimativa de gastos de modo a fazê-los caber no limite?”. Para os autores, a resposta a essas perguntas é negativa. “A interpretação literal dos parágrafos 3º e 4º do artigo 107 do ADCT, ao eventualmente forçar a elaboração de um Orçamento que não seja crível, fornece uma solução inadequada para o problema”, diz o artigo.

A chave para a interpretação correta, na opinião dos autores, é desvendar a sanção relacionada a sua violação. Eles observam que a sanção para a previsão de despesas orçamentárias superiores ao teto de gastos não é a imputação de crime de responsabilidade do presidente da República, “mas sim o conjunto de vedações previstas no referido artigo, relacionadas à criação ou majorações de gastos obrigatórios”.

Os autores ressaltam ainda que o acionamento dos gatilhos pela via do planejamento orçamentário seria solução fiscalmente mais responsável que pela via da execução orçamentária. “Ao se reconhecer ruptura do teto no próprio Orçamento, medidas de ajuste seriam colocadas em prática no mesmo ano, e não apenas no exercício seguinte, quando os excessos já teriam ocorrido e estariam possivelmente consolidados.”

A equipe econômica pensa diferente. Considera que há um problema real na EC 95, que impede o acionamento das medidas de ajuste e que para cumprir a regra do teto nas condições atuais, em que as despesas obrigatórias não param de crescer, só resta ao governo cortar investimentos e o custeio. E, mantida a atual redação da EC 95, isso seria feito até que as despesas discricionárias fossem reduzidas a zero, o que paralisaria toda a administração pública federal.

A solução apresentada pela equipe do ministro Paulo Guedes é a aprovação da PEC do Pacto Federativo (PEC 188/2019), que corrige a regra do teto de gastos, facilitando o disparo dos gatilhos. Pela proposta, as medidas seriam acionadas quando as despesas obrigatórias chegassem a 95% da despesa primária total. Essa PEC não andou até agora.

A proposta orçamentária de 2021 será agora analisada pelos parlamentares. Eles podem ou não acolher a tese do artigo. Existem pelo menos duas críticas importantes sendo feitas à proposta por consultores do Congresso. A primeira é que o caminho apontado é uma interpretação da EC 95, que estará sujeita a questionamentos na Justiça. A segunda crítica é como definir qual será o valor do “estouro” do teto. Se ele for muito alto, mesmo com o disparo dos gatilhos das medidas não será possível ajustar as contas da União tão cedo, e o teto estará condenado.

Os mesmos consultores disseram ao Valor que só há uma forma de romper o teto de gastos, de acordo com as normas atuais. O parágrafo 10º do artigo 107 da ADCT estabelece que, para fins de verificação do cumprimento do limite de despesa, serão consideradas as despesas primárias pagas, incluídos os restos a pagar (RAPs) de exercícios anteriores pagos. Ou seja, durante a execução orçamentária, o governo poderá pagar um montante de tal ordem de RAPs, que o teto seria rompido, acionando os gatilhos. A questão é saber se há disposição política de seguir esse caminho, pois há riscos jurídicos envolvidos.


Maria Cristina Fernandes: O tatame minado de Fux

Operação expõe teia de relações entre escritórios e tribunais

O Ministério Público Federal estendeu um grande tatame para a posse de Luiz Fux na presidência do Supremo Tribunal Federal. A operação de ontem é a maior a envolver as relações entre escritórios de advocacia e gabinetes de tribunais superiores em Brasília. A denúncia desfia tráfico de influência e exploração de prestígio, ferramentas com as quais, há décadas, se desmonta o combate à corrupção.

Derivada da delação do ex-presidente da Fecomercio, a denúncia, que envolve 26 advogados, expõe como essa teia operou a favor da manutenção do cartório do Sistema S por meio de triangulações montadas pelo ex-governador Sérgio Cabral.

Faixa vermelha e preta de jiu-jitsu, Luiz Fux já foi feito de refém num assalto a seu apartamento de Copacabana em 2003, quando ainda estava no STJ. A partir de hoje, é esta teia de interesses que tentará fazer do ministro, prisioneiro.

A presença do advogado do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na mesma operação que também alvejou o ex-advogado do presidente Jair Bolsonaro sugere que a esquerda montou na cavalgada anti-Lava-Jato sem olhar os dentes. O bom discurso de Lula no dia da pátria não rima com uma retaguarda jurídica que mora no mesmo prédio dos maiores doleiros de São Paulo.

Entre a defesa de Lula e Bolsonaro estende-se uma lista de advogados, entre os quais, filhos de ministros e ex-ministros que ascenderam ao STJ e ao TCU com o apoio de lideranças que, desde o governo José Sarney, personificam, em revezamento, o Centrão.

O momento político é favorável aos denunciados. O ataque a advogados, num momento em que a democracia está nas cordas, sempre poderá ser traduzido como parte do arbítrio. Dois desfechos já são dados como prováveis. O primeiro é uma liminar do ministro Gilmar Mendes. O outro é um embate entre o procurador-geral da República, Augusto Aras, com aquela que era a única, no lavajatismo, que escapara das ofensivas contra Curitiba e em São Paulo.

Escolhido para relatar a primeira das ações da Lava-Jato do Rio, Gilmar Mendes hoje é o destino natural de todas aquelas que se originam daquela perna da operação. Some-se aí a relatoria da ação do foro do senador Flávio Bolsonaro e é possível aquilatar o poder do ministro face ao presidente da República e sua família.

Com a ação de ontem, a este poder acresça-se aquele sobre a teia de relações denunciadas pelo MP. São interesses que extrapolam o mandato de Bolsonaro. Entra presidente, sai presidente, eles estão sempre lá. Não por acaso, o último ministro a se confrontar com eles, Joaquim Barbosa, que só recebia advogados de uma parte na presença daqueles da outra parte, teve duros embates com Gilmar Mendes.

Fragilizado, ao tomar posse, por investigações que o envolviam e que acabariam por ser o motivo original do inquérito das “fake news”, Toffoli buscou abrigo sob a toga de Gilmar. O resultado é que o ministro deixa a presidência do tribunal menor do que entrou.

Cometeu dois erros capitais, o de ter suspendido o acesso da Lava-Jato aos dados do Coaf e de ter franqueado a Aras os dados da Lava-Jato do Paraná. Em ambos os casos, foi derrotado pelos colegas.
Enquanto Toffoli cumpria a pauta à risca e se congraçava cada vez mais com o presidente da República, a ponto de ter apagado da memória todas as afrontas perpetradas por Jair Bolsonaro contra a democracia, Gilmar se aproximava da esquerda, na condição de paladino do Estado de direito e crítico da militarização do governo.

Uma das medalhas de reconhecimento foi a participação, a convite do Movimento dos Sem-Terra, de uma plenária virtual com camponeses.
O dueto dificilmente se repetirá com Fux. Primeiro lugar no concurso para a magistratura, presidente da comissão de juristas que, junto com o Congresso, reformou o Código de Processo Civil, Fux não se intimida no debate técnico em plenário.

Se Gilmar Mendes tem a Lava-Jato do Rio na mão, Fux é relator de um dos mais importantes processos do Mato Grosso, do ex-governador Silval Barbosa. Dificilmente, porém, o embate se encaminhará para os vínculos de um e do outro com seu Estado natal.

Os votos pró-Lava-Jato de Fux deixam claro que não há composição possível com o trio formado por Gilmar, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli. Restaria, então, à trinca de ministros, neutralizá-lo. A reforma administrativa corrobora com essa estratégia. Depois de Executivo e Legislativo encamparem a ideia, restaria ao Judiciário enfrentar o tema que causa desconforto para um ministro, como Fux, ferrenho defensor do auxílio-moradia de juízes.

Em contrapartida, o ministro terá o poder de pauta. A partir de sua posse, é possível que Edson Fachin, relator da Lava-Jato do Paraná, sinta-se estimulado a levar mais as votações para o plenário, uma vez que o ministro tem perdido todas na Segunda Turma desde a convalescença do ministro Celso de Mello. Restaria ao trio as decisões monocráticas e os pedidos de vistas, recurso contra o qual Fux não terá como se insurgir visto que foi um dos ministros que dele mais se valeu ao longo dos dois últimos anos.

Desconhece-se a estratégia de Fux para enfrentar a onda anti-Lava-Jato, mas é previsível que, quaisquer que sejam seus recursos, a pauta ficará amplamente desfavorecida com a troca de Celso de Mello, em novembro, e de Marco Aurélio Mello, em julho.

A ordem de votos, se hoje ainda favorece a Lava-Jato, jogará contra com Fux na presidência. Como os novos entrantes votam antes, quando a vez chegava aos “garantistas”, o placar, frequentemente, já estava 1 (Alexandre de Moraes) a 5 (Edson Fachin, Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux e Cármen Lúcia).

Aquele que entrar, muito provavelmente, abrirá o placar contra a Lava-Jato porque esta é a vontade do presidente que patrocinará sua indicação. O jogo deve ficar equilibrado até que, efetivamente, esteja garantido a partir de julho. A operação de ontem dá redobradas chances para Aras conseguir uma das cadeiras, estrangulando a força-tarefa do Rio.

Quem quer que entre no tribunal o fará sob bombardeio, condição que, a exemplo de Toffoli, o deixará à mercê do abrigo de Gilmar Mendes. A partir de julho de 2021, o ministro será o decano do tribunal, condição simbólica de prestígio que lhe dará redobrada força.

A não ser que esconda um golpe secreto neste tatame tão minado, Fux poderá se dar por vitorioso com um empate.