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Folha de S. Paulo: Em documento, Vale projetou mortes, custos e até causas possíveis de colapso

Empresa afirma que fazia manutenção de barragem e defende que estrutura não estava em risco

Lucas Vettorazzo, Nicola Pamplona e Thiago Amâncio, da Folha de S. Paulo

RIO DE JANEIRO e SÃO PAULO

Um documento interno da Vale estimou em outubro de 2018 quanto custaria, quantas pessoas morreriam e quais as possíveis causas de um eventual colapso da barragem de Brumadinho (MG), que acabou se rompendo no dia 25 de janeiro, deixando ao menos 165 mortos.

O relatório é usado pelo Ministério Público de Minas Gerais em ação civil pública em que pede a adoção de medidas imediatas para evitar novos desastres, já que dez barragens, incluindo a de Brumadinho, estariam em situação de risco, segundo o documento da própria mineradora.

Vale questiona a Promotoria e diz que o estudo indica estruturas que receberam recomendações de manutenção, as quais já estariam em curso. A empresa defende ainda que a barragem de Brumadinho não corria risco iminente.

O estudo projeta que um eventual colapso provocaria mais de cem mortes —até o momento, as autoridades contabilizam 165 mortos e 155 desaparecidos. O número considera um cenário de rompimento durante o dia e com funcionamento dos alertas sonoros instaladospara evitar emergências.

De acordo com o estudo da Vale, chamado Resultados do Gerenciamento de Riscos Geotécnicos, os custos de um eventual rompimento na barragem 1 da Mina do Córrego do Feijão poderiam chegar a US$ 1,5 bilhão (cerca de R$ 5,6 bilhões, ao câmbio atual).

A empresa também projetava como causas prováveis de rompimento erosão interna ou liquefação. Inspeções já tinham encontrado indícios de erosão na ombreira (lateral da barragem) e indícios de alagamento.

O documento inclui a estrutura que se rompeu entre dez barragens em uma zona de atenção. As outras são: Laranjeiras (em Barão de Cocais), Menezes 2 e 4-A (em Brumadinho), Capitão do Mato, Dique B e Taquaras (Nova Lima) e Forquilha 1, Forquilha 2, Forquilha 3 (Ouro Preto).

A análise de estabilidade exigida pela legislação atestou as condições de segurança da barragem que se rompeu, mas indicou uma série de problemas que deveriam ser resolvidos pela mineradora.

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Sala do comando de operações de segurança da mina, após o rompimento da barragem - Isis Medeiros

Procurada pela Folha, a Vale afirmou em nota que "os estudos de risco e demais documentos elaborados por técnicos consideram, necessariamente, cenários hipotéticos para danos e perdas".

A Vale disse que "não existe em nenhum relatório, laudo ou estudo conhecido qualquer menção a risco de colapso iminente da barragem" e reafirmou que a estrutura tinha "todos os certificados de estabilidade e segurança".

Em entrevista nesta terça (12), o gerente-executivo de planejamento da área de minério de ferro e carvão da empresa, Lúcio Cavalli, disse que "em momento algum essa estrutura deu sinais de que estava com problema".

De acordo com a Vale, a "zona de atenção" compreende barragens em que os técnicos apontaram recomendações, mas não risco iminente.

A Justiça de MG determinou uma série de ações preventivas nas barragens citadas. A Vale diz que todas as exigências já vinham sendo cumpridas.

A empresa questionou ainda versões dadas por funcionários de que os equipamentos apontaram aumento súbito no nível do lençol freático, dizendo que quatro dos piezômetros (instrumentos que medem esse indicador) apresentaram problemas de configuração e enviaram dados errados ao sistema. A barragem tinha 94 piezômetros.

Segundo a Vale, ainda não é possível identificar as causas da tragédia. Uma comissão formada por especialistas internacionais está investigando o caso, disse o diretor de Finanças e Relações com Investidores da companhia, Luciano Siani.

O executivo disse que a empresa está fazendo um levantamento das áreas habitadas próximas às suas barragens, mas que ainda não há um plano para reduzir o dano potencial em eventuais colapsos.

 


Sérgio Abranches: 'Brumadinho, uma Guernica mineral'

Brumadinho é um espanto. Uma Guernica mineral. Um desalento. Porque não é um só. Antes veio Mariana. Matou um rio, 19 humanos, fraturou a cultura ribeirinha do povo krenak das margens do Rio Doce, destruiu o modo de vida dos pescadores. Soterrou patrimônio natural, cultural, modos de vida e de sobrevivência. Antes ainda que as feridas profundas de Mariana se fechassem e sem reparação à altura das perdas e danos, veio o desastre da Mina Córrego do Feijão. Que vergonha e que indignação!

Mariana e Brumadinho não estão sós. Nem são apenas quatro, como os cavaleiros do Apocalipse. São quatrocentas. Ou mais. Uma delas, dependurada sobre a joia artística que é Congonhas, em Minas Gerais, ameaça com 100 milhões de metros cúbicos de rejeitos, de lama fatal, um extraordinário patrimônio artístico-cultural e a vida inestimável de milhares de pessoas. Ali, a Basílica do Senhor Bom Jesus de Matosinhos coroa o mais espetacular complexo arquitetônico e estatuário do Brasil. Não é exagero. O conjunto paisagístico e artístico representado pelo santuário não tem paralelo no país.

Abaixo da basílica, sob o olhar dos 12 profetas esculpidos pelo gênio Aleijadinho, coreograficamente distribuídos pelo adro, derrama-se a via-sacra, também do artista, em capelas nas quais as cenas talhadas em madeira em tamanho natural encantam e enternecem. Além da beleza das esculturas, os profetas do adro da igreja e as cenas da Paixão de Cristo nas capelas revelam uma cenografia deliberada e expressiva. É o principal legado escultórico de Aleijadinho, tombado e abandonado. A filha de um maestro amigo meu, ao vê-las aos 8 anos de idade, exclamou: “Estão vivas, papai!”. E estão, mas por quanto tempo?
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Esse santuário artístico, que contou com os gênios de Aleijadinho e outros grandes artistas do Brasil colonial, como o insuperável Mestre Ataíde, Francisco de Lima Cerqueira e João Nepomuceno Correia e Castro, está emoldurado por um cenário natural espetacular e cercado por sobrados que não se fazem mais. Sobre esse precioso bem coletivo está uma barragem como essas que se romperam, porém ainda maior. A Casa de Pedra contém 100 milhões de metros cúbicos de rejeitos, de lama tóxica, prontos para soterrar o legado de Aleijadinho, eliminando-o do mundo e da memória. Em Mariana, foram 50 milhões; em Brumadinho, 12 milhões.

Brumadinho pode ter matado mais de duas centenas de seres humanos. Liquidou negócios e criações. Está matando o Rio Paraopeba. O Paraopeba é um rio sertanejo como eu e, enlameado, caminha para minhas paragens curvelanas. Pode enlamear parte do grande sertão e das veredas de Guimarães Rosa, tirando-lhes até o sentido metafísico. O Doce, rio serrano, tem uma de suas nascentes ao lado, Barbacena, cidade de meu pai, de meu irmão e de minha infância. Conheço as vítimas, cresci com elas. E como dói.

Em São Joaquim das Bicas, os pataxós da aldeia Hã-hã-hãe foram evacuados. Estão ameaçados por Brumadinho do mesmo destino dos krenak do Rio Doce. Hoje, nas margens do rio morto, os velhos krenak contam para os jovens sobre os animais e a vida ribeirinha perdidos na lama, para que mantenham suas referências, agora meras abstrações. O canal Futura tem uma série de documentários pungentes sobre o drama dos krenak do Doce morto.

Essas tragédias não foram incidentais. Elas tiveram causas e autores humanos. O autor principal chama-se Vale. Uma empresa que se apresenta como verde, mas esse verde é camuflagem de predador. Como disse Drummond, o vale é doce, a Vale, amarga. O autor coadjuvante chama-se Estado. Ambos, empresa e Estado, têm uma característica genética comum: suas ações dependem das escolhas de seus gestores, a diretoria, num caso, o governo, no outro. Escreveram essa tragédia a várias mãos, a empresa, suas subsidiárias, as consultoras, os governos estadual e federal, com más decisões, colocando a taxa de lucro acima do valor das vidas humanas e do patrimônio cultural, ambiental e paisagístico.

Há um outro autor político. O Congresso, que se rendeu ao lobby das mineradoras e seus dinheiros de campanha, afrouxou a fiscalização e engavetou as providências legais apresentadas após Mariana. O ex-deputado (deixou a Câmara demitido pelos eleitores) Leonardo Quintão (MDB-MG), relator do projeto que criava novas regras para a mineração, reescreveu-o à imagem e semelhança dos desejos do lobby mineral. Agora vai para o novo governo, manter-se ativo no Gabinete Civil. Brasil surreal, onde tudo muda para ficar na mesma. Exemplos de irresponsabilidade política e corporativa. Deputados deveriam estar a cuidar do bem público e não dos vícios privados. As mineradoras deveriam estar a corrigir seus vícios e buscando novos modos, para minimizar os riscos que impõem à sociedade, à qual nada retornam, se não magros royalties e buracos, quando não cadáveres e desolação.

Falou-se muito, e nem sempre com precisão, sobre risco. No primeiro dia do curso que costumava oferecer sobre risco político, explicava a meus alunos alguns conceitos básicos, igualdades e diferenças. Começava por dizer que a noção de risco é a mesma, na engenharia, no ambiente, na economia e na política. Os dados e os parâmetros é que se alteram. Usava o quadrinho abaixo para ilustrar essa igualdade e distinguir o que faz parte da matriz de riscos e o que não faz.

Risco
É simples. O conceito básico de risco – ele pode ser sofisticado e ficar mais complexo a partir daí – nasce da interseção entre a probabilidade de ocorrência de um evento e a severidade do dano que pode causar. O quadrante inferior esquerdo – baixa probabilidade e baixo dano – não requer muita atenção. O quadrante superior esquerdo – alta probabilidade e baixo dano – requer providências regulares. O quadrante superior direito – alta probabilidade e dano severo – não faz parte da matriz de risco. Primeiro, antes de uma situação chegar ali, uma empresa responsável já teria tomado providências preventivas, para evitar sua progressão até essa condição quase irremediável. Caso o tivesse feito, não estaria enfrentando um risco, que supõe incerteza, mas um quadro a exigir providências imediatas e radicais. O quadrante inferior direito é o que caracteriza o verdadeiro risco – baixa probabilidade e dano severo — que impõe vigilância permanente.Continua depois da publicidade

Se imaginamos que cada evento pode ser situado em pontos distintos dentro de cada quadrado, indicando variações na probabilidade de ocorrência e severidade do dano, teremos uma escala contínua que irá da probabilidade muito baixa até muito alta e dano de baixa severidade até dano de severidade máxima. As barragens de alteamento a montante, como as de Mariana e Brumadinho, jamais estariam na categoria de baixo risco. A probabilidade de rompimento vai aumentando a cada alçamento, que reduz a resistência estrutural original. Portando, nos dois casos, exigiam monitoramento 24/24, isto é, 24 horas por dia, de segunda a domingo, de 1º de janeiro a 31 de dezembro, com sensores e instrumentação adequados e em permanente manutenção, além de verificações de campo diárias.

O laudo no qual se ampara a Vale para se dar ao direito, que não tem, de dizer que foi pega de surpresa pelo rompimento de Brumadinho é um exemplo de como a atividade tem regulação inadequada. Uma barragem de rejeitos fluidos é dinâmica. O fato de estar estável em setembro de 2018, nada diz sobre sua estabilidade em janeiro de 2019. Mesmo que estivesse desativada – a empresa precisa provar que não aumentou o volume de rejeito desde de 2014 porque em Mariana houve informação inverídica sobre isso –, a chuva, a acomodação progressiva do rejeito ainda liquefeito e sua consolidação progressiva alteram os parâmetros determinantes da estabilidade. Só o monitoramento 24/24 e a inspeção diária podem determinar a estabilidade a cada momento. Barragens não rompem de supetão, avisam. Se não souberam identificar esses avisos, além de negligentes eram incompetentes.

Mais ainda, a trajetória de um possível rompimento deveria ser objeto de simulações, para impedir construções a montante, e, até mesmo, a implantação da barragem. Para toda a área de impacto definida pelos trajetos possíveis da lama, planos de contingência deveriam prever a evacuação, medidas de contenção e proteção. Há áreas em que a remoção é possível e outras, em que ela não é. São investimentos que as empresas evitam, para preservar sua margem de lucros e controlar custos. Como resultado, aumentam os custos públicos. A velha socialização das perdas e privatização dos lucros. Com o progresso rumo a novos materiais de baixo impacto ambiental e climático, o preço dos produtos que vão ficando obsoletos cai e as empresas resistem ainda mais a fazer investimentos de precaução. É ainda pior, porque tentam compensar a perda de valor do produto com a ampliação do volume de venda, aumentando a pressão sobre as barragens, reduzindo as medidas de cautela. Por isso os vícios privados jamais se tornam virtudes públicas. Nessas atividades de risco, não se pode abrir mão da regulação estatal nem terceirizar a palavra final. Por isso o sucateamento e a politização das agências reguladoras, na última década e meia, foram tão lesivos ao interesse público.

Não há outro caminho para a atividade mineral no Brasil se não a proibição do beneficiamento a úmido. Mesmo as barragens de alteamento a jusante, mais seguras, são muito danosas ao ambiente. Além do risco, nunca pequeno, o beneficiamento a úmido causa danos ambientais severos, mesmo em operação normal. Além da devastação que a atividade em si produz, como no Pico do Cauê, tão dolorosamente documentado por Carlos Drummond de Andrade, o consumo de água é absurdo. Só deveriam permanecer em atividade as minas que comportassem beneficiamento a seco.

Isso é o que faria uma sociedade madura, civilizada, que valoriza a vida humana acima de tudo e preza seu patrimônio cultural, artístico e natural. Uma sociedade que não confunde desenvolvimento a qualquer custo com progresso. Um povo que quer transitar para uma vida pessoal e coletiva de mais qualidade, que busca a felicidade, não apenas o prazer fugaz e a alegria passageira.

* Mineiro de Curvelo, o sociólogo e escritor Sérgio Abranches é especialista em ecopolítica


Fernando Gabeira: Um futuro para Brumadinho

Ter o mais belo museu a céu aberto do mundo e uma estrutura de hotéis e restaurantes sugere o novo caminho

De novo em Brumadinho, desta vez para falar de reconstrução, como em Mariana. A cidade tem dois polos: cultura e mineração. O Museu de Inhotim, erguido no meio de um lindo pedaço da Mata Atlântica, pode ser um dínamo desse processo. Recebe 350 mil pessoas por ano e reabriu neste fim de semana. Nele trabalham 600 pessoas.

Se os artistas brasileiros quiserem dar uma força, é possível fazer a cidade transitar da hegemonia da mineração para se tornar um centro cultural. Será preciso apenas esquecer as diferenças ideológicas. Certos temas de união nacional ajudam até a lidar com as divergências.

Não sou especialista em barragens. Os engenheiros pensam coisas claras. Um deles sugeriu que a barragem se rompeu por liquefação. Desde esse momento, levei a serio a hipótese.

Agora, fico sabendo que a barragem de água estava a montante do minério armazenado. Vazava constantemente. A Vale construiu um cano para desviar essa água. Mas será que foi suficiente? Os sensores funcionavam mal, e faltavam cinco deles.

O atestado de estabilidade dado pela empresa alemã TÜV SÜD tratou desse tema. E parece que houve pressão para que os alemães transigissem: ou davam o atestado de estabilidade ou seria rompido o contrato com a Vale.

Indo um pouco adiante, como detetive amador, lembro que a barragem de água estava tão cheia que ameaçou romper após o desastre. No domingo de manhã, a sirene tocou por lá, pelo perigo da barragem de água. Possivelmente, a mesma sirene que silenciou diante do tsunami de lama. Nesse caso, enganada pela insuficiência dos sensores. Diante de tais circunstâncias, não é correto dizer, como disse a Vale, que a barragem de rejeitos era de baixo risco e grande poder de dano. Ela era de alto risco.

Essa é a conclusão de um ignorante esforçado. Quando a Vale disse que o desastre era inexplicável, ela estava de posse de todos os dados, tanto que tentava desviar o curso da água.

Espero que os fatos confirmem esta hipótese, pois, até agora, não consegui ouvir alternativas. Houve uma fake news, na época do desastre, dizendo que explodiram uma bomba. Um venezuelano e um cubano teriam sido presos. E não é que circulou. Os venezuelanos não têm bombas para uso externo: estão à beira de uma guerra civil.

Apesar de tudo, espero que a Vale participe do esforço de reconstrução, sem ambiguidades como em Mariana. Seria aprender a operar num espaço estrategicamente mais valioso que suas minas de ferro.

A entrada de Brumadinho é feinha e encardida. Na cidade, há um conjunto de painéis pintados por artistas brasileiros. Foi uma parceria da Vale com a prefeitura. Os painéis perderam a cor, foram degradados pelo descaso, alguns parecem uma colagem de minério de ferro.

A ideia geral era esta: já que produzimos minério, por que se importar com a beleza? Em outras palavras: já que vai sujar mesmo, por que manter limpo?

Antes do desastre, fui a Brumadinho uma única vez. Na época, para a palestra de fundação do Partido Verde, que hoje, quem diria, é o partido do prefeito. Não o conheço bem. Apenas o entrevistei sobre os fatos correntes. Mas, se pudesse dar um palpite, diria que o futuro de Brumadinho deveria se concentrar numa ideia simples: entra a beleza, sai a feiura.

As mineradoras costumam deixar apenas buracos, quando não levam as montanhas, como levaram o Pico do Cauê, na Itabira de Drummond.

Ter o mais belo museu a céu aberto do mundo e uma estrutura de hotéis e restaurantes sugere o novo caminho, que nem merece ser chamado de economia criativa: é uma decorrência lógica. Seria preciso um novo marco regulatório para exploração de minério numa área onde a cultura tem um grande papel. Brumadinho tem lindas estradas vicinais com áreas preservadas. Os 300 hectares enterrados na lama são apenas uma pequena parte de um município maior do que Belo Horizonte. Seu bairro mais atraente, Casa Branca, está no pé da Serra do Rola Moça, um parque estadual. É um belo roteiro, que pode florescer no futuro.

Em Casa Branca, onde há muitos moradores fugidos do estresse da grande cidade, há um movimento de defesa da águas em permanente choque com a mineração. O que alguns mineradores chamam de Quadrilátero Ferrífero é, na verdade, para os moradores um quadrilátero aquífero.

Há um passado e um futuro para Brumadinho. Hora de virar o jogo.


Elio Gaspari: As mineradoras precisam chamar os oncologistas

O diretor da Agência de Mineração mostrou a fonte do desastre de Brumadinho: a barragem do cartel das empresas

Eduardo Leão, diretor da Agência Nacional de Mineração, reconheceu numa entrevista ao repórter Nicola Pamplona que "tanto a questão de barragens quanto a questão das multas já foram pauta no Senado e realmente não andaram". Ele acredita que "tenha tido algum lobby para arquivar esses projetos".

Ex-funcionário da Vale, Leão acrescentou: "Infelizmente, tem empresas sérias, que a gente conhece, que em algum momento acabam formando um cartel que não permite esses avanços".

Não podia ter sido mais claro. As mineradoras blindaram-se. Um projeto que elevaria o teto das multas para R$ 30 milhões foi arquivado, e elas continuaram fazendo o que acham melhor, com multas de R$ 3.600. (Um motorista que bebeu paga R$ 2.934.)

Num paralelo que vem do comportamento das empreiteiras quando começou a Lava Jato, o cartel das mineradoras precisa se livrar do pessoal da gastrite, ouvindo os oncologistas.

Os poderosos empresários tinham dores no estômago e tratavam da gastrite até que foram todos para a cadeia. Diante da realidade da Lava Jato, foram aos oncologistas e tiveram outro diagnóstico: "Os senhores têm câncer no estômago, precisam passar por uma cirurgia e em seguida irão para a quimioterapia. Será um sofrimento e não posso dizer que ficarão curados".

Sofreram o diabo, mas estão soltos.

Horas depois do desastre de Brumadinho, o presidente da Vale, FábioSchvartsman, deu uma entrevista na qual admitiu que não sabia porque as sirenes da barragem ficaram em silêncio. Sete dias depois, informou que "a sirene foi engolfada pela queda da barragem antes que ela pudesse tocar". Schvartsman entrou no modo gastrite, pois sirenes tocaram dois dias depois, quando houve risco de rompimento de outra barragem.

Os doutores da gastrite não põem a cara na vitrine e escalam os marqueses para o papel de bobo. Essa atitude decorre de um sentimento de onipotente impunidade. (Quem se lembra das respostas arrogantes de Marcelo Odebrecht no início da Lava Jato sabe o que é isso.)

Na sua primeira entrevista, Schvartsman mostrou que a empresa alemã Tüd Sud atestou em dezembro a estabilidade da barragem de Brumadinho. Era verdade, e o laudo jogou a Tüd na lama. Agora, o engenheiro Makoto Namba, signatário do parecer, diz que se sentiu pressionado pela Vale para assiná-lo. Até aí, tudo seria uma questão subjetiva. A Polícia Federal mostrou a Namba uma troca de mensagens inquietantes de funcionários da Vale para colegas da Tüd, ocorrida dois dias antes do desastre, e perguntou-lhe o que faria se o seu filho estivesse na barragem. Ele respondeu: “Após a confirmação das leituras, ligaria imediatamente para seu filho para que evacuasse do local bem como que ligaria para o setor de emergência da Vale responsável pelo acionamento do Plano de Ação de Emergência de Barragens de Mineração para as providências cabíveis".

A Vale está atarantada no varejo porque seu comportamento no atacado orienta-se pelo protocolo da gastrite. O problema das empreiteiras estava no câncer do cartel, acima do varejão das propinas. Felizmente, quem usou a palavra demoníaca pela primeira vez foi o diretor da Agência Nacional de Mineração.

O passado e o futuro da imprensa
Para quem se preocupa com o futuro da imprensa ou sente sono quando ouve que o cheiro de tinta é agradável, saiu nos Estados Unidos um bom livro. É "Merchants of the Truth" ("Mercadores da Verdade - O Negócio da Notícia e a Luta pelos Fatos"), de Jill Abramson. Ela dirigiu o New York Times de 2011 a 2014, quando foi demitida.

O livro está debaixo de chumbo, mas é uma competente narrativa do que aconteceu com a imprensa desde que surgiram a internet, os sites e o iPhone. Abramson conta as histórias no New York Times, do Washington Post e dos sites BuzzFeed e Vice. De um lado estavam os donos do mundo, investido-se de um direito divino para decidir o que devia ser lido. Do outro, adoradores da internet, cabeludos, alguns bêbados ou drogados e quase todos pobres. O New York Times chegou à beira da falência, e o Post foi vendido a Jeff Bezos. Os cabeludos viraram bilionários e pareciam os senhores de um novo tempo.

Quando a internet era uma criança, um dos editores de Post lembrou que, se um sapo for colocado numa panela com água aquecida aos poucos, ele será cozinhado sem mover uma pata, pois seu sistema nervoso não registra a lenta evolução da temperatura. Ninguém o ouviu, e ele foi trabalhar num site. Centenas de jornais ferveram.

O New York Times luta bravamente para sair da panela e conseguiu 3,3 milhões de assinantes digitais. O Post voltou a ser um grande jornal. Com frequência, festeja-se que Bezos contratou cem jornalistas. Falta lembrar que ele teve 80 engenheiros na empresa.

A internet mudou a cabeça dos editores, quebrou barreiras na publicidade, impôs a métrica de audiência para as redações e, onde se falava em leitor, fala-se em clique. Jornalistas passaram a enfeitar eventos.

Abramson conta essa história com graça e a dose certa de fofocas. Tudo isso e mais a campanha de Donald Trump. Seu rancor da demissão é contido e ela circulou num evento junto com o patrão que a mandou embora. Se Jill Abramson tivesse conhecido Zózimo Barroso do Amaral, diria: "Enquanto houver repórteres, haverá esperança".

Faz tempo, o bilionário Warren Buffet ensinou que quando aparece uma tecnologia nova é arriscado investir nela, pois quase todos os primeiros fabricantes de automóveis faliram. O que se deve fazer é abandonar a velha. No caso, vender os cavalos das carruagens. Buffet recusou-se a salvar o Times quando ele estava quebrando. (Salvou-o o bilionário mexicano Carlos Slim.)

Abramson mostra como o Times e o Post estão na luta, sem tentar fabricar carros puxados por cavalos ou alimentando os bichos com gasolina.

CNPJ geral
De um sábio que entende de leis:

"Ao nominar o PCC e outras facções de criminosos, o ministro Sérgio Moro deu-lhes um verdadeiro CNPJ".

Solução popular
Pode-se estimar que a proposta de importação do mecanismo americano das soluções negociadas entre os réus e o Ministério Público tem o apoio de 9 entre 10 magistrados.

Registro
O secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, anunciou que o governo não conseguirá zerar o déficit fiscal neste ano.

Ele sempre soube disso, e o ministro da Economia, Paulo Guedes, foi avisado ao vivo e a cores que a sua promessa de campanha era inviável.

Fantasias
O Carnaval vem aí, mas os hierarcas da República já criaram um código de fantasias.

Em ocasiões solenes, vestem faixas acetinadas. O governador Wilson Witzel mandou fazer uma, azul celeste.

Quando querem mostrar que estão trabalhando, vestem coletes. O de Witzel é laranja.

 


El País: Processos contra a Vale nos EUA podem agravar situação judicial da empresa no Brasil

Ao menos nove ações coletivas foram protocolados contra a mineradora nos Estados Unidos por acionistas. Uma vitória lá fora pode fortalecer ações contra a companhia no Brasil

Vale S.A., mineradora responsável pela barragem que rompeu e causou uma tragédia em Brumadinho —e corresponsável pela de Mariana em 2015— irá enfrentar uma série de processos movidos contra a empresa nos Estados Unidos. O EL PAÍS teve acesso a três petições de ações coletivas movidas por escritórios de advocacia dos EUA nas quais a Vale é acusada de ter mentido em relatórios enviados à Security Exchange Comission (SEC), órgão do Governo americano que regula as relações entre empresas de capital aberto e os investidores. Como consequência, dizem os documentos, os acionistas que compraram papéis da mineradora nos EUA perderam dinheiro com a queda das ações após o rompimento da barragem. O valor a ser cobrado da Vale ainda não foi revelado. Segundo reportagem do jornal Valor Econômico, ao menos nove ações do tipo já foram protocoladas na Justiça americana. A expectativa é que uma vitória lá fora possa fortalecer ações contra a companhia no Brasil.

O presidente da Vale, Fabio Schvartsman, e Luciano Siani Pires, diretor-executivo de finanças e relações com o investidor da empresa, também são alvos. De acordo com as ações, ambos participavam “diretamente” na gestão da mineradora, e estão “direta ou indiretamente envolvidos em elaborar, produzir, revisar e/ou disseminar declarações e informações falsas e enganosas”. A ação movida pelo escritório Rosen Law Firm, com sede em Nova York, embasa sua petição com afirmações supostamente enganosas contidas em documentos de prestação de contas oferecidos pela Vale à SEC.

Um deles é o formulário 20F, apresentado ao órgão regulador em 2017. De acordo com o documento, a Vale afirmava “monitorar e inspecionar barragens (...) de acordo com a legislação em vigor no Brasil”. Isso incluiria auditorias externas de estabilidade da estrutura duas vezes ao ano, revisões de segurança e plano de treinamento para emergências. No outro formulário, de número 6K, de 30 de maio de 2018, a empresa detalhava como inspecionava as barragens. A petição contra a Vale afirma que as declarações prestadas nos documentos acima “são materialmente falsas ou enganosas, e falharam em revelar fatos adversos pertinentes à operação da Vale”.

A acusação de que a Vale mentiu ou omitiu informações nos documentos apresentados ganha força à medida em que as investigações avançam no Brasil. A Polícia Federal teve acesso a e-mails trocados entre funcionários da mineradora e da Tüv Süd, empresa de consultoria alemã. Nas mensagens fica claro que a Vale sabia que sensores da barragem estavam com defeito. Um engenheiro da companhia alemã confirmou os problemas em depoimento à PF, e disse ter sido pressionado pela mineradora a assinar o laudo de estabilidade da barragem.

Para os advogados responsáveis pela ação, “a Vale falhou em analisar o risco de dano potencial de um rompimento na barragem de Feijão”. Além disso, “os programas para mitigar danos de saúde e segurança foram inadequados, e consequentemente dezenas de pessoas morreram e centenas estão desaparecidas” —o último balanço das operações de resgate em Brumadinhoconfirmou 157 mortes e 182 pessoas desaparecidas. Outra consequência da tragédia, diz a petição, “foi a queda no valor de mercado das ações da companhia, que levaram a perdas significativas para os signatários desta ação coletiva”. Outras bancas de advogados como a The Schall Law Firm e o Bronstein, Gewirtz & Grossman também entraram com ações semelhantes.

“Não é uma jurisprudência automática, ganhou lá ganhará aqui, mas é um argumento fortíssimo”, explica o advogado Mario Nogueira

A jurisprudência dos EUA tende a ser favorável a este tipo de ação. “O sistema americano, com relação à responsabilização é bem mais duro do que o brasileiro”, afirma Mario Nogueira, sócio do NHMF advogados. “E Nova York é a capital financeira do mundo, junto com Londres. Então estes locais têm um especial cuidado com esses casos, porque se os tribunais não acolherem este tipo de ação, isso pode afastar investidores”, afirma, referindo-se à cidade onde as ações foram protocoladas. De acordo com Nogueira, estes processos têm força para afetar ainda mais o balanço da Vale. “As indenizações americanas não são modestas, é comum ver ações risíveis saindo com valores enormes”, diz.

Uma derrota lá daria força para os eventuais processos que serão movidos contra a Vale no Brasil. “O sistema brasileiro é diferente, temos conceitos legais diferentes, mas é claro que uma condenação lá fora pode ser apresentada para um juiz aqui. Não é uma jurisprudência automática, ganhou lá ganhará aqui, mas é um argumento fortíssimo”, completa o advogado.

Na Bolsa de Nova York os papéis da Vale despencaram após a tragédia de Brumadinho. Além disso a mineradora teve bloqueado mais de um bilhão de dólares pela Justiça brasileira. No dia 28 de janeiro, três dias após o rompimento da barragem, as ações da empresa chegaram a cair 24% no ibovespa, uma perda de cerca de 70 bilhões de reais do valor acionário.

A Vale não será a primeira grande empresa sediada no Brasil a enfrentar grandes processos nos Estados Unidos. Em janeiro de 2018 a Petrobras fechou um acordo no qual se comprometia a pagar quase 3 bilhões de dólares para encerrar uma ação coletiva movida por acionistas no país após as perdas decorrentes do escândalo da Lava Jato. Para o analista Rafael Passos, da Guide Investimentos, os danos de médio longo prazo para a Vale dependerão do valor das ações movidas contra ela. “O caso da Petrobras foi bem significativo. Mas se vier um número menos relevante, ela mantém fôlego financeiro”, afirma. Ele destaca ainda os danos colaterais para a saúde financeira da empresa, como a provável suspensão de licenças para barragens, o que impacta as operações.

Nesta sexta-feira, 8 de fevereiro, a Vale informou que foi intimada a realizar um depósito judicial no calor de 7,431 bilhões de reais em cumprimento das ordens de bloqueio de recursos, cuja maior parte dos recursos será destinada às vítimas. No mesmo dia, a empresa divulgou uma nota em que afirma que contratou um “painel de peritos, pelo escritório americano Skadden, para avaliar as causas técnicas do rompimento da barragem em Brumadinho”.

A reportagem entrou em contato com a Vale para saber como a empresa avalia os processos de que será alvo nos EUA, mas não obteve resposta até a conclusão da reportagem.


Míriam Leitão: Um país que ignora os riscos

Ano mal começou e o país conta mortos de várias tragédias. Algumas, como a da Vale, repetem o mesmo enredo: quem manda não segue o princípio da precaução

O ano mal começou. Ainda é o começo de fevereiro. E estamos contando os mortos em tragédias sucessivas. O fogo mata jovens num centro de jogadores, a chuva desaba deslizando encostas no Rio, uma barragem soterra mais de trezentas pessoas. Muito do que nos infelicita poderia ter sido evitado, principalmente a tragédia de Brumadinho, para a qual, tantos dias depois, a Vale não tem explicação plausível. Em muito do que está atingindo o Brasil há a mesma causa: o desprezo pelo princípio da precaução.

O dia de ontem já começou alarmante. Enquanto o incêndio matava meninos jogadores no Rio, mineiros corriam na madrugada de Barão de Cocais com a sirene disparada. Eles moram perto de uma barragem, e elas são bombas que podem explodir. Brumadinho, tempestade com deslizamentos no Rio e a dolorosa perda dos meninos do Flamengo, tudo em tão pouco tempo mostra de forma aguda como o país tem falhado em proteger os seus.

O princípio da precaução nos ensina que se há um cenário ruim é contra ele que precisamos nos preparar. No Brasil, avisos eloquentes não são ouvidos. Brumadinho nasceu em Mariana. A análise do desastre de três anos atrás deixa claro que a Vale construiu a sua repetição. E não estamos livres de novos horrores como lembraram as sirenes de Barão de Cocais.

Em 2015, nos primeiros dias após o rompimento da Barragem de Fundão, a Vale tentou fingir que o problema era da Samarco. Na hora da reparação, Vale e BHP criaram a Renova e entregaram a ela dinheiro e responsabilidade. Terceirizaram a culpa e a reparação do dano. Por fim, as empresas fecharam um pacto com o MP e os governos, que extinguiu a ação civil pública de R$ 20 bilhões. Segundo a Vale, tudo estava resolvido. Falso. O Rio Doce continua sequelado, os diretamente atingidos não tiveram suas casas reconstruídas, e os outros milhares de afetados permanecem carregando suas dores e seu desamparo.

O que ela podia ter feito diferente? Tudo. A Vale deveria ter iniciado imediatamente a transição para nova tecnologia de barragem com menos risco em todos os casos. Deveria ter desarmado as bombas que são as barragens úmidas, drenando, retirando os rejeitos sólidos e os separando para a reciclagem. Essa tecnologia já está dominada. Era e ainda é o único caminho para resolver estruturalmente o problema.

Dinheiro não faltou à Vale. Seus resultados financeiros mostram que, apesar do prejuízo de 2015, quando houve a tragédia de Mariana, o lucro líquido acumulado nos 10 anos anteriores superou R$ 150 bilhões em valores nominais. E que superaram os R$ 40 bilhões nos três anos após Mariana. A atitude da Vale — das reações em Mariana até o teor dos emails sobre Brumadinho revelados esta semana — é uma lição às avessas. Ensina o que não fazer. Os moradores vizinhos às barragens vivem ameaçados por novos rompimentos. Já não dormem, vigiam sirenes.

O Rio fica sobressaltado a cada chuva. A dolorosa tragédia da Serra, há oito anos, em que morreram 908 pessoas, e as muitas enchentes na capital ensinaram que as encostas deslizam com muita frequência pelos erros da ocupação urbana, pela falta de prevenção, porque o setor público ignora a precaução. Depois de enterrados os mortos, volta tudo ao que era antes. As chuvas serão mais intensas, os ventos, mais violentos. Extremos serão mais frequentes com as mudanças climáticas. Como nos proteger?

São casos diferentes, mas a morte dos meninos jogadores do Flamengo precisa ser bem apurada para ver se eles são vítimas também do descaso e da negligência. As investigações ajudarão a apontar a razão exata, mas o roteiro é sempre o mesmo: estavam dormindo em locais provisórios à espera do definitivo centro de treinamento. O Brasil vive à espera do definitivo. Em Minas, famílias de 182 desaparecidos ainda esperam os corpos dos seus entes queridos, e podem não recebê-los, apesar da emocionante dedicação dos Bombeiros.

Em agosto do ano passado, Fabio Schwartzman afirmou: “o único risco para a Vale é a economia global virar de cabeça para baixo.” Estava errado. O risco não era externo. O perigo maior permanece aqui dentro. A mineração sempre teve uma visão predatória, principalmente nas minas de Minas.

Diariamente o país corre riscos por não se preparar para o que pode ser evitado. E assim vamos chorando mortes prematuras e imaginando o que poderiam ter sido aqueles que nos deixam cedo demais.


El País: Com laudos sob desconfiança, MP faz pente fino para checar risco real de barragens

Documento interno da Vale sobre risco de barragens de junho de 2018 coloca dez estruturas na "zona de atenção". Análise da empresa foi apreendida durante operação que deteve engenheiros de Brumadinho

O rompimento de barragens de mineração consideradas de baixo risco de acidente — como eram as de Brumadinho e de Mariana — tem colocado em xeque os laudos de estabilidade emitidos pelas auditorias contratadas pelas mineradoras. A quebra de confiança nas declarações de estabilidade apresentadas pelas empresas desde que a barragem I da Mina do Feijão ruiu e matou pelo menos 157 pessoas em Brumadinho tem levado procuradores de Minas Gerais a executarem uma operação pente fino para identificar o risco real das barragens à população, que segundo eles não estaria alinhado ao que atestam as mineradoras nos laudos que apresentam.

Em um documento interno apreendido durante a operação policial que prendeu engenheiros e executivos envolvidos na elaboração do laudo da barragem de Brumadinho, a Valejá colocava a estrutura que rompeu no que chama de "zona de atenção". O documento chamado Gestão de Riscos Geotécnicos foi elaborado em junho de 2018 e analisa o risco de 57 barragens da empresa. Além da Barragem I da Mina do Feijão, outras nove minas estão incluídas nesta "zona de atenção". Questionada pelo EL PAÍS, a mineradora não explicou exatamente quais os riscos que envolvem as estruturas assim catalogadas nem respondeu se elas estão em dia com a documentação de fiscalização e monitoramento que é obrigada por lei a enviar para a Agência Nacional de Mineração (ANM). Quase todas elas são consideradas como barragens de baixo risco de acidente, mas alto dano em caso de um eventual rompimento.

Oito destas barragens da "zona de atenção" tiveram suas atividades paralisadas na semana passada por uma decisão judicial. A 22ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte determinou que a Vale se abstenha de lançar rejeitos ou praticar qualquer atividade potencialmente capaz de aumentar os riscos das barragens Laranjeiras, Menezes II, Capitão do Mato, Dique B, Taquaras, Forquilha I, Forquilha II e Forquilha III. As três últimas foram inseridas no plano de descomissionamento da empresa, que desde o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, havia decidido desativar barragens similares, construídas sob o método de loteamento a montante, considerado mais econômico e menos seguro. Após a tragédia de Brumadinho, cuja barragem também foi construída com esse método, a mineradora anunciou que iria acelerar o descomissionamento dessas estruturas e desativá-las em até três anos.

A análise de risco nas barragens feita pela própria Vale causou preocupação no Ministério Público Federal, que abriu pelo menos quatro inquéritos civis para averiguar se essas barragens de rejeitos específicas, operadas pela mineradora, estão de fato estáveis. Ao órgão, já não é suficiente conseguir as declarações de estabilidade de barragem assinadas por engenheiros de auditorias terceirizadas contratadas pelas mineradoras, mas é preciso ter acesso a todos os documentos de fiscalização e monitoramento das barragens para tentar se aproximar dos riscos reais das barragens. "É uma situação muito preocupante. Brumadinho chamou a atenção das autoridades em relação a estes laudos de segurança. A barragem de fato já tinha alto risco", diz a procuradora Mirian Lima. "O Ministério Público está atuando em procedimentos de natureza preventiva para evitar que novos desastres ocorram por conta de laudos que na verdade não retratam a realidade", acrescenta.

A Barragem I, que rompeu, tinha todos os laudos de estabilidade e documentos de fiscalização reportados à ANM. As autoridades, porém, não sabiam que a estrutura estava destacada na análise de riscos interna da própria Vale. Executivos da mineradora e engenheiros da empresa de auditoria alemã que assinaram o laudo foram presos provisoriamente por uma semana e há suspeita de fraude nestes documentos. "As empresas [que avaliam a estabilidade das barragens] agora [depois das prisões] estão mais temerosas de fazer determinados laudos sem retratar a realidade. Muitas dessas barragens estão tendo seus laudos revistos. Até então, o que a gente observa é que havia uma certa comodidade [nos próprios órgãos de fiscalização] de finalizar procedimentos dessa natureza quando existisse laudo", afirma a procuradora.

Famílias são desalojadas por risco de rompimento

Nesta semana, a empresa contratada para auditar a barragem Sul Superior, no município mineiro de Barão de Cocais, não atestou a estabilidade da estrutura, também de propriedade da Vale. A mineradora então comunicou o fato à ANM, que vistoriou o local e determinou a retirada imediata de 239 pessoas das comunidades do entorno. Na madrugada da última sexta-feira, as sirenes chegaram a ser ativadas no município para alertar à população que ela deveria sair daquela zona pela possibilidade de rompimento. A 180 quilômetros de lá, outra mineradora, a ArcelorMittal, acionou o poder público para desalojar 65 famílias que vivem próximo à barragem de Serra Azul, em Itatiaiuçu, após detectar riscos de segurança em inspeções que já incluiriam dados e aprendizado decorrentes do rompimento de Brumadinho. Essas famílias estão alojadas em hotéis da região e só deverão retornar às suas casas quando as inspeções nas estruturas atestarem sua estabilidade.

"Hoje, não há como definir no Estado uma barragem que esteja com uma condição tranquila. Não é verdadeiro dizer que a barragem tal está em boas condições. O que temos é um retrato do momento em que o engenheiro esteve lá e, de boa fé ou não, atestou. Se acontece algo externo, [a situação] pode mudar", disse a procuradora Claudia Ignez, em entrevista na tarde desta sexta-feira na qual informava sobre as investigações que lidera para averiguar a estabilidade das 26 barragens de mineração sob sua jurisdição na comarca de Nova Lima. "Temos um conhecimento incipiente porque havia pouca informação histórica dessas barragens. Elas já podem até estar descomissionadas. O que estamos buscando é a identificação das barragens e a busca pela periculosidade que elas oferecem", afirma. A procuradora defende mais transparência com o envio da documentação de fiscalização para autoridades e não só para a ANM, que hoje concentra essa documentação. Também sugere a exigência pelo Estado de um monitoramento em tempo real das barragens. "É um sistema até bem barato pelo estrago que se faz [quando há um rompimento]", argumenta.

Está em curso no Ministério Público Federal e Estadual de Minas Gerais uma operação para passar o pente fino nas barragens de mineração. Os procuradores têm feito dezenas de pedidos à ANM nas últimas semanas sobre informações detalhadas sobre a fiscalização e o monitoramento dessas estruturas. O Estado concentra mais da metade das barragens inscritas na Política de Nacional de Segurança de Barragens (PNSB), que inclui aquelas de resíduos perigosos e dano potencial associado (pelo impacto ambiental e localização em áreas próximas a núcleos urbanos) média ou alta. Um total de 219 das 425 barragens nesta situação está em Minas Gerais.


Roberto Macedo: Só fiscalizar barragens não resolve

Solução é proibir novas a montante, como a de Brumadinho, e a operação das existentes

Como muita gente, acompanho com grande pesar a tragédia de Brumadinho. E também porque tenho uma ligação afetiva com essa cidade. Quando criança, em Minas Gerais meu tio padre Aderbal foi vigário na localidade. O nome vem da bruma ou neblina que se forma na região e pode ser vista ao amanhecer.

Bem mais recentemente estive em Brumadinho para uma caminhada com amigos no entorno dela, que terminou no Inhotim, amplo espaço que na natureza acomoda importante acervo de arte contemporânea e coleção botânica com espécies raras de vários continentes. Já fui lá duas vezes e numa delas via a bruma.

Nessa caminhada vi uma pequena mineração, mas não a enorme do Córrego do Feijão, onde aconteceu o recente desastre. O noticiário sobre o assunto foi abundante. E continua. Resumo aqui o que aprendi com ele e minha visão sobre a administração de riscos de barragens como essa.

Inicialmente as notícias enfatizaram muito a associação do desastre com falhas de fiscalização da estabilidade das barragens. Depois ficou claro que houve também falha de projeto, pois são permitidas barragens a montante, como nesse caso. Elas são construídas mediante sucessivas camadas desses resíduos, compactadas numa ponta de onde se localizam. E não a jusante desses depósitos, onde em terreno firme e com outros materiais elas teriam maior sustentação. O último vídeo que vi sobre o rompimento foi o mais amplo, mostrou-o desde o início, e vê-se que a lama começou a sair pelo lado de baixo da represa, evidenciando a fragilidade da construção a montante.

Cabe, assim, proibir a construção de barragens desse tipo e desativar as ainda existentes. O presidente da Vale falou de “descomissionar” todas essas barragens, explicando que isso significa prepará-las para que sejam integradas à natureza.

É ver para crer. Por enquanto, essas barragens, da Vale e de outras empresas, estão aí. E mesmo que proibido o seu uso, decorrerá algum tempo até que os riscos sejam eliminados. Assim, é preciso monitorá-las, mas algo mais abrangente que fiscalizações e outros exames periódicos. O noticiário referiu-se a laudos de datas passadas, mas o monitoramento deve ser permanente, em tempo real, com sensores e alarmes que indiquem o seu status, a probabilidade de rompimentos, a antecipação e o alarme de eventuais problemas. Segundo a Folha de S. Paulo de 4/2, tecnologia para isso já existe, mas a Vale se recusou a adotá-la. Sabe-se que havia no local da barragem de Brumadinho uma sirene que deveria ter funcionado quando o desastre começou, mas foi levada pela lama. A mesma reportagem fala de uma combinação de satélites, drones e sensores para o monitoramento em tempo real.

A lição básica de Mariana e desse novo desastre é que riscos foram mal avaliados e mal administrados. Um risco é associado à incerteza quanto a um evento que, se materializado, pode trazer perdas econômicas e humanas. Na sua administração há dois aspectos essenciais: a probabilidade de se manifestarem e a severidade dos danos a que podem levar. Ponderando frequência e severidade, pode-se evitar, reduzir, transferir, compartilhar ou assumir riscos.

Nas barragens a montante, evitar seria proibir novas e desativar as ainda existentes. Isso implicaria transformá-las em terrenos secos ou com pequenos lagos e reflorestar as áreas correspondentes, entre outras formas de reintegrá-las à natureza. Reduzir riscos envolveria medidas como essa do monitoramento em tempo real.

A tradicional fiscalização governamental poderia ajudar, mas não vejo como o governo possa realizá-la de forma ágil e eficaz com os recursos humanos e financeiros de que dispõe. E muito menos em tempo real. Riscos também poderiam ser menores se removida a ocupação de terrenos a jusante que poderiam ser atingidos por seu rompimento. Como foi possível a Vale ter um restaurante e escritório nessa condição, em Brumadinho? Foi mesmo uma irresponsabilidade.

Transferir riscos seria, por exemplo, o caso de passá-los a uma seguradora, mas a julgar pelo desastre de Mariana elas não cobrem a extensão das perdas econômicas, muito menos a de perdas humanas, a preocupação fundamental. O compartilhamento, uma forma de transferência, não sei no que ajudaria se realizado entre seguradoras. Assumir riscos foi o que a Vale essencialmente fez. E merecidamente terá de arcar com os ônus decorrentes.

Políticas públicas quanto a riscos de barragens como a de Brumadinho precisam ponderar, portanto, que empresas responsáveis por elas envolvem o risco de não se comportarem adequadamente, aumentando a probabilidade de o risco se materializar. E de serem ineficazes na reparação dos danos se isso acontecer. O desastre de Mariana mostrou que multas não foram pagas em sua totalidade e ainda há gente reclamando indenizações.

Portanto, a solução é proibir novas barragens a montante e o funcionamento das existentes. Respeitado um período de ajuste, isso não paralisaria a mineração, pois há tecnologias modernas que dispensam o uso de barragens de resíduos, qualquer que seja o seu tipo.

Mas é preciso dar um tempo às mineradoras, sem asfixiá-las financeiramente ou em suas atividades produtivas. A Justiça já bloqueou R$ 11,8 bilhões nas contas da Vale, sem ponderar os riscos de exagerar na necessidade de tantos bilhões. E na terça-feira aquele mesmo jornal anunciou ordem judicial que mandou suspender as operações de oito barragens da Vale em Minas Gerais, incluída a de uma mina que é a maior da empresa no Estado.

Parecem-me decisões tomadas a montante do problema, sem ponderar os riscos a jusante, como o desemprego e os danos à arrecadação tributária de municípios dependentes das atividades de mineração.

*ECONOMISTA (UFMG, USP E HARVARD), CONSULTOR ECONÔMICO E DE ENSINO SUPERIOR, É PROFESSOR SÊNIOR DA USP


José Casado: Lucros e bônus envenenados na mineração

Acionistas e executivos têm um histórico de governança cataclísmica

Desde que trocou a vida nômade em tendas no gélido deserto canadense pelo escritório aquecido na York Street, em Toronto, o britânico Jonathon Paul Rollinson, 56 anos, passa o tempo imaginando formas mais baratas de aumentar a extração de ouro em três continentes.

No Brasil cortou custos, aumentou produção (25%) e lucros. Ano passado, o chefe da Kinross embolsou R$ 29 milhões em salário e bônus.

A mina de ouro brasileira está dentro de Paracatu (MG), oito mil quilômetros ao sul de Toronto. Ali, dinamitam-se rochas. O ouro é extraído a céu aberto. Por cada grama, libera-se em média 2,8 quilos de arsênio. É um ambiente tóxico, onde vivem 80 mil pessoas, com prevalência de múltiplas doenças. A Kinross represa 60 mil toneladas de puro veneno a 500 metros dos bairros mais pobres.

O medo avança na esteira da lama química, política e corporativa que já devastou Mariana e Brumadinho. Empresas como Vale, BHP Billiton, Norsk Hydro, CSN, Anglo American, Aterpa, Ashanti e outras 360 precisam se reinventar com urgência.

Acionistas e executivos têm um histórico de governança cataclísmica. Se enlaçaram na própria negligência e na leniência dos amigos no poder. Elevaram o perigo de catástrofes nas comunidades onde extraem valiosos lucros e bônus anuais.

À margem de exuberantes códigos de ética, são responsáveis por inovações no dolo corporativo. Mesmo sem intenção, socializam perdas exponenciais na economia.

Entre sequelas está o aumento do custo do dinheiro nas operações de crédito para todas as empresas e o setor público brasileiro.

Com Mariana e Brumadinho, em apenas 38 meses, a Vale viu seus papéis rebaixados a “lixo” por agências como a Fitch (S&P e Moody’s indicam a mesma trilha). Ela era um dos sete casos de sobrevivência, com certificado global para investimento, em meio à aguda recessão e crise política. Sua lama química, política e corporativa agora respinga em outros setores. A sociedade, que subsidia as mineradoras, vai pagar mais enquanto resgata corpos soterrados.


Fernando Gabeira: Algumas reflexões diante da lama

Nem tudo será esquecimento; 348 pessoas soterradas pela lama ficarão para sempre na memória das famílias

Difícil não ser caótico para descrever uma catástrofe.

“O Rio? É doce/ A Vale? Amarga/ Ai, antes fosse/ Mais leve a carga” (Carlos Drummond de Andrade).

Viajei triste para Brumadinho. Estou cansado de desastres. Conheço até sua lógica: tristeza, indignação, medidas urgentes para acalmar os ânimos e logo depois o esquecimento.

A única forma de suportar o que veria era levar a obra de Drummond na viagem. Ninguém melhor do que ele descreveu as relações das mineradoras com a paisagem e mesmo com as almas. Talvez seja o melhor caminho para entender toda essa história.

Drummond era ao mesmo tempo a testemunha e o profeta. Morreu antes do desastre de Mariana, não viveu a fase trágica que se completa agora com o desastre em Brumadinho. A maneira como descreve Itabira é um desastre em câmera lenta.

Depois de Mariana, passei a seguir o trilho da mineração. Cobri um vazamento de alumínio nos igarapés de Barcarena, no Pará. Em seguida, o rompimento do mineroduto em Santo Antônio do Grama.

Não foram em barragens, onde se situa o maior perigo, sobretudo a do tipo de Mariana, que deveria ser proibida. Era uma decorrência do desastre. Mas onde estavam governo e Parlamento? Muito próximos da indústria, muito longe das pessoas e da natureza.

Onde estava a Justiça no caso de Mariana? Por que tão lenta? No ano passado, estive lá e nos escombros comentei a decisão de um juiz de suspender o processo contra a Samarco. Chicanas.

Tenho um pouco de escrúpulo em dizer: isto não pode se repetir. As coisas se repetem tanto. O presidente da Vale, Fabio Schvartsman, assumiu o cargo com o slogan “Mariana nunca mais”. Agora, a Vale quer prometer Mariana e Brumadinho, nunca mais. É só ir empurrando o nunca mais para o fim e acrescentando alguns nomes antes dele.

Lembra-me dos trens italianos, rapido, molto rapido, rapidissimo .

Acreditamos demais na palavras. O presidente da Vale estava na plateia em Davos quando o presidente Bolsonaro afirmou que o Brasil é o país que mais protege o meio ambiente no mundo. Falava apenas da relação das florestas com agricultura e pecuária.

Isso é um problema antigo com Bolsonaro. Ele teve a ideia de fundir o Ministério da Agricultura com o do Meio Ambiente. Argumentei que o meio ambiente era mais amplo, crise hídrica, saneamento básico, estendia-se até o licenciamento no pré- sal.

A pressão de todos os lados o fez recuar: manter o Ministério do Meio Ambiente. Mas, ao falar em Davos, de novo ele abstraiu o meio ambiente e o reduziu à questão do campo.

Bolsonaro dizia na campanha que o Ibama é uma indústria de multa. O Ibama não recebeu, por exemplo, nenhum centavo da multa de R$ 250 milhões aplicada à Samarco. É uma indústria completamente falida. Seus devedores não pagam.

Não vou argumentar mais, o desastre fala por si: toneladas de lama, bombeiros rastejando no barro fétido, uma vaca atolada, uma antena de TV flutuando, uma caixa-d’água, o desespero das famílias.

A sirene que não tocou, e a lama levou os hóspedes da Nova Estância, a própria pousada foi arrastada. Eles tinham um plano de fuga. E a sirene não tocou. Eram 34, ao que me consta. E mais um bebê na barriga da mãe, mulher de um arquiteto brasileiro que vivia na Austrália e veio conhecer Inhotim. E a sirene não tocou.

A resposta geral do governo Bolsonaro foi rápida. Vem aí um Plano de Segurança das Barragens. Faltou aparecer o responsável pela Agência Nacional de Mineração. Pode ser que não tenha visto, estava no meio do desastre.

O que mais temo no pós-desastre é o esquecimento. Triste como a música do Piazzolla “Oblivion”. É um país se esquecendo de si próprio. Essa talvez seja a resposta para a pergunta mais adequada. Por que o que não pode se repetir tem se repetido? Esquecimento. Mas, pelo menos, a obra de Drummond lembrará para sempre as origens do drama:

“Quantas toneladas exportamos/ De ferro?/ Quantas lágrimas disfarçamos/ Sem berro?”

Nem tudo, entretanto, será esquecimento. Trezentos e quarenta e oito pessoas soterradas pela lama ficarão para sempre na memória das famílias, dos amigos, dos bombeiros de vários pontos do Brasil, dos soldados israelenses, voluntários, repórteres amadores, todos que se aproximaram física ou emocionalmente da tragédia. Carregam na memória o capítulo trágico do testemunho poético de Drummond.


Dorrit Harazim: A (re)descoberta de um Brasil

Desastre — que é mais que desastre e tragédia, é crime — fez emergir um intenso sentimento nacional acima do fosso político-ideológico

Nada mais no país parece estar no mesmo escaninho de antes das 12h28m de 25 de janeiro, quando as sirenes da barragem da mineradora Vale em Brumadinho permaneceram mudas. Termos como “alteamento a montante” ou “a jusante” saltaram de planilhas de engenharia para o vocabulário caseiro de uma sociedade em choque. E brotou algo novo dessa primeira semana de luto em que substantivos como legislação, fiscalização, prevenção, responsabilização escancararam sua porosidade letal. Algo quase inebriante, que só poderá ser avaliado por gerações futuras: a possibilidade, ou pelo menos a oportunidade, de ocorrer um início de mudança na história da construção/ formação do Brasil.

“Colheita da morte” é o título da célebre série fotográfica de Timothy Sullivan e Alexander Gardner que retrata a batalha mais sangrenta da Guerra Civil americana —a de Gettysburg (1863), na Pensilvânia. Em apenas três dias de combate, as tropas confederadas do Sul e o exército do Norte sofreram algo entre 47 mil a 51 mil baixas. Foi talvez o momento mais decisivo do conflito, aquele que redefiniu para sempre a história dos Estados Unidos. Não se espera tanto do “vale da morte” de Brumadinho. Mas o desastre —que é mais que desastre e tragédia, é crime — fez emergir algo há muito esquecido no cotidiano cínico e raivoso de hoje: um intenso sentimento nacional acima do fosso político-ideológico. Quem apontou para essa fagulha de convivência foi o repórter Juan Arias, no diário espanhol “El País”, ao propor o Corpo de Bombeiros atuando em Minas como candidato ao Prêmio Nobel da Paz de 2019. “Esses bombeiros fizeram de suas mãos[...] um instrumento de paz e ilusão de poder encontrar vida”, escreveu ele, argumentando que o país reaprendeu a torcer por uma mesma coisa.

No entender do jornalista, o lodo tóxico da Vale serve de metáfora política do Brasil envolto em corrupção, violência, desamparo social. E esses incansáveis socorristas conseguiram o milagre de, por um instante, unificar a sociedade. “Eles semearam paz num momento em que o ceticismo secava corações”, observou. Pouca coisa não é.

Rastejando feito catadores de caranguejos que entram no mangue e ali tateiam o dia inteiro em busca do crustáceo, as equipes Desastre — que é mais que desastre e tragédia, é crime —fez emergir um intenso sentimento nacional acima do fosso político-ideológico de emergência chafurdam na gosma tóxica em busca de vida, mesmo que seja apenas um pedaço de vida. Da torrente de testemunhos que compõem o dantesco cenário, um relato do repórter André Borges, do “Estado de S.Paulo”, se sobressai. É cru. Retrata o que não dá para ver sobrevoando a região de helicóptero.

Borges se juntara a uma equipe de 11 brigadistas numa margem com vegetação, com incursões no lamaçal de até seis metros de profundidade à procura, ainda, de sobreviventes. Em determinado momento, alguns chegaram ao que seria um corpo humano. “Com luvas”, escreveu o repórter, “um deles se abaixa e passa a recolher órgãos . Vísceras, estômago, fígado. Roupas. Em fila indiana vão passando o que encontram de mão em mão, até depositar as partes sobre uma manta metálica no chão”. Nas primeiras 24 horas, o cômputo oficial era de nove mortos e 300 desaparecidos. No meio da semana, a equação já era outra: 99 mortos para 259 desaparecidos.

Na sexta-feira, encerrando a primeira semana de luto com 115 mortos, pétalas de flores foram jogadas sobre o vale da morte onde 248 ainda permanecem misturados à terra em transe. Como diz o bordão, todos nós somos iguais perante a lei, mas não perante encarregados de aplicá-la.

Raiva e indignação são formas de comunicação densa — elas repassam informação e contagiam com mais velocidade do que qualquer outra forma de emoção. O americano Charles Duhigg, Pulitzer de reportagem em 1998, sustenta que a indignação é uma grande força social e que emoções à solta, sem reconciliação ou catarse no horizonte, podem tornar uma sociedade destrutiva. Ou, no caso, simplesmente anestesiada pelo uso retórico e previsível, por parte de pequenos poderes e poderosos nominais, de declarações que começam por “’É preciso...”

Não é por acaso que o tenente Pedro Aihara, porta-voz do Corpo de Bombeiros encarregado de divulgar as boas e más notícias à nação, emergiu como um bálsamo pela postura e linguagem precisas, com ausência igual de afetação e empulhação. A classe política brasiliense deveria fazer um intensivão moral-cívico com ele. Brumadinho tanto pode retratar o passado, o presente ou o futuro do Brasil. A escolha é nossa de fazer história.


Elio Gaspari: As mineradoras precisam de uma Lava-Jato

Se as empresas tivessem a qualidade de seus advogados, nenhuma barragem teria se rompido

Os doutores das mineradoras precisam conferir o prazo de validade da vitória que conquistaram depois do desastre de Mariana. Morreram 19 pessoas, foram aplicadas 56 multas totalizando R$ 716 milhões, ninguém foi para a cadeia, e até hoje a Samarco (sócia da Vale) só desembolsou R$ 41 milhões. Se as empresas tivessem a qualidade de seus advogados, nenhuma barragem teria se rompido.

As mineradoras foram competentes para construir uma barragem política, judicial e administrativa. Projetos de aperto na fiscalização das barragens estão travados no Senado, na Câmara e na Assembleia de Minas. Uma iniciativa que elevaria para R$ 30 milhões o valor das multas cobradas às empresas atolou no Congresso, e o teto ficou em R$ 3.200. O Código de Mineração foi escrito em computadores de um escritório de advocacia de São Paulo, entre cujos clientes estava a Vale.

O setor do ministério de Minas e Energia que cuida de geologia e mineração foi dirigido e aparelhado por quatro veteranos da Vale. Uma empresa da família do deputado Leonardo Quintão (MDB-MG) explorou a bacia de rejeitos de Brumadinho. Por coincidência, o doutor relatou o Código de Mineração na Câmara. Como não se reelegeu, aninhou-se na Casa Civil de Bolsonaro. A Agência Nacional de Mineração tem 35 fiscais para 790 barragens de rejeitos.

Disso resultou que as sirenes da barragem de Brumadinho não foram acionadas. A Vale explica esse detalhe atribuindo o silêncio “à velocidade com que ocorreu o evento”. Os circuitos cerebrais do inventor dessa patranha devem estar desligados há anos.

No caso de Mariana, a Vale assumiu uma atitude de rara arrogância. Primeiro, tentou dissociar-se do desastre, dizendo que apesar de sócia do negócio, a barragem era de outra empresa, a Samarco. Clovis Torres, então diretor jurídico da Vale, foi mais longe: “A Samarco não é um botequim. Não é uma empresa qualquer”. Ofendeu os donos de botequim.

A barragem das mineradoras teve solidez. Assemelhou-se à das grandes empreiteiras em 2009, quando a Camargo Correa foi varejada pela Operação “Castelo de Areia”. Estava tudo lá, grampos, propinas e superfaturamentos. Graças ao mecanismo da blindagem, a investigação foi desmanchada no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal. Em 2014, um juiz pouco conhecido chamado Sergio Moro entrou na Operação Lava-Jato e deu no que deu. No ano seguinte, a Camargo Correa tornou-se a primeira grande empresa a colaborar com as autoridades, abrindo uma fila onde entraram todas as outras.

A estratégia vitoriosa em Mariana foi a “Castelo de Areia” das mineradoras. Brumadinho deveria ser um apelo para que comece uma nova Lava-Jato. As astúcias minerais e os malfeitos expostos pela Lava-Jato têm diferenças na dinâmica, mas convergem no desfecho. As empreiteiras distribuíam dinheiro para lesar a Viúva. As mineradoras blindaram-se para sedar a fiscalização e para controlar o poder público. Convergiram no dano, umas lesando o Tesouro, outras matando gente.

O prazo de validade da “Castelo de Areia” expirou com a Lava-Jato. A estratégia usada em Mariana precisa ter o prazo de validade anulado.

Como as mineradoras conseguiram blindar Mariana, adormecer o Congresso e aparelhar a máquina fiscalizadora? Uma nova Lava-Jato poderá trazer as respostas. Bastaria um juiz Moro e uma equipe de procuradores como a que surgiu em Curitiba. O resto vem por gravidade. O doleiro Alberto Youssef achou melhor falar, depois veio o engenheiro Paulo Roberto Costa, e assim foi. Se alguém fizer as perguntas certas, alguém falará.

A lição de Cordeiro
O marechal Cordeiro de Farias foi uma espécie de curinga nas revoltas militares do século passado. Esteve na Coluna Prestes, na Revolução de 30 e nos levantes de 1945 e 1964.

Em 1974, quando o comunista Luiz Carlos Prestes declarou-se condômino da vitória eleitoral do MDB, o deputado Thales Ramalho espinafrou-o. Cordeiro tinha um afeto paternal por Thales e, ao encontrá-lo, disse-lhe: “Não faça mais isso, seja qual for a tua divergência com o Prestes, ele é um personagem da História”.

Thales foi um marquês do Império na política da República e narrava o episódio com humildade. O pessoal que impediu a ida de Lula ao enterro do irmão Vavá tisnou as próprias biografias.

(No governo do general Figueiredo, o delegado Romeu Tuma, da Polícia Federal, tirou Lula da cadeia para o enterro da mãe.)

Um conservador
Os atrasados não são conservadores, são só atrasados.

Em 1974, pegou fogo um edifício comercial no centro de São Paulo, e nele funcionavam escritórios do Citibank. Morreram 189 pessoas. Quando Walter Wriston, presidente mundial do banco, soube que alguns de seus empregados tinham sido queimados e que John Reed, seu futuro sucessor, estivera no prédio dias antes, determinou que todas as sedes do Citi no mundo seguissem as normas do Corpo de Bombeiros de Nova York.

A adaptação custou milhões de dólares.

Anos depois, ao ouvir essa história, o presidente brasileiro do Banco de Boston, comentou: “É por isso que o Citi não consegue vender suas sedes”. Em 2011, o banco foi vendido ao Itaú (em tempo, o banqueiro não era Henrique Meirelles).

Wriston nunca teve empregada em casa e, quando foi sondado para ser secretário do Tesouro, recusou, porque não via razão para mostrar suas finanças ao governo. Impôs uma política de cotas ao RH e não promovia fumantes.

Era apenas um conservador.

Mourão falador
Estranha turma a de Bolsonaro. Está contrariada porque o vice-presidente fala demais.

Mas foi precisamente por falar demais que o general Hamilton Mourão entrou na chapa do candidato.

Mourão calado é uma fantasia.

Dr. Eremildo
A imprensa persegue os governos.

Em 2009, o repórter Luiz Maklouf Carvalho mostrou que a biografia oficial de Dilma Rousseff apresentava-a como doutora em economia pela Unicamp sem que ela tivesse apresentado a tese que lhe daria o título.

Agora, a repórter Anna Virginia Balloussier mostrou que a ministra Damares Alves se apresenta como “mestre em educação, em direito constitucional e direito da família” sem ter qualquer título de mestrado. A doutora explicou que a fonte de seu qualificativo é bíblico.

Eremildo, o idiota, é mestre em capoeira e xadrez.

É fria
Os çábios que orientam a defesa de Fabrício Queiroz acham que ele deve ir ao Ministério Público levando um texto e mantendo-se em silêncio.

Marcelo Odebrecht teve a mesma ideia. Meses depois começou a falar, ao vivo e a cores.
Os procuradores não têm pressa, só perguntas.

Encrenca
A próxima encrenca que azucrinará a vida de políticos do Rio poderá ser a comprovação de que dinheiro das milícias caía na conta de funcionários de gabinetes de alguns deputados.