TSE

Cristovam Buarque: Desculpas pelo atraso

Não teremos futuro sem escola com máxima e igual qualidade para todos

No dia seguinte ao pleito de 15 de novembro, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do TSE, pediu desculpas pelo atraso de algumas horas na divulgação dos resultados eleitorais. Surpreende que ninguém antes tenha pedido desculpas pelo atraso educacional de cem anos. Nem temos a quem responsabilizar: não há TSE da educação nacional.

Presidentes e ministros cuidam de universidades e escolas técnicas, enquanto a educação de base é responsabilidade de quase 6 mil prefeitos e alguns governadores. A população com renda não culpa o governo, porque utiliza escolas particulares; os pobres acostumaram-se a ver a escola como restaurante para os filhos receberem merenda. O eleitor não dá à educação a mesma atenção que ao resultado rápido da eleição.

Todos os presidentes e políticos, desde 1889, especialmente depois de 1985, devem pedir desculpas pelo atraso e pela desigualdade educacional no Brasil.

Fui ministro por 12 meses e devo pedir desculpas por não ter construído força política para me manter no cargo pelo tempo necessário para implementar as ferramentas que defendo, e iniciei, como a Escola Ideal, embrião de um sistema nacional de educação de base. Como governador, implantei a Bolsa Escola e diversos programas na educação de base no Distrito Federal. Como senador, criei duas dezenas de leis, como a do Piso Salarial Nacional dos Professores, a obrigatoriedade de vaga desde os 4 até os 17 anos de idade. Mas nada disso mudou a realidade. Como candidato a presidente só consegui 2,5% dos votos.

Reitero as desculpas por não ter convencido a opinião pública de que educação é o vetor do progresso e a estratégia para isso passa pela nacionalização do sistema municipal. A educação não será de máxima qualidade, nem será igual nas 200 mil escolas do Brasil, enquanto a responsabilidade pela educação das crianças brasileiras não for do governo federal.

Para isso cinco passos são necessários: 1) transformação do MEC em ministério com a responsabilidade exclusiva de cuidar da educação de base; 2) criação de uma carreira nacional do magistério, todos os professores com muito boa formação, avaliados permanentemente, com dedicação exclusiva e, para isso, muito bem remunerados; 3) prédios escolares com a máxima qualidade e instalações culturais e esportivas; 4) escolas com os mais modernos equipamentos da pedagogia, que permitam saltar das tradicionais aulas teatrais para as aulas cinematográficas com recursos da teleinformática, adotando métodos que desenvolvam a criatividade; 5) todas as escolas em horário integral.

Raríssimas cidades são capazes de financiar a execução dessa estratégia. Ela requer processo de nacionalização da educação de base ao longo de alguns anos, com adesão voluntária de cidades que queiram substituir seus frágeis sistemas educacionais por um robusto sistema nacional.

O custo para ter essa “escola ideal” é de R$ 15 mil/ano por aluno. Valor que permitiria financiar todos os gastos e investimentos e pagar salário de R$ 15 mil ao professor por mês, em salas com 30 alunos. Esse salário faria do magistério uma profissão atraente, permitindo que o selecionado aceitasse ir para a cidade que lhe fosse determinada, com dedicação exclusiva à sua escola e submetido a avaliações periódicas. Num ritmo de 300 cidades por ano, o novo sistema chegaria a todo Brasil em 20 anos. Se o PIB crescesse a um ritmo médio de 2% ao ano, o sistema nacional custaria cerca de 7% do PIB, para atender 50 milhões de alunos.

Considerando que o número de alunos deverá ser menor e que as novas técnicas permitirão diminuir o custo por aluno, a dificuldade dessa estratégia é política: convencer os ricos de que a escola com qualidade apenas para seus filhos amarra o progresso do País e limita o bem-estar e o futuro de todos; e os pobres, de que seus filhos têm direito a uma escola que ofereça muito mais do que merenda e seja tão boa quanto as melhores do país. Convencer também os políticos de que terão de enfrentar eleitores mais conscientes; e mostrar aos sindicatos que os interesses dos professores devem ser associados aos interesses das crianças, da educação e do futuro do país.

Não será fácil atrair a população para a ideia de que as escolas brasileiras poderão ser tão boas quanto as de países com educação de qualidade. E que crianças pobres devem ter escolas com a mesma qualidade das dos ricos.

No final do século 19 tivemos dificuldade para convencer que era possível o Brasil ser um país industrial e para isso era preciso abolir a escravidão. Agora o desafio é convencer que sem escola com a máxima qualidade para todos não completaremos a Abolição, nem avançaremos para o progresso com eficiência econômica, justiça social e sustentabilidade ecológica no mundo global da civilização que caracteriza o século 21. Antes não tínhamos futuro com a escravidão, agora não teremos futuro sem escola com máxima e igual qualidade para todos. E que nenhum cérebro seja deixado para trás. Enquanto isso não for feito, precisamos pedir desculpas pelo atraso a que condenamos o Brasil.

*Professor Emérito da Universidade de Brasília


O Estado de S. Paulo: Brasil se torna alvo de hackers com mais de 20 mil notificações ao ano

Sistema do TRF-1 foi invadido na noite de anteontem; em mensagem enviada ao 'Estadão', hacker negou motivação política e disse ter agido por 'diversão'

Vinícius Valfré, Tânia Monteiro e Patrik Camporez, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - Um ataque hacker ao Tribunal Regional Federal da 1.ª Região tirou do ar ontem o sistema do maior tribunal do País. Foi a quarta grande instituição federal a ser atacada em menos de um mês. Ao todo, foram mais de 20 mil notificações registradas por órgãos públicos em 2020, até este mês, segundo monitoramento do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência.

Embora a invasão da maior Corte federal de segunda instância não tenha provocado bloqueio ou vazamento de informações sensíveis, ela ajuda a alimentar desconfianças sobre a segurança de dados do Judiciário. No dia 15, data do primeiro turno das eleições municipais, um ataque hacker ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) não chegou a prejudicar o resultado das urnas, mas foi usado por bolsonaristas para impulsionar uma campanha de desinformação.

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O TSE reforçou seu sistema de segurança digital para o segundo turno, que ocorre amanhã. Toda a ação até agora, incluindo o uso das redes sociais para divulgar notícias falsas sobre fraudes nas eleições, está sendo investigada pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal (MPF).

Em mensagem enviada pelo Twitter ao Estadão, o hacker identificado como M1keSecurity, que notificou anteontem à noite a invasão ao próprio TRF-1 e postou a figura de um diabo para comemorar o sucesso da ação, afirmou ser ligado ao CyberTeam. Ele negou motivação política e disse ter agido por “diversão”. Liderado por um jovem de 19 anos conhecido como Zambrius, que está em prisão domiciliar em Portugal, o grupo também reivindicou a investida contra o TSE e o Ministério da Saúde. 

Notificações

A onda de ataques cibernéticos a instituições está confirmada em números. De janeiro até o último dia 11, o núcleo do GSI que monitora questões referentes à cibersegurança registrou 21.963 notificações desse tipo no País, do governo e de fora do governo. Em todo o ano passado, foram 23.674 registros.

Mesmo com a manutenção do ritmo de notificações ao Centro de Tratamento e Resposta a Incidentes Cibernéticos de Governo, vinculado ao GSI – gabinete comandado pelo general Augusto Heleno –, o alerta crítico está no crescimento das vulnerabilidades encontradas em sistemas tecnológicos. De um ano a outro, as brechas que permitem a exploração maliciosa nos sistemas e nas redes de computadores saltaram de 1.201 para 2.239.

Nem o Exército conseguiu barrar todas as investidas. Em maio, hackers divulgaram exames médicos feitos pelo presidente Jair Bolsonaro entre junho de 2019 e janeiro deste ano no Hospital das Forças Armadas. O ataque mais grave de que se tem notícia foi contra o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no dia 3. Os criminosos criptografaram arquivos e pediram pagamento em criptomoedas para devolvê-los. 

No dia 5, foi a vez do Ministério da Saúde. A publicidade da contagem dos casos de covid-19 ficou provisoriamente prejudicada. Logo depois veio a ação contra a Justiça Eleitoral.

Investigadores envolvidos nas apurações dos ataques ao Judiciário admitem a “onda de invasões” e atribuem o fenômeno a uma tentativa de “testar as instituições”. Observam, porém, que apenas bases de dados antigas e com pouca relevância foram acessadas, fazendo com que núcleos centrais de informação continuem intactos. Na prática, grupos hackers costumam alardear invasões para se mostrar importantes. Muitos querem ser chamados para esse tipo de crime, obtendo para tanto benefícios financeiros.

Legislação

As invasões também são desafio para grandes corporações. Para especialistas, no entanto, as vulnerabilidades dos órgãos públicos são explicadas por certo grau de desleixo com sistemas de segurança, lentidão para fazer frente às ameaças e, ainda, por uma legislação passível de avanços.

“Precisamos de uma lei com a política nacional de segurança cibernética. Este projeto está em elaboração e essa nova lei, considerada absolutamente necessária, tem por objetivo, entre outras coisas, atribuir responsabilidades a quem violar a segurança cibernética”, afirmou o diretor do Departamento de Segurança da Informação do GSI, general Antonio Carlos de Oliveira Freitas

Na avaliação da SaferNet Brasil, que colabora com o Ministério Público Federal no monitoramento da desinformação nestas eleições, órgãos públicos costumam falhar no que é elementar: segurança digital. “Geralmente se falha no básico, com falhas de configuração nos servidores, políticas de atualização inexistentes, autenticações falhas e bugs (defeitos) de softwares”, disse o presidente da entidade, Thiago Tavares.

Após a invasão ao STJ, o presidente do Supremo Tribunal FederalLuiz Fux, determinou a criação de um “comitê cibernético” para preparar medidas de proteção à Justiça. Uma das críticas de especialistas é o fato de o Judiciário não ter um centro permanente, nesse modelo, para monitorar e reagir a incidentes. 

“Estamos todos preocupados. Me parece mais um vandalismo, mas, e se fosse algo mais profissional, para apagar ou inserir dados? Ficamos sem saber qual o grau de vulnerabilidade que o sistema apresenta”, afirmou o advogado Marcelo Bessa, integrante do Instituto de Garantias Penais (IGP).

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El País: O efeito das eleições na (re)organização das forças políticas e em 2022

A fragmentação atual da esquerda não tem paralelo na experiência política brasileira das últimas décadas, e isso pode resultar em posição minoritária do campo na próxima eleição

Débora Gershon e Leonardo Martins Barbosa, El País

Nas eleições de 2020, partidos da direita tradicional reafirmaram sua importância na política brasileira e apresentaram crescimento expressivo, não apenas nos pequenos municípios, mas também no grupo de cidades com mais de 200.000 eleitores. A compilação dos resultados revela três aspectos relevantes para 2022, que desde já merecem atenção, embora as eleições municipais difiram, em termos de lógica e organização, das nacionais: a) a direita tradicional mostrou-se bastante competitiva tanto no agregado, quanto nas maiores cidades; b) partidos do chamado Centrão aprofundaram sua interiorização, aproximando-se do MDB, líder inconteste nos municípios nas últimas décadas, e c) o campo da esquerda acumulou perdas no total de municípios, mas mostrou vitalidade naqueles com mais de 200.000 eleitores, onde obteve crescimento. O encerramento das eleições nas 57 cidades que disputarão o segundo turno não deve alterar de maneira significativa esse quadro. Além disso, o segundo turno não revela tanto quanto o primeiro as preferências do eleitor, já que nele as maiorias são construídas mais artificialmente em função dos chamados votos úteis. Analisar, portanto, os efeitos dessas mudanças já é tarefa útil e absolutamente necessária para o desenho de cenários futuros.

No campo da direita ou, mais amplamente, da centro-direita, DEM e PP foram os partidos que mais cresceram nesse pleito, considerados os cargos de prefeito e vereador. O crescimento do DEM foi de mais de 70%, enquanto o do PP de cerca de 40%. É o PP, no entanto, que reúne o maior número de prefeitos eleitos em primeiro turno, atrás apenas do MDB, partido de tradição municipalista há décadas, cuja performance atual não constitui ponto fora da curva. O desempenho do PP foi ainda melhor do que o do PSDB, em termos de prefeituras conquistadas.

O PSDB manteve bom desempenho geral e nos grandes municípios, mas com sinais de concentração eleitoral cada vez maior em São Paulo. MDB e PSDB, diga-se de passagem, partidos estruturantes da política brasileira até então, foram os dois que mais perderam prefeituras e votos nessas eleições. Partidos da esquerda também o fizeram, mas em menor escala.

Mais importante, o crescimento de DEM e PP expressa a derrota da direita mais radical. Os dois partidos, oriundos da antiga Arena, adaptaram-se bem ao pluralismo partidário e ao sistema político do presidencialismo de coalizão. Em contraste, PSL e Novo, os mais alinhados ao Governo de extrema direita, consideradas as votações nominais no Congresso, tiveram resultado pífio nas eleições. O PSL cresceu, a despeito da enorme queda de popularidade sofrida pela ruptura de Bolsonaro com a legenda, mas dificilmente se recuperará para as eleições de 2022. Em suma, a direita que teve bom desempenho nas eleições de 2020 não é a mesma que venceu o pleito de 2018.

O desempenho do DEM, particularmente, merece olhar mais cuidadoso. Nas décadas de 1980 e de 1990, sob a denominação de PFL, o partido se tornou um dos maiores do país, com base na sua estatura no interior, particularmente na região Nordeste. No entanto, desde o início dos governos Lula e do consequente fortalecimento do PT na região, sofreu reveses sistemáticos. Seus movimentos de reorganização partidária dos últimos anos e sua aproximação a importantes setores do empresariado urbano são explicações prováveis para o resultado eleitoral obtido. Soma-se a esses fatores a posição atual do partido de relativa independência com relação à figura de Bolsonaro (a despeito da convergência em pautas econômicas), e cresce a possibilidade de que o partido apresente um projeto presidencial alternativo ao da extrema direita em 2022. Com um crescimento significativo e homogêneo, o DEM cria condições, inclusive, de reorientar, de forma inédita, sua dinâmica de usual parceria com o PSDB, assumindo maior centralidade em eventual coligação para as próximas eleições. Até lá, no entanto, considerada também a proximidade da troca de comando na Câmara dos Deputados, pode-se esperar aumento significativo do custo do seu apoio ao Governo. O mesmo pode se reproduzir com o PP, uma vez que suas quase 700 prefeituras aumentam seu poder de barganha. Mas, se mantida a estratégia atual de Bolsonaro de aproximação com o Centrão, um cenário de maior protagonismo congressual do partido pode vir a ser favorável ao presidente.

Sobre o chamado Centrão, valem alguns comentários. Apesar de certa indefinição sobre partidos que compõem esse grupamento informal, caracterizado por vínculos ideológicos irrisórios (embora pautado por comportamento à direita do campo político), as oito legendas mais atuantes do grupo alcançaram resultados positivos. Além do benefício trazido pela própria falta de identidade e visibilidade política do grupo, tendo em vistas as características de eleições locais, é bastante provável que o fim das coligações em eleições proporcionais tenha sido decisivo para isso. A nova legislação cria incentivos para que os partidos lancem candidatos às prefeituras, estimulando, assim, o aumento de suas bancadas de vereadores, embora seja de se esperar, que, nos próximos anos, esse efeito não intencional da legislação dê lugar a fusão de legendas, a depender da capacidade competitiva das pequenos e do poder de atração das maiores.

Dos oito partidos do Centrão, além do já citado bom desempenho do PP, vale destacar também o PSD e o Republicanos. O PSD foi o segundo partido com maior número de candidaturas este ano, atrás apenas do MDB, e o terceiro com mais prefeitos eleitos no primeiro turno (650). De 2016 para 2020, o crescimento do partido foi pouco expressivo, mas de grande valia no processo de sua consolidação como nova força política nacional.

Por fim, resta observar a performance nas urnas dos partidos mais à esquerda, que, no cômputo geral, perderam menos do que a extrema direita, com destaque especialmente para aqueles de viés ideológico mais previsível e consistente no campo, a exemplo do PT e do PSOL. No geral, contudo, todos tiveram bons resultados em câmaras municipais mais do que em prefeituras. PDT, PCdoB e PSB, por exemplo, fizeram menos prefeitos do que em 2016, mas o PDT está na disputa pelo segundo turno em duas capitais (Fortaleza e Aracaju), o PSB em três (Recife, Rio Branco e Maceió), e o PCdoB em uma (Porto Alegre). O PSOL teve cerca de 6% a mais de votos na comparação com 2016, embora grande parte de sua votação em 2020 deva-se à candidatura de Guilherme Boulos. Em número de prefeituras, o partido cresceu, mas mantém-se em patamar comparativo muito baixo ―são 4 prefeitos eleitos em 2020, ainda que existam chances de eleição de mais dois (Belém e São Paulo). O crescimento foi suficiente para deslocar o PT em poucas, porém importantes cidades, como Florianópolis, Belém, e mesmo São Paulo, com a consolidação, em paralelo, de nomes de projeção nacional.

O PT, por sua vez, partido da esquerda que reúne maior número de cadeiras eletivas e de filiados e tem presença ainda muito expressiva em movimentos sociais tradicionais, acumulou mais perdas do que em 2016, que já havia representado uma queda enorme com relação à 2012. Apesar disso, é a legenda que disputa mais vagas no segundo turno, estando no páreo em duas capitais (Recife e Vitória), bem como em grandes colégios eleitorais como Diadema, Contagem, Caxias do Sul, São Gonçalo e Juiz de Fora, entre outros. Do ponto de vista do total de votos, houve pequeno crescimento nessas eleições, fato significativo diante do aumento da abstenção eleitoral, pois revela que as perdas não foram distribuídas de forma homogênea. De modo geral, o partido perdeu espaço nos pequenos municípios, mas manteve vitalidade em grandes cidades, nelas permanecendo como principal força da esquerda.

Dada a conjuntura política atual, e o fato de que a esquerda nunca foi campo majoritário no Brasil, nem mesmo durante os governos de Lula e Dilma, quando MDB ou PSDB exerciam a liderança em prefeituras Brasil afora, os resultados atingidos por algumas legendas foram profícuos, inclusive do ponto de vista da inclusão de minorias sociais que, cada vez mais, exercerão pressão importante sobre o sistema político brasileiro. É preciso fazer a ressalva, contudo, de que a fragmentação atual da esquerda não tem paralelo na experiência política brasileira das últimas décadas. Os resultados municipais, nesse sentido, podem vir a impulsionar esforços para correção de rumos e produção de candidaturas coligadas competitivas nas próximas eleições. Caso contrário, a fragmentação excessiva tende a resultar em posição minoritária do campo em 2022.

Em resumo, 2020 nos revela um cenário de menor polarização, em que cresce a direita mais moderada, em detrimento da extrema direita mais do que da esquerda, com menor adesão do eleitorado a discursos e projetos antipolítica e antissistema. Tal resultado gera desafios adicionais ao Governo federal e, particularmente, a Bolsonaro. Faltam dois anos para as eleições presidenciais e uma série de variáveis, de maior ou menor controle, podem interferir nesse cenário, a economia sendo a mais importante delas. As eleições municipais, entretanto, ajudam a formar o quadro em que os arranjos políticos se darão daqui para frente.

Débora Gershon é cientista política na Poliarco Inteligência Política. Doutora (IESP/UERJ) e mestre em Ciência Política (IUPERJ), com pós-doutorado pela University of California, San Diego (UCSD), onde atuou como pesquisadora visitante. É também pesquisadora do Observatório Legislativo Brasileiro (OLB).

Leonardo Martins Barbosa é cientista político na Poliarco Inteligência Política. Doutor em Ciência Política pelo IESP/UERJ. É pesquisador do Núcleo de Estudos sobre o Congresso (NECON) e do Observatório do Legislativo Brasileiro (OLB), tendo ampla experiência em análise de cenários políticos, com foco em comportamento partidário e arena legislativa.


O Estado de S. Paulo: Nas eleições 2020, 6,3 mil mulheres recebem um ou zero voto

Analistas alertam para risco de que candidatas tenham sido utilizadas por partidos apenas para alcançar a meta de gênero de 30%; parte delas recebeu R$ 877 mil do Fundo Eleitoral

Camila Turtelli, Rafael Moraes Moura e Bruno Ribeiro, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA, SÃO PAULO - Das 173 mil mulheres aptas a disputar o cargo de vereador no domingo, 15, 6.372 tiveram apenas um ou nenhum voto, segundo levantamento do Estadão. A ausência de votos e o fato de nem a candidata ter votado nela mesma provocaram suspeitas de que essas mulheres tenham sido usadas como “laranjas” para que partidos pudessem driblar a lei e cumprir a cota de 30% de candidaturas femininas. Parte delas recebeu R$ 877 mil do fundo eleitoral, dinheiro público usado para financiar gastos de campanha.

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A verba na conta de mais de 500 candidatas causa estranheza, já que todas tiveram desempenho pífio nas urnas, e pode ser mais um indício do “laranjal partidário”, com o lançamento de concorrentes “de fachada”. Desde 2018, partidos devem destinar, no mínimo, 30% do fundo eleitoral para campanhas femininas. Quem não cumprir a regra pode ter as contas rejeitadas, os repasses suspensos e ser obrigado a devolver o dinheiro.

Em Vargem Grande Paulista, interior de São Paulo, a candidata Marjory Piva teve apenas um voto, mas recebeu R$ 17 mil do Republicanos. Não declarou nenhuma receita à Justiça Eleitoral. O presidente municipal da legenda, vereador Zezinho Tapeceiro, disse que Marjory teve um problema pessoal e desistiu de concorrer. “Ela não é candidata laranja, porém ela teve de desistir e esse recurso dela está sendo todo devolvido”, afirmou.

Em Santa Rita, na Paraíba, Edivania Carneiro viveu situação semelhante: recebeu R$ 15 mil do fundo eleitoral do PSL, mas obteve apenas um voto. Marjory e Edivania foram as mulheres que mais ganharam verba do fundo eleitoral de seus partidos. Há indícios de que as duas tenham sido “laranjas”.

Francielle Avila (PSD), candidata em Espigão Alto do Sul (PR), conseguiu R$ 10 mil do partido e, segundo sua prestação de contas, gastou R$ 7 mil com material de campanha. Em sua página do Facebook, no entanto, não há qualquer menção à candidatura, mas, sim, à do postulante a prefeito pelo PSDB, Hilário Czechowski. A reportagem não conseguiu contato com a candidata ou com a direção municipal do PSD.

Em Cabo Frio, no Rio, a comerciante Rita das Empadas (PSL) recebeu R$ 10 mil do fundo eleitoral na disputa por uma cadeira na Câmara Municipal, mas teve um voto. “Todo mundo me conhece em Cabo Frio, muita gente falou que ia votar em mim. Mas, na hora, só tive um voto”, disse Rita ao Estadão. O comando nacional do PSL informou que cada candidato teve de emitir um recibo, comprovando o recebimento dos recursos. “No caso das candidatas mulheres, estas ainda tiveram que assinar uma carta, de próprio punho, afirmando que estavam se candidatando por livre e espontânea vontade”, declarou o partido, em nota.



Questionada se foi “candidata laranja”, Rita respondeu: “Tá ficando doido? Eu sou uma mulher responsável, não sou candidata laranja, não. Tive vários santinhos, eu panfletei. Não tenho culpa se meus votos sumiram ou não votaram em mim”.

O mapeamento do Estadão também identificou que, na lista de mulheres com nenhum ou apenas um voto, predominam candidaturas de pretas ou pardas (59%), enquanto brancas representam 39% e indígenas, 1%.

Raça

O fato vem na esteira de decisão do Supremo Tribunal Federal, que determinou o critério racial na destinação de recursos para financiar candidaturas. Os partidos são obrigados a dividir os recursos do fundo eleitoral, que alcançou R$ 2 bilhões, segundo a proporção de negros e brancos de cada sigla.

“O expressivo número de candidaturas femininas sob suspeita de serem fictícias revela que ainda há nas estruturas partidárias resistência à inclusão das mulheres”, disse a advogada Maria Claudia Bucchianeri, da Comissão de Direito Eleitoral do Conselho Federal da OAB. “As eleições de 2020 ainda trazem outro número preocupante, a sensível concentração dessas supostas candidaturas fake entre negras. Há, portanto, dupla recusa de inclusão: a de gênero e a de raça”, completou ela.

Em município da Bahia, três candidatas e um voto

São Paulo, Bahia e Minas são os Estados com o maior número de mulheres que tiveram zero ou um voto na disputa municipal de vereador. Na Bahia, o município de Condeúba, com apenas 17 mil habitantes, viu três mulheres entre os candidatos a vereador com o menor número de votos. Segundo o TSE, as donas de casa Xuxu e Nice, ambas do PSD, foram ignoradas pela população local – sem nenhum voto, nem o delas mesmas, e nenhum gasto eleitoral.

Sem qualquer despesa informada até agora, Izenilde (PL) teve melhor sorte que as rivais: um voto. A candidata, no entanto, utilizou as redes sociais para fazer campanha para outro nome – Helton da Lagoinha, seu companheiro, que disputou uma vaga na Câmara Municipal de Condeúba pela mesma legenda. À Justiça Eleitoral, Izenilde se declarou solteira, mas no Facebook avisa que está casada com Helton. “Meu vereador arretado”, postou ela, no dia 9. Helton obteve 128 votos.

“A representação feminina é indispensável para uma democracia de qualidade. Mas as candidaturas fictícias ainda são uma realidade”, disse Marilda Silveira, professora de Direito Eleitoral do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). “A investigação, nesses casos, é indispensável e a conclusão de fraude muitas vezes se dá pela soma de indícios, como votação zerada, gastos irrelevantes, campanha inexistente.” Procurados, Izenilde e Helton não responderam até a conclusão desta edição. O PL informou que “lamenta o mau desempenho” das estreantes, mas “cabe a cada candidato responder pela prestação de contas e uso dos recursos recebidos”.


Marcus Pestana: Fatos e análises: devagar com o andor

Já conhecemos os resultados das eleições em 5.276 municípios. Restam 57 disputas que ficaram para serem decididas em segundo turno. Como acontece, de quatro em quatro anos, cientistas políticos, analistas da imprensa, articulistas e lideranças políticas começam imediatamente a tentar interpretar qual é o “recado das urnas”. Como se as eleições municipais fossem uma espécie de antessala ou prefácio das eleições gerais seguintes.

É evidente que os resultados realçam um determinado espírito reinante na opinião pública nacional. Mas “devagar com andor que o santo é de barro”. É preciso perceber o caráter contraditório dos números; decifrar a essência escondida atrás das aparências; entender que as eleições municipais têm predomínio de temas locais; atentar para as diferenças entre pequenas, médias e grandes cidades; observar que a matemática política é diferente da lógica aritmética; e, que a realidade histórica é dinâmica e mutante. Há na maioria das análises um verdadeiro “tour de force” para construir ilações a partir dos resultados eleitorais locais sobre quem são os vitoriosos e os derrotados no plano nacional. Mais uma vez, “prudência e caldo de galinha nunca fizeram mal a ninguém”.

O primeiro equívoco central desta armadilha analítica é, além de traços gerais do sentimento da sociedade no momento, tentar enxergar tendências avançadas sobre o cenário para 2022. Como se as eleições municipais tivessem alta carga ideológica, o que só é verdade marginalmente nas grandes cidades, e que candidaturas presidenciais ou de governadores dependessem de uma sólida base municipalista previamente consolidada. Nada melhor para testar teses políticas que confronta-las com a realidade. Não é preciso ir longe: qual era a base municipal que tinham Collor, Bolsonaro, Witzel ou Zema? Como explicar que o PSDB tenha tido em 2016 seu melhor resultado em eleições municipais e seu pior resultado nacional em 2018? Não é preciso dizer mais. Como disse certa vez Ulysses Guimarães: “Vossa Excelência, o fato”.

Outro erro fundamental: não perceber que a realidade é dinâmica e muda e raciocinar com a simples aritmética e não com a análise política-histórica. Cansei de ver tabelas e análises que tiravam suas conclusões a partir da variação percentual entre 2016 e 2020. E aí prevalece a análise de elevador: tal sigla ou líder sobe, outros descem. Ledo engano. Será que é difícil enxergar que entre 2020 e 2016 existiram 2017 e 2018? Ou não houve uma escalada crescente com o impeachment de Dilma, recessão, desemprego, Lava Jato, JBS, intensa cobertura da mídia, que desmoralizou o quadro partidário que sustentou a Nova República e catapultou Bolsonaro de 7% para 22% nas pesquisas de opinião e resultou numa eleição disruptiva? A variação aritmética de desempenhos partidários não registra isso.

O Brasil tem quase 148 milhões de eleitores. Apenas três partidos tiveram mais de 10 milhões de votos (MDB, PSDB e PSD). Ou seja, em torno de 6,7% dos votos nacionais, o que é pouco e revela uma inequívoca pulverização. Apenas cinco partidos fizeram mais de 400 prefeitos e mais de quatro mil vereadores (MDB, PP, PSD, PSDB e DEM). Aí, juntas e misturadas, Serra da Saudade em Minas Gerais com seus 941 eleitores e São Paulo com mais de 8 milhões de eleitores. O presidente da República sequer tem partido. Portanto, todo o cuidado é pouco com análises precipitadas. Voltarei, por sua relevância, ao assunto na próxima semana.

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)


Valor: “Fim das coligações produziu o melhor sistema eleitoral da história”, diz Nicolau

Votação por aplicativo, tese levantada pelo presidente do TSE, ameaça o sigilo, diz professor

Por Maria Cristina Fernandes | Valor Econômico

SÃO PAULO - Debruçado há três décadas sobre o sistema eleitoral brasileiro, o professor da Fundação Getulio Vargas do Rio, Jairo Nicolau, diz que as eleições municipais se realizam sob as melhores regras da história. Não tem dúvidas de que o fim das coligações nas eleições proporcionais oferecerá um maior controle do eleitor sobre o resultado das urnas e depuração do quadro partidário no Legislativo. A maioria das Câmaras de Vereadores do país reduziu o número de partidos lá representados. E, com isso, a hiperfragmentação da Câmara dos Deputados, quesito em que o Brasil se mantém no pódio mundial há muitos anos, também deve se reduzir. Por isso mesmo, já se iniciou um movimento para ressuscitar as coligações proporcionais.

Presença frequente em todas as discussões de reforma política no Congresso Nacional nos últimos anos, onde sempre advogou pelo fim das coligações proporcionais, Nicolau não acreditava mais que o dispositivo cairia quando, finalmente, em 2017, sua extinção foi constitucionalizada. Por isso, não se surpreendeu ao saber do movimento, liderado pelos pequenos partidos, pela volta do mecanismo. É a sobrevivência de sua representação na Câmara dos Deputados que está em jogo - “É um vexame nacional se vier a acontecer”.

Essas legendas viram a redução de seus exércitos de vereadores, com os quais contam para sua recondução. Nas contas de Nicolau, 15 partidos não chegaram a 2% dos votos para vereador em 15 de novembro. É esta a cláusula de desempenho para 2022. Com isso, o tema já entrou na barganha dos pequenos partidos na disputa pela Mesa da Câmara. Em alguns deles a discussão já é aberta - o apoio estará condicionado ao compromisso dos candidatos à Mesa com a flexibilização das regras. Não é um acordo fácil de ser operacionalizado. Até porque os partidos com mais chances de levar a presidência da Câmara estão entre aqueles mais beneficiados pelo fim das novas regras: PP, DEM, MDB e Republicanos.

Jairo Nicolau vê com ceticismo a proposta da federação de partidos como alternativa à coligação. Ao contrário desta, a federação vai além da conjuntura eleitoral e prevê a atuação conjunta dos partidos também ao longo da legislatura. O dispositivo já foi derrotado na Câmara. Para não ser uma burla à coligação, diz Nicolau, teria que ser uma federação nacional, de canto a canto do país, o que confronta as contingências regionais dos partidos.

O fim das coligações não é o único retrocesso que pode advir das eleições municipais. O atraso na contagem dos votos, amplificado pela militância de extrema direita, deu asas a teorias conspiratórias de fraude eleitoral. O presidente Jair Bolsonaro retomou a defesa do voto impresso e encontrou guarida em parlamentares como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Nicolau acompanhou de perto o tema quando o TSE, na gestão Gilmar Mendes, promoveu debates sobre o aprimoramento do processo eleitoral. Os engenheiros presentes alertaram para a inviabilidade técnica da alternativa pelo potencial de problemas que as impressoras podem causar. No limite, diz, o TSE poderia fazer a impressão do voto por amostragem.

Outra mudança aventada que Nicolau teme é a do voto pelo aplicativo. A questão chegou a ser levantada pelo presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, antes dos problemas com a apuração. Animado com a boa aceitação do registro da ausência no local de votação pelo aplicativo do TSE, ao qual se atribui, somado à pandemia, o aumento na abstenção, o ministro foi adiante e disse que o Brasil, um dia, também poderia votar pelo aplicativo. A mudança, diz o professor, não poderá ser feita sem anuência legislativa, uma vez que abre portas para a adoção paulatina do voto facultativo. E não apenas. Ameaça o sigilo do voto. “Não é fantasioso imaginar que se formem filas nos currais eleitorais para se ‘ensinar’ o eleitor a votar”, diz. É a volta - ou a modernização - do voto de cabresto.


Merval Pereira: Contra a democracia

O presidente Bolsonaro entrou em um terreno perigoso ao insinuar, tendo como pretexto o atraso da apuração da eleição municipal pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que não temos um sistema confiável. “Temos que ter um sistema de apuração que não deixe dúvidas”, afirmou a seus seguidores na porta do Palácio da Alvorada. O presidente já havia feito uma afirmação irresponsável em março, denunciando que houvera fraude na eleição de 2018, que ele venceu, e prometeu apresentar as provas.

Agora, ele volta a insinuar irregularidades, e nem se lembra de mostrar as supostas provas que disse que tinha. Com a declaração do ministro Luis Roberto Barroso, ministro do STF e presidente do TSE, de que os ataques cibernéticos que teriam sido repelidos pelo sistema de segurança do tribunal teriam sido praticados pelos mesmos grupos que estão sendo investigados em inquéritos no Supremo sobre distribuição de fake news e manifestações antidemocráticas ao Congresso e ao próprio Supremo, ganha uma dimensão maior a insinuação do presidente Bolsonaro.

Ele estaria dando credibilidade aos boatos que foram espalhados pelas redes de seus apoiadores, com o intuito de desacreditar o sistema de apuração digital. Tal qual um Trump dos trópicos, Bolsonaro lança dúvidas e dá margem a que políticos como a deputada Bia Kicis possa dizer que a explicação para a derrota da extrema direita bolsonarista seria uma grande fraude eleitoral.

A Polícia Federal vai investigar os ataques sofridos pelos computadores do TSE, vindos de servidores da Nova Zelândia, que parecem estar orquestrados com grupos que atuaram também a partir de servidores nacionais. As duas investigações do Supremo estão interligadas e têm o mesmo relator, o ministro Alexandre de Moraes.

O mesmo que, ontem, mandou prender o blogueiro bolsonarista Oswaldo Eustáquio, que saiu do Rio sem autorização para fazer agitação em São Paulo e terá agora de cumprir a prisão domiciliar com uma tornozeleira.

Embora não fosse possível interferir nas urnas eletrônicas, pois elas não estão em rede, o ataque ao TSE poderia provocar uma demora maior do que o que ocorreu, o que, aí sim, e esse parece ter sido a intenção dos ataques, levaria a uma onda de boatos e fake news que poderia afetar a credibilidade da apuração.

O ministro Barroso insiste em que o atraso de menos de três horas não pode ser transformado em uma crise, muito menos lançar suspeitas infundadas sobre o sistema eleitoral. No oficio que enviou ao diretor-geral da Polícia Federal Rolando Alexandre de Souza, Barroso diz que “os incidentes relatados indicam possível ocorrência de crimes em face ao TSE”.

As investigações dos inquéritos no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre ações ilegais de distribuição massiva de fake news através do WhatsApp nas eleições de 2018 até agora levam a apoiadores de Bolsonaro, e até mesmo a um “gabinete do ódio” que estaria instalado no Palácio do Planalto com o objetivo de articular ações nas redes sociais. É bom lembrar que esses inquéritos do Supremo estão investigando há mais de um ano esses grupos que usam as redes sociais para fazer militância política ilegal, e já têm identificadas diversas milícias digitais. A relação delas com a divulgação de fake news e com ações antidemocráticas contra o Congresso e o Supremo já está demonstrada, e o cruzamento dessas informações demonstra já uma atuação coordenada, assim como os primeiros ataques ao sistema de apuração do TSE também o foram.

Se o cruzamento de informações já existentes levar aos mesmos grupos, ou similares, no caso do ataque ao TSE, estará configurada uma grande conspiração contra a democracia brasileira, com o presidente Bolsonaro no centro.


IHU Online: Eleições municipais não trataram do fundamental, diz Luiz Werneck Vianna

“Vejo uma sociedade que ainda é hedonista, consumista, com a maioria da população empenhada na sobrevivência material do cotidiano”, constata o sociólogo

Por Patricia Fachin e João Vitor Santos, IHU Online

Apesar de ainda não ser predominante em termos de números, a "mensagem espiritual" do "aleluia, aleluia e a luta continua com Crivella" é a que tem atraído pessoas com inúmeras frustrações para os "cultos materialistas dos neopentecostais". Numa sociedade “hedonista e consumista”, cuja parcela significativa das pessoas vive para garantir a “sobrevivência material do cotidiano”, não é de se surpreender que a política seja exatamente o que é: atrasada, e que a religião, aos poucos, deturpe não só o cristianismo, como a realidade para manter tudo como está.

Diante desse cenário, o sociólogo Luiz Werneck Vianna, que da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio observa a realidade política brasileira, faz um alerta: "É preciso, sim, uma revisão profunda na orientação dos que cultuam valores mais permanentes, mais humanos, mais universais. É preciso encontrar algum espaço". Nas eleições municipais deste ano, destaca, não vimos nada nesse sentido. Ao contrário, "a eleição foi a representação de um sentimento de inconformidade da população com tudo que aí está".

Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, o sociólogo chama a atenção para o atraso da política brasileira, completamente alheia às urgências do país do ponto de vista social, ambiental e de saneamento. A superação do atraso político no país, adverte, virá somente se dermos um passo de cada vez e, nessa caminhada, sugere, "precisamos de uma jovem inteligência da qual se pode esperar alguma coisa nova, especialmente com origem nas universidades".

Werneck Vianna (Foto: Acervo IHU)

Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador na Pontifícia Universidade Católica - PUC-Rio. Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo - USP, é autor de, entre outras obras, A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1997), A judicialização da política e das relações sociais no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1999) e Democracia e os três poderes no Brasil (Belo Horizonte: UFMG, 2002). Sobre seu pensamento, leia a obra Uma sociologia indignadaDiálogos com Luiz Werneck Vianna, organizada por Rubem Barboza Filho e Fernando Perlatto (Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2012). Destacamos também seu novo livro intitulado Diálogos gramscianos sobre o Brasil atual (FAP e Verbena Editora, 2018), composto de uma coletânea de entrevistas concedidas que analisam a conjuntura brasileira nos últimos anos, entre elas, algumas concedidas e publicadas na página do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - O que o resultado das eleições municipais deste ano revela sobre a política e a democracia de nossos tempos?

Luiz Werneck Vianna – As eleições foram um banho de saúde na política brasileira. Revelam um pouco da verdade excessivamente existente no nosso mundo político; o que também não é nada de espetacular. Num país conservador, com voto conservador, o DEM aparece como um partido forte, com outras credenciais para a disputa presidencial mais à frente, em 2022. A esquerda foi dividida, está sem programa. A eleição foi a representação de um sentimento de inconformidade da população com tudo que aí está. Há uma esperança de que algo melhore com os candidatos de esquerda, mas eles não têm programa, não têm capacidade de articulação, não têm alianças.

No Rio de Janeiro, se juntarmos os três candidatos de esquerda, cria-se um segundo turno, dada a divisão entre PTPDT e PSOL. Essa divisão levou ao segundo turno, de modo que há alguns presságios no ar: nada de espetacular, mas terra à vista. É possível seguir nesta direção em que estamos e chegarmos a um porto, passo a passo. Essa eleição foi mais um passo.

Ela também precisa ser vista no contexto das eleições americanas, que produz uma certa animação dos setores democráticos a partir do que se passa na potência hegemônica. A influência do governo Trump no mundo embaraçava as forças democráticas e impedia as possibilidades de avanço. A remoção [de Trump], que ocorrerá em breve, abre uma bela janela de oportunidades.

IHU On-Line – O que tende a mudar nas relações do governo brasileiro com o novo governo americano de Joe Biden?

Luiz Werneck Vianna – Abre uma janela de oportunidades imensa. Uma coisa interessante a ver nessa eleição é que, apesar de o tema ambiental ter tido um papel muito importante nas eleições americanas e nas eleições europeias recentes, essa questão em particular não ocupou papel relevante na agenda dos candidatos brasileiros. Nenhum partido levantou essa bandeira, em que pese a situação da Amazônia e o que ocorre em matéria de saneamento básico.

Os partidos brasileiros ambientalistas se dissolveram, a própria Marina está num lugar remoto nessa política. A ausência da agenda ambiental nessas eleições é um dado importante. A esquerda precisa descobrir temas, se comportar de forma inovadora. A esquerda está completamente defasada.

Vamos ver se receberemos algum alento a partir de agora para ver se avança e melhora. Mas não há que se pensar numa esquerda exercendo um papel de protagonismo nas eleições.

Apesar de o tema ambiental ter tido um papel muito importante nas eleições americanas e nas eleições europeias recentes, essa questão em particular não ocupou papel relevante na agenda dos candidatos brasileiros - Luiz Werneck Vianna Tweet

IHU On-Line - Qual a sua análise quanto ao resultado das eleições nas principais capitais do Norte, Nordeste, Sudeste e Sul?

Luiz Werneck Vianna – Nesse diapasão, no caso de Pernambuco e Pará – que também é relevante –, venceram os candidatos de centro e em geral de centro-direita, com grande apoio eleitoral, como é o caso de Salvador, na Bahia.

IHU On-Line - A pandemia de 2020 reforçou uma série de questões que estão em pauta na última década: a emergência climática, a concepção de uma outra lógica econômica, a necessidade de uma renda básica universal e um redimensionamento do poder e das ações estatais. Com base no resultado das eleições, como devem evoluir essas propostas?

Luiz Werneck Vianna – Esses debates se fizeram presentes, mas sem muita potência. Seria fundamental que o tema da renda básica tivesse mais relevância nessa disputa, mas não teve. Esse tema não encontrou uma sustentação forte e não creio que tenha amadurecido alguma coisa nessa direção.

IHU On-Line - Quais são as saídas para as mazelas sociais que temos no Brasil, para além da política como a conhecemos?

Luiz Werneck Vianna – A saída para a população brasileira é política, mas o problema é que a nossa política é muito atrasada, primitiva, rústica.

Houve um avanço em relação à última eleição, que foi dominada pelo atraso e pela grosseria, pela “arminha” e esses símbolos idiotas que prevaleceram naquela época e que agora foram banidos. Mas as questões fundamentais, como renda básica, questão ambiental, não foram discutidas em profundidade. Os portadores desses temas, quando apareceram, foram fracos, com baixa densidade eleitoral. Quem venceu essa eleição foi o DEM.

Há candidaturas de esquerda que ainda podem ter um desenlace melhor, como a Manuela [d’Ávila], no Rio Grande do Sul. Mas a ver; tem que esperar. Não sei o que vai se passar.

Não há motivo para satisfação, mas, ao mesmo tempo, a satisfação tem que ser vista com olhos críticos: não se pode achar que agora Roma está diante de nós. Foi um passo importante, mas ainda pequeno; falta muito. Faltam personalidades políticas relevantes, faltam partidos relevantes, faltam programas confiáveis, falta muita coisa. É muito atraso.

solução americana adotou uma postura muito bem-feita no interior do partido democrático, com uma coalizão que, apesar das diferenças entre as correntes, levaram à vitória, em condições muito difíceis. Foi uma vitória importante, uma das mais importantes dos últimos tempos. Mas eles tiveram personalidades políticas maduras, responsáveis, que souberam construir a frente que levou [JoeBiden a vitória. Aqui, quem aparece com esse papel?

No Rio de Janeiro, três candidatos de esquerda disputaram a eleição. É claro que se abriu uma oportunidade ao Crivella, apesar de toda a rejeição da cidade a essa figura. O PSOL apareceu como um esboço de um partido de esquerda de novo tipo, mas qual é o programa do PSOL? Qual é a experiência do socialismo real, por exemplo? Tudo é muito precário. Mas agora avançou-se, deu-se um passo importante, porque mostra a necessidade de novos passos à frente.

A saída para a população brasileira é política, mas o problema é que a nossa política é muito atrasada, primitiva, rústica - Luiz Werneck Vianna Tweet

IHU On-Line - Como vê a proposta de teóricos, como o francês Gaël Giraud, que sugerem uma conversão espiritual e política para realmente transformar as instituições sociais que precisam ser modificadas?

Luiz Werneck Vianna –Se essa mudança está ocorrendo, não estou vendo. Vejo uma sociedade que ainda é hedonista, consumista, com a maioria da população empenhada na sobrevivência material do cotidiano. Não tem portador para uma visão profética, por ora.

IHU On-Line – Seria importante uma mudança espiritual nesse sentido?

Luiz Werneck Vianna – Ah, seria. Claro que seria, mas aí veja: a Igreja Católica no Rio de Janeiro se deixou ultrapassar inteiramente por um culto materialista como o neopentecostalista. Ela se retirou da política e da Teologia da Libertação – deu um fim nisso – e deixou o campo aberto nas periferias para a penetração desses cultos hedonistas de economia da prosperidade e teologia da prosperidade. De modo que é preciso, sim, uma revisão profunda na orientação dos que cultuam valores mais permanentes, mais humanos, mais universais. É preciso encontrar algum espaço. Mas nessas eleições, qual candidato poderia ser identificado com uma mensagem desse tipo? Nenhum. É “aleluia, aleluia e a luta continua com Crivella”. Essa é a mensagem espiritual que há por aqui.

IHU On-Line – O que a Igreja poderia fazer nesse sentido para contribuir a fim de alterar esse percurso?

Luiz Werneck Vianna – A Igreja tinha instrumentos na Teologia da Libertação, mas ela a desarmou, expeliu seus quadros e abriu essa clareira para que esses cultos de fundo materialista preponderassem.

IHU On-Line – Como as universidades católicas podem contribuir para solucionar esta crise e o que elas podem oferecer à sociedade neste momento?

Luiz Werneck Vianna – Isso depende das lideranças, das personalidades, dos intelectuais católicos. Eles têm que ocupar o espaço público e se aproximar outra vez da vida das periferias. As periferias foram abandonadas. Quando você vai a uma favela, vê Assembleia de Deus por toda parte. Você não vê mais Igrejas lá dentro. Havia? Sim, havia.

IHU On-Line – Há anos o senhor é um dos intelectuais que chamam a atenção para a crise de pensamento na sociedade. Como alterar esse curso?

Luiz Werneck Vianna – Precisamos de uma jovem inteligência da qual se pode esperar alguma coisa nova, especialmente com origem nas universidades. O Instituto Humanitas Unisinos - IHU é um exemplo disso, entre tantos outros lugares universitários que têm sido portadores de uma nova mensagem, mais humana. Este ainda é um processo muito embrionário, um novo despertar.

Essas eleições demonstram o começo de um novo estado de coisas. É a saída de um pesadelo que vai se dissipando aos poucos e ainda nos assombra. Precisamos de paciência também e de trabalho diário, cotidiano.

IHU On-Line – A sociologia brasileira pode contribuir de que forma nesse processo?

Luiz Werneck Vianna – Ela tem produzido intervenções interessantes, especialmente a chamada jovem e nova sociologia brasileira. Ela está muito atenta ao tema da desigualdade, ao tema da vida nas comunidades periféricas; é um despertar interessante cujos frutos começam a aparecer. Inclusive com intelectuais saídos da própria periferia, como foi o caso da Marielle Franco. Ela era socióloga e saiu da PUC-Rio. A candidata do PSOL [Renata Souza] também é uma intelectual interessante. Da relação entre universidade e periferia estão começando a brotar frutos, com a formação de intelectuais saídos dos próprios setores marginalizados. Estes são capazes de ser portadores de novidades no que se refere a uma política social de novo tipo, mais avançada.

A minha universidade, a PUC-Rio, cumpre um papel muito interessante nessa direção, especialmente na aproximação com os jovens da periferia que ela acolhe por meio de bolsas de estudo para os seus cursos, formando jovens cientistas saídos das classes subalternas e que têm escalada na esfera pública. Marielle é um caso de evidência solar, mas há tantos outros. Mas é numa escala muito reduzida. A relação da universidade, por exemplo, com a favela da Maré é interessante. O candidato a vice-prefeito da Martha Rocha do PDT [Anderson Quack] é uma liderança da Central Única das Favelas - Cufa. É por aí que a banda tem que tocar. É preciso começar a trocar o ar. Vamos ver.


Pablo Ortellado: Ciberataques

Vulnerabilidade dos sistemas públicos está sendo explorada por quem quer minar a confiança no sistema eleitoral

O aumento no número de incidentes em que hackers tiveram acesso a sistemas do governo, seguido de dificuldades operacionais nos sistemas do TSE, deve acender um alerta para nossa fragilidade no campo da cibersegurança dos sistemas públicos.

Embora não tenhamos evidências de coordenação, os ataques de domingo foram explorados pela extrema direita que tenta minar a confiança no sistema eleitoral.

A crise começou em outubro, quando os servidores do STJ foram invadidos por hackers, e os conteúdos, copiados e criptografados, supostamente para extorquir dinheiro do Poder Judiciário. Logo após o ataque, outros sistemas de órgãos públicos, como o do SUS e o da Anvisa, foram preventivamente desligados até que as condições de segurança fossem restabelecidas.

No meio desta crise, o TSE optou por dividir as atividades de seus dois servidores, reservando um deles apenas para cópias de segurança e concentrando todas as tarefas no segundo. Foi esse servidor único, sobrecarregado, que teve problemas no seu processador, gerando uma instabilidade que travou o funcionamento do eTítulo (aplicativo que substitui o título de eleitor) e atrasou a computação dos votos.

Além dessa instabilidade do sistema, o TSE foi alvo de dois ataques de hackers, aparentemente desconectados.
O primeiro, reivindicado pelo grupo hacker luso-brasileiro CyberTeam, capturou dados de funcionários do TSE e foi divulgado às 9h25 por meio de uma conta no Twitter. O manifesto do grupo mencionava violações de direitos humanos nas prisões brasileiras, mas parecia motivado apenas em mostrar que conseguiam acessar o sistema. O TSE diz que o ataque aconteceu antes de 23 de outubro, mas que os dados capturados foram divulgados no dia da eleição buscando visibilidade.

Logo depois, às 10h41, o TSE foi vítima de um segundo ataque, agora de negação de serviço (quando muitos acessos simultâneos tentam sobrecarregar o servidor). O CyberTeam nega qualquer relação com esse segundo ataque, que foi divulgado pelo TSE como causa adicional das instabilidades do sistema.
Essas foram as circunstâncias que convergiram com os esforços da extrema direita em minar a credibilidade das urnas, que não foram comprometidas pelos ataques. Desde outubro, os bolsonaristas retomaram as críticas ao sistema eleitoral, que começaram nas eleições de 2018 e foram ampliadas com a crise nas eleições americanas e a proximidade das eleições municipais.
Se não fizermos nada, a combinação de vulnerabilidade dos sistemas com ataques à confiabilidade das urnas pode criar grandes problemas em 2022.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.


El País: Investigação sugere elo entre grupo que tentou derrubar site do TSE e bolsonaristas

Ataque teria como objetivo "inocular na população o vírus da dúvida” sobre as eleições. Na darkweb, tentativa semelhante de ofensiva hacker custa apenas 1.000 dólares e é paga com bitcoins

Afonso Benites, El País

Ataques como o que sofreu o site do Tribunal Superior Eleitoral na manhã de domingo, durante o primeiro turno das eleições municipais no Brasil, custam apenas 1.000 dólares (cerca de 5.400 reais) em redes clandestinas de hackers. Essa compra ilegal pode ser feita na darkweb e até em sites abertos ao público sediados no exterior, com o pagamento por meio da moeda virtual bitcoin, que é mais difícil de ser rastreada. É um tipo de ataque de negação de serviços no qual redes de computadores zumbis, infectados por vírus e manipulados sem que seus donos saibam, tentam promover milhares de acessos simultâneos a um portal com o objetivo de retirá-lo do ar. Os dados foram levantados a pedido do EL PAÍS pela ONG SaferNet, que enxerga no ataque deste domingo a intenção de abastecer teorias conspiratórias.

No caso do site do TSE, o ataque foi de 30 gigabites por segundo durante uma hora. No período, era como se 436.000 computadores tentassem acessar a página a cada segundo. Ele foi repelido, e causou apenas uma lentidão nas informações acessadas no portal. Mas só a notícia de que o site estava sob risco já gerou um tsunami de teorias conspiratórias de que toda eleição poderia ser fraudada

Uma apuração iniciada pela SaferNet, que tem parceria com o Ministério Público Federal no combate à desinformação, mostra que a tentativa de derrubar o site do TSE teve uma ação coordenada que tinha como objetivo final desacreditar as eleições. E, entre os divulgadores das informações falsas difundidas poucos minutos ao ataque, estavam dezenas de militantes bolsonaristas, alguns deles investigados nos inquéritos das fake news e dos atos antidemocráticos, que tramitam no Supremo Tribunal Federal.

A conclusão da SaferNet é que o ataque foi uma operação em cadeia, iniciada em outubro, quando um grupo de hackers conseguiu obter informações dos recursos humanos sobre ex-servidores e ex-ministros da Corte. Esses dados só foram vazados por volta das 9h25 de domingo e, às 10h41, começou o ataque. Que foi repelido. Caso conseguisse retirar o site do ar, o efeito obtido seria apenas cosmético, pois não não teria a capacidade de alterar qualquer apuração eleitoral.

É o que o presidente da SaferNet, Thiago Tavares, chamou de “combustível das teorias da conspiração”. “Em caso de sucesso, os atacantes só trariam o inconveniente de a população ficar sem acesso ao serviço por um tempo. É uma operação cujo objetivo não era causar um dano material, mas psicológico. É você criar a suspeita, inocular na população o vírus da dúvida sobre a integridade, a lisura e a segurança do processo eleitoral”, disse Tavares ao EL PAÍS.

As informações obtidas pela equipe da ONG em tempo real no domingo foram compartilhadas com o TSE e com a Procuradoria Geral da República. Nelas há a comprovação que postagens com fake news resultaram em mais de um milhão de compartilhamentos o Facebook e no Instagram, em poucas horas.

Diante desses dados, o presidente da Corte, o ministro Luís Roberto Barroso, encaminhou o documento para a Polícia Federal que abriu uma apuração. O ministro suspeita que houve “uma motivação política na operação” e uma “orquestração para desacreditar o sistema e as instituições”.

“Milícias digitais entraram imediatamente em ação tentando desacreditar o sistema. Há suspeita de articulação de grupos extremistas que se empenham em desacreditar as instituições, clamam pela volta da ditadura e muitos deles são investigados pelo STF”. A rede zumbi envolvia computadores sediados no Brasil, na Nova Zelândia e nos Estados Unidos, conforme a apuração inicial do próprio TSE.

Essa milícia digital aproveitou a crise de imagem do tribunal para voltar a defender o voto impresso e para dizer que as urnas eletrônicas não são confiáveis, apesar de serem usadas há 24 anos no Brasil sem qualquer comprovação de fraude. “Se alguém trouxer um documento, uma prova, de que ocorreu alguma coisa errada, nós vamos imediatamente investigar. Ninguém aqui é apaixonado por urnas eletrônicas, somos apaixonados por eleições limpas”, afirmou Barroso.

Atraso na apuração

Um outro evento que impulsionou a rede de boatos foi o atraso em quase três horas na apuração dos votos. Neste caso, a demora, conforme o TSE, ocorreu porque não foi possível fazer todos os testes necessários no supercomputador que passou a ser usado na totalização dos votos neste ano. Antes, essa apuração era realizada pelos 26 tribunais regionais eleitorais. Neste ano, por sugestão da Polícia Federal, passou a ser centralizado o TSE.

O computador deveria ter sido entregue pela empresa Oracle, que venceu uma licitação, em março. Mas só o foi em agosto. Esse atraso afetou a inteligência artificial da máquina, porque fez com que menos testes fossem realizados, o que comprometeu a conclusão da apuração. “Ele [o computador] aprendeu pouco a entender o fluxo de informação que chega, que é uma quantidade muito alta de dados em um período muito curto”, explicou o secretário de tecnologia da informação do TSE, Giuseppe Janino.

Ainda assim, Barroso minimizou o atraso. Comparou a demora a um carro de fórmula um que precisa parar no box para fazer um reparo e, ainda assim, vende a corrida. “Tem país esperando há 14 dias a divulgação final dos resultados e o mundo não desabou por causa disso”, disse o ministro em alusão ao pleito nos Estados Unidos. Por lá, boa parte dos votos são em cédulas e impressas e, em alguns Estados, a contagem não foi concluída, apesar de o pleito ter ocorrido em 3 de novembro.


Bruno Carazza: Em busca de sinais

Eleições mornas dificultam leitura dos resultados

“Que lições podemos tirar destas eleições?”, pensava eu enquanto voltava para casa depois de cumprir minha obrigação democrática, esta coluna esperando para ser escrita. Seções sem filas, nenhum cabo eleitoral distribuindo santinhos nas imediações do local de votação, ruas desertas como num feriado qualquer - nem parecia dia de eleição.

A pandemia foi apontada por muitos como a principal razão para o desinteresse demonstrado pelo eleitor com o pleito deste ano. Certamente o medo da contaminação e as medidas de distanciamento social tiveram sua importância, mas o novo coronavírus está longe de ser a única explicação.

Nos últimos meses os governos locais flexibilizaram as restrições às atividades econômicas e sociais, e muitos de nós também relaxamos as limitações auto impostas de circulação. Dados compilados pelo aplicativo Waze e disponibilizados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) mostram que a taxa de congestionamento de trânsito nas regiões metropolitanas brasileiras, que chegaram a cair mais de 80% em abril, já estavam “apenas” 8% menores na última semana. O relatório de mobilidade urbana do Google também vai na mesma direção, indicando que a frequência a locais de trabalho, que atingiu -34% na última semana de março, já havia recuperado para -5% no dia 10, na média nacional.

Com bares lotados, comércio reaberto e até atividades de lazer e interação social (como clubes, academias e cultos) liberadas, seria muito raso atribuir à pandemia a culpa pelas eleições mais mornas de nosso passado recente. Afinal, se as campanhas não ganharam as ruas, tampouco agitaram as redes sociais. Depois de tudo o que se falou sobre o poder dessas novas mídias em 2018, a disputa entre Biden e Trump teve repercussão imensamente superior nos grupos de WhatsApp e no Twitter dos brasileiros do que o pleito atual.

Embora careça de comprovação científica a hipótese de que as eleições municipais são uma prévia das disputas gerais a serem realizadas dois anos depois, sempre houve uma conexão entre o local e o nacional, seja olhando para frente ou para trás.

Em 1992, o processo de impeachment de Collor impulsionou a vitória de muitos candidatos da esquerda (PT e PDT), e a implantação do Plano Real foi fundamental para o sucesso dos partidos da base de apoio de FHC em 1996.

Na sequência, os três principais partidos da redemocratização dominaram também o poder na maioria das cidades brasileiras na primeira década do século, com MDB, PSDB e PT angariando a maioria das prefeituras do país (e não só nas capitais).

Mas eleições municipais também funcionam como pequenos sismos que podem anunciar grandes terremotos políticos sendo gestados nas entranhas do território nacional. Foi assim em 2000, quando a vitória do PT em seis capitais importantes, nas cinco regiões geográficas, sinalizou que o partido abria caminho para alçar seu voo mais alto, com a eleição de Lula dois anos depois. Da mesma forma, o efeito devastador da Lava-Jato, o impedimento de Dilma e a crise econômica aplicaram uma surra nos petistas em 2016, permitindo o avanço de um discurso anti-establishment e conservador que desaguou na onda bolsonarista de dois anos atrás.

Em 2020, porém, nada disso parece ter ocorrido. Os grandes figurões da política nacional abstiveram-se de vestir a camisa e entrar com vontade no campo municipal. Bolsonaro, Lula, Ciro, Doria, Moro e Huck - nomes que vêm sendo apontados como prováveis nas urnas em 2022 - ou tiveram atuação pontual nas disputas (em geral com resultados bem ruins, como Lula e Bolsonaro), não se envolveram (Moro e Huck) ou até mesmo foram ignorados por correligionários (caso de Bruno Covas e Doria).

Com isso, as eleições deste ano perderam muito de seu apelo como previsão meteorológica do clima político no futuro próximo. Para completar, o auxílio emergencial ainda deixa a população anestesiada quanto aos efeitos econômicos da covid-19 (que chegarão com força em 2021), também impedindo a nacionalização da disputa. Isso não quer dizer, porém, que não possamos extrair algumas tendências para serem monitoradas a partir dos resultados eleitorais de ontem.

A maioria dos analistas tem criticado a fraqueza de Bolsonaro como cabo eleitoral (principalmente por causa do fracasso de Russomano em São Paulo), mas a recuperação de Crivella na véspera da eleição no Rio e o bom desempenho de candidatos evangélicos e militares Brasil afora mostram que o presidente mantém forte influência sobre boa parte do eleitorado brasileiro.

No outro extremo, o mau resultado nas capitais comprova a tendência, já visível em 2018, de enfraquecimento do petismo em favor de outras legendas que costumavam girar ao seu redor. Assim, a esquerda entra no jogo das próximas eleições presidenciais dividida entre um partido com estrutura, mas com forte resistência do eleitorado (PT), e novas lideranças com um discurso mais atraente principalmente para os jovens, mas sem musculatura nacional (Psol, PDT e PCdoB). Unir-se numa frente única ou seguirem independentes pelo menos no primeiro turno será o grande dilema a atormentar a esquerda daqui pra frente.

Para aqueles que esperam contar com uma opção viável entre Bolsonaro e um adversário de esquerda em 2022, os resultados de ontem indicam que o eleitorado pode se inclinar mais à centro-direita do que à centro-esquerda. As vitórias (ou lideranças provisórias) de candidatos do DEM, PSDB, PSD e demais partidos do Centrão nas capitais mais populosas e no Nordeste - onde se deu a resistência de Haddad em 2018 - indicam que a construção de uma opção nesse campo pode ter condições de furar a polarização atual. Resta saber se essas forças de direita, menos extremas que o bolsonarismo, conseguirão chegar a um denominador comum ou entrar fragmentados (e assim, fadados à derrota) como foi há dois anos.

A falta de empolgação do eleitor e a prevalência de fatores locais sobre os nacionais tiraram o brilho da disputa de ontem. Isso, porém, não reduz a importância do seu resultado. Pelo contrário, analistas e principalmente lideranças políticas levaram um bom tempo deglutindo os números das urnas.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”


Vera Magalhães: Há espaço contra polarização Bolsonaro-PT

O que fica evidente é que há espaço para projetos alternativos à polarização Bolsonaro-PT, porque o eleitor está cansado do primeiro e sem saudade do segundo

Existe a máxima segundo a qual eleições municipais levam em conta apenas fatores diretamente ligados aos municípios. É verdade. Mas também é impossível, sobretudo nos grandes centros urbanos, dissociar esse voto de algumas balizas nacionais.

A primeira delas neste 2020 é a pandemia. Ela não só mudou a maneira como se fez campanha como moldou a disposição do eleitor de encarar os candidatos de forma mais racional e desapaixonada. Os gestores que demonstraram responsabilidade no trato da pandemia foram reconhecidos pelo eleitor.

A segunda grande conclusão possível é que houve um resgate da política do pântano no qual ela foi jogada depois de eventos traumáticos como Lava Jato, impeachment de Dilma Rousseff, prisão de Lula, desmoralização de Aécio Neves e denúncias em série contra Michel Temer no curso de sua curta Presidência.

Esse conjunto surreal de eventos, em menos de quatro anos, permitiu que um outsider como Jair Bolsonaro virasse um Cacareco com sucesso eleitoral.

A pandemia, a maneira irresponsável com que Bolsonaro se comportou ao longo do ano e a rápida debacle de outras figuras histriônicas eleitas na sua aba levaram a que agora, apenas dois anos depois, a “nova” política fosse devolvida às redes sociais.

A terceira conclusão é o surgimento de uma nova esquerda não petista com musculatura em todo o País. PSOL, PDT, PSB e até o PC do B, com histórico de ser um satélite petista, vão avançando em várias capitais, ao passo que o PT tem a cabeça de chapa em apenas duas disputas de segundo turno – sem ser favorito em nenhuma delas.

O partido segue negando as evidências: o fato de que não fez nenhum gesto sincero e efetivo de reconhecimento de que promoveu corrupção sistêmica no governo, ao mesmo tempo em que destruiu a economia.

Por fim, a eleição mostra um espaço de reconstituição do centro, também ele dizimado em 2018. A abrangência desse centro, suas delimitações à esquerda e à direita e quem será aceito na festa do céu são questões postas desde já. O que fica evidente é que há espaço para projetos alternativos à polarização Bolsonaro-PT, porque o eleitor está cansado do primeiro e sem saudade do segundo.